segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

4200) Flash Fiction (16.1.2017)




Os textos curtíssimos de ficção, dos quais falo aqui de vez em quando, estão para a prosa narrativa mais ou menos como o cartum está para a história em quadrinhos (HQ).

O cartum é algo que a gente olha, lê em alguns segundos, e recebe o impacto – pá!... – de uma idéia, que em geral vem sintetizada em uma imagem e uma ou duas frases (às vezes só a imagem mesmo).

Dizem os teóricos e praticantes da ficção curtíssima que ela serve como equivalente verbal disto.

Seriam as famosas “histórias em 6 palavras”: o exemplo famoso é atribuído a Hemingway: “Vende-se. Sapatinhos de bebê. Nunca usados.

Ou as “histórias em duas frases”. Gosto desta, que achei em inglês por aí, assinada com nickname: “Dia 312. A Internet ainda não está funcionando.” – fluffyponyza.

Ou as “histórias com 100 caracteres”: “Quando Gustavo C. acordou de sonhos intranquilos, estava metamorfoseado num livro escrito em húngaro.”, de Gustavo Melo Czekster.

Em inglês usa-se muito o Drabble, que são historietas de exatamente 100 palavras (não contando o título). Exemplos aqui:



Tudo isto, para mim, equivale a um cartum. Pá! – e o efeito acontece. Acho que a principal crítica que pode ser feita a isto, em termos de ficção em prosa, é que a ficção geralmente busca produzir uma impressão de passagem de tempo, de mudança, de transformação psicológica. E essas ficções curtíssimas proporcionam apenas a mais rápida e superficial das mudanças, que é a surpresa.

Em tese, qualquer história, com o mínimo de duas palavras, pode indicar permanência + mudança, identidade + alteridade, espaço + tempo. Mesmo a mais curta. “Eu morri” – está tudo aí.

Tem gente que pergunta: “Mas então o romance vai deixar de existir?! Vamos ser proibidos de escrever livros de 200 ou 300 páginas?!”  Não, colega. Ninguém vai proibir nem aposentar coisa nenhuma. Cada um faz o que lhe der na telha, conforme a altura de sua escada. Fazer microficções desse tipo é apenas um exercício que agrada a alguns porque parece aquelas esculturas de santos feitas num palito de fósforo, ou os caras que conseguem escrever o Pai Nosso numa cabeça de alfinete.

Quando comcei a escrever no “Jornal da Paraíba” em 2003, minha coluna tinha tamanho fixo entre 2.900 e 3.000 caracteres. Amigos perguntavam por que eu não publicava um conto de vez em quando, e eu dizia que era impossível escrever um conto que prestasse num tamanho tão pequeno. E o fato é que, olhando meus registros, vejo que só comecei a tentar fazer isso depois de mais de 800 colunas publicadas.

Depois, em 2011, o limite de espaço no jornal caiu para 2600 / 2800 caracteres com espaços. A esta altura eu já tinha “pegado o cacoete” e estava produzindo pequenos contos curtos que, sem serem textos extraordinários, eram compactos, precisos, tinham começo-meio-fim, e me deixavam satisfeito, porque sempre fui de escrever muito. Se eu me pegasse com dois ou três personagens conversando numa mesa, então, não tinha papel que chegasse.

Vários desses contos estão em Histórias Para Lembrar Dormindo (Casa da Palavra, 2013). Algum desses meus contos é uma obra prima? Não, e nenhum deles precisa ser. São exercícios. Obra-prima é algo que acontece como resultado do nosso trabalho, mas independente de nossa intenção. Resulta de uma mistura misteriosa entre Inevitabilidade e Acaso.

Sentar no computador com a intenção de produzir uma obra-prima é como ir para a cama com a esposa com a intenção de produzir um filho bonito. Não é assim que essas coisas acontecem.

A “flash fiction”, como se chama por aí, é uma boa escola para quem pertence ao time dos fluentes, dos caudalosos, dos escrevedores velozes e compulsivos.

É neste sentido que oficinas literárias podem ser muito úteis inclusive para quem já escreve bem, para quem já publicou, ganhou prêmios, o escambau. Escritores assim alcançam uma certa medida de sucesso pelas qualidades que de fato existem nas suas obras, mas têm defeitos (esse de escrever demais, no presente caso) que a médio prazo começam a cansar o leitor.

Já vi oficinas de roteiro de cinema em que se cobrava dos alunos: conte sua história em uma frase, depois em um parágrafo de cinco linhas, depois em uma lauda, depois em dez laudas. Claro que uma tarefa assim nunca é feita em sequência. O cara vai botando a história no papel e vai percebendo os detalhes que pertencem a cada um desses estágios.

Praticando essa forma, o escritor, se chegar a dominá-la em certa medida, percebe a força dos efeitos narrativos na prosa muito curta, onde cada palavra pesa, onde se diz “o casarão” sem poder descrever o telhado, as cornijas, as janelas, as balaustradas, o pórtico, o muro coberto de hera...

A grande maioria desses textos curtos não tem muita narrativa, no sentido de contar uma historinha completa com começo, meio e fim: tem mais de reflexão abstrata ou de descrição concreta de uma cenazinha do cotidiano.

Não importa, a não ser que o autor queira se tornar um mestre nesse estilo. Para quem o utiliza como um meio, apenas, pode ajudar muito. Raymond Chandler escrevia seus romances usando folhas de papel cortadas ao meio. Cada fragmento de cena específico tinha de caber ali. Cada meia-folha daquelas era reescrita várias vezes. A existência de um limite nos obriga a valorizar tudo que poderá caber lá dentro. A extensão é uma “contrainte”, uma restrição voluntariamente auto-aplicada e fielmente seguida.








quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

4199) Romances emprestados (12.1.2017)




Alguns escritores afirmam que as idéias caem do céu sobre a sua cabeça como cocô de pombo. O cara sai de casa para ir na papelaria da esquina a fim de comprar um cartucho de tinta 92 preto, e de repente sente alguma coisa quente a lhe escorrer pelo cérebro. É um conto policial pronto, protinho, saído do forno, desencadeado pela visão de um grupinho de pessoas conversando diante de um prédio enquanto um deles toca a campainha.

Por esses mecanismos inexplicáveis, ele percebe (não “imagina”; ele sabe, com a convicção dos verdadeiros ficcionistas) que aquele velhote é Fulano que tem tais ou quais objetivos inconfessáveis, aquela mocinha é Sicrana que está entrando de gaiata numa conspiração alheia, aquele senhor de terno é Beltrano que pensa estar dando um golpe mas também é vítima, aquela menina emburrada de óculos será a narradora de tudo, quando na velhice vier a entender de fato o que se passou.

Assim nascem muitos contos: como uma configuação casual que se cristaliza quando a imaginação malévola (mas em últimos termos inofensiva) de um escritor projeta sobre gente de verdade seus sonhos ou pesadelos de mentira.

Julio Cortázar comentou certa vez que a coisa que mais lhe ocorria em coquetéis ou reuniões sociais era alguém se aproximar dele e dizer algo na linha de:

-- Bem, já que você é escritor, escuta esse fato que se deu comigo, tenho certeza de que você vai fazer dele um conto sensacional.

O longilíneo Julio garante que nunca um conto lhe brotou depois de um ameaço dessa natureza, mas, em compensação, um papo casual entre algumas senhoras, entreouvido sem compromisso, lhe inspirou “Los buenos servicios”, um dos contos mais tocantes do livro Las Armas Secretas (1959) – a história de uma criada, uma mulher simples, que é contratada para fazer o papel da mãe de alguém desconhecido durante um velório.



Histórias emprestadas podem se transformar em grandes livros quando pousam no ouvido certo. Reza a lenda que o argentino Manuel Puig (o autor de O Beijo da Mulher Aranha e outros belos romances), quando morava no Rio de Janeiro, precisou fazer uma obra qualquer em sua casa e mandou vir um pedreiro. O pedreiro passava o dia trabalhando e conversando, e de seu monólogo autobiográfico Puig extraiu seu romance Sangue de amor correspondido (1982) – exercendo, sem dúvida, seu privilégio autoral de inventar quando lhe convinha.

Um dos clássicos da literatura brasileira, Memórias de um Sargento de Milícias (1852-53) foi publicado pelo seu autor, Manuel Antonio de Almeida, sob o pseudônimo de “Um Brasileiro”. Li em alguma parte – quem conhecer melhor a história que me ajude – que Almeida teve um certo pudor em se assinar como autor do romance (que saiu em folhetins nas páginas do suplemento “A Pacotilha”, do Correio Mercantil) porque toda a história lhe tinha sido passada verbalmente pelo sargento citado no título, e ele não fez mais do que registrá-la por escrito e publicá-la.



A prática do jornalismo é um dos principais canais deste veio da literatura em que a história narrada oralmente por A se transforma no romance escrito por B. No Rio de Janeiro contemporâneo os romances de Julio Ludemir sobre personagens obscuros do crime organizado têm também como base essas histórias de vida recriadas por escrito: No Coração do Comando (Ed. Record, 2002), Lembrancinha do Adeus (Ed. Planeta, 2004) e outros.




“Romance emprestado” talvez não seja o nome mais adequado para essa vertente, porque romance é o resultado final, e o que o primeiro narrador empresta é apenas o argumento errático, episódico, fragmentado, que serve de base ao trabalho estrutural e formal realizado pelo escritor. Mas não há dúvida de que quando não somos capazes, naquele momento, de conceber uma grande história, podemos pelo menos estar atento às histórias que o mundo coloca de bandeja no colo da gente.







domingo, 8 de janeiro de 2017

4198) A festa dos poetas (8.1.2017)




(foto: Dantinhas Vilar)


E lá fui eu mais uma vez parar em São José do Egito (PE), para a Festa do Rei, que celebra a data de nascimento do cantador Lourival Batista, o famoso “Louro do Pajeú”. Este ano o mote da festa foi: “102 anos de Louro / e 100 de Zezé Lulu”. Não cheguei a conhecer pessoalmente este último, cujos versos aparecem em todas as antologias, mas fui amigo de Louro, vi-o cantar pelo Brasil afora numa excursão, e muitas vezes nos bares de Campina Grande.

Louro era chamado o Rei do Trocadilho, pela sua obsessiva mania de desmontar e remontar palavras, refazendo-lhes o som e o sentido. Um dos seus versos mais famosos diz:

Você diz que eu sou pobre
isso é desgraça perene
mas tire o P, bote um N
e eu acabo sendo nobre...
Troque por C, fica cobre;
cobre é parente de ouro;
botando um T fica touro
como a carne e vendo a pele;
o T sem o traço é L
e eu fico mesmo por Louro. 

Isso é da mesma família dos “doublets” ("dublês"), as mutações verbais praticadas por Lewis Carroll (o de Alice no País das Maravilhas), onde ele transformava GOOD em EVIL trocando uma letra por vez (e cada palavra resultante tem que ser obrigatoriamente uma palavra de verdade, de uso corrente). Augusto de Campos adaptou essa brincadeira para o português, produzindo séries como BEM / sem / som / sol / sal / MAL, etc.

Acho que é o mesmo jogo a que Vladimir Nabokov (“Pale Fire”, na nota à linha 812 do poema) se refere como “Word Golf”, onde se transforma HATE em LOVE em três estágios, e LIVE em DEAD em cinco (“com LEND no meio”). Uma arte que no Brasil teve também entre seus praticantes o poeta Augusto de Campos:


("doublets" de Augusto de Campos)


Mas enfim. Lá me fui para São José do Egito na confortável carona de Leimar de Oliveira e Maria Inês, comparsas fiéis de várias décadas. No trajeto Campina-São José fomos vendo a caatinga esturricada. Entre o Natal e o Ano Novo caiu um dia de chuva em Campina, e bastou isso para que a vegetação na estrada para o Sertão estivesse verde pela metade.

Lancei na festa meu livro Cantoria: Regras e Estilos, volume 1 da série "Arte e Ciência da Cantoria de Viola" (Ed. Bagaço, Recife), o que só aconteceu graças à insistência de Amaro Filho e Cláudia Moraes, da Página 21 (que produz o evento) e à acolhida sempre carinhosa da família Marinho, descendentes de Louro, tendo à frente Antonio Marinho, meu parceiro em outros trabalhos. (O nome de Lourival era Lourival Batista Patriota; a família usa artisticamente o sobrenome Marinho, da linha materna, que descende do grande Antonio Marinho, o primeiro cantador que Ariano Suassuna viu cantar, quando era menino.)



Reencontrei Zé de Cazuza, o homem-gravador, paraibano véi que é a memória viva de cantoria, e com 87 anos sabe tanto verso que se fosse recitar tudo ia precisar de outro-tanto de prazo. Me recitou versos fesceninos, sonetos de Rogaciano Leite, repentes geniais de cantadores cujo nome nunca ouvi. 


(foto: Amaro Filho)

Aqui, um pequeno vídeo sobre Zé, pela TV Itararé de Campina Grande:

Reencontrei Dedé Monteiro, o poeta de Tabira que recentemente foi reconhecido como “Patrimônio Vivo de Pernambuco” pela Fundarpe, poeta do coração grande, do gesto elegante e da palavra precisa. Aqui, um vídeo de Dedé recitando um dos seus poemas mais conhecidos, “Fim de Feira”:


Direis agora: é uma festa da velha guarda?  Sim, mas a jovem guarda também pisa no palco. Vi apresentação de bandas heavy metal de São José homenageando um jovem integrante falecido no ano passado, Carlinhos Veras, cantando metal em inglês mas também um belo e vigoroso arranjo para “Assum Preto” de Gonzaga e Humberto Teixeira. (Furar os olhos dum passarinho pra ele cantar melhor. Tem coisa mais heavy metal do que a letra dessa música?!). 

Shows com bandas jovens como Em Canto e Poesia (dos irmãos Antonio, Greg e Miguel Marinho), Vozes e Versos (que fez uma bela recriação do meu “Caldeirão dos Mitos”), As Severinas (uma das melhores bandas femininas de forró que se pode encontrar por aí), e até do Spock Quinteto, do Recife, trazendo frevo e ciranda para a festa do Sertão.

Teve uma mesa de glosa cheia de suspense e bem conduzida por Jorge Filó; teve a projeção de filmes sobre o universo da cantoria, com destaque para "Maria" de Carol Correia e "O silêncio da noite é que tem sido testemunha das minhas amarguras" de Petrônio Lorena, sobre a dama-da-noite Severina Branca, musa de muitos poetas boêmios de São José, hoje octogenária e bem humorada, sentada na fila da frente.

Tive também a alegria de receber a visita de Dantas Suassuna e Dantinhas Vilar, que estavam em Taperoá e queimaram o chão quando souberam que eu estava em São José, porque temos projetos em comum que serão anunciados no momento propício.

E para que isto aqui não fique parecendo uma enorme coluna social, um pouquinho de reflexão. A festa de Louro é uma festa que celebra velhos poetas centenários, mas também é uma festa realizada por jovens. Jovens como eu fui um dia, curiosos de conhecer não apenas o andar térreo do mundo, que é o presente, mas todos os demais andares daí pra cima, que são os séculos acumulados no arranha-céu do Tempo.

Porque só o Passado existe. O presente é uma luz estroboscópica piscando entre o instante, a memória e a imaginação. Tudo que existe de material e imaterial no mundo pertence ao passado. O tênis que estou calçando, o café que tomo, o pão quente que estou comendo agora, tudo isto foi feito no passado. O futuro é uma aposta, uma suposição de fé.

Uma vez eu discutia com um amigo punk sobre “essa mania que os nordestinos têm de cultuar o passado”. Passado para ele, naquela conversa específica, eram os Beatles. Perguntei: “Quem é o presente, então?”. Ele disse “Os Ramones”. Eu disse: “Rapaz, os Ramones são passado também, aliás, se for fazer uma estatística, no cemitério já tem mais Ramone do que Beatle.”

Tudo é passado. A música do século 18, o cinema do século 20, o rock de 2016 e o jornal de ontem são passado. A epopéia de Gilgamesh, as lendas do Rei Artur, tudo são partes do passado, mas se mantêm vivas no presente, graças a nossa memória e nossa recriação.

Sim: na memória, que mantém vivos tanto os Beatles quanto os Ramones. Lá, os dois são contemporâneos de Dedé Monteiro e Zé de Cazuza, são contemporâneos de Lewis Carroll e de Lourival Batista.

O passado que continua acontecendo agora, através de alguém, é tão presente quanto as coisas que acabam de brotar pela primeira vez. Na frase famosa de William Faulkner, “o passado não morreu, ele nem terminou de passar ainda”. Podemos dizer também que não existem o passado, o presente e o futuro. Só existem dois tempos: o Passado e o Passando.

E dou a cara a bofete se na festa dos 200 anos de Louro não houver rock, forró, cantoria, mesa de glosa, cerveja em lata e churrasquinho no espeto de pau (porque ninguém é de ferro).







sábado, 7 de janeiro de 2017

4197) "Fogo Pálido" de Vladimir Nabokov (7.1.2017)



Acabei ontem a leitura de Fogo Pálido de Vladimir Nabokov (“Pale Fire”, 1962). É um daqueles romances policiais de “crime anunciado” onde nas primeiras páginas tomamos conhecimento de que foi cometido um crime mas nos é dito apenas o básico: quem matou, quem morreu. Todo o resto do livro é a reconstituição implacável dos fatos que conduziram àquele desfecho.

Meu livro preferido nesse subgênero é A Judgement in Stone (1977) de Ruth Rendell (“Um Assassino Entre Nós”, Editora L&PM), que começa com a frase famosa: “Eunice Parchman matou a família Coverdale porque não sabia ler nem escrever”.

Dizer isso de Fogo Pálido, na verdade, nem raspa o verniz desse romance complexo e divertidíssimo, daqueles que mal a gente termina de ler tem vontade de voltar ao começo para reler tudo à luz das muitas revelações que são feitas ao longo de todas as páginas.

São várias histórias por trás do enredo básico, e a edição que li (Penguin, 2000) tem um ensaio introdutório de Mary McCarthy tão cheio de alusões surpreendentes que a releitura parece obrigatória.

Não garanto que todo mundo ache o livro tão divertido quanto eu achei. Talvez o excesso de referências literárias e de digressões fantasiosas desconcerte algum leitor. Mas é inevitável. Fogo Pálido é formado por dois textos sucessivos: um poema em quatro Cantos e 999 versos, escrito pelo fictício poeta John Shade, e um ensaio explicativo escrito pelo também fictício Prof. Charles Kinbote, um dos mais formidáveis exemplos de narrador não-confiável em toda a literatura moderna.

Shade e Kinbote são professores de literatura na universidade fictícia de New Wye, nos montes Apalaches, e residem no campus. Ou seja: o livro é ambientado no universo onde Nabokov, também professor, passou a maior parte de sua vida adulta. É cheio de rivalidades e maledicências acadêmicas, aquelas briguinhas-de-departamento que consomem a maior parte do fosfato dos cérebros mais privilegiados de nossa pirâmide intelectual.

A tradução brasileira que tenho é uma edição do Círculo do Livro, traduzida por Jório Dauster, que também já traduziu o Lolita do mesmo autor. Dauster é um tradutor ambicioso, que também já encarou livros de Thomas Pynchon, Virginia Woolf e Philip Roth, ossos saborosos e duros de roer.



Gostei do modo tran-chan como ele corta um nó górdio bastante embranquecedor de cabelos, ao anunciar que certos comentários do Prof. Kinbote, sobre detalhes técnicos de metrificação e prosódia na língua inglesa, não têm equivalente em português e não podem (ou não precisam) ser traduzidos. Nenhum problema, pelo que me toca. O livro é tão pontilhado de pequenos achados verbais invariavelmente brilhantes que ninguém vai sentir falta.

Claro que nem todo mundo aprecia as piruetas verbais de Nabokov: somente os que curtem trocadilhos, anagramas, jogos de palavras, acrônimos, mutações verbais, neologismos... Nem todo mundo gosta disso. Somos poucos, mas somos felizes.

O ensaio de Mary McCarthy registra, entre outras coisas, as incontáveis referências shakespearianas no livro de Nabokov. Elas começam pelo titulo: o fogo pálido a que ele se refere é a luz do sol, roubada pela lua para poder brilhar também.

A citação é da peça Timon de Atenas, ato IV, cena 3, quando Timon se dirige a um grupo de ladrões:

(...) Eu vos darei exemplos de ladroagem:
o Sol é um ladrão, que com sua atração poderosa
rouba o mar para si; a Lua é ladra contumaz
e seu fogo pálido é roubado ao próprio Sol;
o Mar é ladrão também...  (trad. minha)

Mary McCarthy parte desta citação para glosar temas associados ao “roubo”, principalmente o tema do reflexo, da imagem roubada a alguém. Esse jogo de duplicidades é mantido durante o livro inteiro com o uso de duplas personalidades, identidades falsas, passagens secretas, espionagem, duplicidade sexual etc.  Há sempre alguém furtando e usando algo que não lhe pertence, seja uma identidade, uma imagem, um papel social.

Pale Fire é também o livro em que Nabokov introduziu uma de suas criações mais memoráveis, o país imaginário de Zembla, situado ao norte da Rússia. É de lá que vem o Prof. Kinbote, daquela espécie de Ruritânia cheia de príncipes, palácios, arquiduques, jardins de inverno, paradas militares e golpes de Estado.

Exilado nos EUA, Kinbote torna-se amigo e tiete do poeta John Shade, e de certo modo o influencia a escrever um poema sobre o reino fantástico de Zembla. Um dos grandes efeitos cômicos do livro é o fato de que o poema acaba sendo escrito, mas o poeta só fala de si mesmo, e o comentarista sempre dá um jeito de dizer que ele está se referindo a Zembla.

As quilométricas notas do Prof. Kinbote criam uma fascinante realidade paralela e têm muito pouco a ver com o texto sendo analisado. Mas, como Kinbote afirma em sua Introdução, “para o bem ou para o mal, é sempre o comentarista que tem a última palavra”.









terça-feira, 3 de janeiro de 2017

4196) Um cão de lata ao rabo (3.1.2017)



(Machado, por: Rocha + Takiguthi + Ramon Muniz)





Na velha edição da “Obra Completa” de Machado de Assis em três volumes, da Aguilar, li uma crônica dele em que um mestre escola sugere um tema a seus alunos.

O tema proposto é “Um cão de lata ao rabo”, e ao recolher os trabalhos o imaginário professor recebe três que se destacam dos demais. Os respectivos estilos são: “1 – Estilo antitético e asmático; 2 – Estilo ab ovo; 3 – Estilo largo e clássico.”

Esse é o exemplo mais antigo que me lembro de uma história sendo repetida, de três maneiras diferentíssimas, por três maneiras diferentes de pensar, que Machado parodia de modo muito divertido.


Anos depois dei uma furtadinha nesse título para um conto, tendo como mote a imagem sugerida por Machado. O escritor é um cachorro correndo. Amarrada ao rabo dele, há latas que produzem sons musicais diferentes. Essa melodia é o estilo dele, e a obra é o que resulta dela.

Existem escritores para quem escrever é rasgar a alma e as tripas e botá-las à venda na tábua de uma barraca pouco higiênica na esquina da baixa da Rua da Lama num país periférico e suicida. Para escritores assim, o estilo é a pessoa. Eles não poderiam escrever de maneira diferente, mesmo se disso dependessem suas vidas. O escritor é aquilo, ele escreve aquelas coisas, sempre daquele jeito. Ele não tem dois ou mais conjuntos de entranhas, só tem aquele.

E existem os que, sem perder a sinceridade ou o personalismo, manejam essas técnicas como Machado manejou. Para este segundo tipo de escritores, trocar de estilo é tão banal quanto trocar de roupa. Ou de figurino, porque o autor assim é um ator, troca de máscaras como bem lhe convém. Como faz Raymond Queneau em seus famosos Exercícios de Estilo, livro onde ele reconta uma mesma cena casual, entre transeuntes, de 99 maneiras diferentes.



Um cão que atravessa a mesma rua 99 vezes, cada vez com uma lata diferente atada à cauda. E cada vez uma sonoridade, um timbre, um andamento diferente. A lata é outra mas, por baixo disso, algo se repete e está sempre presente, porque o cão e a rua são os mesmos.

Queneau fez no seu livrinho uma demonstração meio por “redução ao absurdo”. Diante de suas piruetas verbais, os seus tradutores acabam se divertindo também, porque é um processo reiterativo que convida à reaplicação. Existe, sim, a Grande Arte da paródia, ou do pastiche, ou da imitação meramente técnica. 

Experimentos lúdicos desse tipo parecem às vezes, ao leitor pouco aficionado desses jogos mentais, uma demonstração de erudição, de alta complexidade. Nem tanto. Em geral, os escritores que gostam de truques assim (Lewis Carroll, James Joyce, Umberto Eco, Thomas Pynchon, Georges Perec) fazem porque acham divertido, e conseguem usar essa diversão como um gerador de energia-de-escrever.

Perec dizia que seu objetivo era produzir uma obra extensa onde não houvesse dois livros quaisquer pertencentes ao mesmo gênero. Não sei se conseguiu, mas em todo caso isso descreve bem a variedade das suas abordagens narrativas. Ele era cruzadista, meio cientista, fã de whodunits e de pulp fiction. E dominava (embora não tanto quanto seu mestre Queneau) um grande número de estilos.




Nem por isso sua visão do mundo, ou o que a valha, deixa de aparecer em tudo quanto ele escreve. A obra é raramente autobiográfica, mas estão há sempre referências a toda uma história sua que se perdeu e outra que se salvou.

Em casos como esses todos, a multiplicidade de estilos não se transforma numa multiplicidade de capas escondendo o autor, e sim como uma multiplicidade de rascunhos feitos de memória para captar uma imagem que se viu poucas vezes. Não são mil disfarces, mil camuflagens, são mil tentativas de aparecer feitas por algum fantasma.

Alguns têm a facilidade de ser publicados como humoristas, como foi o caso de Millôr Fernandes (“enfim, um escritor sem estilo!”), outro notório surrupião de modos de falar, ou como poetas, caso de Fernando Pessoa, que inventava tanto o estilo quanto o homem.



Ou como Daniel Clowes, o surrealista-lynchiano de novelas gráficas: Como Uma Luva de Veludo Moldada em Ferro (Like a Velvet Glove Cast in Iron, 1993) tem a nonsequiturice de Um Cão Andaluz numa ambientação de road movie e semi-enredo de filme policial noir.

Um dos seus álbuns, Wilson, segue, de leve, a sugestão dos 99 de Queneau. Cada página isolada do livro é desenhada num estilo de grafismo e de cor diferente das anteriores – mas a história avança. Não é a mesma cena, são capítulos de uma mesma história, desconjuntada mas proposicionalmente única. Como se a cada salto do olhar para o começo da página nova houvesse uma troca de canal, ou uma aplicação de filtro.



Em Wilson, Clowes conta as atribulações de seu barbudo sub-herói, que em algumas imagens é a cara do Walter White de Breaking Bad (só que numa versão existencialista e menos agressiva). As mudanças de estilo têm continuidade suficiente para que o leitor possa pular de uma faixa para a outra sem atrapalhar o passo.  Li em algum lugar que alguns críticos nem perceberam, pelo pouco que comentaram, o uso de toda essa variedade de formas, com transições tão insistentes e propositais.



Se algum crítico nem percebeu isso não percebeu, está na companhia dos críticos que leram o livro de Georges Perec onde ele proibiu a letra E (La Disparition) e não perceberam que uma das vogais estava ausente do livro inteiro. O romance foi traduzido ao inglês por Gilbert Adair como A Void, e agora no Brasil como O Sumiço, em tradução de Zéfere (Ed. Autêntica).




Saber imitar estilos é como saber imitar a voz e os trejeitos dos amigos, ou ser capaz de produzir 99 personagens e diluí-los em si próprios, deixando ver o ator.



















sábado, 31 de dezembro de 2016

4195) Resoluções para 2017 (31.12.2016)



Gravar um CD com as benditas músicas que as pessoas gostam.

Elucidar o Mistério das Máscaras de Chumbo.

Concluir o projeto alquímico-cibernético da abertura de um portal para um mundo menos chato.

Inventar um idioma aglutinante desprovido de vogais.

Consertar o encanamento da área de serviço.

Resolver o problema daquela esquina em Manaíra onde chega a ter três batidas de carro por dia.

Ler os 163 livros em PDF gratuito armazenados no computador.

Chamar para beber no bar cinco amigos meus que têm tudo a ver uns com os outros e que não se conhecem pessoalmente.

Fazer cirurgia naquele calo-de-sangue na sola do pé.

Trocar a porta do armário onde deu cupim.

Juntar num volumezinho os poemas alheios que já traduzi.

Descobrir como passar as fotos do celular velho para o celular novo.

Redigir e fazer publicar na grande imprensa uma “Carta Aberta aos Políticos Brasileiros”.

Recomeçar a jogar Riven (eita como eu sou velho).

Editar uma versão de “Grande Sertão: Veredas” com 800 páginas de notas.

Deixar a barba crescer e fazer um certo mistério a respeito.

Escrever biografias de Pete Best, Manuel Xudu, Raymond Queneau, James Ensor, Saul Steinberg e Edvaldo do Ó.

Fotografar um disco voador voando.

Fazer seis meses de psicanálise e usar isso como pretexto pra tudo que me der na veneta.

Pegar minhas fotos de Instagram e fazer um livrinho (só as fotos e os títulos) do tamanho de um compacto de vinil.

Aprender a andar de bicicleta o bastante para alguém me filmar por uns 10 ou 15 segundos, e registrar para a posteridade.

Fazer uma lista e sair ligando de pessoa em pessoa, pedindo desculpas por desatenções que vai ver que elas nem se lembram mais.

Faxina nas gavetas. Mesmo.

Passar um dia rodando por Campina e fotografando lugares especiais, projeto a se chamar “There are Places I Remember”.

Voltar a caminhar, a tratar dos dentes e a fazer checape.

Sair a pé de manhã de Laranjeiras rumo à Zona Norte, sem rumo pré-estabelecido, e pegar um táxi de volta quando me sentir na lona.

Consertar meu Prêmio Jabuti que levou uma queda há três anos e quebrou a base.

Comprar um HD externo pra copiar o HD do computador velho.

Decorar uma dúzia de poemas meus na ponta da língua pra não pagar mais o mico de recitar lendo.

Emoldurar as incontáveis gravuras de artistas amigos meus que tenho em forma de canudo, deitadas por cima dos livros.

Descobrir a pedra filosofal, a quadratura do círculo e a fonte da juventude.

Fazer uma limpeza em regra nas pastas de papéis obsoletos (recibos de contas de luz da casa onde morei 20 anos atrás, etc.).

Escrever o último capítulo (o único que falta) daquele livro iniciado em 2001.

Comprar um tênis e um sapato novo, tou precisando.

Praticar ioga, pilates, musculação, RPG, ginástica aeróbica e capoeira.

Traduzir “Le Bateau Ivre” de Rimbaud e abaixar de vez a crista da concorrência.

Inventar uma esferográfica que não deixe um borrão assim que encosta no papel.

Botar letra naquelas 76 músicas e música naquelas 118 letras.

Prestar mais atenção aos sentimentos dos terráqueos, eles não têm culpa de serem assim.

Levar um tiro de espingarda-doze na caixa-dos-peitos, acender um cigarro e dizer: “Nem doeu”.






sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

4194) A Baleia Jupiteriana (29.12.2016)




Eu vinha chegando em casa e no saguão do prédio encontrei um vizinho que não via há meses. Trocamos cumprimentos rápidos e ficamos esperando o elevador. Ele estava carregando embaixo do braço um quadro emoldurado. Quando percebeu meu olhar, ergueu a pintura para que eu visse melhor. Parecia uma proposta recusada para pôster de filme-de-tubarão japonês, um leviatã pouco anatômico brigando com as próprias pinceladas.

- E aí? – disse ele. – O que achou?

- Que legal – disse eu. – É impressionante.

- Foi minha mulher quem fez, estou trazendo do moldureiro. É um retrato de Anikiok. Você sabe sobre Anikiok, claro.

Comigo não tem tempo ruim, de modo que respondi:

- Sim, tenho ouvido falar, mas do que se trata mesmo?...

- A fé encontra seus caminhos – disse ele. – E Anikiok se manifesta em nós prioritariamente através de emanações de fé. Claro que ela não atingiu você ainda. Normal. É só uma questão de tempo.

Com o rabo do olho vi o elevador vindo do 18 para o 17 e fui me preparando.

- Sem dúvida – respondi.

- Fatos: Anikiok é a baleia jupiteriana cujo influxo telepático é a única força responsável pela harmonia em nosso planeta. Ela nos comunica a sensação do bem, da verdade, da justiça.

- Beleza – respondi.

- Beleza também – disse ele. – Toda a arte legítima produzida pela humanidade é uma emanação de Anikiok. Mas, por que estou lhe dizendo isso?!  Você não é um crente.

- Eu sou uma espécie de agnóstico – respondi.

- Você nega a existência de Anikiok?

- Não, não, é justamente o contrário. Digamos que eu não tenho dados para comprovar nem a existência nem a inexistência dela. É tudo muito novo ainda.

- Se você dedicasse algumas horas por dia a pensar em Anikiok facilmente aceitaria a existência dela – disse ele.

- É por isso mesmo que eu... – O elevador estava parado há horas no 15. – Que eu dedico sempre um pouquinho de tempo a todas as religiões. Já li a Bíblia, já consultei o Alcorão, li sobre Taoísmo, Budismo... Tudo ao mesmo tempo.

- A diferença – disse ele – é que essas são as falsas religiões, e a nossa é verdadeira.

- Não duvido – disse eu. – Parabéns.

- Você aceita Anikiok, então.

- Quem sou eu pra aceitar nada, amigo. Diga a Anikiok que estou receptivo às emanações telepáticas dela. Sou um homem mente-aberta.

- Mas acabou de dizer que é agnóstico. Um agnóstico é alguém que nega.

- Acho que me exprimi mal, essa palavra é meio arriscada – disse eu. Catorze... treze... doze... – Um agnóstico não nega a existência de um determinado ser. Ele apenas acha impossível provar que esse ser existe ou não. Para os crentes, a fé basta. Para nós, precisa algo mais que a fé.

- Você tem nível – disse ele. – Está convidado para vir ao nosso culto hoje à noite, para conversar com o pastor González.

- Tem pastor também? Eita, é o mundo todo.

- Vamos ter um culto e uma ceia. Não adotamos restrições allimentares. Tem peru, tênder, arroz de passas, farofa... Uísque e vinho também, se bem que você deve ser da linha cerveja. Pois vai ter cerveja e castanha assada.

- Eu sou um homem de linhas variadas – falei. Oito... nove... – Não tenho preconceito com religião, que dirá com bebida.

- Sobe lá em casa às 20 horas, - disse ele. - Eu moro no 2203.

Na subida do elevador ele me explicou detalhes do quadro: “O verde-limão exprime a amônia, que é para Anikiok o que o oxigênio é para nós”.  E reforçou o convite: “Venha mesmo, você vai somar. Vai ter pessoas da área da cultura - meu cunhado é publicitário”.

E não é que eu fui?  Tinha mesmo tudo, e muito mais. Houve um momento em que demos todos as mãos em torno da grande mesa redonda e cada um foi convidado a cerrar (não era fechar, era cerrar) os olhos e dizer em voz alta a mensagem que recebia de Anikiok. Como no momento eu era o primeiro à direita do anfitrião, tive que começar. Nem tive tempo de pegar os motes alheios pra dar uma glosada com diplomacia. Cerrei os olhos e disse a primeira coisa que me veio à cabeça, o título do conto submarino-venusiano de Roger Zelazny:

- The Doors of his Face... the Lamps of his Mouth.

Disse até bem, e num tom de voz que preservou as iniciais maiúsculas. Parece que impressionou, porque vários outros mandaram em inglês também, com múltiplos resultados.

A ceia rolou e nem precisei argumentar minhas posições. Os devotos de Anikiok estão mais ansiosos para falar do que para ouvir, e eu sou um Ouvidor Sênior desde os quinze anos.

Comi da castanha assada, do tênder, fui iniciado nos mistérios da telepatia vibracional enquanto degustava um Camembert de primeira com um Rufino tinto de boa safra.

Desci para meu apartamento depois da meia-noite, e mergulhei num sono empanzinado, agnóstico e jupiteriano, tudo ao mesmo tempo. E tive um vislumbre do que é ser um cetáceo num mar de amônia fervente, que nenhum sal de frutas é capaz de dissipar.










sábado, 24 de dezembro de 2016

4193) Natal 2016 (24.12.2016)





(ilustração: Michael Hutter)


...como a ave que volta ao ninho antigo
mas um degrau acima na espiral,
volta a Terra em seu giro sideral
para um lugar de onde jamais saiu.
Um campo fumegante: é o Brasil.
É a rua a que volto, é meu dezembro,
é a dor que lateja em cada membro,
punhalada de sangue, o osso vivo,
onde pulsa o relógio primitivo
da hora, do minuto e do segundo.

É o bafo da máquina do mundo
no cangote dum bicho encurralado,
roldanas, aguilhões, aço cromado,
cremalheiras, pistões, tornos de prensa.
Uma engrenagem dadaísta, imensa,
se arrastando em clangor de ferro velho,
balbuciando ao vácuo um evangelho
de cataclismos e de armagedons,
profecias do caos, deuses anões,
monstros sem ossos, feras amputadas.

Sento na cama. Quantas madrugadas
inda terei que despertar assim?
Que febre é essa que fervilha em mim,
coisa mil-bocas que me rói por dentro?
Um labirinto em ziguezague. Eu entro.
O piso range. O ar cheirando a mato,
e eu caminho a pisar cocô de rato...
Sento na cama: agora despertei.
Acendo a luz. Vou levantar. Farei
o meu café e vou pensar na vida.

Uma terra arrasada e comburida
é tudo que percebo atrás do véu
de ilusão que costura a terra ao céu
como cascata virtual de imagens.
Eis a mais verossímil das miragens:
uma falácia de nação feliz,
versão fotoshopada de um país
para iludir os tolos e os incautos
disfarçando os conluios e os assaltos
na bruzundanga da maracutaia.

E a gente nada e nada rumo à praia,
recebe o forno-inferno do verão,
finge estar bem, mente que sim, que não,
malabariza as contas todo mês,
paga duas em quatro ou uma em três,
pede emprestado a João pra pagar Zé,
tropeça, cambaleia, fica em pé,
respira fundo, calma, vai dar certo,
fique frio, meu bom, e fique esperto,
ninguém teve jamais segunda chance.

Enquanto tiver perna, amigo, dance
conforme a música da Cosmo-Esfera:
monte no tigre, deite com a pantera,
dê nó cego com as pontas do arco-íris,
se veja esquartejado como Osíris
e ressuscite como fez Sherlock,
saia voando no Pássaro Rock,
grite, esbraveje contra o fim da luz,
erga o brinde espumante pra Jesus
bebendo a Itaipava a dois reais.

E retornam os mitos estivais
os perus, os pavês; bimbalham sinos.
E o loop inapelável dos destinos
entrelaçados no DNA.
Pois não houve, não há nem haverá
algo além dos limites desta vida.
É no tempo-real desta partida
que tudo se decide no placar,
e enquanto brilhe acesa a luz do bar
ergue o copo sorrindo, vem comigo...









quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

4192) Spielberg 70 anos (22.12.2016)




Dias atrás o diretor Steven Spielberg completou 70 anos, e recebeu homenagens nas redes sociais. Fiquei pensando se valeria a pena escrever alguma coisa a respeito, não apenas porque todo mundo está falando, mas porque ele é um dos cineastas que eu mais presto atenção.

Não direi que é um dos meus 10 preferidos, nem dos meus 20, até porque não costumo classificar coisas dessa maneira. Mas simpatizo com a persona pública dele, com o modo como ele filma, com muitas idéias que ele expõe nas suas entrevistas...

Enfim, me veio a idéia de fazer pequenas comparações entre ele e outros diretores, para deixar mais claro, por efeito de contraste, as razões por que gosto de algumas coisas dele e não gosto de outras.

Spielberg x Kubrick

Nunca deixei de comparar os dois diretores desde que Spielberg herdou de Kubrick, após a morte deste, a realização do projeto I. A. -- Inteligência Artificial (2001), aquela fábula de Pinóquio futurista, o menino robô que sonha em virar menino de verdade. Os dois são cineastas que exploraram a FC mas se dão bem em qualquer gênero.

Para mim quem colocou de maneira mais precisa a diferença entre eles foi Terry Gilliam nesta entrevista: http://www.openculture.com/2011/11/terry_gilliam_on_filmmakers.html. O que estraga o cinema de Spielberg, diz ele, é a obrigatoriedade do final feliz, da resposta reconfortante, ingrediente hollywoodiano obrigatório.  Filme de Hollywood é como uma refeição que precisa terminar com doce. Mesmo quando aborda assuntos amargos, Spielberg cede a esse dogma dramatúrgico.

Diz Gilliam: “Há uma frase bem esclarecedora de Kubrick sobre A Lista de Schindler. Ele diz que é um filme sobre o sucesso: ‘vejam que cara fodão, ele salvou uma porção de gente’. Mas o Holocausto é uma história de fracasso, do fracasso da Humanidade em impedir o assassinato de seis milhões de pessoas”. 

Eu completaria o comentário de Gilliam dizendo que o uso da música revela muito bem o espírito de cada um dos dois. Kubrick já fez milhões de espectadores darem um pulo de susto na poltrona meramente por causa da música: a valsa das espaçonaves em 2001, a canção nostálgica que sublinha o holocausto atômico em Dr. Fantástico, a impressionante e assustadora trilha de De Olhos Fechados, a ironia de justapor tortura e Beethoven em Laranja Mecânica...

Já Spielberg nunca deixa de usar o amaldiçoado indutor-emocional feito de violinos plangentes e teclados exuberantes para sugerir amor, ternura, nostalgia... Falta pouco para Spielberg filmar Kafka e botar Richard Clayderman na trilha sonora.


Spielberg x Lucas

É quase inevitável citar os dois juntos, porque são amigos, parceiros, começaram juntos, e os dois se destacam na sua geração pelo fato de serem dois cinéfilos, dois caras que não gostam de bebida, nem de drogas, nem de farra (eu quase diria que não gostam de sexo): gostam de cinema e nada mais. (Leiam os capítulos sobre esses dois monges perdidos num carnaval de cocaína e surubas, em Como a Geração Sexo, Drogas & Rock-and-Roll Salvou Hollywood, de Peter Biskind, Ed. Intrínseca).

Os dois estão para o filme de aventuras juvenis assim como Francis F. Coppola e Martin Scorsese estão para o filme policial de sua época. Enquanto Lucas realizava a primeira trilogia de Star Wars (em 1977, 1980 e 1983), Spielberg produziu sua trilogia de Indiana Jones (em 1981, 1984 e 1989) No espaço de uma década, uma geração inteira de adolescentes sofreu um brutal upgrade em seu conceito de filme de aventura.

Comparando os dois: Spielberg é um diretor de cinema completo, com qualidades e defeitos que são a cara do cinema do seu país e do seu tempo. Lucas não é bom diretor, mesmo tendo iniciado a carreira com dois filmes fortemente autorais e satisfatórios (a distopia FC THX-1138 e o rito de passagem adolescente de Loucuras de verão).

Lucas é um produtor e idealizador em grande escala, mas como diretor involuiu ao longo dos anos. A trilogia do meio de Star Wars é constrangedora. Spielberg tem algumas escorregadas brabas, mas volta e meia vem com um filme que merece respeito, como Minority Report.



Spielberg x Hitchcock

Meus filmes preferidos de Spielberg são Encurralado, Contatos Imediatos do Terceiro Grau, E.T., Caçadores da Arca Perdida, O Império do Sol e Minority Report. (Com a ressalva de que não vi vários filmes importantes dele – ainda preciso ver o Soldado Ryan e aquele dos agentes do Mossad executando os terroristas de Munique.)

Alguém definiu Spielberg como “um animal cinematográfico”, e eu interpreto isso no sentido de que ele pensa instintivamente em forma de imagens em movimento, é algo que está nos seus processos mentais básicos. Outros cineastas têm uma idéia e depois pensam em como transpor essa idéia para imagens: Spielberg já pensa em forma de imagem. É como certo tipo de jogador de futebol, como Romário e Messi – quando a bola chega no pé, ele já sabe tudo que vai fazer.

Hitchcock é a mesma coisa, elevada a um grau que chega ao preciosismo. Muita gente criticava Hitchcock por sacrificar tudo ao efeito de linguagem.  Ele sacrificava a verossimilhança da história, a psicologia dos personagens, a verdade factual, tudo pelo prazer de criar uma cena bem feita. Eu acho que ele não conseguiria filmar de outro modo. Ao escolher uma história, era a forma cinematográfica que aquela história ia assumir que lhe interessava. Spielberg também.

Houve um aprendizado, claro. O livro de Peter Biskind que citei aí em cima fala do terror de Spielberg durante a filmagem de Tubarão ao perceber que seus diálogos em campo e contracampo, filmados no próprio mar, davam saltos incômodos na tela porque a cada plano o céu estava com uma luminosidade diferente.

Mas mesmo nos seus filmes mais fracos a gente percebe como ele dominou rapidamente essa percepção instintiva da melhor maneira de posicionar e mover a câmera e os atores, mudar o enquadramento, destacar o som, fazer o corte, encaixar o momento do diálogo... 

É o cinema ideal?  Não, mas é uma depuração perfeita do cinema-de-efeitos norte-americano, que teve entre seus criadores, é claro, o inglês Hitchcock, o irlandês John Ford, o austríaco Billy Wilder, o alemão Ernst Lubitsch etc.