quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

4046) A palavra "hardboiled" (10.2.2016)



Esse termo indica os detetives durões do romance policial, mas não traduz bem para o português. A idéia se refere a ovos muito cozidos, que ficam muito duros. Passa a sensação de dureza (=valentia, violência, brabeza) e de algo ou alguém fervido, castigado, curtido pela vida. 

Aqueles detetives de sobretudo e chapéu mole interpretados por Robert Mitchum, ou então os policiais durões e silenciosos de Richard Widmark.

O detetive não é “hardboiled” somente porque pode recorrer à violência. Isso Sherlock Holmes também fazia. A diferença entre os dois é que Holmes, tido como tão frio e objetivo, é no fundo um romântico que acredita na Razão e um otimista que tem fé na Ciência.  Um detetive hardboiled não acredita sequer na autenticidade da nota de vinte que uma loura artificial lhe estende. É o cinismo que os separa. O Zeigeist da era do “sendo assim fica permitido tudo, cada um por si”. 

Philip Marlowe é durão, mas não somente por dar uns safanões em bandidos metidos a besta. Ele vive com a vida por um fio, e só tem de poderoso para protegê-lo a letra da Lei. A mesma lei que ele atropela, quando, pelo bem do cliente, ele suprime provas, mexe na cena do crime, confunde indícios, omite informações. 

Ele sabe que pisa terreno minado, e os policiais sabem do que ele anda fazendo.  Só querem uma chance para flagrá-lo, a pretexto de uma tecnicalidade qualquer, e depois fazê-lo cumprir uma turnê de insônias ao longo de mil delegacias, enquanto puderem fazê-lo de modo quase legal. 

É um personagem que vive num mundo pior do que o nosso, pois nele acontecem coisas que não fazem parte do nosso dia a dia, razão pela qual lemos esses livros, vemos TV, compramos jornais sensacionalistas. Em O Longo Adeus, diz Marlowe: 

“A outra parte de mim queria ir embora e ficar longe, mas essa era a parte a quem eu nunca dava ouvidos.  Porque se alguma vez eu a tivesse ouvido eu teria ficado na cidade onde nasci e trabalhado no armazém local e casado com a filha do patrão e tido cinco filhos e lido para eles os balões dos quadrinhos nos jornais das manhãs de domingo e dado uns tapas num e noutro que saíssem da linha e teria entrado em querelas com a esposa sobre quanto seria a mesada de cada um e quais os programas que eles tinham licença de assistir no rádio e na TV.  Eu podia até ter ficado rico, um interiorano rico, numa casa de oito quartos, dois carros na garagem, frango todo domingo e as Seleções do Reader’s Digest na mesa da sala, a esposa com o cabelo duro de permanente e eu com um cérebro igual a uma saca de cimento Portland.  Pode ficar pra você, amigo. Eu quero a cidade grande, sórdida, maculada e corrompida.” 




quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

4045) Patafísica (9.2.2016)


A Patafísica é uma ciência, uma pseudo-ciência, ou uma paraciência? É um clube literário ou uma corrente filosófica?  É um grupo de humoristas ou de gozadores?  Ela foi criada por Alfred Jarry, o iconoclasta autor da peça Ubu Rei, que produziu grande escândalo, e surgiu no livro Gestes et opinions du docteur Faustroll, pataphysicien (1911, póstumo). “A patafísica será sobretudo a ciência do particular, mesmo que se diga que só existem ciências do geral,” diz ele. “Ela estudará as leis que regem as exceções.” O livro foi lançado agora pela Nephelibata, com tradução de Eclair Antonio Almeida Filho e Odulia Capelo Barroso.

Para honrar a memória de Jarry, que morreu na miséria, criou-se o Collège de Pataphysique, uma daquelas instituições francesas que motejam da solenidade da cultura oficial do seu país. O Colégio é uma mistura de academia de letras e de clube de aficionados. Entre os seus membros famosos estiveram os artistas Juan Miró, Max Ernst e Man Ray; o romancista e autor de “chansons” Boris Vian; Raymond Queneau, o autor de Zazie no Metrô, Exercícios de Estilo e muitos mais.

Queneau pertencia também ao grupo da OuLiPo (Ouvroir de Littérature Potentielle), onde se reuniam ele, Georges Perec, Italo Calvino, Harry Matthews, François Le Lyonnais e vários outros. Parece ter sido inicialmente um departamento do próprio Colégio de Patafísica. O interesse da OuLipo era produzir ficção ou poesia seguindo algumas regras ou simetrias arbitrárias, de natureza numérica ou geométrica.

Tanto os patafísicos quanto os oulipoetas têm, não só no que escrevem, mas no modo como se comportam, uma mistura de informalidade estética aliada a espírito lúdico. A Patafísica é uma espécie de arte de jogar belota enquanto o absurdo não desaba. A oulipoesia é uma exploração de parâmetros meio aleatórios (e nisso se parece às ciberpoesias eletrônicas atuais) ou inconscientes, e nisso se aproximam de um terceiro movimento, o Surrealismo.

O Surrealismo se sonhou internacional mas a história situa seu epicentro em Paris. Dos três, é o movimento literário mais exaltado e talvez o mais crente, o menos leviano ou alienado. O movimento tem forçosamente a cara de seu líder, André Breton, o que é inevitável, já que ele excluía do grupo quem ficava diferente dele.

Não importa se os membros do Colégio de Patafísica acreditam que algumas de suas proposições mais anárquicas possam ser verdadeiras. Seria bom saber se elas ajudam a construir uma máquina de viajar no tempo, como aconteceu ao Dr. Faustroll, ou se desencadeiam chacinas até hoje inexplicadas como a de Maxwell Edison e seu martelo de prata.



sábado, 6 de fevereiro de 2016

4044) Oito fotografias (7.2.2016)



(foto: Andre Kertesz)


Peitoril de uma janela, em preto e branco bem granulado, sobre o qual repousa, apoiada no braço dobrado sobre o caixilho, a mão de uma menina de uns dez anos. Ao lado dela, uma pistola calibre 38, carregada, pousada sobre o peitoril. Na foto, a menina não toca ainda na arma.

Um canal cimentado, com águas verde-azuis, amuradas vermelhas, três garotos de camiseta e calção, em cores variadas, armando o pulo para saltar dentro dele, o primeiro já frecheirando de braços esticados em pleno ar, o segundo dobrando os joelhos e braços pra trás pro impulso final, o terceiro ainda se posicionando.

Uma estação de trem, acima do nível do pátio em volta. Uma escadaria de três trechos de doze degraus. E uma mulher, saias esvoaçantes, uma mala e uma sacola numa mão, uma mala maior e uma bolsa pequena na outra, bolsa grande a tiracolo em diagonal, uma mulher corpulenta e decidida, está subindo essa escada enquanto no último degrau um homem alto, magro e moreno a observa, à espera, com o pulso esquerdo soerguendo-se apenas o mínimo para indicar: “Olha a hora!”.

Um entrevistador perguntou a Pelé, já de chuteiras penduradas, qual a coisa do tempo de jogador que ele tinha mais saudade. Ele disse: “O pontapé inicial de todo jogo, quando o time da gente estava no auge. Quando a gente ir dar a saída, a gente olhava e via o medo nos olhos deles. O medo que eles tinham do Santos.” A foto mostra esse medo.

Foto noturna do lado de fora de uma “villa” a que se tem entrada por um pórtico. Do lado de cá desse pórtico, caído rente ao muro, bêbado, um homem bem vestido. Ao fundo, todas as casas da vila estão apagadas, menos uma, onde a luz está acesa e há uma mulher debruçada à janela, morta de sono.

O braço moreno de músculos longos e secos passa a peixeira com força num serrilhado que sai cortando em diagonal, jogando para o alto uma chuva de diamantes em forma de escamas de peixe.

Foto muito próxima, não dá para ver se é no meio da rua ou num clube, mas o ambiente é escuro, e a foto mostra um rapaz e uma moça se olhando, com gente fantasiada marcando o passo ao fundo. Só os dois, se olhando.

Na rua estreita de edifícios escuros e tortos explode para a rua pela janela do 5o. andar uma chuva de estilhaços de vidraças despedaçadas, e também dali emerge um pesado cofre de aço com um metro e meio de altura, e preso a ele, pela manga do casaco jeans que se enganchou quando ele ajudou a erguê-lo até o peitoril e depois empurrá-lo janela afora, um rapaz, mas a manga enganchou e lá foi ele, no instante exato em que a turista dinamarquesa fotografava tudo, pois tinha gostado de uma eira-e-beira qualquer no prédio colonial vizinho.




sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

4043) As letras do crime (6.2.2016)



Você é um cidadão norte-americano que trabalha para uma empresa de pesquisa, contratada, em última análise, pelo governo do seu país. Sua missão é viver no Terceiro Mundo: em países quentes, com cidades de trânsito infernal, água pouco confiável, costumes incômodos, idioma inexpugnável, valores ininteligíveis.  Você avalia as coisas, preenche planilhas, faz uma pesquisa meio quantitativa e meio qualitativa. Deve transmitir suas impressões, opiniões, julgamentos, avaliações da probabilidade disto ou daquilo acontecer.

O narrador de The Names (1982) de Don DeLillo é um cara que produziu uma lista de 27 indignidades praticadas por ele na convivência conjugal; a lista foi escrita por ele meio que psicografando o que ele achava que a esposa pensava a seu respeito. Agora separado, ele se dedica a preencher as planilhas e estudar grego, afinal estão morando em Atenas. Há uma simetria incubada entre essa massa de tabulações e índices que ele, James Axton, manda via telex para seus patrões. E há em volta dele (que só o percebe mais adiante) uma série de crimes simétricos acontecendo. Crimes onde – como nos policiais clássicos de Agatha Christie (Os Crimes do ABC) ou de Ellery Queen (A Tragédia de X, ...de Y, ...de Z) ou de Borges (“A morte e a bússola”) – as letras, a grafia, o local do crime, são coisas cruciais. 

“Nunca pensei que teria saudade do meu apartamento,” diz uma amiga de Axton, em Jerusalém; “deve ser porque meu corpo ficou lá.” Seus amigos expatriados são todos razoavelmente abastados e vão toda noite aos restaurantes locais, onde têm noitadas espirituosas rodeados por figurantes gregos. Há um cineasta meio maldito, amigo de Axton, que quer transformar toda a investigação desse mistério (a esta altura já se percebe ser um culto clandestino) num documentário. É um desses artistas intensos, que se arrebatam por uma idéia e não abrem nem pra um trem. Ele e Axton conseguem conversar, separadamente, com homens do culto. Têm diálogos de terrestre com marciano, e vão embora.

DeLillo tem uma prosa como de quem tem um baralho bem traçado na mão e vai estalando cada carta na mesa, virando e estalando. Aquela maneira meio realista-modernista dos norte-americanos, cada frase fazendo cair pelo menos uma ficha. A descrição dialoga com o leitor sem que o personagem perceba. Ele tem também um olho bom para no meio da descrição de um passeio ou de uma conversa anotar vislumbres. “Uma mulher colocava estrume de vaca em fôrmas ovais para secar ao sol.” “Um chapéu de homem veio esvoaçando pela rua afora.” “Um homem a cavalo, uma mulher que caminhava atrás segurando a cauda do cavalo.”




quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

4042) Ser editor (5.2.2016)



Alguém já disse que depois do Autor, a pessoa a quem a gente deve ajoelhar e agradecer por um bom livro é o Tradutor. Eu concordo, mas estendo essa condição ao Editor. Ele é o cara que numa pilha enorme de envelopes pardos achou essa história pra mim. Não leu somente ela. Leu umas cem, e das cem tirou meia dúzia, inclusive esta. Por causa dele eu acabei de ler agora, e achei sensacional.

O editor a publicou sabendo que um dia um leitor anônimo, na outra banda do mundo, acabaria lendo aquilo, entusiasmado, e talvez nem pensasse no quanto seria remota a chance de ter lido aquilo se não fosse por esse editor. 

Ele é um descobridor. Um dia, já velho, ele vai estar numa mesa cheia de camaradagem, alguém vai erguer um brinde a ele chamando-o de “descobridor de talentos”, e ele vai dizer: “Pois é, eu ainda lembro como fiquei em dúvida, puxa vida, quem é Fulano de Tal, quem é Sicrano, dirá o público, quem vai se interessar em ler? Mas fui lá e banquei!  Por que? Porque eu sabia!”. 

Nem sempre o editor sabe, ou melhor, quase nunca.  Digo isso porque do lado de quem publica a esperança é sempre a mesma: “É este aqui que vai decolar, entrar em órbita, puxar minha conta bancária lá pra cima, e me dar a iniciativa do jogo.” 

Cada livro que a gente publica a gente vê nele o maior jeitão de best-seller. Pensamos isso com tanta força que quando um belo dia um dos livros efetivamente vende, a gente chega a ver naquilo um anticlímax, uma moeda que só nos chega às mãos depois de desvalorizada.

Para criar livro alheio, precisa ter os mesmos cuidados e o mesmo carinho que tem com o livro seu. Não ouvi de um editor essa frase, ouvi-a de uma nega véia, e não era livro a palavra, era filho, e a intenção é uma só. 

O livro é a obra do editor.  O escritor forneceu apenas o texto literário, sem dúvida o mais importante de tudo, mas por isso mesmo era preciso fazer um livro à altura. O texto é de quem escreve. O livro é de quem publica.

Mesmo quando os livros encalham, mesmo que hajam se vendido somente uns cem exemplares, o editor pode pensar nesses leitores agradecidos e achar que valeu. 

E não nos custa imaginar que às vezes o único propósito de haver uma primeira edição dos poemas que um tal de “Aaron Klopstein” publicou em Dresden em 1951, é que o derradeiro exemplar desse livro seja achado num sebo de Nova York, em 2008, e desde então ele venda em poucos anos mais de dois milhões, em cinco países. 

Tudo que certos livros precisam é não desaparecer. Se não desaparecerem, sua história irá acontecer, mesmo com décadas de atraso. O editor é justamente o cara que providencia esses milagres.
















quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

4041) "Os Nomes" (4.2.2016)




Em certo momento na história das guerras e conspirações internacionais, já no século 20, o mundo leitor se deu conta da existência de espiões. Como profissão já existia desde a antiguidade, certamente. Só que ainda não tinha toda uma literatura dedicada a reimaginar suas atividades. 

O pico de sucesso foi com James Bond, mas um sucesso tal condena um gênero à auto-paródia e à morte. Tinha que aparecer um gênero novo, que retratasse nossa época, ou pelo menos as décadas finais do século 20.

Depois do espião, surgiu agora o analista de riscos. 

Quem é essa figura ubíqua, anti-heróica, essa silhueta cinzentamente mainstream? São os personagens principais de The Names (1982), de Don DeLillo, um romance que transcorre em sua maior parte na Grécia. 

James Axton, o narrador, é um analista de riscos para empresas norte-americanas no Oriente. Ele e seus amigos, que são banqueiros, consultores, assessores governamentais, ficam pulando de país em país, desenraizados, estranhados, vivendo sozinhos ou com a família em apartamentos onde, mal começam a se sentir confortáveis, têm que desmanchar tudo e mudar para outro país, ainda mais indisciplinado, e de idioma imprevisível.

No meio de tudo isso, Axton e seus amigos descobrem a existência de um estranho culto, um grupo de pessoas que pratica assassinatos aparentemente rituais, por nenhum motivo aparente, a não ser o crime em si e certos detalhes externos a ele.

DeLillo tem um narrador excepcional neste livro; Axton é de uma fluência espantosa, principalmente quando está sendo mau caráter (como na sedução da esposa de um desconhecido, durante uma noitada). Ele e seus amigos comparam países como quem compara aeroportos. Vivem alerta em relação à violência local, mas têm a mais pura das certezas de que são alvos somente por sua nacionalidade, porque na verdade não têm nada do que se recriminar. 

Não são espiões.  São analistas de risco: dos seus relatórios emergirá, a milhares de quilômetros, um modelo informático de um país produzido pelo conjunto das interpretações pessoais de cada um. E decisões cruciais serão tomadas sobre o futuro dos gregos indefesos (o livro, é bom avisar, é de 1982).

Existe um limite perigoso numa sociedade tão baseada na informação. (DeLillo, em 1982, rasgava a superfície disto.) Não é só que a gente não tenha como combater o poder, é que o poder nos usa de um modo que não compreendemos. 

Os personagens deste livro, com todo o brilhantismo e espirituosidade dos seus diálogos, são cúmplices distraídos do que lhes acontece. Seu Olimpo literário é o mesmo dos megaempresários de Cosmopolis, ou da trilogia “Blue Ant” de William Gibson.





terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

4040) Imagine a catástrofe (3.2.2016)



A historia básica tem cinco fases, ou cinco atos. O primeiro seria A Chegada da Coisa: é o primeiro contato com o extraterrestre, o monstro, etc. Geralmente do ponto de vista de um personagem importante, em geral jovem, ao qual de início ninguém dá crença. 

O segundo é um Ato de Destruição presenciado por muita gente, dando razão ao que fora desacreditado de início. 

O terceiro ato é a Mobilização dos Poderes, e são cenas variadas de cientistas perorando, políticos se indignando ou proferindo inanidades, militares tensos querendo cortar o mal pela raiz. 

No quarto ato, a destruição se amplia e surge a função narrativa da Garota em Perigo; geralmente nessa altura está se desenrolando combate aberto entre as forças humanas e as do Inimigo, por entre cenas de fugas em massa, evacuações, etc. 

E no quinto e último ato tudo gira em torno da idéia salvadora, a Arma Terminal, que produz apoteoses de efeitos visuais e de heroísmo com orquestra ao fundo.

Esta é (com liberdades retóricas de minha parte) a sequência estrutural descrita por Susan Sontag no seu ensaio “The imagination of disaster” (em Against Interpretation, 1966). Foi deduzida a partir de dezenas de “filmes de monstros” dos EUA e Japão, os notórios filmes B daquela época. Mas também corresponde, com precisão, ao modelo criado em 1898 por H. G. Wells em A Guerra dos Mundos. É uma fábula acautelatória sobre os riscos da civilização, e ao mesmo tempo um bom pretexto para passar-no-rodo, dramaturgicamente, os símbolos dessa mesma civilização.

Sontag vai em outras direções no seu ensaio, mas como reli há pouco A Guerra dos Mundos não pude deixar de ficar pensando no modo como uma sinopse desse tipo permanece e faz sucesso em mercados culturais muito diferentes do mercado onde surgiu. Mas o filme de ficção científica B dos anos 1960 bebia do visual e da dinâmica dos velhos seriados, assim como dos argumentos da pulp fiction da época. Note-se que esse arcabouço narrativo de Wells nada tem com outros plots clássicos, como a Jornada do Herói, etc.

Sontag cita filmes de diferentes faixas de sucesso, clássicos de Cine Poeira como Rodan (1957), When Worlds Collide (1951), The Time Machine (1960), This Island Earth (1955), The Fly (1958), The War of the Worlds (1953). Sobre este último, diz que “criaturas com pele de crocodilo rubra, como aranhas desajeitadas, que invadem a Terra porque seu planeta está frio demais para ser habitável.” Wells foi também o pai desse cinema, na sua vertente febril, de ritmo jornalístico, múltiplos pontos de vista, e clímaxes que são mais cáusticos nos europeus e mais celebratórios nos norte-americanos.




segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

4039) 27 lápides funerárias (2.2.2016)




* “Torci pelo time certo. Apostei no time errado.”

* “Querida, minha senha bancária é r6vf4jy8do9.”

* “Meu último desejo é uma ordem: se o mundo recomeçar, não me acordem.”

* “Digam o que disserem os invejosos e os detratores, ele conseguiu, sim, montar o maior depósito de fogos de artifício do vale do Curimataú. Pense num empresário bem sucedido. Só que tem gente que não se conforma.”

* “Senhor, nós te louvamos graças, Senhor. Estamos à vossa espera, Senhor. És nosso arrimo de paciência, Senhor”.

* “Gordão da Perua, galera, aqui, sempre aos pés de vocês. Vivam a vida! Gordão da Perua viveu a dele. I did it my way. Beijo no coração!”

* “Eu sempre tentei falar a verdade. Eu sempre acreditei estar falando a verdade.”

* “Quando a Lua estiver na sétima casa, e Júpiter se alinhar com Marte, você verá meu rosto em cada imagem, e ouvirá minha voz em toda parte”.

* “Fiz. Fim. Fui.”

* “Quem seria capaz de calcular os escafandros necessários para trazer de volta uma interjeição de êxtase perdida entre as dobras de um lençol freático?”

* “Tudo lá, no testamento. Me deixem em paz.”

* “A morte sempre chega de surpresa.”

* “Aqui jaz, modestamente, o filho de Alexandre Climério Villaverde I, e o pai de Alexandre Climério Villaverde III.”

* “Foi ruim enquanto durou.”

* “Minha alma se dissolverá na memória alheia tal como meu corpo irá se dissolver sob estes ciprestes.”

* “Quem lhe garante que eu de fato determinei esta frase para ser gravada aqui?”

* “Conheça o passado. Aproveite o presente. Abra mão do futuro.”

* “A mente que pensou esta frase não pensa mais.”

* “Aqui, embaixo da terra, tem alguém que se encantou. Nem foi preciso uma guerra. Foi a paz que o carregou.”

* “Eu devia ter prestado mais atenção a certas coisas.”

* “Gostaria muito de poder acreditar que estou indo para um lugar onde existe filé com fritas.”

* “Ele desafiou a morte quase diariamente dos vinte aos 62 anos. Ia ter que perder um dia.”

* “Na lápide: transcrever aquela frase do Salmo 23.”

* “Se eu não tivesse atrasado o pagamento do plano de saúde você não estaria lendo isto aqui.”

*  “Ponha os jornais de hoje em cima desta pedra, e veja quem dura mais.”

* “Nem que eu fosse feito de titânio.” 

* “Espero que cada um de vocês, que se dê o trabalho nada minimizável de vir em carne e osso até aqui, possa pelo menos se preparar, e trazer, digamos, algum aparelho tocador de música, para escutar, durante o tempo que lhe convier, algumas músicas que dizem respeito a nossa convivência, aos nossos momentos bons passados juntos. Tragam música, fiquem em silêncio, equilibrem o espírito. Será nossa forma de conviver de agora em diante.”






domingo, 31 de janeiro de 2016

4038) Henry Miller (31.1.2016)





O autor de Trópico de Câncer entrou na minha vida, não como alta literatura, mas como alta sacanagem. Entrou mediante aquelas últimas carteiras da classe, onde o professor se tornava um débil holograma ao fundo da sala e a gente traficava as proibições da vez: revista dinamarquesa de nudismo terapêutico; baralho de caricaturas, cada qual mais escrachada; catecismos de Carlos Zéfiro... Um dia, alguém tinha trazido um exemplar de Sexus, já bem manuseado, que ele nos estendeu confiante e esclareceu logo: “Capítulo 16”.



O arrebatamento verbal de Miller é tamanho, contudo, que eu logo percebi qual era a dele. A sacanagem sorridente e desencanada era pouco perto de suas reflexões sobre vida, saúde, moralidade, arte, dinheiro, sucesso.  Miller não era um grande sátiro, era um grande moralista (no sentido de ter uma visão bem particular sobre valores e ser fidelíssimo a ela) que gostava de trepação.



Todo mundo sabe que Lawrence Durrell, do Quarteto de Alexandria, foi grande amigo e incentivador de Miller. Depois vi George Orwell (Inside the Whale) dizer que Miller era uma voz sadia num momento sombrio da Europa. Alguém que desistia de tomar as rédeas do mundo, como a literatura engajada. Alguém que aceitava a catástrofe, mas como era em câmera lenta dava tempo para aproveitar algum lado bom.



Quem também o elogia é J. G. Ballard: “Miller foi o primeiro escritor proletário a criar uma literatura pornográfica baseada na linguagem e no comportamento sexual da classe trabalhadora. (...)  [Ele é] um Proust da classe operária, noção que forneceu a base de toda a sua carreira.” Ballard chama Miller de proletário do ponto de vista de uma Inglaterra de classes bem nítidas. Miller era rapaz urbano, ex-funcionário dos Correios (como depois Bukowski, tão revoltado quanto ele). Não é um intelectual refinado, é um cara de vistas largas, enorme apetite de experiências, de idéias, enorme fluência para se exprimir. Talvez tenha publicado em excesso, mas, se o problema é esse, melhor assim.


Uma vez vi Ariano Suassuna elogiar Lawrence Durrell, e comentei que ele raramente elogiava autores ingleses. Ele observou que citava justamente Durrell, “o mais mediterrâneo e ensolarado dos ingleses”, e tinha razão. Tempos depois, perguntei se ele gostava de Henry Miller. Ele disse que leu Miller por influência de seu amigo e mestre Hermilo Borba Filho (que inclusive escreveu um livro sobre Miller), mas que acabou gostando mais dos contos eróticos de Anaïs Nin, que conheceu no mesmo “pacote”. Miller não é um autor fácil, mas ninguém pode negar que a medula de sua visão do mundo era basicamente saudável, ensolarada, cheia de vida.





sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

4037) Piadas científicas (30.1.2016)



A professora adverte um aluno: “Joãozinho, a sua redação ‘Meu cachorro’ está igual à do seu irmão mais velho.” O pirralho: “Claro, professora, o cachorro é o mesmo.”  (A lógica subjacente à piada é a mesma lógica dos economistas que aplicam uma fórmula e depois dizem que “o país é o mesmo”.)

Lucy, numa tirinha de “Peanuts”: “Só em problemas de matemática você pode comprar 60 melões e ninguém perguntar o que diabo há de errado com você.” (Provavelmente para Lucy a mentalidade humana, social, é mais vívida do que a mentalidade abstrata e operativa. Para ela tudo tem que ter significado humano. Se lesse livros policiais não leria S. S. Van Dine, leria Raymond Chandler.)

Dois irmãos preguiçosos estão deitados em redes, na sala da fazenda. Um deles pergunta: “Será que está chovendo?”. O outro diz: “Assobia chamando o cachorro, e vê se ele está molhado.” (A física subatômica faz isso. Na impossibilidade de presenciar certos eventos físicos, eles provocam os eventos, inserem neles um tipo de partícula que já conhecem, e depois examinam o que aconteceu com ela.)

Dois capiaus estão ao entardecer, mastigando talo de grama à beira de uma lagoa, quando um enorme dragão verde-azulado surge no ar e voa rumo sudoeste. Os dois ficam em silêncio, cada um pega outro talo de grama. Outro dragão surge, amarelo-alaranjado, cuspindo fogo, e voa como uma flecha rumo ao sudoeste. Um capiau diz: “Parece que o nim deles é pralá.” (O cientista pode estar interessado apenas na reiteração de tais ou tais fenômenos, mesmo que não tenha uma explicação sensata para eles.)

Essas piadas lembradas meio aleatoriamente são de fato científicas? Não foram pensadas assim, é claro. Toda piada é um pulo do gato, uma queda de asa, uma virada de mesa, uma dobrada de esquina a trezentos por hora, com segurança total. Ela é pensada em função da puxada-de-tapete final, a chamada punch line, que não tem necessariamente que provocar gargalhadas. Às vezes basta um “Ha!” de surpresa, mas dum tiro só, acusando o golpe. Piadas assim são exemplos de raciocínios abstratos dentro de uma situação fácil de entender, com uma lógica que parece absoluta até a virada final.

Um cara abriu uma barbearia no centro da cidade e botou; “A melhor barbearia do país.”  Um mês depois outro sujeito abriu outra, na mesma calçada, e anunciou: “A melhor barbearia do mundo”.  Com mais algumas semanas, um terceiro, metros adiante, inaugurou a sua, proclamando: “A melhor barbearia da rua”. (Na verdade, filosoficamente acho que ele criou um impasse, um loop moebius que volta sempre ao ponto de partida. Mas teatralmente quem ganhou o round foi ele.)