segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

4210) Sobre a série "Black Mirror" (20.2.2017)




Vi alguns episódios da série Black Mirror, que passa no Netflix. Vi, principalmente, a terceira temporada inteira, seis episódios. É uma série de ficção científica, e sendo a FC o que é, é preciso discriminar um pouquinho quais são os ingredientes.

É como dizer: “salada de frutas”. Todo mundo sabe o que é salada de frutas. Mas pode ser uma salada tipo “banana, mamão, maçã, abacaxi” e pode ser uma salada tipo “banana, laranja, uva roxa, pera”. Meio diferente, né?  (E ainda tem a famosa “Salada de onze frutas: dez bananas e uma laranja”).

Quais são os ingredientes que tornam Black Mirror uma série de FC?

1) Especulação tecnológica: uma leve extrapolação dos mecanismos tecnológicos e industriais do presente para imaginar em que eles poderiam resultar num futuro próximo;

2) Especulação sociológica: um foco não na tecnologia, mas na sociologia. A série não desce a muitos detalhes sobre como aqueles recursos high-tech foram obtidos, mas se focaliza o tempo todo nas consequência humanas e sociais. (Sim, tem histórias de FC que explicam tintim por tintim como funcionam as máquinas do ano 2500 mas pressupõem que as pessoas e as relações entre elas permanecem as mesmas.)

3) Um clima distópico, de “pesadelo inevitável aproximando-se”, que não pertence necessariamente apenas à FC, mas sempre esteve ligado a ela desde Huxley e Orwell até Burgess e Ballard.

Os episódios são competentes, alguns com efeitos especiais de ótimo nível, e sendo uma série londrina nos leva por ambientes urbanos menos familiares (pelo menos pra mim) do que as avenidas novaiorquinas ou californianas de sempre.

Vendo essas séries britânicas (tem a Sherlock também) de vez em quando penso: “Uau. Isso é uma rua de verdade. Esse troço aí deve existir mesmo, ninguém ia inventar isso só para colocar ao fundo de um plano de duas pessoas atravessando um sinal”.

Acho a interpretação dos atores meio forçada, um pouco enfática demais, fazendo muita força para deixar as coisas claras para o espectador, “olha, estou nervoso”, “olha, estou apaixonado”, “olha, estou concentradíssimo no que estou fazendo”. Problema das séries britânicas? Não sei, vai ver o problema é meu, porque tenho sentido a mesma coisa na boa série policial cubana-espanhola Quatro Estações em Havana.

Nos episódios que eu vi o tema predominante é a manipulação dos indivíduos através desses gadgets que teoricamente entram na vida dele prometendo-lhe mais liberdade, mais individualidade. Rola essa ilusão, no começo. Depois, ele começa a ver que está sendo arrastado por uma ventania que não controla.

Na temporada 3, “Nosedive” é uma alfinetada em todo mundo que já ficou rolando tela numa rede social e contando quantas curtidas, comentários e compartilhamentos recebeu, além de bajular socialmente os bem-cotados no ranking e evitar com discreção os de popularidade reduzida. Ainda não são muitos os filmes sobre os ranqueamentos simbólicos das redes sociais. Este aqui vale mais pela premissa do que pela finalização.

“Playtest” é um desses filmes sobre realidades virtuais onde, depois que o personagem entra, tudo pode ser real e tudo pode ser continuação do videogame. Depois de quebrada a primeira barreira, ninguém sabe mais onde é o “chão”: por mais que vejamos o personagem
voltar à vida normal que tinha antes, quem nos garante que ele ainda não está “lá dentro”?

Fica parecendo aqueles desenhos tipo Coiote & Papaléguas em que os personagens arrancam da própria cabeça dezenas de máscaras, sucessivamente, dizendo: “Era mentira! Eu sou na verdade este aqui!”  Ou seja: o tipo da narrativa que facilmente descamba para a diluição de si mesma. Equivale moderno dos contos de 1870 que terminavam dizendo: “...e ele descobriu que tinha sido tudo um sonho!”.

A série é concebida e escrita por Charlie Brooker, que tem no seu currículo alguns episódios de polêmicas e de acusações de material politicamente incorreto. Esse viés atravessa vários episódios da série, que estão a um passo do mau gosto ou da crueldade gratuita.

Brooker parece um roteirista adequado para explorar esses limites do que é permitido à mídia ou às redes sociais. Tem (me pareceu) um lado meio Vince Gilligan e outro lado blogueiro-de-escândalos.

Episódios como “Shut Up and Dance” mostram a possibilidade de uma manipulação eletrônica de pessoas levando-as a cometer desde atos gratuitos até crimes, através de chantagens anônimas e monitoração on-line permanente. É o sonho de vilões do passado como Fantomas ou Fu Manchu, realizado pelas tecnologias digitais.

Um conto de Bruce Sterling, “Maneki Neko” (1999) já explorava de maneira mais leve esse comportamento aparentemente demencial onde a pessoa A é comandada a praticar um gesto que reflete em B, este faz algo mais que reflete em C e assim por diante. Há um “mastermind” que controla tudo, mas as pessoas que executam os gestos individuais não sabem por que foram ordenadas a fazer aquilo.

A série é polêmica e pode ser vista em paralela com documentários como Eis os Delírios do Mundo Conectado (“Lo and Behold, Reveries of the Connected World”, 2016) de Werner Herzog, que explora aspectos tecnológicos e sociais do mundo online.

Um capítulo do filme de Herzog explora o lado tenebroso da web ao descrever a crise da família Catsouras, quando uma de suas filhas morreu num acidente e fotos do seu corpo mutilado foram viralizadas na Internet. Não só isso: as pessoas não se limitavam a ver as fotos, preparavam mensagens de ódios contra os pais (sem nem conhecê-los) usando a foto de filha. “Por que? Para que?”, perguntam-se eles, e também Herzog.

Black Mirror é uma dessas séries pessimistas em que não apenas acontecem coisas ruins às pessoas, mas sempre saímos de um episódio com a sensação de que a humanidade não deu certo, e que isso foi justo, porque ela não presta. É uma forma atual de decadentismo, diferente do decadentismo moral-sexual dos anos 1880. É um decadentismo sádico-sociopático, não o da depravação sexual, mas o da aviltação humana como um valor por si mesma.

Não deixa de ser um novo gênero, porque se a crítica culpa Hollywood pela criação dos “filmes feel-good”, aqueles feitos de propósito para todo mundo sair da sala com o coração cheio de ternura e um sorriso nos lábios, a TV de hoje andou criando também o “filme feel-bad”. Como que para dizer: a vida não tem sentido, e a gente não vale nada.









quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

4209) Contracapa de Flickr (16.2.2017)





(imagem: www.dorar-aliraq.net)

&  não existe nenhuma lata de lixo cheia, no mundo inteiro, onde não exista alguma coisa que valia a pena ter guardado 

&  é como aquele cara que para de fumar aos noventa anos e fica cheio de esperanças 

&  eu não sou vampiro, mas reconheço que é difícil resistir a uma jugular suculenta 

&  um adulto fica fascinado pela catedral de Notre Dame; uma criança, pelo corcunda 

&  aquela sensação de chão tremendo com a aproximação de exércitos 

&  certas alianças políticas duram o tempo de uma pedra de gelo numa dose de Old Parr 

&  a gente não escreve o que quer, e sim o que vem 

&  ele tinha medo do abismo, precisava de alguém que pegasse na sua mão para pularem juntos 

&  pois é, amigo, tá uma crise de terra enjeitar defunto 

&  boa parte do meu baixo-astral seria dissipado caso se confirmasse a existência de centopéias devoradoras de moscas numa lua de Júpiter 

&  a certas mulheres basta-lhes erguer os braços para o alto e é como se portas se abrissem de par em par 

&  inventar uma casa cuja fachada, como um rosto, se altere em função do que acontece lá dentro 

&  tem gente que sobe na vida com a velocidade de quem tá descendo, e quando a gente vê, tava 

&  se não tivéssemos joelhos e cotovelos não existiria a civilização como a conhecemos 

&  a vida é um plano sequência sem roteiro e sem ensaio 

&  foi uma daquelas paixões que não chegam a gerar uma amizade e acabam caindo fora 

&  certos ideólogos vociferantes acabam sendo um argumento em favor dos manicômios à antiga, com porão e palha suja 

&  tem certas coisas que a gente vê que só pode mesmo dizer: adeus, mundo 

&  mais importante do que produzir a inteligência artificial seria reduzir a burrice natural 

&  a droga é uma substância para nos fazer achar que sem ela a vida é uma droga 

&  é mais fácil levar multidões à rua do que mandá-las de volta para casa 

&  abram caminho para os Legisladores do Irrelevante, os Fiscais de Janela, os Carrascos da Esquina, os Estilingues da Vidraça Alheia 

&  na política e na meteorologia tudo parece inevitável depois que acontece 

&  é preciso inventar uma Liga dos Sub-Heróis dotados de sub-poderes 

&  nada nos inspira tanto a um alto padrão de ética e moralidade do que examinar a vida alheia 

&  poesia é como má notícia, basta pensar nela o tempo todo e acaba acontecendo 

&  o crime organizado e as torcidas organizadas levam a crer que o mal do mundo é a organização 

&  não sou tão rico que precise fingir que sou mais pobre, nem tão pobre que precise fingir que sou mais rico

&  a memória é um filme expressionista com áreas de luz estourada e áreas de total escuridão 

&  a vida é uma sessão de cinema onde você entra na metade e vai ter que sair antes do fim 

&  a Ciência em seu confronto com a Religião, a Política e o Dinheiro – tão pequenina, tão corajosa 

&  tinha um macaco na janela me filmando com o celular






domingo, 12 de fevereiro de 2017

4208) Sagarana: "O Duelo" (11.2.2017)




(ilustração de Poty para Sagarana)

Este era o título do filme que Paulo Thiago dirigiu em 1973, adaptando o quarto conto do livro de Guimarães Rosa, cujos 70 anos comemoramos recentemente. Estou comentando devagar os contos do livro, pela ordem. Um dos temas que os costuram é o tema da ida e volta, já prenunciado numa das epígrafes do próprio livro (“for a walk and back again”).  Em “O Duelo” esse tema ganha um desenho novo, inclusive com uma nova epígrafe em que cabe a uma piranha dar “um pulo de ida-e-volta”.

Porque “O Duelo” é a história de dois homens armados, cada um deles em busca do outro para matá-lo, mas é uma busca vagarosa, em que os dois vão e vêm a cavalo de vila em vila, sem pressa, colhendo pistas, pedindo informações, largando manobras de despistamento, num jogo de negaceios em que ambos estão literalmente indo e voltando o tempo todo.

É o que, segundo um comentário de Jorge Luis Borges, Julio Verne chamava de “duelo à americana”: dois homens juram-se mutuamente se morte, armam-se, preparam-se e se embrenham num bosque, um à caça do outro:


Fosse isto aqui uma aula e eu passaria como dever de casa a tarefa de rastrear os lugarejos que os dois pistoleiros percorrem, discriminando (se possível) quais são os lugares reais e quais os inventados, porque todos fazem parte da saborosa toponímia rosiana: o Borrachudo, as Tabocas, as Catorze-Cruzes, o Dêcámão, a Piedade do Bagre, o Cuba, a Sela do Ginete, o Mosquito, o Paredão do Urucuia, as Abóboras... 

Quem sabe uma busca como essa não descobre que os dois cavalgarilhos acabam traçando um símbolo esotérico qualquer, com seus vais e seus vens, tal como o nome escrito ruas afora pelo traçado das caminhadas do personagem de Paul Auster na “Trilogia de Nova York”? Com Guimarães Rosa, desconfie-se de tudo!

A história: Turíbio Todo pega no flagra sua mulher Dona Silivana (que “tinha grandes olhos bonitos, de cabra tonta”) em plenos folguedos com um tal de Cassiano Gomes, “ex-anspeçada do 1º. pelotão da 2ª. companhia do 5º. Batalhão de Infantaria da Força Pública”. Vê sem ser visto; a prudência pode mais do que a revolta, e Turíbio, que é um capiau papudo e solerte, espera pelo dia seguinte, quando embosca o desafeto e planta-lhe à distância uma bala na nuca.

Quis o Roteirista do Mundo que o vulto alvejado, de longe e de costas, fosse o irmão de Cassiano, muito parecido com ele, e após o enterro a quase-futura-vítima já entendeu tudo e começa os preparativos para caçar o marido metido a brabo, que à essa altura já deu às de vila-diogo e se embrenhou sertões adentro, bem amontado.

E lá vão os dois, cada qual com seus armamentos e seus planos, costurando os vales, prontos para o entrevero, porque, claro, “quem puder mais é que vai ter razão”. Fazem ziguezagues, pegam pistas que não dão em nada, “e, perto do Saco-dos-Cochos, eles cruzaram, passando a menos de um quilômetro um do outro, armados em guerra e esganados por vingança”.

Quem conhece o Grande Sertão: Veredas conhece o lado épico e heróico da violência em J. G. Rosa.  Este lado está presente, em Sagarana, no último conto, “A Hora e Vez de Augusto Matraga”. Mas o que tantas outras vezes aparece na obra do mineiro é o lado não-épico e não-heróico, a violência como uma brutalidade pequena, de irrompe no cotidiano e em questão de segundos desgraça uma vida, às vezes duas.

Há um longo interlúdio no meio do conto: o encontro de Cassiano e depois de Turíbio Todo com Chico Barqueiro, que faz travessia de margem a margem do rio, um encontro que começa com uma equivocada troca de tiros entre eles. Chico dialoga primeiro com um, que vai embora, depois com o outro, a quem atravessa na balsa.

O ir e voltar no balseiro, sempre rumo à “outra banda do rio” dá-lhe uma posição estratégica na narrativa, de ser ponto-atrator de um encontro que por um triz não se cumpre. Durante a travessia, o barqueiro fala, fala, sempre de outros assuntos. Turíbio, nada. Até que: “A terra veio avançando. Encostaram no abicadouro. Turíbio pagou”.

A narrativa é toda polvilhada dos aforismos, provérbios e ditos sentenciosos de que Rosa era mestre, não apenas de ouvido mas de imaginação, como quando Turíbio Todo, depois de cruzar dois rios seguidos, refuga diante de um terceiro, e afirma, como quem lembra um mote: “quem passa três rios grandes esquece o seu bem-querer...”

O bem-querer dele, Dona Silivana, “a mulher fatal da história”, continua se encontrando com Cassiano Gomes, que regressou ao arraial ao sentir o agravamento de um mal cardíaco que motivara seu desligamento da polícia. Os desencontros, principalmente aquele patrocinado passivamente pelo barqueiro, acabam esmorecendo a perseguição mútua, pois, enquanto Cassiano retorna, Turíbio parte para São Paulo, talvez com o mesmo sonho irrealizável do Lalino Salãthiel de “A Volta do Marido Pródigo”.

Cassiano vende o que tem e parte para uma última visita à mãe, que mora longe. Vai parar num lugarejo “onde a gente não tinha vontade de parar, só de medo de ter de ficar para sempre vivendo ali”. O coração afracado o cansa. Ele faz pouso, faz amizade com um capiau baixinho, dá-lhe dinheiro, salva-lhe o filho doente, torna-se padrinho.

E nas vascas de morrer tem uma longa conversa com o capiau, Timpim  Vinte-e-Um, conversa tão secreta que nem o autor conseguiu escutá-la:

Mandava o dinheiro para a mãe? Não. Mandou vir o Timpim, para nele rever a boa ação. Conversaram. Depois o moribundo disse:
– Esse dinheiro fica todo para você, meu compadre Vinte-e-Um...
Aí, tomou uma cara feliz, falou na mãe, apertou nos dedos a medalhinha de Nossa Senhora das Dores, morreu e foi para o Céu.

Turíbio toma ciência do passamento do desafeto e volta de São Paulo; será sua última volta. As cidades grandes aparecem na obra de Guimarães Rosa sempre indiretamente, através de seus reflexos nas pessoas (Lalino Salãthiel é um dos melhores exemplos), e o mesmo se dá com o papudo Turíbio:

Saltou do trem também com uma piteira, um relógio de pulso, boas roupas e uma nova concepção do universo.

Um capiau concebendo o universo! Eu não imagino uma liberdade como essa num texto de Afonso Arinos, Simões Lopes Neto, José Américo de Almeida ou José Lins do Rego. Não que esses sejam fracos, mas é que trabalhavam num quadro limitado de referências regionalistas. Guimarães Rosa explodiu o quadro e o recompôs num quadro muito maior, onde cabia tudo que ele próprio sabia. Seus matutos vivem num mato muito maior e mais visível.

Mas pobre do Turíbio, não tem quadro, mesmo recomposto, onde o Destino das tragédias gregas não esteja de emboscada, mesmo que seja na figura de “um cavalinho ou égua, magro, pampa e apequirado, de tornozelos escandalosamente espessos e cabeludos, com um camarada meio-quilo de gente em cima”.

O autor, sem revelar o nome do capiauzinho (que a essa altura o leitor mais obtuso terá adivinhado) o faz acompanhar Turíbio ao longo de algumas páginas, conversando, picando fumo, aproximando-se cada vez mais do inevitável desfecho, até que:

– Seu Turíbio! Se apeie e reza, que agora eu vou lhe matar!

E Turíbio, assustado pelo imprevisto da coisa, “sentia o medonho que é a falta de tempo para a gente poder pensar”, a vertigem do “No Time To Think” que Bob Dylan encapsulou numa canção sobre os últimos segundos de vida de um guerreiro.

Turíbio sente a queda da Morte sobre si e ainda tem um último reflexo de valentia:

E levantou a mão à testa, se benzendo, com voz gritada, em que o choro já começava a tremer:
– Em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo, amém!... Padre nosso...
Mas, não! Assim como um carneiro, não! Curvou de banda e puxou o revólver, e foi um golpe de rédeas e outro de esporas, fazendo o cavalo se empinar.
Mas a garrucha não negou fogo. Turíbio Todo pendeu e se afundou na sela, com uma bala na cara esquerda e outra na testa. O cavalo correu; o pé do defunto se soltou do estribo. O corpo prancheou, pronou, e ficou estatelado.

“O Duelo” é na verdade a história de um duelo que não chega a acontecer, porque Turíbio atirou somente no irmão de Cassiano, e Cassiano não atirou em ninguém, apenas delegou a Timpim Vinte-e-Um o encargo de fechar o circuito e empatar o jogo mortal. Numa hipotética antologia intitulada Contos de Vingança e Justiçamento, esta história caberia com louvores.








terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

4207) Ariano Suassuna e a quarta parede (7.2.2017)




No teatro (e às vezes no cinema) chama-se de “quarta parede” a parede invisível que separa o palco da platéia. É a barreira da ficção. Sabemos que nada daquilo aconteceu de verdade, que os personagens e os fatos são fictícios, mas nada nos impede de suspender voluntariamente a descrença e mergulhar no drama humano que parece estar acontecendo ali, a poucos metros de nós.

Chama-se então de “quebrar a quarta parede” quando, por exemplo, o ator se volta para a platéia e diz alguma coisa que quebra a ilusão ficcional e nos traz de volta à realidade da situação, ao fato de que somos espectadores que pagaram para ver uma coisa encenada.

Alguns o fazem com intuito filosófico, para fazer o espectador refletir. O teatro de Bertolt Brecht usava muitas vezes esse recurso para obter o efeito que ele chamava de distanciamento ou estranhamento. “Ei, cara! Acorde! Isso não é verdade! Somos atores! Não perca o foco!”. 

Outros, como mero recurso engraçadinho – os famosos “cacos”, ou piadinhas preparadas de antemão, que os atores de comédia de vez em quando soltam no meio das falas, referindo-se a fatos políticos da véspera ou a pessoas presentes na platéia.

Nos espetáculos populares como o Teatro de Mamulengo ou as Comédias Circenses essa quebra é muito frequente, pelas próprias circunstâncias meio atabalhoadas da apresentação, e pela presença de um público que gosta de participar com gracejos, tiradas, provocações, etc.

Na literatura isso adquire muitas formas.  Vou dar um exemplo pouco conhecido, do romance de Ariano Suassuna O Rei Degolado: As Infâncias de Quaderna (1976-77), nunca publicado em livro, e que apareceu na forma de folhetins semanais no Diário de Pernambuco, do Recife.

O livro é uma continuação do Romance da Pedra do Reino (1971), e conta o interrogatório a que o herói e narrador, D. Pedro Dinis Quaderna, preso na Cadeia pública, está sendo submetido pelo Juiz Corregedor da capital do Estado, que veio investigar uma série de crimes e de sublevações armadas acontecidas em Taperoá.

No Folheto XXXVII, “O canto e a coroa da raça”, Quaderna está narrando ao Corregedor um episódio de sua infância, quando foi raptado por um bando de ciganos e depois acabou sendo resgatado pelo cangaceiro Antonio Silvino, que o levou de volta para a fazenda da sua família. Diz Quaderna ao Juiz:

(...)
Tanto assim que, anos depois, quando foi aprisionado pela Polícia – ao ser ferido num combate – Antonio Silvino mandou esse Chapéu-de-couro a Dom Virgolino Ferreira, o Lampião, passando-lhe, desse modo, o título, e ungindo-o como Rei do Cangaço, como Saul fez com Davi. E deu-lhe [sic – mas deve ser “dou-lhe”] uma informação a título de curiosidade, Sr. Corregedor: quando Lampião foi degolado, estava com esse mesmo chapéu-de-couro – ou melhor, com esta sagrada Coroa sertaneja, feita de couro e estrelada de prata!
O Corregedor me interrompeu de novo, com aquelas manias de exatidão dele:
– Senhor Dom Pedro Dinis Quaderna, o senhor aí, na sua exaltação cavalheiresca e régia, acaba de cometer um engano: pode ser que Lampião use esse chapéu-de-couro que foi de Antonio Silvino, mas ele não foi degolado não, está vivo!
Dei uma pancada com a mão na testa, recordando-me e voltando ao raso real:
- Ai, é mesmo, Sr. Corregedor! Muito obrigado pela advertência, porque minha Epopéia é rigorosamente histórica, podendo, no máximo, haver nela uns dez ou doze anacronismos, porque aqui, na Cadeia, não posso consultar a cada instante meu arquivo particular de Historiador! Mas é verdade, o senhor tem razão! Estamos a 14 de Abril de 1938 e Lampião só será degolado daqui a quatro meses, na Fazenda Angicos, em Sergipe, no mês de Agosto! É que, no meu Juízo profético de Epopeieta, meus olhos cegos de Édipo-sertanejo veem o Passado, o Presente e a Futuro como um todo, pois para mim, como para Deus, o Tempo é um só!

Quaderna é um desses narradores que se safam de qualquer problema na maior cara-de-pau. E o faz porque mantém, do princípio ao fim desses enormes romances, numa rara façanha literária, esse tom grandiloquente-megalomaníaco e satírico-mangatório a respeito de si mesmo.

Deixando Quaderna de lado, podemos nos perguntar: por que Ariano publicou este trecho?

Me parece muito claro que numa primeira redação do capítulo o autor deixou-se arrastar pelo entusiasmo, junto com Quaderna, e botou a informação anacrônica, sem perceber a discrepância de datas. Numa releitura, veio-lhe à mente que àquela altura da sua narrativa Lampião estava vivo ainda.

Teria sido mais simples, claro, cancelar o texto e passar adiante. Aliás, Ariano Suassuna comentou, em numerosas entrevistas e artigos, que seu método de trabalho consistia em escrever uma primeira versão à mão, depois passar a limpo na máquina de escrever, depois rever essa cópia à mão, fazendo correções e adendos, depois datilografar de novo, quantas vezes fosse preciso.

Suponho que numa dessas revisões o erro de data lhe saltou aos olhos, mas mesmo assim ele resolveu, em vez de eliminar tudo, deixar o erro e criar uma quadernice em cima dele.

Esse livro estava sendo escrito para aparecer em folhetins dominicais de jornal, numa época em que Ariano estava ocupadíssimo, envolvido com mil afazeres. Tinha sua cadeira da Universidade Federal de Pernambuco, o cargo de secretário de Educação e Cultura do Recife (1974-78), a supervisão da Orquestra Romançal Brasileira (criada em 1975) e do Balé Armorial do Nordeste (criado em 1976).

Posso imaginar o corre-corre em que esses folhetins eram produzidos, e a piada de Quaderna sobre não poder consultar a toda hora seus arquivos porque está na cadeia deve refletir em alguma maneira a roda-viva do autor.

Mas ele deixou o erro, e curtiu em cima. Porque isso tem tudo a ver com o folhetim. Todo mundo sabe que os folhetins de Charles Dickens, de Balzac e de todos os outros eram escritos assim, de afogadilho, a toque de caixa, ao correr da pena. Cheios de erros de continuidade, informações faltando, nomes de personagens trocados, ações interrompidas e nunca mais retomadas, e assim por diante.

Quando chegava o momento da publicação em livro, esses erros eram corrigidos e aí está, para não me deixar mentir, uma próspera sub-indústria acadêmica especializada em comparar uma versão com a outra.

O folhetim é um exemplo muito bom de prosa improvisada. O veterano repentista Zé de Cazuza diz que todo verso é feito de improviso, inclusive o verso escrito; só que no verso escrito o poeta tem a chance de voltar atrás e dar uma ajeitadinha, mas o verso cantado... saiu, acabou-se.

Os erros de improvisação do folhetim eram extirpados no livro, e cabe inclusive a dúvida: Ariano cortaria esse trecho, se As Infâncias de Quaderna tivessem saído em livro? Eu maldo que não. Porque é um desses exemplos saborosos de um Narrador tão onipotente que fatura a seu crédito os seus próprios enganos. Quaderna é um herói picaresco do tipo teflon: nele nenhuma crítica gruda, porque ele é o primeiro a concordar com o crítico, falar mal de si próprio, e arrematar tudo com um nó onde ele volta a ser – modestamente, como sempre, como no presente caso – igual a Deus.











sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

4206) Menções ao cordel na literatura (3.2.2017)



A pesquisa sobre a história da literatura de cordel no Brasil tem dois caminhos.

O primeiro, mais importante para nós, nordestinos, parte de Leandro Gomes de Barros e os folhetos que ele começou a imprimir em meados da década de 1890, no Recife. É a raiz da nossa literatura popular impressa, porque versos recitados e copiados à mão já circulavam desde muito antes, usando os mesmos temas e as mesmas características formais (estrofes, rimas, etc.) que os folhetos iriam usar. Muitos destes versos estão em obras como Cantadores e Poetas Populares, de F. das Chagas Batista (1929, reeditado em 1997 pela UFPB, João Pessoa), que transcreve versos dos mestres do Teixeira na segunda metade do século 19.

O segundo caminho está plantado no Rio de Janeiro, e diz respeito aos folhetos impressos em Portugal e trazidos para cá ao longo de todo o século 19, como consequência da vinda da corte imperial para o Rio em 1808. São muitas as referências à venda de livretos populares de meados de 1850 em diante. O termo “cordel”, tão debatido pelos estudiosos do assunto, denota o uso de expor dessa forma não somente os folhetinhos em versos, mas (penso eu) todo tipo de livro.

Em seu Como e Por Que Sou Romancista (1873), capítulo VII, José de Alencar usa esta expressão ao contar os percalços de publicação do seu O Guarani (1857), e diz:

A edição avulsa que se tirou d’O Guarani, logo depois de concluída a publicação em folhetim, foi comprada pela livraria do Brandão, pôr um conto e quatrocentos mil réis que cedi à empresa. Era essa edição de mil exemplares, porém trezentos estavam truncados, com as vendas de volumes que se faziam à formiga na tipografia. Restavam pois setecentos, saindo o exemplar a 2$000. 

Foi isso em 1857. Dois anos depois comprava-se o exemplar a 5$000 e mais nos belchiores que o tinham a cavalo do cordel, embaixo dos arcos do Paço, donde o tirou o Xavier Pinto para a sua livraria da Rua dos Ciganos. A indiferença pública, senão o pretensioso desdém da roda literária, o tinha deixado cair nas pocilgas dos alfarrabistas.

A expressão “a cavalo no cordel” descreve bem o uso dos vendedores: um cordão esticado horizontalmente e os livretos, abertos ao meio, “montados” em cima do cordão.

O termo “belchior” usado por Alencar refere-se aos comerciantes de coisas usadas, que tanto podem ser roupas (vamos lembrar Noel Rosa: “O meu chapéu vai de mal a pior, e meu terno pertenceu a um defunto bem maior – dez tostões no belchior!”, O Orvalho Vem Caindo) como também livros – o Dicionário Houaiss registra o termo como “proprietário de sebo” e “alfarrabista”. Daí a queixa de Alencar.

Os “arcos do Paço” a que o escritor cearense se refere são provavelmente os arredores do Paço Imperial, na praça XV de hoje, como o Arco do Teles, por onde ainda passo eu de vez em quando.

Aquele largo servia como foco de um comércio popular dessa natureza, como confirma Machado de Assis no conto “Uns braços” (1885), recolhido em livro em Várias Histórias (1896), e cuja ação é devidamente datada:

Passava-se isto na Rua da Lapa, em 1870. (...)

É a história de um rapaz do interior que vai estudar no Rio, morando de favor com um casal mais velho, o que gera uma atração entre ele e a dona da casa, situação parecida com a do conto clássico Missa do Galo (em Páginas Recolhidas, 1899).

Um domingo, - nunca ele esqueceu esse domingo, - estava só no quarto, à janela, virado para o mar, que lhe falava a mesma linguagem obscura e nova de D. Severina. Divertia-se em olhar para as gaivotas, que faziam grandes giros no ar, ou pairavam em cima d'água, ou avoaçavam somente. O dia estava lindíssimo. Não era só um domingo cristão; era um imenso domingo universal.

Inácio passava-os todos ali no quarto ou à janela, ou relendo um dos três folhetos que trouxera consigo, contos de outros tempos, comprados a tostão, debaixo do passadiço do Largo do Paço. Eram duas horas da tarde. Estava cansado, dormira mal a noite, depois de haver andado muito na véspera; estirou-se na rede, pegou em um dos folhetos, a Princesa Magalona, e começou a ler. 

Nunca pôde entender por que é que todas as heroínas dessas velhas histórias tinham a mesma cara e talhe de D. Severina, mas a verdade é que os tinham. Ao cabo de meia hora, deixou cair o folheto e pôs os olhos na parede, donde, cinco minutos depois, viu sair a dama dos seus cuidados. O natural era que se espantasse; mas não se espantou. Embora com as pálpebras cerradas viu-a desprender-se de todo, parar, sorrir e andar para a rede. 

Machado confirma vários detalhes de Alencar, e é bom que “Uns braços” seja explicitamente situado por ele em 1870, o que permite imaginar que a ação descrita por ele era comum nessa época. Machado usa por duas vezes o termo “folheto”. Indica que foram comprados no Largo do Paço. Lembra que eram “contos de outros tempos” e que eram “comprados a tostão”, ou seja, estavam ao alcance da bolsa de um estudante pobre.

E o título lembrado por ele é justamente um dos clássicos, a História da Princesa Magalona, conto de origem francesa minuciosamente estudado por Câmara Cascudo em seus Cinco Livros do Povo (Ed. José Olympio, 1953), e que Cervantes também menciona de passagem no capítulo XL da segunda parte do Dom Quixote, no episódio do cavalo voador de madeira.

Cascudo refere a existência de edições portuguesas do romance em 1625 e 1783, além de numerosas outras em datas posteriores, até o surgimento das versões brasileiras da mão de vários autores, entre eles o inevitável João Martins de Athayde. E observa também que as versões portuguesas eram em quadras (ABCB) e as brasileiras em sextilhas (ABCBDB).

(continua)








quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

4205) As máscaras e os esqueletos de James Ensor (1.2.2017)




Um dos melhores investimentos da minha adolescência foi a coleção em fascículos Gênios da Pintura, que eu rachava com minha irmã Clotilde.  Eram álbuns fininhos (cerca de 30 páginas, acho), mas com tamanho grande, papel bom, e boa reprodução de quadros dos mestres. Os sebos estão cheios deles hoje em dia.

Fiquei conhecendo melhor alguns artistas que eu já sabia quem eram, como Leonardo da Vinci e Van Gogh; mas o melhor de coleções baratas, acho, é que elas nos dão a chance de investir no desconhecido.

É como livro em sebo. Às vezes eu estou numa livraria chique e vejo um livro de capa estranha, título esquisito, de autor desconhecido. Folheio, leio algo que me chama a atenção... mas o livro custa 70 reais. Adeus, livro!  Se está num sebo, custa 10. Eu levo. Pago pra ver.

Paguei pra ver um fascículo de um tal de James Ensor que durante alguns meses vertiginosos tornou-se meu pintor preferido (foi destronado quando chegou o fascículo de Max Ernst). Ensor era um belga que pintava monstros, máscaras, criaturas bizarras. Seus quadros prefiguram (para mim) o teatro de Samuel Beckett, o cinema de David Lynch e os contos de Lília Pereira da Silva. São situações enigmáticas, num clima indefinível e ameaçador, vividas por criaturas grotescas que se comportam de modo absurdo. Tem coisa melhor no mundo?!

Aliás, a Bélgica tem uma concepção do Fantástico muito peculiar, embora fique, injustamente, meio à sombra do Fantástico francês. As pinturas de Paul Delvaux, os filmes de seu filho André Delvaux, os contos de Jean Ray (autor de “Malpertuis”), a ficção científica de J. H. Rosny Ainé, todos compartilham um clima semelhante. Uma boa porta de entrada em português é a maciça antologia Entre o real e o surreal: antologia da literatura belga de língua francesa, ed. Marc Quaghebeur, Zilá Bernd, Leonor Lourenço de Abreu e Robert Ponge (Porto Alegre: Tomo Editorial, 2009).



O forte de Ensor (1860-1949) são seus quadros a óleo, mas era um artista versátil. Anos atrás vi na FAAP (São Paulo) uma exposição riquíssima com suas gravuras e águas-fortes, uma vertente completamente diversa, mas também roçando vez por outra no Fantástico.

“Esqueletos disputando um enforcado” (1891). Faz meio século que eu penso nesse quadro. Quem são, o quê são, essas criaturas, esqueletos vivos trajados com roupas de mulheres velhas, brandindo vassouras e guarda-chuvas, numa altercação violenta e trôpega, aprontando o maior barraco numa sala de portas escancaradas enquanto a vizinhança, igualmente carnavalesca e monstruosa, se deleita espreitando pela porta?



São talvez os mesmos que se reúnem em torno de um fogareiro em “Esqueletos se aquecendo”, ossadas vestidas com roupas extravagantes e cômicas que se reúnem em torno de um aquecedor. Um deles usa cartola e empunha um violino, como um comediante de music-hall. Outro (uma mulher?) tem um xale azul nos ombros e estende as mãos, para aquecê-las. Há outro esqueleto caído no chão, tendo ao lado uma paleta de pintor; ou talvez não seja um esqueleto completo, apenas a caveira, um capote comprido e as botas, como se o frio lhe tivesse derretido os ossos.



Esqueletos e máscaras são dois dos temas preferidos dele. As máscaras são sempre toscas, meio ameaçadoras, meio ridículas, como aqueles figurantes de filmes de Fellini ou de Pasolini em cuja fisionomia só acreditamos porque sabemos que não são atores caracterizados, são gente que é assim mesmo, e foram pegados na rua para nos assombrar por alguns segundos e sumir para sempre.



“O assombro da máscara Wouse” (1889) mostra uma mulher rubicunda e porcina entrando num aposento onde se vê, mais uma vez, uma caveira caída ao chão no meio de roupas vazias. “As máscaras escandalizadas” (1883) mostra um quartinho de pensão barata bem dostoievskiana. Um homem vestido e mascarado está sentado a uma mesinha, tendo uma garrafa à frente; a porta se abre e entra uma velha mascarada, empunhando um porrete. Escrevi aos 18 anos um continho surrealista em que batizei esses personagens de Tuunc e Géi-éi.



Seu painel mais famoso deve ser “A entrada de Cristo em Bruxelas” (1889) onde ele mostra Cristo em seu burrinho cercado por uma multidão de militares, autoridades, políticos, burgueses, fanfarras, bandeiras.



De onde vem isso?  Não sei.  Talvez Umberto Eco, em sua Histórioa da Feiura, tenha alguma coisa a nos dizer. A pintura de Ensor satisfaz talvez “essa necessidade do horroroso” que Augusto dos Anjos registrou tão bem; se este não fosse um poderoso impulso do inconsciente coletivo não teríamos as animações de Jan Svankmajer ou de Chris Cunningham, não teríamos o cinema de Luis Buñuel, não teríamos os painéis de Hieronymus Bosch, não teríamos os contos de Kafka nem os Edgar Poe, não teríamos o surrealismo francês ou o expressionismo alemão.


Ao contrário de muito do “horroroso contemporâneo”, no entanto, a pintura de Ensor não vem carregada de violência nem de sadismo. Seu horror tem algo de circo e de comédia; é um horror caquético e balbuciante, que num momento nos dá pena, em outro nos dá repulsa, e mais adiante provoca uma gargalhada. É uma paleta híbrida da experiência humana que me ajudou muito a entender desde cedo a mente alheia, as emoções alheias, a mesquinhez alheia, a ratonice alheia – e as minhas próprias. E, apesar dessa extensa lista de comparações enumeradas mais acima, é uma experiência que até hoje só encontrei nas máscaras e nos esqueletos de Ensor.

"Auto Retrato com Máscaras", 1899:











domingo, 29 de janeiro de 2017

4204) Zé Agra e a Máquina Arrasadora (29.1.2017)




Fiquei sabendo na tarde deste domingo, numa mensagem enviada por José Santos, o “Super-Zé” do futebol paraibano, do falecimento de José Agra, ex-presidente do Treze nos idos de 1974-75.

Zé Agra foi nosso presidente no ano do Cinquentenário (1925-1975) e marcou seu nome na história do Galo. Não somente por isso, nem pelo título de Campeão Paraibano de 1975 (dividido, num desses confusos tapetões do nosso futebol, com o Botafogo de João Pessoa), mas por uma das grandes arrancadas da história do alvinegro, que saiu de uma crise tremenda para se tornar vice-campeão estadual em 1974.

O campeonato daquele ano teria 4 turnos. O Campinense foi campeão dos três primeiros, já estava com a mão na taça. Tinha um ótimo time, e além do mais tinha a sua sempre eficientíssima equipe extra-campo trabalhando nos bastidores (juiz nenhum escapava). O Treze estava com salários atrasados e em crise quando Zé Agra assumiu a presidência, dias antes da estréia no quarto turno.

O novo presidente rodou o chapéu nas ruas João Pessoa e João Suassuna, saldou as dívidas (principalmente com os salários dos jogadores), e desencadeou uma campanha publicitária como nunca se viu no futebol paraibano.

Encorajado pelas primeiras vitórias (time com o bolso em dia corre mais; é uma coisa impressionante) ele emburacou numa série de entrevistas em que definia o time do Galo como “a Máquina Arrasadora do Futebol Paraibano”, o “Time de Gigantes”, etc.  

Afirmava que a torcida do Campinense era mixuruca, cabia numa carroça de burro. Com seu sotaque inconfundível (“o Treze é o maior time de futibó do mundo!”), ele levava nossa torcida à euforia e as torcidas adversárias à loucura.

Folclórico, falastrão, bem humorado, Zé Agra deu uma sacudida brusca num campeonato que já parecia decidido. As rendas dobraram. A torcida lotava todos os jogos (digo isso porque assisti todos).

Duas vitórias épicas seguidas deram ao Galo o título de campeão do quarto turno: 1x0 no Campinense (com gol de Marcos Itabaiana, que após o lance foi agredido com um soco e teve que ser hospitalizado) e 2x1 no Botafogo, no Estádio de Graça, em João Pessoa (gols de Fernando Canguru e Vandinho). E a gente lá, bandeiras e taróis em punho.

Tá cheio de gente aí que se lembra disso como se tivesse sido ontem.

Fomos para um jogo extra onde o Campinense, que jogava por um empate, venceu por 2x0 e se sagrou campeão de 1974.

No ano seguinte, Zé Agra formou uma equipe fantástica, um dos melhores times que o Treze já teve. Como técnicos, passaram por lá o ótimo Virgílio Trindade (ex-Nacional de Patos), o craque Miruca (ex-Náutico, ex-São Paulo) e o argentino Dante Bianchi.



Nessa época eu trabalhei por uns seis meses na secretaria do Treze, onde exercia as funções de datilógrafo, redator de contratos e pagador de vales, bichos e salários ao elenco. Zé Agra foi um dos patrões mais voluntariosos para quem já trabalhei. Toda dúvida eu corria para o centro da cidade, ao escritório dele no edifício Lucas. “Zé, a Federação exige o documento tal pro jogo de amanhã”. “Isso é frescura,” dizia ele, “precisa não.”

E tome uma noite em claro, ardendo em febre, pensando que no dia seguinte o Treze ia perder os pontos para o Santa Cruz de Santa Rita porque faltava o diabo do papel. Nunca aconteceu, mas os cabelos brancos continuam todos aqui.

Foi de Zé Agra a iniciativa de criar a Comissão dos Festejos do Cinquentenário do Treze, presidida por Hélio Soares, meu ex-professor no Colégio Estadual da Prata. Resolvemos fazer uma revista “pra desmoralizar a concorrência”, no caso o Campinense, que acabara de fazer uma revista comemorativa.



Meu pai e eu tomamos a frente na tarefa de redigir e pesquisar a revista. Cavani Rosas, artista plástico do Recife, morava em Campina na época: ele diagramou e ilustrou a revista inteira, e foi o criador do famoso Galo de chuteiras que ainda hoje ilustra tanta coisa relativa ao Treze. Eu vi esse galo sendo criado na prancheta da casa onde ele morava, em Bodocongó, vizinha à UFPB. Também se envolveram na revista José Umbelino Brasil, Rômulo e Romero Azevedo, Roberto Coura (fotógrafo) e outros.



Zé Agra rodava Campina pra cima e pra baixo no seu fusquinha. Eram os tempos heróicos em que cartolas botavam dinheiro do próprio bolso para pagar as dívidas do time, fosse material esportivo, com Fuba Véi da Casa Sport, fosse na lanchonete de Vamberto, perto da Praça do Trabalho.

Fiquei sabendo hoje da despedida de Zé Agra e encontrei aqui, no imprescindível saite RetalhosHistóricos de Campina Grande, um valioso áudio de mais de 1 hora com Zé Agra rememorando esses tempos e me produzindo um nó na garganta. Saudade de um tempo em que eu era tão inocente da realidade do mundo que torcia por times de futebol.

Um brinde ao nosso eterno presidente, Zé Agra, “trezeano autêntico”.






quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

4203) O cantador João Paraibano (26.1.2017)



Estou por aqui, me entretendo com a leitura vagarosa de João Paraibano, o Herdeiro dos Astros (Teresina: Gráfica e Editora Halley, 2016), coletânea de versos e de depoimentos organizada por Ésio Rafael, Marcos Passos e Santanna O Cantador, em homenagem ao grande repentista, amigo de todos nós, falecido em 2014.

Conheci João Paraibano por ocasião do II Congresso Nacional de Violeiros de Campina Grande, em 1975, quando ele cantou duplado com um dos seus parceiros mais constantes, Sebastião Dias. Naquele Olimpo de repentistas no auge da arrancada para o sucesso, e que eu estava encontrando pela primeira vez, João não se destacava. Era tranquilo, baixinho, meio tímido, ainda mais jovem do que eu, e ficava em segundo plano diante de presenças mais vigorosas.

Foi somente com o passar dos anos, a repetição dos Congressos, e as noitadas em pé-de-parede que se prolongavam após as disputas, que pude vê-lo cantar mais solto, mais confiante, agigantando-se por trás da viola, ficando do tamanho dos versos que fazia.

No mundo dos cantadores existem várias divisões informais, tipo “os que são isso, os que são aquilo”. Uma dessas divisões é: “Os que cantam leitura, e os que cantam sentimento”. (Claro que qualquer bom repentista canta as duas coisas; essa divisão aponta apenas a ênfase de cada um.) João era um cantador de sentimento, de observação da natureza, de conhecimento das minúcias da vida no sertão, da compreensão psicológica das atitudes do homem, da mulher e da criança sertaneja.

O livro organizado pelos três poetas faz uma recolha valiosa de grandes improvisos, grandes glosas e episódios pessoais, além de uma série de testemunhos de amigos e parentes.  João está inteiro ali, mesmo descontando-se a tendência sertaneja para a hipérbole sentimental.

Meu parceiro Cavani Rosas, que naqueles idos de 1975 morava em Campina Grande e acompanhava os congressos de cantadores, fez a capa e as belas ilustrações a bico-de-pena do livro, que traz ainda um “porta retratos” de fotos de João, sua família, suas cantorias.

Muitos versos de João, para mim, surgem naquele território poético da observação da natureza e da paisagem humana, dos costumes, dos pequenos gestos das pessoas. Um simples registro, um flash, mas numa concentração poética semelhante à do haikai japonês, capaz de em três linhas evocar uma paisagem física, uma estação do ano, um momento de introspecção e meditação por parte do poeta que observa.

Alguns versos de João Paraibano:

Ainda lembro do cheiro
que minha mãe dava n’eu
da cor da primeira nota
que meu padrinho me deu
eu não peguei com vergonha
papai foi quem recebeu. (pág. 120)
Veja-se a delicadeza psicológica desse verso: o carinho materno misturado à lembrança de um momento em que o menino é admitido no mundo adulto dos homens, onde circula o dinheiro. E o fato do menino lembrar a cor da nota, não o valor. E a fluência dessas duas expressões tão nordestinas: “cheiro”, “com vergonha” (=encabulado, constrangido).

Quem vive numa prisão
leva a vida no desprezo
pede uma esmola a quem passa
nas mãos um cigarro aceso
pernas do lado de fora
e o resto do corpo preso. (pág. 98)
Aqui é a observação do comportamento social. Em Campina Grande eu já morei vizinho à Casa de Detenção (no apartamento que minha tia Adiza tinha na Praça Félix Araújo, no Monte Santo). Esta é uma foto precisa de como os presos passavam o dia: sentados no peitoril da janela gradeada, com as pernas para fora, e tirando onda, por cima do muro, com quem passava na calçada.

Fiz capitão na bacia
de feijão verde e farinha
quando o angu tava feito
mãe saía da cozinha
subia em cima da cerca
dava um grito e papai vinha. (pág. 49)
“Capitão” é o que na minha casa chamavam de “raposa”: feijão e farinha amassados juntos na mão, formando um bolo compacto para ser comido com a mão mesmo. E esse detalhe da mãe subindo na cerca para gritar pro marido (no roçado) que o almoço está pronto só me lembra uma cena de filme de Kurosawa ou de Andrei Tarkovsky.

Ao passar em Afogados
diga a minha esposa bela
que derramei duas lágrimas
sentindo saudades dela
tive sede, bebi uma
e a outra guardei pra ela. (pág. 54)
Aqui vale mais uma vez a delicadeza da imagem, a lágrima guardada para a mulher querida, como algo minúsculo e precioso. 

Meu passado foi assim
comendo juá banido
o vento dando empurrão
no lençol velho estendido
com tanta velocidade
que mudava a qualidade
que a tinta dava ao tecido. (pág. 123)
“Banido”, em nordestinense, é “estragado” – juá é tipicamente uma frutinha que se esparrama com exagero pelo chão, e as crianças acabam comendo qualquer um. A impressão visual da imagem do lençol sacudido pelo vento é o que Ezra Pound chamava de “fanopéia”, a evocação vívida, com palavras, de uma impressão visual. É uma variante e um enriquecimento do famoso verso de Manuel Xudu sobre o pião “que roda na ponteira / com tanta velocidade / que muda a cor da madeira”.

Vou pro meu sertão antigo
pra ver tapera sem centro
ver minha mãe na cozinha
cortando cebola e coentro
botando um prato no pote
pra não cair mosca dentro. (pág. 70)
Numa sextilha de rimas limitadas (“...entro”), o poeta retrata com simplicidade a cozinha de casa de sítio, o pote de barro com água num recanto. Geralmente coberto com uma tábua ou bandeja, com copos emborcados em cima; mas João enriquece a imagem ao supor um pote sem tampa que a mulher cobre mesmo assim com um prato qualquer.

Toda noite quando deito
um pesadelo me abraça
meu cabelo que era preto
está da cor da fumaça
ficou branco após os trinta
eu não quis gastar com tinta
o tempo pintou de graça. (pág. 124)
Aqui, vale a naturalidade com que “tinta” é rimado com “trinta”, e o tom grisalho (olha a fanopéia) é sugerido pela “cor de fumaça” em contraste com o “preto”. O verso bom é o verso simples em que tudo parece inevitável, parece que aquelas palavras sempre andaram umas junto das outras, e mesmo assim se conjugam de repente para produzir uma imagem pequena, mas nítida, concisa, memorável.