segunda-feira, 22 de junho de 2015

3847) "Sobre a Escrita" (23.6.2015)



Está nas livrarias Sobre a Escrita ("On Writing") de Stephen King (Ed. Objetiva, tradução de Michel Teixeira), um livro que vale a pena ler e anotar, se você é um pretendente a escritor. Qualquer livro assim, em tese, pode trazer dicas importantes, e minha teoria pessoal é de que quem sente a necessidade de ler livros de “Conselhos Para Pretendentes a Escritor” está mesmo precisando de conselhos, portanto faz bem em ler. É o meu caso, para não ir muito longe. (Tem muitos que acham que já são escritores, sem ser, acham que ninguém pode ensinar-lhes coisa alguma, e neste caso a única coisa possível é deixar que continuem batendo com a cabeça na parede até que uma das duas se abra.)

King não é teórico, mas é um cara articulado e inteligente. Seu livro Dança Macabra é uma das melhores análises existentes sobre o terror e o fantástico nas artes narrativas. Sem vocabulário acadêmico e sem jargão filosófico (eu até suporto bem esses ingredientes, mas não lhes sinto a falta quando é o caso) ele é um leitor e espectador atento, sabe teorizar, sabe extrapolar a partir do que vê, e tem, por assim dizer, o espírito da coisa. Ao comentar uma obra, vai direto ao ponto; tem faro de enredo, assim como há atacantes que têm faro de gol. Terror e fantástico são algo que King entende intuitivamente, e vem provando isso há 40 anos.

Sobre a Escrita é metade manual-de-escritor e metade memórias, porque foi escrito quase todo após o atropelamento acidental que deixou King avariadíssimo, numa dolorosa recuperação que ele descreve no terço final do livro. Seus conselhos, bem, são os de sempre, os que aparecem em todo manual. Corte advérbios e adjetivos, enxugue o texto, não explique em demasia, pense sempre qual é a história que está tentando contar... O que diferencia cada manual é o modo como o autor encaixa esses conselhos no seu texto, os exemplos e contra-exemplos que fornece, o eventual bom humor, a eventual erudição.

A tradução brasileira saiu agora, mas o que li foi a edição original, que tem uma capa excelente de Shasti O’Leary. É a foto da lateral de uma casa, com uma janela de vidraças e, logo abaixo dela, aquela típica entrada norte-americana para o porão, aquela porta comprida no chão, inclinada de encontro à parede da casa. A porta de porão sugere uma entrada de serviço (neste livro, estamos entrando na literatura pela entrada de serviço, não pela porta de frente) e ao mesmo tempo o mítico porão de tantas histórias de terror como as do próprio King. O porão do inconsciente, o lugar onde estão escondidas as coisas que muitas vezes só podem vir à luz envoltas no campo-de-força da Narrativa.



sábado, 20 de junho de 2015

3846) Palavras intraduzíveis (21.6.2015)



(ilustração: Berenice Abbott)

Há muitos blogs e saites por aí explorando sutilezas das línguas, como por exemplo as palavras que não têm equivalente direto em outros idiomas. Nós, lusófonos, nos orgulhamos de nossa “saudade”, uma palavra preciosa para um sentimento que talvez a gente sinta melhor do que os demais, graças à variedade de contextos pessoais e coletivos em que a palavra é usada.

Todo idioma tem esses termos que, noutra língua, precisam ser explicados, e que, quando se trata da tradução de um livro, forçam o tradutor, rangendo os dentes de raiva, a fazer longos circunlóquios para explicar o que o autor conseguiu dizer com um único termo. No alemão cita-se muito “Schadenfreude”, que é “a alegria que sentimos quando vemos alguma coisa ruim acontecer com alguém”. Esta é uma descrição aproximada, claro; todo mundo que a descreve adiciona uma fímbria nova de sentido, e é pra ser assim mesmo. “Schadenfreude” talvez seja aquela sensação que nos faz ficar olhando algo e murmurando baixinho: “Bem feito!”, ou “Toma!”.

Num desses saites um leitor norte-americano lembrou a quantidade de palavras assim que há no inglês e lembrou “discombobulated”. Para este, eu sugeriria o nosso “descompensado”. “Fulano era um cara normal, mas passou anos tomando LSD direto, e ficou meio descompensado”. O mesmo leitor pede um equivalente para o inglês “rigmarole”, que o dicionário define como “conversa ou história sem nexo ou sentido”, e que entre nós talvez possa ser preenchido com “xaropada”, “lero-lero”...

Também em inglês tem o caso de “shenanigan”, uma palavra traiçoeira que pode significar, de acordo com o contexto e o tom: trapaça, golpe, embromação, enrolada, um-sete-um, caô, papo-de-urubu-pra-moribundo. Palavras assim são sempre fortemente coloquiais, e de etimologia confusa. Para “shenanigan”, p. ex., já foi sugerido o francês “ces manigances” (“essas trapaças”).

E o que dizer desse verdadeiro vírus-mutante do inglês que é “thingamajig / thingumabob / thingumadoodle / thingmananny” e centenas de variantes, palavras para designar algo que não nos ocorre no momento? Esse troço, negócio (“me dá aí o negócio da coisa”, como pede Walter Carvalho aos seus assistentes de câmera), parangolé, badulaque, não-sei-que-lá... O mineiro usa “esse trem”, o baiano diz “a porra aí”; são termos criados de dentro para fora, da fala coloquial até chegar um dia aos dicionários de gíria, depois aos dicionários oficiais da língua. Em casos assim, a palavra em português tem equivalência meramente funcional na frase, mas a rigor estamos muitas vezes traduzindo uma palavra intraduzível do inglês por outra palavra intraduzível do português.



3845) "eXistenZ" (20.6.2015)



Coordenei para a Escola de Cinema Darcy Ribeiro (Rio de Janeiro) uma Mostra do Cinema Fantástico, com filmes nos sábados às 14:00h, entrada franca. A escola fica na esquina da Rua 1º. de Março com Rua da Alfândega, pertinho do CCBB. (Após a sessão, neste sábado, haverá debate com o prof. Sérgio Almeida.)

Hoje, sábado 20 de junho, será exibido o último filme dessa mostra: eXistenZ de David Cronenberg (1999). O diretor tem realizado thrillers policiais realistas nos últimos anos, mas marcou sua posição no cinema com uma série de filmes semi-FC descrevendo os tipos mais incômodos e delirantes de relacionamento entre seres humanos, máquinas, criaturas monstruosas em geral, num clima de estados alterados de consciência e morbidez mental generalizada. Ele já filmou autores como Don DeLillo, J. G. Ballard e William Burroughs, sempre encontrando neles pontos de contato com sua própria visão.


eXistenZ tem essa grafia no título, ao que parece, porque dois produtores do filme são húngaros, e a palavra “isten” em húngaro significa “Deus”. E o filme, embora não seja propriamente sobre Deus, é sobre o conceito de realidade, mostrando pessoas que mergulham num videogame que é plugado ao usuário via uma porta cibernética implantada na espinha dorsal, com o auxílio de cordões umbilicais biotecnológicos. Como geralmente se dá nessas situações, depois que o personagem dá o primeiro salto para a “outra realidade” (o game), nunca mais vai ter certeza de onde está, se de fato voltou à realidade onde estava antes, ou se está saltando para níveis cada vez mais remotos de realidades ilusórias.

Saber em que plano está acontecendo cada cena é um dos passatempos deste filme que, segundo dizem, Cronenberg teve a idéia de escrever quando entrevistou Salman Rushdie, na época escondido do mundo devido à “fatwa” islâmica que ofereceu um prêmio por sua cabeça. O diretor pensou em explorar num filme uma situação assim vivida por um designer de games perseguido por um grupo armado.

É um filme com atentados, perseguições, fugas, conflitos. Há momentos arrepiantes em que o “jogo” fica em pausa e seus personagens sorriem, paradões, sem nada ver, enquanto os dois protagonistas comentam o que farão em seguida. Uma incerteza tipo Philip K. Dick permeia o filme, além das eventuais imagens bizarras e meio repulsivas que parecem fascinar o diretor. (O filme é mais leve, contudo, do que pesos-pesados como Videodrome, Almoço Nu ou A Mosca). É um cinema fantástico que deve igualmente à psicanálise, à cibernética, à teratologia, à teoria dos universos múltiplos, às aventuras pulp-ficcionais de heróis por acaso.


quinta-feira, 18 de junho de 2015

3844) Gelo e Fogo (19.6.2015)



Nenhum indivíduo deveria morrer sem saber sua origem, de onde veio, quem o pôs no mundo, qual o mistério que cerca seu nascimento. O folhetim clássico já nos deu centenas de vezes  o drama de quem passa a vida em busca de solver o mistério de si mesmo até se deparar com a mais terrível das revelações. O folhetim moderno parece ter condenado alguns dos seus personagens não apenas à morte, mas a uma vida em vão. Nunca saberão de nada; chega parece que seu destino é algo que já estava escrito há muito tempo, por alguma divindade impaciente. “Procurarás, e não ficarás sabendo.”



E olha que estamos falando de um universo onde há não apenas uma luta entre casas reais de um continente, mas entre continentes distintos, cada qual pouco ligando para as distinções e as dissidências internas do outro. O povo de um deus numérico contra o povo de um deus cromático, isso para não falar em outros que por enquanto permanecem na penumbra, mas próximos. Como se manifesta o vosso deus? seria uma boa pergunta inicial na primeira reunião entre dois embaixadores.



Nada mais verdadeiro, segundo Bob Dylan, do que o gelo e o fogo. Basta perguntar às pontas dos nossos dedos. Gelo e fogo são o xibolete materialista terminal. A pedra de toque: saber se posso ou não tocar nessa pedra. O que nem sempre se deve fazer. Quando um personagem entra num recinto e existe um botão bem à vista, não há como não pensar que todo o fluxo da história depende de que ele estenda o dedo e aperte. Alguém bastante curioso, imprudente ou maluco para apertar esse botão sem pensar a que ele se refere. São as pessoas que fazem a História dar um solavanco, que tanto pode levá-la para a frente (como a Segunda Guerra Mundial) quanto para trás (como a Primeira).



Parece que a narrativa de Fantasia Heróica em questão levantou um tapete, ou uma série de tapetes religiosos, e se deparou com seitas purificadoras, fogueiras sacrificiais em praças públicas, o poder da fé subjugando o poder da espada. Os sem fé parecem ser todos canalhas e calígulas. Os crentes parecem ser ceifadores do erro, máquinas de povoar o mundo das almas purificadas durante o próprio castigo.


Qual a governante que não gostaria de montar num dragão, passar o rodo em tudo ao seu redor, e partir rumo a uma aventura terramarear?  Qual a espada-paga que recusaria uma aventura sem pé nem cabeça, desde que pudesse enfrentar alguém com um bom pretexto? Qual o roteirista que recusaria a chance de mexer na quantidade dos mandamentos, no número de lados de um pentágono, na quadratura do círculo, na vida e na morte de pessoas reais o bastante para serem levadas em conta e nos servirem de selfies disfarçados?





3843) Jazz, FC e cantoria (18.6.2015)






O jazz talvez venha a ser visto um dia como a música que melhor refletiu o século 20. (Não, não é o rock. O rock só cobriu a segunda metade do século.)  

O jazz é visto como a música do improviso, mas todo ano se gasta, na indústria editorial, um Rio Negro de tinta para descobrir e glosar novas sutilezas suas. Geoff Dyer, num artigo de 1991 (em The Picador Book of Blues and Jazz, 1995) examina uma hipótese de George Steiner, de que toda a crítica de artes e de literatura deixasse de existir. Haveria apenas a justaposição entre artista e público, sem explicadores, sem intermediários. Um “ozônio de comentários”, diz Dyer, sugerindo que a crítica é uma camada protetora cuja ausência fosse talvez perigosa demais para a arte.



Mas logo adiante ele lembra que para o próprio Steiner a própria arte é a melhor reflexão sobre a arte. Dyer transpõe as referências clássicas de Steiner para o jazz, onde, segundo ele, cada performance, cada fonograma, é ao mesmo tempo criação musical e crítica da música que veio antes. 

No jazz, diz Dyer, “se traçássemos linhas ligando todas as canções disponíveis num diagrama assinalando todas as homenagens e tributos, logo o papel se tornaria impenetravelmente preto, e o sentido do diagrama seria eclipsado pela quantidade de informação que precisaríamos registrar”.



Essa reflexão pode ser aplicada a muitas formas de arte além da música clássica e do jazz. Ela é especialmente aplicável a duas artes com que tenho certa familiaridade: a ficção científica e a cantoria de viola. Dois universos onde todo mundo que cria já leu todo mundo que criou, formando uma imensa teia de citações, homenagens, paródias, paráfrases, glosas, variantes, universos-compartilhados, sequelas e prequelas, alusões, influências. 

É difícil um autor significativo de FC que em qualquer momento não esteja reciclando e renovando idéias de Wells, de Clarke, etc; idem um cantador de viola que volta e meia não lance mão de temas ou de recursos estruturais vistos pela primeira vez nos versos de Romano do Teixeira, de Pinto do Monteiro, de Vila Nova, etc.


Espírito imitativo ou fervente caldeirão cultural? Fico com a segunda. Para quem é escritor de verdade (músico, cineasta, repentista, etc) a arte em si é o oxigênio. Poeta que passa 24 horas seguidas sem pensar em poesia cai torrado por um raio. Daí que quando o talento individual aparece todo mundo vê logo, porque críticos, leitores, apologistas, editores, todos compartilham o mesmo Banco de Dados Universal, todos são astrônomos que conhecem de cor cada espaço ocupado ou vazio daquele céu, e todos veem ao mesmo tempo a explosão de cada Nova.




quarta-feira, 17 de junho de 2015

3842) Giulietta de Fellini (17.6.2015)



Giulietta (L&PM, 1989) é o romance resultante do roteiro de Julieta dos Espíritos (1965), de Federico Fellini. A edição brasileira (tradução de José Antonio Pinheiro Machado) saiu simultaneamente com as edições italiana e alemã. O livro saiu 24 anos depois do filme; há muitos pontos de contato, a idéia geral do enredo, mas, no mais, livro e filme são diferentes.

Giulietta (a narradora do livro) é uma mulher tímida, sensível, com uma autoestima um pouco baixa, ansiosa para agradar o maridão rico, charmoso e infiel. As amigas são todas sofisticadíssimas, sensualíssimas, moderníssimas e ela as contempla embevecida e resignada. Ela descreve a mãe como “elegante, formosa, autoritária”, e vê-se logo que ela é a patinha feia da família. Giulietta participa de umas sessões espíritas meio fajutas, entre outras socialites (tema recorrente em Fellini: o misticismo-como-entretenimento) e começa a receber visitas de uma tal de Íris, um espírito que vem revelar-lhe alguns segredos da feminilidade.

Giulietta fica atarantada e jubilosa com as revelações. “Nós mulheres sérias nunca pensamos nessas coisas; temos a impressão de que esse tipo de coisa diz respeito, digamos assim, às putas.  E quando passam os anos, de repente percebemos que nos enganamos completamente e que a razão estava com elas, as putas. Muito mais importante do que manter a casa em ordem, do que ir ao cinema com o marido, do que garantir domingos divertidos em família... nós deveríamos ser... não digo que deveríamos ser mais putas... mas enfim, no fundo, é isso mesmo: ser mais putas”.

Essas idas-e-vindas ansiosas anunciam um renascimento que num filme norte-americano talvez resultasse em Giulietta se transformando numa “sereia vulcânica da Broadway”, mas Fellini opta (no filme e no livro) por outra solução. Como o filme veio antes, é impossível deixar de ver a personagem do livro sem as expressões da atriz Giulietta Masina: seu rostinho atento a tudo, os olhos ansiosos, meio dissimulados, o semissorriso permanente e oblíquo com que ela parece achar graça nas saias-justas em que se mete.

No último capítulo, ela pressente em sua paranóia que a casa está sendo assediada por soldados bárbaros, e que o marido a abandonou. Aparece então, num balão, seu avô ateu, barbudo, amante de uma dançarina, o mesmo que interrompeu anos atrás a pecinha católica em que ela era “queimada viva” pelos romanos, dizendo que aquilo era uma imbecilidade e uma violência contra a neta. É o Fellini livre-pensador, irreverente, libertário, ajudando Giulietta a fazer as pazes com o espelho. Comparar o filme e o livro é um exercício divertido e proveitoso.


segunda-feira, 15 de junho de 2015

3841) O guitarrista Ivinho (16.6.2015)




A morte anda solta, ceifando gente da música popular, e nos últimos dias, por enquanto, lá se foram o grande jazzista Ornette Coleman, o poeta do Clube da Esquina, Fernando Brant, e o guitarrista Ivinho, do Recife.  Falarei um pouco, então, sobre o menos famoso dos três.



Ivinho surgiu para nós-o-público ao tocar sozinho no Festival de Montreux, na Suíça, no seu velho violão de 12 cordas com o tampo quebrado, produzindo longos improvisos como as 23 minutos estonteantes de “Partida dos Lobos” (aqui: http://tinyurl.com/odgrtuj) onde se sucedem ponteados nordestinos, frevo, temas de flamenco, riffs roqueiros, o escambau. (Saiu depois em disco; está em mil lugares na web.) Ele se tornou um dos músicos geniais que acabaram meio que pirando, como Lanny Gordin (o guitarra-chefe do Tropicalismo) e Arnaldo Baptista, dos Mutantes, para não falar em Brian Jones (Rolling Stones), Syd Barrett (Pink Floyd) e mil outros que chegaram perto demais do fogo que os aquecia.



Fez parte da geração psicodélica da música recifolindense, que incluía bandas como Ave Sangria e Batalha Cerrada, e malucos geniais como Lula Cortes, Lailson, Marconi Notaro, Marco Polo, Flaviola e tantos outros. O espesso caldo cultural de onde emergiram nomes como Alceu Valença, Geraldo Azevedo, Zé Ramalho, Robertinho do Recife. Todos reproduziam o clima maluco-beleza da época e cada um tinha um perfil único.


Os improvisos de Ivinho mostram como a arte de improvisar música é dependente da arte de estudar música, da arte de dominar o instrumento, aquilo que chamamos de “praticar escalas” ou “exercícios de digitação”, aqueles sons aleatórios que não têm propósito musical mas visam a tornar os dedos mais flexíveis, mais precisos, mais rápidos. Ninguém pagaria ingresso para ver um saxofonista ou um guitarrista praticando escalas, mas todo mundo se deslumbra quando vê um músico de talento utilizando esses trajetos-um-milhão-de-vezes-percorridos para produzir algo que está um degrau acima em termos de criação, colagens de melodias caídas-do-céu, tendo o palco como laboratório e a platéia como a turma de estudantes de medicina que vê o professor deitar um Frankenstein na pedra e extrair dali uma Isadora Duncan. Os dedos de Ivinho recorriam à memória pessoal e ao inconsciente musical coletivo, e ouvindo-o tocar (o primeiro brasileiro a tocar em Montreux, reza a lenda) a gente percebe que ele está fazendo, no que era então o palco mais disputado da Europa, o mesmo que fazia na sala de casa e no terraço dos amigos, mergulhando nas harmonias, mergulhando nas cadeias melódicas, mergulhando na bricolagem de ritmos, um mergulho tão profundo que só acabou agora.


sábado, 13 de junho de 2015

3840) Ler pela primeira vez (14.6.2015)



Tenho uma velha coletânea de contos de Robert Louis Stevenson (PocketBooks, 1951) em cujo prefácio os editores, anonimamente, comentam a obra e o estilo do autor, e anunciam cada um dos contos, todos clássicos: “Dr. Jekyll and Mr. Hyde”, “O duende na garrafa”, “O Clube dos Suicidas”, etc. A certa altura eles dizem:  

“Não precisamos dizer uma só palavra, estamos certos, sobre ‘The Sire de Malétroit’s Door’, exceto que se vocês ainda não a leram, nós os invejamos do fundo dos nossos corações – porque nenhuma alegria no que diz respeito a livros se compara à alegria de ler um belo conto pela primeira vez.”

Essas linhas me ficaram desde então como um sinal de qualidade, ou pelo menos de um tipo específico de qualidade que algumas histórias têm: o dom de produzirem seu clarão na primeira leitura, de caírem inteiras do céu, com seu peso total no coração do leitor.  A primeira vez tem algo de revelatório. 

Hoje em dia, por causa da publicidade, fala-se muito essa forma de frase, “o primeiro X a gente nunca esquece”. Mas uma história envolve algo mais complexo do que a mera nostalgia do tempo em que a vida era só de coisas novas. Não se pode falar de uma história sem a ler por completo, até o fim, vendo-a então em sua totalidade. Essa primeira experiência é marcante: os contos com final surpresa, os contos com revelações repentinas, os contos com uma situação humana que tem começo-meio-e-fim...

Hemingway jactou-se uma vez (1935): 

“Eu preferiria poder ler de novo pela primeira vez Anna Karenina, Far Away and Long Ago, Os Buddenbrooks, O Morro dos Ventos Uivantes, Madame Bovary, Guerra e Paz, A Sportman’s Sketches, Os irmãos Karamazov, Hail and Farewell, Huckleberry Finn, Winesburg, Ohio, A Rainha Margot, La Maison Tellier, O Vermelho e o Negro, A Cartuxa de Parma, Dublinenses, a autobiografia de Yeats e mais alguns poucos, do que ter uma renda garantida de um milhão por ano.”

Levando em conta que não li quase nada dessa lista e um milhão está um pouco fora do meu alcance por enquanto, há sempre uma antologia galáctica de primeiras vezes à nossa espera. 

Eu diria que a história ideal é a que na primeira leitura cai como uma bigorna da Acme, na segunda revela uma segunda ou uma terceira face, na décima leitura parece uma pirâmide sendo desenterrada aos poucos.

O saite Open Culture oferece (aqui: http://tinyurl.com/po9vm47) versões em texto e versões de áudio (na língua original) de todos esses livros citados por Hemingway.  

Quem já leu, pode experimentar ouvir pela primeira vez. Não creio que perca seu tempo, pelo contrário, acho que vai ter boas surpresas.







sexta-feira, 12 de junho de 2015

3839) "A Estrada Perdida" (13.6.2015)




Estou coordenando, para a Escola de Cinema Darcy Ribeiro (Rio de Janeiro) uma Mostra do Cinema Fantástico, com filmes nos sábados às 14:00h, entrada franca. A escola fica na esquina da Rua 1º. de Março com Rua da Alfândega, pertinho do CCBB. (Após a sessão, neste sábado, haverá debate com o prof. Sérgio Almeida.)

Hoje, sábado 13 de junho, será exibido A Estrada Perdida (Lost Highway) de David Lynch (1997), que é um filme difícil de colocar numa categoria: não é uma fantasia como O Ladrão de Bagdá nem um filme de terror clássico como Sangue de Pantera ou Os Inocentes. É um filme em que coisas estranhas acontecem com pessoas comuns, e onde em certos momentos a realidade (a realidade vivida por elas) parece se fraturar e depois se recompor de um modo improvável e incômodo. Lynch dizia: “Gosto de fazer filmes que acontecem na América, mas que levam as pessoas para lugares onde elas nunca poderiam ter ido; para dentro das profundezas do seu ser.”



O filme começa mostrando um casal que recebe anonimamente fitas VHS mostrando sua casa filmada de fora. Logo depois chegam imagens do lado de dentro, e por fim fitas filmadas dentro do quarto, mostrando o casal adormecido. A sensação de insegurança e medo fica mais intensa, principalmente pelo uso da música e do som. Neste filme, além do seu compositor habitual (Angelo Badalamenti), Lynch usou canções de David Bowie, de Trent Reznor (da banda Nine Inch Nails) e da banda alemã Rammstein, que segundo ele virou a favorita da equipe e cujos cassetes tocavam o dia inteiro nos intervalos da filmagem.



Segundo Lynch, a idéia para o filme veio da vida real, quando um dia o interfone do seu apartamento tocou, ele acordou, atendeu, e uma voz de homem disse: “Dave!”, e ele: “Sim?”, e o homem: “Dick Laurant morreu.” E desligou. Lynch foi à janela olhar lá fora e não viu ninguém; e não conhecia ninguém chamado “Dick Laurant”. Que evidentemente tornou-se um dos personagens do filme. Sobre este, o diretor diz: “É sobre um casal que sente que em alguma parte, bem na fronteira da sua consciência, ou do outro lado dessa fronteira, existem problemas sérios, muito sérios. Mas eles não conseguem trazer esses problemas para o mundo e encará-los. De modo que essa sensação ruim fica pairando, e os problemas se abstraem e se transformam em outra coisas”.


A Estrada Perdida tem uma narrativa fraturada, desconcertante; é uma história de mistério e suspense, aparentemente comum, mas com “quebras de realidade” que deixam o espectador sem chão.  É um filme à altura dos trabalhos mais inquietantes do diretor, como 
Veludo Azul ou Cidade dos Sonhos (Mullholland Drive).




quinta-feira, 11 de junho de 2015

3838) "Eunoia" (12.6.2015)



O cara está em casa, aí o Correio traz um pacote do estrangeiro. É um livro, não muito grande, e, a julgar pelo recibo impresso que vem dobradinho dentro, não saiu caro. Mas é tanta coisa na vida que o cara não lembra que livro é esse, ou quem foi que encomendou. 

Pra saber do que se trata, abre meio ao acaso, numa página qualquer do começo. E lê: 

Hassan can watch, aghast, as databanks at Nasdaq graph hard data and chart a Nasdaq crash – a sharp fall that alarms staff at a Manhattan bank. 

Mais ou menos: 

“Hassan pode observar, estupefato, os bancos-de-dados da Nasdaq processando estatísticas e traçando um gráfico de uma quebra da bolsa Nasdaq – uma queda brusca que alarma os funcionários de um banco de Manhattan”.

OK, pensa o cara. Um thriller sobre o mundo empresarial. Abre noutra página: 

Westerners revere the Greek legends. Versemen retell the represented events, the resplendent scenes, where, hellbent, the Greek freemen seek revenge whenever Helen, the new-wed empress, weeps. 

Oxente, agora parece ser um épico greco-troiano: 

“Os ocidentais reverenciam as lendas gregas. Versejadores recontam os acontecimentos retratados, as cenas esplendorosas, onde os homens livres da Grécia, resolutos, buscam vingar-se sempre que Helena, a imperatriz recém-casada, chora.”

Não darei mais exemplos: o livro (Eunoia, Christian Bok; Edinburgh: Canongate, 2001) é uma narrativa em 5 capítulos em forma de “monovocalismos”, textos onde só se pode usar uma das vogais. (Ele dedica seus capítulos, respectivamente, a Hans Arp, René Crevel, Dick Higgins, Yoko Ono e Zhu Yu.) 

Quem escreve coisas assim (eu já o fiz) tem que fazer certas ginásticas de sintaxe e semântica para não quebrar a regra, mas, com um pouco de boa-vontade, o resultado é totalmente legível.

O livro de Bok tem uma segunda parte intitulada “Oiseau” (a menor palavra em francês contendo as cinco vogais; “Eunoia” é o equivalente em inglês). Faz homenagens a Georges Perec, um mestre do monovocalismo. Tem um poema composto apenas com as letras da palavra “vowels” (vogais): “Loveless vessels / we vow solo love / we see love solve loss...”. 

Tem uma paráfrase fônica (mais uma vez, contando com a imaginação e a boa-vontade do leitor), onde reproduz em inglês o soneto francês “Voyelles” de Rimbaud: “Anywhere near blank rage you veer, oblivial” (“A noir, E blanc, I rouge, O vert, U bleu; voyelles...”). 

É um discípulo da OuLiPo (Ouvroir de Littérature Potentielle), um grupo de meta-literatos que faz com a linguagem o que os físicos do CERN fazem com as partículas subatômicas. 

Combinar, explodir, reagrupar, testar os limites, impor uma harmonia e um sentido ao caos primordial.