segunda-feira, 5 de junho de 2017

4241) Bob Dylan: a aula do Nobel (5.6.2017)



Conferência Nobel sobre Literatura 2016
Bob Dylan
Gravada em 4 de junho de 2017 - Los Angeles, CA
Tradução: Braulio Tavares


Assim que recebi este Prêmio Nobel de Literatura, comecei a imaginar de que maneira precisa minhas canções se relacionam com a literatura.

Eu queria refletir sobre isto e ver onde era a conexão. E vou tentar articular essas reflexões para vocês.

Provavelmente vou fazer isso usando muitos rodeios, mas espero que o que eu vou dizer valha a pena, e explique minhas intenções.

Se eu me reportar ao início de tudo, acho que tenho de começar com Buddy Holly.

Buddy morreu quando eu tinha por volta de 18 anos, e ele tinha 22. No momento em que o ouvi cantar pela primeira vez, senti que tínhamos afinidade.

Senti que havia uma relação, como se ele fosse um irmão mais velho. Cheguei até a achar que eu me parecia com ele.

Buddy tocava a música que eu amava – a música que eu cresci escutando: country western, rock’n’roll e rhythm and blues.

Três correntes musicais diferentes que ele misturava e destilava num único gênero. Uma marca.

E Buddy escrevia canções – canções que tinham belas melodias e versos cheios de imaginação. E ele cantava muito bem – cantava em muitas e diferentes vozes.

Ele era o arquétipo. Tudo que eu não era e que queria ser. Eu o vi somente uma vez, e isto foi poucos dias antes da sua morte.

Tive que viajar 100 milhas para vê-lo tocar, e não me decepcionei.

Ela tinha força, era eletrizante, tinha uma presença dominadora. Eu estava a apenas dois metros de distância. Ele era hipnótico.

Eu olhava o rosto dele, as mãos, o modo como ele marcava o ritmo com o pé, seus grandes óculos de armação preta,

Os olhos por trás dos óculos, o modo como segurava a guitarra, a postura de pé, o terno caprichado.

Olhei tudo nele. Ele parecia ter mais do que 22 anos.

Algo nele parecia ser permanente, e ele me transmitia uma enorme convicção.

Então, de repente, a coisa mais estranha aconteceu. Ele me olhou direto, no fundo dos olhos, e me transmitiu alguma coisa.

Algo que eu não sabia o que era. E aquilo me arrepiou por inteiro.

Acho que foi apenas um ou dois dias depois disto que o avião dele caiu.

E alguém, alguém que eu nunca vira antes, me deu um álbum de Leadbelly, o disco que tinha a canção “Cottonfields”.

Aquele disco mudou minha vida, naquele local e naquele momento. Me transportou para um mundo que eu jamais teria conhecido.

Era como se tivesse havido uma explosão. Como se eu estivesse andando na escuridão e de repente tudo ao meu redor se iluminasse.

Era como se alguém tivesse imposto as mãos sobre mim. Eu devo ter tocado aquele disco umas cem vezes.

O disco era de um selo de que eu nunca tinha ouvido falar, e dentro havia um folheto com anúncios de outros artistas daquele selo:

Sonny Terry e Brownie McGhee, os New Lost City Ramblers, Jean Ritchie, grupos de cordas.

Eu nunca tinha ouvido falar em nenhum deles. Mas deduzi que se pertenciam ao mesmo selo de Leadbelly eles tinham que ser bons, então eu precisava ouvi-los.

Eu queria saber tudo a respeito deles e tocar aquele tipo de música. Eu ainda amava a música que crescera ouvindo, mas, naquele momento, eu a esqueci.

Nem pensava mais nela. Naquele momento, ela tinha ficado lá para trás.

Eu ainda não tinha ido embora de casa, mas estava impaciente. Queria aprender aquela música, e conhecer as pessoas que a tocavam.

Finalmente saí de casa, e comecei a aprender a tocar aquelas músicas. Eram diferentes das canções de rádio que eu vinha escutando até então.

Eram mais vibrantes, mais cheias de vida. Nas canções do rádio, um artista podia emplacar um sucesso como quem joga dados ou cartas, mas no mundo folk isso não tinha importância.

Tudo ali fazia sucesso. Tudo que era preciso ali era ser bom de verso e saber tocar a melodia. Algumas daquelas canções eram fáceis, outras não.

Eu tinha um jeito natural para as antigas baladas e os country blues, mas todo o resto eu tive que aprender do zero.

Eu tocava para públicos pequenos, às vezes não mais do que quatro ou cinco pessoas numa sala ou numa esquina.

Era preciso ter um repertório amplo, e era preciso saber o quê tocar, e em que momento.

Algumas canções eram intimistas, outras você tinha que gritar para poder ser ouvido.

Ouvindo os antigos artistas folk e cantando suas canções, você aprendia o vernáculo deles. E o internalizava.

E você canta os ragtime blues, as canções de trabalho, os cânticos marítimos da Georgia, as baladas dos montes Apalaches e as canções de vaqueiro.

Você escuta os aspectos mais sutis, e aprende cada detalhe.

Você aprende como são as coisas. Puxar a pistola e guardá-la de novo no bolso.

Abrir caminho no meio do trânsito, falar no escuro. Você aprende que Stagger Lee era um sujeito mau e que Frankie era uma boa menina.

Você aprende que Washington era uma cidade burguesa, e você escuta a voz grave e profunda do profeta João em Patmos e você vê o Titanic afundar num riacho lamacento.

Você fica amigo do rebelde andarilho irlandês e do rebelde rapaz da colônia. Você escuta os tambores surdos e os pífanos que tocam devagar.

Você vê o lúbrico Lord Donald enfiar a faca na esposa, e vê que os corpos de tantos camaradas seus estão envoltos em linho branco.

Eu já estava de posse do vernáculo. Eu sabia a retórica.

Nada daquilo se perdeu: os recursos, as técnicas, os segredos, os mistérios, e eu conhecia também todas as estradas desertas por onde aquela música viajou.

Eu podia fazer aquilo tudo se conectar e se mover com a correnteza dos meus dias.

Quando comecei a escrever minhas próprias canções, o linguajar folk era o único vocabulário que eu conhecia, e foi o que usei.

Mas eu tinha outra coisa. Eu tinha mestres, e sensibilidade, e uma visão do mundo bem informada. Já tinha isso há algum tempo. Aprendi isso na escola fundamental.

Dom Quixote, Ivanhoé, Robinson Crusoe, Uma História de Duas Cidades e todo o resto – as leituras típicas do ensino fundamental, que nos forneciam um modo de encarar a vida,

um entendimento da natureza humana, e um padrão com que comparar as outras coisas.

Eu trazia isso tudo comigo quando comecei a escrever minhas letras. E os temas daqueles livros acabaram desaguando em muitas das minhas canções, conscientemente ou sem intenção.

Eu queria escrever canções diferentes de tudo que já houvesse sido escutado, e esses temas eram fundamentais.

Há livros específicos que permaneceram comigo desde que eu os li na escola, quando garoto, e gostaria falar a respeito de três deles.

Eles são Moby Dick, Nada de Novo na Frente Ocidental e A Odisséia.

Moby Dick é um livro fascinante, um livro cheio de cenas de alta dramaticidade e de diálogo dramático. É um livro que impõe exigências ao leitor.

O enredo é linear.

O misterioso Capitão Ahab, o capitão de um navio chamado Pequod, é um egomaníaco com uma perna de pau, perseguindo sua nêmese, a grande baleia branca Moby Dick, que arrancou sua perna.

E ele a persegue por todo o Atlântico, rodeando a extremidade da África e indo até o Oceano Índico.

Ele persegue a baleia em ambas as faces da Terra. É um objetivo abstrato, nada que seja concreto ou definido.

Ele chama Moby Dick “o Imperador”, e a vê como a encarnação do mal. Ahab tem esposa e filho lá em Nantucket, e fala de vez em quando sobre eles.

A gente pode antever o que vai acabar acontecendo.

A tripulação do navio é formada por homens de diferentes raças, e aquele que primeiro avistar a baleia receberá uma moeda de ouro.

Há uma porção de símbolos do Zodíaco, alegorias religiosas, estereótipos. Ahab encontra outros navios baleeiros, e pressiona os capitães pedindo informação sobre Moby.

“Vocês a viram?”  Há um profeta maluco, Gabriel, em um dos navios, e ele prediz a desgraça final de Ahab.

Ele diz que Moby é a encarnação do deus dos Shakers, e que mexer com ela conduz ao desastre. Diz isso ao capitão Ahab.

Outro capitão de navio, o capitão Boomer, perdeu um braço lutando com Moby Dick. Mas ele suporta isto, e está feliz por ter sobrevivido.

Ele não consegue aceitar a sede de vingança de Ahab.

Esse livro mostra como homens diferentes reagem de maneiras diferentes à mesma experiência.

Há muita coisa do Velho Testamento, de alegorias bíblicas: Gabriel, Raquel, Jeroboão, Bilda, Elias,

Nomes pagãos também: Tashtego, Flask, Daggoo, Fleece, Starbuck, Stubb, Martha’s Vineyard. Os pagãos são adoradores de ídolos.

Alguns adoram pequenas imagens de cera, outros adoram imagens de madeira. Alguns adoram o fogo. Pequod é o nome de uma tribo indígena.

Moby Dick é uma história de aventura marítima. Um dos homens, o narrador, diz: “Chamai-me Ismael”.

Alguém lhe pergunta de onde ele é, e ele diz: “Não está em nenhum mapa. Os lugares de verdade nunca estão”.

Stubb não atribui significado a nada, diz que tudo está predestinado. Ismael tem vivido em navios a vida inteira.

Ele chama os navios de sua Harvard e Yale. Ele se mantém distanciado das pessoas.

Um tufão atinge o Pequod. O capitão Ahab acha que aquilo é um bom agouro. Starbuck pensa que é um mau agouro e pensa em matar Ahab.

Assim que a tempestade passa, um tripulante cai do mastro e se afoga, dando um prenúncio do que está para acontecer.

Um pastor Quaker, um pacifista que é na verdade um voraz homem de negócios, diz a Flask,

“Alguns homens que recebem ferimentos são conduzidos para Deus, outros são conduzidos para a amargura.”

Tudo se mistura ali. Todos os mitos: a Bíblia judaico-cristã, os mitos hindus, as lendas britânicas, São Jorge, Perseu, Hércules – todos são caçadores de baleias.

Mitologia grega, a atividade arrepiante de retalhar uma baleia.

Muitos fatos deste livro, conhecimentos geográficos, sobre óleo de baleia (bom para a coroação dos reis), as famílias nobres da indústria da baleia.

O óleo da baleia é usado para ungir os reis.

A história da baleia, a frenologia, a filosofia clássica, as teorias pseudo-científicas, as justificativas para a discriminação—

Tudo é jogado ali dentro, e nada é sequer um pouco racional.

Gente culta, gente inculta, a busca de ilusões, a busca da morte, a grande baleia branca. Branca como um urso polar, branca como o homem branco, o imperador, a nêmese, a encarnação do mal.

O capitão insano que perdeu a perna anos atrás tentando atacar Moby com uma faca.

Vemos apenas a superfície das coisas. Podemos interpretar o que jaz por baixo dela da maneira que quisermos.

Tripulantes andam pelo convés escutando sereias, e tubarões e abutres seguem o navio. Lendo caveiras e rostos como quem lê um livro.

Aqui está um rosto. Vou pô-lo à sua frente. Leia se puder.

Tashtego diz que morreu e nasceu de novo. Seus dias extra são um dom.

Mas ele não foi salvo por Cristo, ele diz que foi salvo por outro homem, e um não-cristão ainda por cima. Ele parodia a ressurreição.

Quando Starbuck diz a Ahab que ele devia deixar para trás o que aconteceu, o capitão, zangado, retruca: “Não venha me falar de blasfêmia, homem, eu atacaria o sol se ele me insultasse”.

Ahab, também, é um poeta eloquente. Ele diz: “O caminho da minha idéia fixa está provido de trilhos do tamanho da bitola da minha alma”.

Ou esta frase: “Todos os objetos visíveis são máscaras de papel machê”. Frases poéticas boas de citar, insuperáveis.

Finalmente Ahab avista Moby, e os arpões são preparados. Os barcos descem para a água. O arpão de Ahab foi batizado com sangue. Moby ataca o barco de Ahab e o destrói.

No dia seguinte, ele avista Moby de novo. Os barcos descem novamente. Moby ataca o barco de Ahab novamente.

No terceiro dia, mais um barco. Mais alegoria religiosa. Ele se ergueu dos mortos. Moby ataca mais uma vez, chocando-se contra o Pequod e afundando-o.

Ahab se enrola nas cordas do arpão e é jogado para fora do barco, para o sepulcro nas águas.

Ismael sobrevive. Ele fica no mar, flutuando com um ataúde. E isto é tudo. É toda a história.

Este tema, e tudo que ele sugere, acabaria surgindo em várias das minhas canções.

Nada de Novo na Frente Ocidental foi outro livro que me marcou. Nada de Novo na Frente Ocidental é uma história de horror.

Este é um livro onde você perde sua infância, sua fé num mundo que faça sentido, sua preocupação com os indivíduos.

Você está preso num pesadelo. Arrebatado por um redemoinho misterioso de morte e de dor. Você está se defendendo da aniquilação.

Você está sendo varrido do mapa. Houve um tempo em que você era um jovem inocente que sonhava em ser pianista de concerto.

Houve um tempo em que você amava a vida e amava o mundo, e agora você os está reduzindo a pedaços com uma arma.

Dia após dia, os marimbondos o ferroam, e os vermes bebem seu sangue. Você é um animal encurralado. Não se encaixa em lugar nenhum.

A chuva cai, monótona.

Há intermináveis tiroteios, gás venenoso, gás dos nervos, morfina, faixas ardentes de gasolina, a caça febril por comida, a gripe, o tifo, a disenteria.

A vida desmorona ao seu redor, e as balas passam zunindo. Esta é a mais baixa região do inferno.

Lama, arame farpado, trincheiras cheias de ratos, ratos comendo os intestinos de homens mortos, trincheiras cheias de sujeira e excremento.

Alguém grita: “Ei, você aí, fique de pé e lute!”

Quem sabe quanto tempo essa loucura vai demorar? A guerra não conhece limites. Você está sendo aniquilado, e essa sua perna está sangrando demais.

Você matou um homem ontem, e conversou com o corpo dele. Você lhe disse que quando isto tudo terminar, você vai passar o resto da sua vida cuidando da família dele.

Quem ganha alguma coisa com isto? Os líderes e os generais ganham fama, e muitos outros têm lucros financeiros.

Mas é você quem faz o trabalho sujo. Um dos seus camaradas diz: “Espere aí, onde você está indo?” e você responde: “Me deixe em paz, eu volto num minuto”.

E você sai andando por entre o bosque da morte, à procura de um pedaço de salsicha. Você não entende como é que qualquer pessoa na vida civil possa ter algum propósito na vida.

Todas as preocupações deles, os seus desejos – você não consegue compreendê-los.

Mais metralhadoras disparam, mais pedaços de corpos pendem dos arames farpados, mas pedaços de braços e pernas e cabeças onde as borboletas pousam sobre os dentes,

Mais feridas horrendas, o pus brotando dos poros, ferimentos no pulmão, ferimentos grandes demais para um corpo, cadáveres soltando gases, corpos de defuntos produzindo ruídos repugnantes.

A morte está por toda parte. Nada mais é possível. Alguém vai matá-lo e usar seu corpo para praticar tiro ao alvo.

As botas também. São sua coisa mais preciosa. Mas daqui a pouco estarão nos pés de alguém.

Os franceses estão surgindo por entre as árvores. Bastardos impiedosos. Sua munição está acabando. “Não é justo nos atacar de novo tão rápido”, diz você.

Um dos seus colegas está caído na lama, e você quer levá-lo para o hospital de campanha. Alguém diz: “Pode economizar essa viagem.”

“O que quer dizer?”  “ Vire o corpo dele, vai ver o que é”.

Você espera para ouvir as notícias. Não entende por que essa guerra não acabou ainda.

O exército está tão entregue a seus próprios recursos para repor tropas que está recorrendo a meninos, que têm pouca utilidade militar, mas têm que ser convocados de qualquer modo, porque os homens estão acabando.

A doença e a humilhação deixam você de coração partido. Você foi traído pelos seus pais, seus professores, seus ministros, seu próprio governo.

O general que fuma devagar seu charuto traiu você também – transformou você num bandido e num assassino. Se você pudesse, meteria uma bala na cara dele.

O comandante também.

Você fantasia que se tivesse dinheiro, ofereceria uma recompensa para qualquer homem que tirasse a vida dele por qualquer meio.

E se perdesse a vida fazendo isso, o dinheiro iria para seus herdeiros. O coronel, também  - com seu caviar e seu café. É outro.

Passa todo o seu tempo no bordel dos oficiais. Você gostaria de vê-lo morto também. Mais soldados rasos cantando “whack for me daddy-o” e “whiskey in the jars”.  [https://en.wikipedia.org/wiki/Whiskey_in_the_Jar ]


Você mata trinta, e outros trinta se erguem no mesmo lugar. O mau cheiro enche suas narinas.

Você sente desprezo pela velha geração que mandou você para essa loucura, para essa câmara de tortura. À sua volta, seus camaradas estão todos morrendo.

Morrendo de ferimentos abdominais, amputações duplas, fêmures destroçados, e você pensa: “Eu só tenho vinte anos, mas sou capaz de matar qualquer um”.

“Até meu pai, se aparecer aqui”.

Ontem, você quis salvar um cão-mensageiro ferido, e alguém gritou: ”Não seja idiota”.

Um francês está gorgolejando aos seus pés. Você enterrou a baioneta no estômago dele, mas ele ainda continua vivo.

Você sabe que devia acabar o serviço, mas não consegue. É você quem está numa cruz de verdade, e um soldado romano pondo uma esponja com vinagre em sua boca.

Os meses passam. Você recebe uma licença para visitar a família.

Você não se comunica mais com seu pai. Ele diz: “Você seria um covarde se não se alistasse”.

Sua mãe também; quando o acompanha até a porta ela diz: “É melhor ter cuidado com aquelas garotas da França”.

Mais loucura. Você luta durante uma semana ou um mês, e avança dez metros. E na semana seguinte é forçado a recuar.

Toda aquela cultura de mil anos atrás, aquela filosofia, aquela sabedoria – Platão, Aristóteles, Sócrates – o que aconteceu com ela? Ela devia ter evitado isto.

Seus pensamentos se voltam para sua casa. E mais uma vez você é um estudante caminhando entre as árvores. É uma lembrança agradável.

Mais bombas caem à sua volta. Você precisa se controlar agora. Não pode sequer olhar para alguém com medo de algo imprevisível que possa acontecer.

A vala comum. Não há outra possibilidade.

Então você vê as flores brotando, e percebe que a natureza não é afetada por aquilo tudo.

As árvores, as borboletas vermelhas, a beleza frágil das flores, o sol – você vê como a natureza é indiferente àquilo tudo.

Toda a violência e o sofrimento da humanidade. A natureza nem sequer se dá conta.

Você está tão sozinho. Então um estilhaço de obus acerta o lado de sua cabeça e você morre.

Você foi riscado, eliminado. Foi exterminado.

Eu pousei esse livro e o fechei. Nunca quis ler outro romance de guerra depois, e não li.

Charlie Poole, da Carolina do Norte, tem uma canção que tem a ver com isto. Ela se intitula “Você Não Está Falando Comigo”, e a letra diz assim:

“Eu vi um letreiro numa janela quando vinha pela cidade um dia. Venha para o Exército, veja o mundo e o que ele tem para dizer.

“Você vai conhecer belos lugares com uma turma animada, vai encontrar gente interessante, e aprender a matá-la também.

“Ah, você não está falando comigo, não está falando comigo.

“Eu posso ser doido e tudo o mais, mas veja que eu tenho bom senso

“Você não está falando comigo, não está falando comigo.

“Matar com um a arma não parece muito divertido. Você não está falando comigo.”

A Odisséia é um grande livro cujos temas chegaram até as baladas de muitos compositores:

“Indo Para Casa”, “Os Verdes Relvados da Minha Terra”, “Casa na Campina”... e nas minhas canções também.

A Odisséia é a história estranha e aventurosa de um homem adulto tentando voltar para casa depois de lutar numa guerra.

Ele está numa longa viagem para casa, cheia de acidentes e armadilhas.

A maldição dele é vaguear. Ele está sendo sempre levado para o mar, sempre perseguido. Grandes rochedos caem perto do seu barco.

Ele irrita pessoas que não deveria irritar. Na sua tripulação há uma porção de encrenqueiros. Traidores.

Seus homens são transformados em porcos, e depois em homens jovens e bonitos. Ele está sempre tentando resgatar alguém.

Ele é acostumado a viagens, mas desta vez está fazendo paradas demais.

Ele está perdido numa ilha deserta. Encontra cavernas vazias e se esconde nelas. Encontra gigantes que dizem: “Vou comer você por último”.

E ele escapa dos gigantes.

Ele tenta ir para casa, mas está sendo empurrado e retido pelos ventos.

Ventos inquietos, ventos gelados, ventos inimigos. Ele viaja para longe, e depois é empurrado de volta pelo vento.

Ele está sempre recebendo avisos de coisas que estão por vir. Tocando em coisas proibidas. Há dois caminhos para escolher, e ambos são más escolhas. Ambos são incertos.

Num você pode se afogar, no outro pode morrer de fome.

Ele entra no desfiladeiro estreito onde redemoinhos espumejantes o engolem. Encontra monstros de seis cabeças com dentes afiados. Raios caem sobre ele.

Galhos altos de onde ele se joga e se agarra para fugir de um rio furioso.

Deuses e deusas o protegem, mas há outros que querem matá-lo.

Ela muda de identidade. Está exausto. Adormece, e acorda com um som de gargalhada.

Ele conta sua história a alguns estranhos. Esteve fora durante vinte anos.

Ele foi carregado por alguém e largado ali. Botaram drogas no seu vinho. Foi uma estrada muito dura de trilhar.

De muitas maneiras, estas mesmas coisas aconteceram com você.

Também botaram drogas no seu vinho. Você também dividiu a cama com a mulher errada.

Você também foi seduzido pelo encantamento de vozes mágicas, vozes doces com estranhas melodias.

Você também chegou até aqui e foi empurrado de volta.

Você também passou por perigos iminentes.

Você irritou gente que não devia.

Você também andou sem destino por este país. E você também sentiu o sopro daquele vento mau, aquele que não traz nenhuma coisa boa.

E isto ainda não é tudo.

Quando ele volta para casa, as coisas não estão melhores. Canalhas invadiram sua casa e estão tirando proveito da hospitalidade da esposa dele.

E eles são muitos.

E embora ele seja maior que todos, e seja o melhor em tudo – o melhor carpinteiro, o melhor caçador, o melhor conhecedor de animais, o melhor marinheiro –

Sua coragem não vai poder salvá-lo, mas sua esperteza sim.

Todos esses penetras vão pagar por terem profanado o seu palácio.

Ele se disfarça como um mendigo sujo, e um dos criados o derruba na escada a pontapés, com arrogância e estupidez.

A arrogância do criado o revolta, mas ele controla sua raiva. Ele é um contra uma centena, mas todos eles vão tombar, mesmo os mais fortes.

Ele não era ninguém. E quando tudo acaba, quando finalmente ele pode dizer que está em casa, ele senta com sua esposa, e conta a ela as histórias.

Então, o que significa tudo isto?

Eu e muitos outros autores de canções fomos influenciados por estes mesmos temas.

E eles podem significar uma porção de coisas.

Se uma canção emociona você, é isso que importa.

Eu não preciso saber o que uma canção significa. Eu já escrevi todo tipo de coisas em minhas canções.

E não vou me preocupar com isso – com o que aquilo significa.

Quando Melville emprega todas aquelas referências bíblicas do Velho Testamento,

Teorias científicas, doutrinas protestantes,

E todo aquele conhecimento do mar, dos navios e das baleias, tudo numa só história,

Eu também não creio que ele estivesse também preocupado com isso – com o que aquilo significa.

John Donne, também, o padre-poeta que viveu no tempo de Shakespeare, escreveu estas palavras,

“O Sestos e Abydos dos seus seios. Não de dois amantes, mas dois amores, os ninhos”.

Eu também não sei o significado. Mas o som é bonito.

E você vai querer que suas canções soem bem.

Quando Odisseu, na Odisséia, visita o famoso guerreiro Aquiles no mundo subterrâneo,

Aquiles, que trocou uma vida longa, cheia de paz e satisfação, por uma vida curta cheia de honra e de glória,

Diz a Odisseu que foi tudo um engano. “Eu morri, e isso é tudo.

“Não houve honra. Não houve imortalidade.

E diz que se pudesse escolheria voltar e ser escravo de um fazendeiro qualquer na terra do que ser o que é–

“Um rei na terra dos mortos."

Diz que não importa quais fossem suas lutas na vida, elas eram preferíveis a estar ali naquele reino dos mortos.

E é isso que as nossas canções também são. Nossas canções estão vivas, na terra dos vivos.

Mas canções são diferentes da literatura. São feitas para serem cantadas, não para serem lidas.

As palavras nas peças de Shakespeare foram feitas para ser ditas num palco. Assim como as letras das canções são feitas para ser cantadas, não para ser lidas numa página.

E eu espero que alguns de vocês tenham a chance de escutar estas letras de acordo com a intenção com que elas foram feitas:

Em concertos, ou em discos, ou onde quer que as pessoas estejam escutando canções nos dias de hoje.

Volto mais uma vez a Homero, que diz: “Canta em mim, ó Musa, e através de mim conta a história”.


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O arquivo de áudio com o texto em inglês:

https://www.youtube.com/watch?v=3Zf04vnVPfM



sábado, 3 de junho de 2017

4240) Todo mundo é ladrão (3.6.2017)





É um dos bordões mais pessimistas repetidos hoje em dia em nossa malbaratada República, não é mesmo?  

Sou um antigo leitor de romances policiais e já li todo tipo de conversa de bandido. Em romance, em filme, em série de TV, e até mesmo no noticiário jornalístico ou em mesas de bar, a gente está sempre sujeito a ouvir explicações ou justificativas de todo tipo para esse refrão recorrente: “Todo mundo é ladrão”.

Tanto é assim que resolvi começar a colecionar estas justificativas.

“Todo mundo é ladrão... Quem faz o roubo é a ocasião, porque o ladrão já nasce feito.

"Todo mundo é ladrão... Basta ter coragem. Você só não é ladrão porque é frouxo.”

“Todo mundo é ladrão... Quem paga o pato são aqueles que se deixam apanhar.”

“Todo mundo é ladrão... Mas não necessariamente de dinheiro.”

“Todo mundo é ladrão... Por isso é tão fácil roubar usando a mão alheia”.

“Todo mundo é ladrão... Portanto, vá roubar no seu ambiente de trabalho, e me deixe roubar em paz no meu”.

“Todo mundo é ladrão... Você é apenas a exceção-que-confirma-a-regra”.

“Todo mundo é ladrão... Você pensa que não é, mas só porque a oportunidade ideal ainda não apareceu na sua frente”.

“Todo mundo é ladrão... Você pensa que é honesto porque só dá golpezinhos mixurucas, aquelas coisa que todo-mundo-faz.”

“Todo mundo é ladrão... Mas existem os amadores e existem os profissionais.”

“Todo mundo é ladrão... Mesmo que seja escrupulosamente honesto em outros departamentos”.

“Todo mundo é ladrão... Porque isso não é escolha, vem na hemoglobina, vem no DNA”.

“Todo mundo é ladrão... Só que alguns nunca precisaram disso pra valer.”

“Todo mundo é ladrão...E tem tanto defeito mais importante do que esse!”

“Todo mundo é ladrão... E o mundo é dos mais competentes”.






quarta-feira, 31 de maio de 2017

4239) O Desespero Precoce (31.5.2017)



Existe um tipo especial de tragédia que nos faz sofrer ainda mais vividamente, seja uma tragédia da ficção ou uma da vida real. É aquela tragédia que só aconteceu por um triz, que teve tudo (ou pelo menos uma grande possibilidade) de ser evitada, mas que por um pequeno detalhe acabou acontecendo.

Diferentemente daquelas tragédias gregas em que o Universo e o Olimpo em peso parecem conspirar para a infelicidade de um personagem, estas outras tragédias doem ainda mais porque se devem a uma besteira, um detalhe, àquilo que o jagunço Riobaldo, de Guimarães Rosa, chamava “o nada coisinha mesma nenhuma de nada, o menorzinho de todos”.

O telefone tocou com a mensagem salvadora, mas não havia ninguém para atender. O socorro chegou, mas não deu mais tempo. Um parafuso qualquer se soltou, e o terrível acidente aconteceu. Uma frase foi ouvida casualmente, e daí em diante vidas foram desgraçadas. A pessoa perdeu um voo por alguns minutos, e foi reencaminhada para o voo fatal. São tantas as possibilidades.

Uma destas, que lembro de vez em quando, é a que chamo de O Desespero Precoce. É quando em função de um problema grave ou de uma catástrofe o personagem se deixa abater por ela, sem saber que ela poderia ser cancelada se ele pelo menos tivesse tido, diante desse problema inicial, um pouco mais de paciência, de serenidade, de cabeça fria.

Um exemplo clássico é o do Romeu e Julieta de Shakespeare. Frei Lourenço, querendo ajudar na fuga dos jovens, sugere a Julieta tomar um narcótico e ser dada como morta, para despertar depois de 24 horas. Fazem isso. Julieta é pranteada, e colocada no sepulcro da família, enquanto Frei Lourenço manda alguém avisar Romeu do plano. O aviso não chega a Romeu: chega a notícia (de conhecimento geral) de que Julieta morreu. Quando ele vai ao sepulcro e a vê em estado meio cataléptico, ele se desespera e se mata.

Esse é o elemento trágico: o Desespero Precoce. Se Romeu tivesse ficado ali se lamentando durante mais umas horinhas, a namorada iria despertar, lépida e fagueira, e os dois seriam felizes para sempre. Mas Romeu reage apressadamente ao primeiro sinal negativo do Destino, e se mata. Fico imaginando um milhão de platéias ansiosas erguendo milhões de braços para o palco e gritando: “Não se mate! Ela está viva!”. O Destino é um dramaturgo cruel.

Há um versinho atribuído a Piet Hein (1905-1996) que diz (o original é em  dinamarquês; achei uma versão em inglês na web):

Losing one glove is certainly painful, 
but nothing compared to the pain 
of losing one, throwing away the other, 
and finding the first one again.

Conheço esta quadra desde pequeno, sob esta forma (muito bem traduzida, aliás):

Perder uma luva é uma dor profunda,
mas não se compara à dor pungente,
de perder essa luva, jogar fora a segunda,
e encontrar a primeira novamente.

É um mito persistente em nossa memória cultural.

Reza outra lenda que quando Teseu partiu para enfrentar o Minotauro no Labirinto de Creta, seu navio usava velas negras; ele prometeu ao seu pai, o rei Egeu, que se voltasse vitorioso as trocaria por velas brancas. Teseu derrotou o Minotauro, mas na comemoração ele e os marinheiros devem ter tomado tanta cerveja que esqueceram de trocar as velas. O rei, ao avistar de longe o navio se aproximando com velas pretas, teve o famoso acesso de Desespero Precoce e jogou-se no mar, morrendo afogado. (Ariano Suassuna usou uma variante deste episódio em seu romance Fernando e Isaura, de 1956).

Penso nessas coisas sempre que leio alguma coisa de ou sobre Walter Benjamin (1892-1940), um filósofo que conheço pouco mas que escreveu textos memoráveis sobre literatura. Benjamin era judeu, e durante a II Guerra tentou fugir da França invadida, para escapar à perseguição nazista. Chegou à Catalunha, de onde esperava seguir para Portugal e dali para os EUA.

Benjamin foi detido na fronteira com um grupo de fugitivos, e ali recebeu a péssima notícia de que o governo espanhol iria repatriar todos eles de volta para a França, para serem entregues aos nazistas. Abatido, exausto, ele se suicidou na noite de 25 de setembro. No dia seguinte, no meio do tumulto da guerra, o grupo de que fazia parte teve seu acesso liberado, e chegou a Lisboa no dia 30.

Romeu só faz falta a Julieta, um rei grego a mais não faz falta a ninguém, mas perder um autor como Walter Benjamin aos 48 anos de idade é algo pra fazer a gente sentir na carne a tragédia do Desespero Precoce. Dá vontade de morrer também.

Existe remédio contra essa síndrome? De que maneira reagir ao primeiro sinal de que não há mais esperanças, de que está tudo acabado? O único contraexemplo que me ocorre é o de Anthony Burgess, o autor de Laranja Mecânica.

O episódio é meio controvertido, porque ele costumava fantasiar muito a própria biografia. Mas consta que Burgess trabalhava no Serviço Colonial inglês na Malásia, e em 1959 foi dispensado, ao receber um diagnóstico de câncer terminal. O escritor ficou apavorado, entre outras coisas pela perspectiva de deixar a família passando necessidades. E danou-se a trabalhar.

Reza a lenda que Burgess escreveu cinco romances ao longo do ano de 1960, e em 1964 tinha concluído um total de onze livros, entre eles o famoso A Clockwork Orange, e enquanto isso nada de câncer. Ele podia ter pulado de um prédio, não é mesmo? Mas ao invés de ceder ao Desespero Precoce o nosso amigo sentou no teclado e mandou brasa. Só foi morrer, coitado, em 1993, mais de trinta anos depois da sentença de morte proferida pela medicina.

Seu caso não é o único, pois grande parte da obra do chileno Roberto Bolaño, o autor de Os Detetives Selvagens e de 2666, foi escrita após o diagnóstico de uma doença grave, da qual acabou morrendo mesmo, mas bem depois do previsto, e não sem produzir uma quantidade enorme de livros para garantir o leite das crianças.

Não sei bem como batizar esse impulso; talvez a gente possa chamá-lo de Teimosia Esperançosa, ou a Persistência Obstinada. Não salva a vida de ninguém, mas dá, para um jogo que parecia perdido, a chance de ir para uma prorrogação. E numa prorrogação tudo pode acontecer, inclusive o jogo não acabar.







domingo, 28 de maio de 2017

4238) O Roteirista do Mundo (28.5.2017)



Uma coincidência pode ser vista como uma rima. A repetição de algo para criar uma harmonia. Isto, no entanto, nos obrigaria a postular a existência de uma intenção por trás do mundo, a presença de uma Inteligência Superior planejando e executando essas rimas.

Se não existe essa tal Inteligência Superior (e esta é minha hipótese-de-trabalho até hoje) então as coincidências são efeitos indesejáveis, são defeitos. Como a repetição de um som numa frase em prosa, tornando-a desgraciosa. (E levando as pessoas pouco inteligentes a fazer aquele mais idiota dos comentários: “Ih, rimou!”).

Se existe aquilo que Rômulo Azevedo chama de O Roteirista do Mundo, ele de vez em quando fica meio preguiçoso (como todo roteirista, aliás) e ao invés de procurar variar o repertório fica repetindo uma coisa que acabou de escrever, por mera preguiça.

Você vai andando na rua e vê uma loja chamada Armarinho Nossa Senhora de Fátima. Esquece logo. Aí, cinco minutos depois, compra um jornal naquela mesma rua, abre, e vê uma notícia sobre o turismo no santuário de Fátima, em Portugal.

É uma informação tão anódina, com um nome tão comum em nossa cultura, que a gente só percebe por causa da proximidade. Se fosse meia hora depois, talvez a gente nem se tocasse que tinha visto a mesma palavra duas vezes num só dia.

Isso acontece muito durante leituras que trazem uma grande carga de informação (muitos nomes, muitos fatos, etc.) e sobre um assunto que nos interessa, ou seja, que marca de maneira mais funda essas informações em nossa memória imediata – e a deixam mais atenta para possíveis repetições desse nome, que se não fosse assim passariam despercebidas.

Ontem à noite eu estava lendo Eyes Wide Open, livro de Frederic Raphael onde ele conta como escreveu com Stanley Kubrick o roteiro do filme Eyes Wide Shut (“De olhos bem fechados”), com Tom Cruise e Nicole Kidman.

No filme tem a cena em que Cruise entra de penetra numa orgia de milionários porque fica sabendo por acaso a palavra-senha de entrada. Na novela original de Arthur Schnitzler (Traumnovelle, “Uma novela de sonho”), essa palavra é “Dinamarca”.

E Frederic Raphael relata um diálogo com Kubrick em que ele aponta isto como uma intencionalidade do autor (ou um deslize freudiano), porque a esposa do personagem do livro tinha confessado ao marido um episódio de quase adultério com um militar da Dinamarca.

No livro, essa senha foi mudada por Kubrick/Raphael para “Fidelio”, e eu pensei que foi sem dúvida como alusão à infidelidade conjugal.

Isso foi ontem. E hoje de manhã eu peguei um livro de Philip K. Dick e cheguei a um trecho onde ele se refere a pessoas que “fingiam ter desprezo por televisão e por qualquer coisa que aparecesse na telinha, desde números de palhaços até a Ópera de Viena apresentando o Fidelio de Beethoven.”

Coincidência? Sim, porque não me lembro de ter ouvido falar nessa ópera (ou nessa palavra, simplesmente) nos últimos seis meses, pelo menos, e agora vêm duas referências em poucas horas, em dois livros totalmente não-relacionados entre si.

É pouco? Tem mais.  Na mesma leitura do livro de Raphael, ontem à noite, li o trecho onde ele comenta que Kubrick, ao convidá-lo para escrever o roteiro, exigiu segredo absoluto, pois não queria que ninguém soubesse que ele estava adaptando o livro de Schnitzler, projeto pessoal que há alguns anos já tinha vazado para a imprensa.

Raphael diz que obedeceu, mas não podia evitar comentários de outras pessoas. Conversando com um amigo seu, chamado Stanley Baron, o amigo perguntou em que projeto ele estava trabalhando no momento. Raphael limitou-se a dizer que era uma história ambientada em Viena. E Baron perguntou: “Será Uma novela de sonho, de Schnitzler?”.

Ele diz que a única outra pessoa que adivinhou a natureza do projeto foi o diretor Stanley Donen (para quem Raphael escrevera o roteiro de Two For the Road), quando soube que Raphael estava trabalhando para Kubrick. Ele sugeriu essa possibilidade porque já sabia há muitos anos – antes mesmo dos dois se conhecerem – que Kubrick tinha interesse por aquele livro.

E Raphael diz:

E assim aconteceu que as únicas pessoas (além da minha esposa Sylvia) que sabiam o segredo também se chamavam Stanley.

Essa repetição de nomes próprios já dá uma boa coincidência, não é mesmo?

Acontece que justamente nesse trecho eu larguei o livro de F. Raphael e peguei, de uma pilha que tinha ao lado, uma coisa completamente não-relacionada para ler. (Eu costumo fazer isso, ler meia hora de cada livro e sair pulando por assuntos completamente diferentes.)

Peguei um volume de contos de Vladimir Nabokov para prosseguir na leitura do conto “The Vane Sisters”, um conto meio fantástico. E a certa altura o narrador do conto relata uma discussão que tem com uma amiga por ter esnobado um conhecido dela, chamado Corcoran, durante uma festa.

Diz Nabokov:

(Ela me disse) que Corcoran tinha salvo de afogamento, em dois oceanos diferentes, dois homens diferentes, que por uma irrelevante coincidência também se chamavam Corcoran.

Ou seja, meia hora depois de ler sobre a coincidência dos três Stanleys, leio em outro livro a coincidência sobre os três Corcorans.

Não, não existe O Roteirista do Mundo: o que existe talvez é O Cordelista do Mundo, e ele repete os efeitos de 3 em 3, como quem está rimando uma sextilha.








quarta-feira, 24 de maio de 2017

4237) "Suje-se gordo!" (24.5.2017)





(Machado, por Fernão Campos)


É um daqueles contos-não-contos de Machado de Assis, onde ele (ou um “eu” pretextual) conta o que lhe foi contado por um amigo, no intervalo de uma peça chamada A Sentença ou o Tribunal do Júri. Esse amigo narrador diz-lhe que já presidiu júris no passado e que não gostou da experiência, citando o preceito do Evangelho: “Não queirais julgar para que não sejais julgados”.

O narrador diz, com saborosos detalhes, o que foi o julgamento de um rapaz, “um moço limpo, acusado de haver furtado certa quantia, não grande, antes pequena, com falsificação de um papel”. Ele comenta a atuação do advogado, do promotor, lembra que o acusado admitia o crime, apenas atribuía a uma terceira pessoa, que não quis nomear, a iniciativa e o benefício do delito, para “acudir a uma necessidade urgente”.

E conta que no júri havia um sujeito ruivo, chamado Lopes, que “parecia mais que ninguém convencido do delito e do delinquente”. O júri condena o rapaz por onze votos contra um, mas mesmo assim o Lopes continua inquieto, “e disse que seria um ato de fraqueza, ou cousa pior, a absolvição que lhe déssemos”. Não se corre tal risco, com um placar de 11x1, mas o ruivo Lopes continua indócil, e brada:

– O crime está mais que provado. O sujeito nega, porque todo o réu nega, mas o certo é que ele cometeu a falsidade, e que falsidade! Tudo por uma miséria, duzentos mil réis! Suje-se gordo! Quer sujar-se? Suje-se gordo!

O rapaz é condenado, o tempo vai se passando, e aquela frase não sai da memória do narrador. Suje-se gordo!  A princípio ele fica embasbacado, mas logo explica a expressão: “era como se dissesse que o condenado era mais que ladrão, era um ladrão reles, um ladrão de nada”.

E muito tempo depois nosso narrador está de novo num júri, e quem se senta no banco dos réus, agora mais magro, mas igualmente ruivo? O mesmíssimo Lopes de antes, portando o mesmo sobrenome, sendo agora acusado de “uma falsidade e um desvio de cento e dez contos de réis”, o que nem um pouco lhe tira o sossego:

Lopes negava com firmeza tudo o que lhe era perguntado, ou respondia de maneira que trazia uma complicação ao processo. Circulava os olhos sem medo nem ansiedade; não sei até se com uma pontinha de riso nos cantos da boca.

E nesse momento, vendo as esmagadoras provas acumuladas (inclusive “uma carta de Lopes que fazia evidente o crime”) o narrador é assaltado pela lembrança da famosa frase.

“Suje-se gordo!”. Vi que não era um ladrão reles, um ladrão de nada, sim de grande valor. O verbo é que definia duramente a ação. “Suje-se gordo!”. Queria dizer que um homem não se devia levar a um ato daquela espécie sem a grossura da soma. A ninguém cabia sujar-se por quatro patacas. Quer sujar-se? Suje-se gordo!

E o narrador machadiano, com a melancolia de sempre, relata que nem todos viram com os olhos dele os autos e os fatos: “Votaram comigo dous jurados. Nove negaram a criminalidade do Lopes, a sentença de absolvição foi lavrada e lida, e o acusado saiu para a rua”.

Um é condenado por um desfalque de duzentos mil réis, outro é absolvido por um golpe de cento e dez contos. Parece familiar?

A Justiça, ao contrário do que se diz, não é cega: seus olhos são tão sadios e tão afinados com a vontade que só enxergam o que querem enxergar. O próprio narrador do conto reconhece que qualquer coisa pode ser interpretada de modo diferente, dependendo de que lado do muro estejamos.

[O rapaz dos duzentos mil réis] disse isso sem ênfase, triste, a palavra surda, os olhos mortos, com tal palidez que metia pena: o promotor público achou nessa mesma cor do gesto a confissão do crime. Ao contrário, o defensor mostrou que o abatimento e a palidez significavam a lástima da inocência caluniada.

(...)

[O Lopes] ouvia, mas com o rosto alto, mirando o escrivão, o presidente, o teto e as pessoas que o iam julgar; entre elas eu. Quando olhou para mim não me reconheceu; fitou-me algum tempo e sorriu, como fazia aos outros. Todos esses gestos do homem serviram à acusação e à defesa, tal como serviram, tempos antes, os gestos contrários do outro acusado. O promotor achou neles a revelação clara do cinismo, o advogado mostrou que só a inocência e a certeza da absolvição podiam trazer aquela paz de espírito.

De fato, não importa muito o que esteja gravado nos autos ou que seja alegado por um réu. A sentença que proferimos é uma questão de identificação ou repulsa à primeira vista. Lemos ali o que já estávamos prontos para ler.

Nosso atavismo emocional e social nos empurra para o gesto instintivo de condenar uns e absolver outros, e depois dessa decisão tudo se resume a ter alguma retórica inventadora de motivos. O ruivo Lopes estava mais magro, anos depois, mas isso não o impediu de sujar-se gordo, com “a grossura da soma”, e impor respeito ao júri.

Ia esquecendo: o conto é de Relíquias de Casa Velha, de 1906.








domingo, 21 de maio de 2017

4236) "No tempo de Almirante" (21.5.2017)



Poucos caras são tão interessantes na Música Popular Brasileira da primeira metade do século 20 quanto Almirante (1908-1980), que foi cantor, compositor, produtor musical, redator e produtor de programas de rádio, grande pesquisador. Chamava-se Henrique Foreis Domingues; eu sempre pronunciava “Forêis” esse sobrenome dele, mas mudei a pronúncia ao ver esse trecho de uma carta em verso escrita para ele por Aloísio de Oliveira, então (em 1943) morando nos EUA:

(...)
Se eu soubesse mais cedo
que pra você escrever
tivesse que aparecer
um caso de compaixão
que falasse ao coração
do meu amigo Foreis,
eu já teria arranjado
teria falsificado
uma porção de Josués.

Aloísio fazia parte do Bando da Lua e estava nos EUA acompanhando Carmen Miranda, uma das grandes amigas e parceiras musicais de Almirante. Pouca coisa que aconteceu de importante na música radiofônica das décadas de 1930 em diante não teve Almirante por perto. Foi também grande parceiro (e depois biógrafo) de Noel Rosa, seu companheiro do famoso “Bando de Tangarás”.

Em 1930 Almirante compôs (com Homero Dornelas) e gravou o samba “Na Pavuna” – uma gravação histórica. Ao que se diz, foi a primeira música gravada no Brasil utilizando as percussões típicas do samba (tamborim, surdo, pandeiro, cuíca, etc.).  Nenhum produtor musical ou técnico de som da época admitia que esses instrumentos fizessem acompanhamento – era só orquestra ou instrumentação “delicada”. “Na Pavuna” foi um sucesso fenomenal, tão importante quanto o primeiro samba gravado, o “Pelo telefone” de Donga e outros.

“Na Pavuna” (gravação original):

Outros sucessos gravados por Almirante fazem parte de qualquer antologia do samba ou da marchinha brasileira:

“O Orvalho Vem Caindo” (Noel Rosa e Kid Pepe)

“Touradas em Madri” (Braguinha e Alberto Ribeiro):

Gavião Calçudo” (Pixinguinha e Cícero de Almeida):

Sem falar nesta marchinha, que todo torcedor do Treze já cantou:

Marcha do Grande Galo” (Lamartine Babo e Paulo Barbosa):

A biografia No tempo de Almirante – uma história do Rádio e da MPB, de Sérgio Cabral, Pai (Ed. Francisco Alves, 1990) me chegou pelas mãos do parceiro musical Alfredo Del-Penho. Traz em 400 páginas um imenso material sobre esse personagem bem humorado, humano, incansável, que era chamado “A Mais Alta Patente do Rádio Brasileiro”. Almirante surgiu e cresceu com o rádio, e a ele, talvez mais do que à música, dedicou sua vida inteira, trabalhando em todas as grandes emissoras da época.

Interatividade é uma palavra que muita gente conheceu depois da Internet, mas era uma das grandes armas do rádio, que pedia insistentemente colaborações, críticas, informações, participação de todo tipo dos seus ouvintes, através do correio. Ouvintes enviavam letras, partituras musicais, recortes de jornais e revistas, para terem seus nomes citados nos programas que acompanhavam fielmente.

Almirante reuniu um espantoso arquivo de informações mandadas do Brasil inteiro para seus programas de variedades, como “Curiosidades Musicais”. Ainda em vida, ele repassou esse arquivo para o Governo Estadual, que criou com este material o atual Museu da Imagem e do Som, do Rio de Janeiro.

Numa carta de 1940 a Celestino Silveira (pág. 192-193 do livro), Almirante explica essas suas décadas de atividade:

(...) Comecei, então, a fazer o programa sobre todos os assuntos. O título a tudo permitia. Como a Nacional é uma estação de grande penetração  no nosso interior, passei a pedir colaborações dos ouvintes. Graças a isso, pude mostrar pelo Rádio belezas musicais do Brasil inteiramente desconhecidas, coisas que ninguém até hoje teve a iniciativa de fazer com a insistência com que eu faço. Foi assim que consegui fazer irradiar temas folclóricos que nunca tinham sido mostrados pelo Rádio. Cito, como exemplo, as cantigas de roda dos estados, pregões do Rio e dos estados, melodias de trabalho, cantigas e rezas para defuntos, rezas para chamar chuva, melodias de Natal e de Reis, cantigas de cegos e muitas outras. (...) Todos os meus colaboradores, desde o que me enviou a cantiga mais valiosa, até o que me informou o fato mais insignificante, sempre tiveram os seus nomes citados no programa.

Os programas sobre assuntos como o dos instrumentos exóticos (já feito) e o de pios de caça e o da música dos ruídos (ambos ainda por acabar) me fazem perder um tempo inacreditável. Basta que eu diga que o dos instrumentos rústicos tomou-me o ano inteiro. Um ano a fio reunindo elementos, um ano convocando instrumentistas curiosos, tocadores de violino de uma corda só, de flautas e clarinetas de bambu, de folhas de árvore, de lápis nos dentes e os legítimos berimbaus de cuia.

Dessa curiosidade, aliada à possibilidade de recolher e de divulgar, surgiu uma das mais interessantes amizades e parcerias de Almirante – com Luís da Câmara Cascudo, o grande folclorista natalense. À primeira vista parece uma dupla improvável, o cantor de sambas e o etnólogo livresco. Mas os dois pertenciam à mesma espécie, a do pesquisador autodidata, que recolhe informações, estuda, vasculha, pergunta, assedia, junta material, enche estantes e mais estantes de informações que não interessam a ninguém da sua época.

Cascudo, em suas raras idas ao Rio, ia ver no auditório os programas de Almirante. De volta a Natal, mandava-lhe cartas como esta, de 1964 (pág. 338-339):

(...) Desejava, Almirante, dois documentos partidos de suas garras:
a)      Uma batucada legítima. Música e letra devem ser sem interesse (?), mas estou precisando de informação limpa e clara, como você sabe dar aos peticionários jagunços do meu tope e feição provinciana.
b)      Uma embolada. Música e basta uma amostra dos versos, não todos. Apenas refrão e um versinho característico. 
Esse é o choro... Sim. Uma pergunta que tem engasgado os técnicos e proprietários do assunto. Para você, o que é que diferencia choro de samba, ou, como diz o povo, chorinho de sambinha?
Solicito que Vossa Magnificência responda esse peditório, a fim de que o solicitante não fique com os dedos no ar e a máquina aberta num indeterminado compasso de espera. No mais, querido Almirante, receba o afeto que se encerra neste peito não senil.

O rádio o tornou uma figura íntima do Brasil inteiro, uma referência de cultura popular como a televisão transformou, décadas depois, figuras como Rolando Boldrin ou Téo Azevedo. Estudiosos como Renato Almeida escreviam para consultá-lo, como nesta carta de 1940 (pág. 196):

Uma coisa que quero lhe perguntar: o que se chama ‘samba de partido alto’? E, mais uma pergunta: o choro tem três partes, quais são elas? Desculpe essas caceteações, mas você é uma das raras pessoas a quem a gente pode se dirigir no Brasil. E um pedido final: você pode mandar-me aquele sambinha da Penha, que cantou no programa de ontem? E, com os votos de um felicíssimo 1940, lhe mando um abraço muito agradecido e afetuoso.

E até um romancista do porte de Érico Verissimo, fazendo pesquisa para um romance de época, lhe escrevia em 1950 (pág. 258-259):

Tomo a liberdade de pedir-lhe uma série de informações de que estou necessitado para o segundo volume do meu romance O Tempo e o Vento – “O Retrato” – e que cobrirá o período entre 1909 e 1945.
a)      Pode dar-me o nome de algumas músicas de dança mais populares entre 1910 e 1915?
b)      E das modinhas, lundus, etc. do mesmo período?
c)       Quais os discos mais populares da famosa Casa Édison, do Rio de Janeiro?
d)      Pode fornecer-me a letra da canção “Talento e formosura”?
e)      E da cançoneta cujo estribilho é “Varre varre, minha vassourinha”?
f)       Quando começou a voga de “O luar do Sertão”?
g)      E a de “Caraboo”?

Como você compreenderá, essas coisas – danças, canções, etc. – ajudam a criar atmosfera e a marcar o tempo. Como um pobre pagamento por essa sua colaboração, estou lhe remetendo um exemplar do primeiro volume de O Tempo e o Vento – com um abraço do seu fã Érico Verissimo.

Almirante entrou na minha vida quando eu tinha cerca de 8 anos, mas não foi através da música. Foi através do seu programa radiofônico de histórias de assombração, “Incrível! Fantástico! Extraordinário!” – mas este é um assunto ao qual voltarei noutro dia.








quarta-feira, 17 de maio de 2017

4235) As invenções de Kafka (17.5.2017)



Uma biografia recente de Franz Kafka, escrita por Reiner Stach, tem o interessante título de Isto é Kafka? 99 Descobertas. Quando parecia que tudo já havia sido escrito sobre o profeta do mundo irracional do século 20, parece que Stach conseguiu desencavar um número respeitável de fatos a seu respeito.

Não devemos esquecer, também, que por motivos burocráticos e jurídicos uma parte considerável do que Kafka escreveu continua (pasmem!) inédita até hoje. Papéis que ele deixou a cargo de seu amigo Max Brod não foram publicados porque há uma kafkeana batalha judicial em torno deles. Já escrevi a respeito aqui, em “O moído de Kafka”:


Um artigo em The Paris Review sobre a biografia de Stach traz um comentário interessante. O biógrafo teria levantado informações sobre duas “invenções” de Kafka, duas idéias que ele teve para ganhar dinheiro, que explorou em conversas e cartas com amigos, mas que, por um motivo ou outro, não prosperaram.

A primeira dessas idéias ocorreu a Kafka e seu amigo Max Brod entre agosto e setembro de 1911, quando os dois viajavam pela Europa. Kafka pensou em criar um guia de viagem intitulado Billig (“Barato”), dando dicas aos viajantes a respeito de hotéis, transportes, restaurantes, pontos turísticos, etc., que era possível percorrer sem gastar muito dinheiro.

Magino eu que em 1911 fazer turismo na Europa era coisa de rico, aqueles ingleses ou alemães que viajavam de trem ou de navio levando quinze malas de roupas, como a gente vê em Morte em Veneza, nos filmes de James Ivory ou nos livros de Henry James. A idéia dos dois amigos era estender esse privilégio aos menos abonados.

Há um documento, quase todo na caligrafia de Brod, mas com a colaboração de Kafka, em papel timbrado de um hotel em Lugano (Suíça), escrito em setembro de 1911, e diz:

(...) Nossa era tão democrática já proporciona todas as condições para viagens fáceis para qualquer lugar, mas isto é algo que passa praticamente despercebido. Nossa tarefa é coletar estas informações a torná-las conhecidas de modo sistemático. (...)  Muito pouco disto aparece nos guias de viagens. (...) Nós nos dirigimos àqueles que consideram viajar algo muito caro, seja por equívoco, seja por má informação, e que se mantêm em regiões próximas de suas próprias cidades (que têm a sua beleza, mas já são demasiado conhecidas). Queremos fornecer informações sobre outros destinos que custam o mesmo que essas estações de verão, possivelmente incluindo também custos de transporte.

Eles dão algumas dicas sobre a organização dos seus possíveis Guias:

Nada de geografia minuciosa; apenas as rotas. (...) Indicamos apenas um hotel, e outros em ordem descendente, para o caso de aquele estar lotado. (...) [Na caligrafia de Kafka:] Não é para viajantes nem muito rápidos nem muito lentos, mas para um grupo mediano. Desvios são mais fáceis, uma vez que é sempre possível fazer adições num plano bastante preciso. (...)

Outrs dicas registradas pelos dois, em anotações rápidas:

Não temer a moeda errada. Concertos gratuitos. Dias mais baratos (p. ex., galerias de arte) no fim de viagens mais caras. Onde conseguir ingressos grátis como as pessoas locais. Navios a vapor, segunda classe. Não temer a terceira classe na Itália. Cor local. Reforma dos mapas do país e da cidade?

Era um projeto embrionário, ainda na fase de rascunho, como se vê – aquelas páginas em que a gente vai anotando tudo que se conversa, todas as pequenas idéias nascidas da troca de impressões, e que podem depois ser desenvolvidas ou não.

Infelizmente, o projeto de Brod e Kafka – que seria algo como um Europa a 10 dólares por dia daquela época – nunca se concretizou.

A segunda invenção não chega a ser invenção, apenas a anotação rápida de uma idéia; mas seu interesse é por ser algo um pouco mais ficção científica. Em 1913, Kafka teve a idéia da criação de um mecanismo reunindo duas tecnologias que bem ou mal já existiam: o telefone e a máquina de ditar (uma espécie de gravador), também chamada “parlógrafo”.

O escritor certamente teve sua curiosidade despertada devido ao fato de sua noiva na época, Felicia Bauer, trabalhar na filial de Berlim da empresa Carl Lindstrom AG, “onde ela estava encarregada da divulgação do parlógrafo, uma máquina de ditar. Bauer inclusive apareceu num filme de propaganda que Lindstrom produziu e distribuiu.”  No filme, ela é vista durante alguns segundos manipulando um parlógrafo e uma máquina de escrever.

Dizia Franz, escrevendo par a noiva:

A invenção de um cruzamento entre o telefone e o parlógrafo certamente não deve ser difícil. Tenho certeza que depois de amanhã você vai me comunicar que o projeto já alcançou sucesso. Claro que isto teria um impacto enorme nos escritórios editoriais, agências de notícias, etc.

Mais difícil, mas também possível, sem dúvida, seria uma combinação entre o gramofone e o telefone. Mais difícil porque a gente não entende direito o que diz um gramofone, e um parlógrafo não pode pedir a ele que fale com mais clareza. Uma combinação entre o gramofone e o telefone também não teria grande significação de um modo geral, mas para pessoas como eu, que receiam o telefone, seria um alívio. O problema é que pessoas como eu temem também o gramofone, de modo que não seria uma grande ajuda.

A propósito, seria uma ótima idéia se um parlógrafo pudesse ir ao telefone em Berlim, ligar para um gramofone em Praga, e os dois tivessem uma pequena conversa entre si. Mas, minha querida, a combinação do parlógrafo com o telefone tem absolutamente que ser inventada.

O artigo informa que isto de fato já tinha acontecido, com o “Telefonógrafo” patenteado por Ernest O. Kumberg em 1900, invenção que não foi pra frente por ser cara e trabalhosa.

Aqui, o artigo da Paris Review:


Mas para quem lê Kafka fica uma pequena nostalgia de imaginar como ele poderia ter explorado literariamente, num dos seus microcontos de página e meia, esta preciosa idéia como ponto de partida:


(...) seria uma ótima idéia se um parlógrafo pudesse ir ao telefone em Berlim, ligar para um gramofone em Praga, e os dois tivessem uma pequena conversa entre si.







sábado, 13 de maio de 2017

4234) Ser mãe (13.5.2017)



(Ela, "a Marquesa")

Ser mãe é ter na parede um quadro com a foto do Padre Cícero e enfiar na moldura, num ritual protetor, dezenas de retratos 3x4 de pessoas conhecidas, parentes ou não, crentes ou não.

Ser mãe é gostar de escutar Agostinho dos Santos, Capiba, Dalva de Oliveira, Nelson Gonçalves, Roberto Carlos, Gal Costa, Altemar Dutra.

Ser mãe é botar água-pra-café no fogo às duas da manhã.

Ser mãe é ler escondido as cartas que o filho recebe das namoradas e dias depois abordar um assunto qualquer como se aquilo tivesse caído do céu no seu colo.

Ser mãe é dizer pro malcriado: “Ah, tá prendendo o choro? Pois vai apanhar até chorar”, e dizer depois: “Agora vai apanhar até parar”.

Ser mãe é contar a história de quando era garota na fazenda, e a porteira do curral caiu por cima dela enterrando-a na lama, e as vacas passaram por cima, e quando arrancaram a porteira e a tiraram dali ela estava inteira e viva, mas passou uma semana tirando terra do caroço do olho.

Ser mãe é receber um poema pelo correio e responder em versos.

Ser mãe é gostar de ler romances de capa-e-espada de Michel Zevaco, e livros sobre discos voadores, os Exilados de Capela e a vida no planeta Marte.

Ser mãe é iniciar a noite com um olho na novela e outro na sopa no fogão.

Ser mãe é passar alguns anos da vida rodando de ônibus por cidades pequenas do Nordeste vendendo e doando botijões de uma infusão vegetal que é tiro-e-queda contra o câncer.

Ser mãe é perder uma hora antes de ir dormir amarrando um pano com Neocid no cabelo de um sujeito que se recusa a cortá-lo porque o cabelo faz parte da revolução mundial.

Ser mãe é ganhar de presente uma garrafa de Ballantine, agradecer, guardar no armário de bebidas, e ir lá dentro tomar uma dose de Natu Nobilis.

Ser mãe é repetir uma recomendação qualquer nunca menos de três ou quatro vezes, não importa quantas vezes o resignado interlocutor diga: “Sim, eu já sei”.

Ser mãe é saber preparar orelha-de-pau, doce de leite com cravo, imbuzada, gemada com farinha e açúcar, pão torrado com nata.

Ser mãe é ir pro Céu e não voltar pra puxar o pé do filho ateu durante o sono (conforme ameaçado), porque o bichinho está tão cansado, passou a noite escrevendo aquelas coisas que só ele entende.