quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

3693) Natal 2014 (25.12.2014)



(foto: Andrei Tarkovsky)

1.
...range-range, engatada, a engrenagem
das esferas concêntricas do espaço,
de um continuum mais tênue do que o aço
onde giram os cosmos-rolimãs.
Brabeja o sol a esturricar manhãs.
Assopra a noite a cinza vã do dia.
Dói-me hoje um pensar que não doía
e o gargalo se estreita onde sufoco.
Cada dia é a tecla, a tal que eu toco,
a compor o melódico desenho

2.
em que o mundo a girar nem franze o cenho
espalhando espirais nos horizontes...
Mas não me mostres, mundo. Não me contes         
mais histórias de ti, já sei de tantas!
Já basta o sonho de que me levantas
toda manhã, embrutecido e lasso,
e cambaleio e tombo, passo a passo,
buscando o espelho pra que se confirme
a minha identidade, e despedir-me
do sono aconchegante em que capoto.

3.
Acordar de manhã é terremoto.
Abrir caixa de emails é tsunami.
E o dia inteiro é tempo de desmame
me tirando do turbilhão onírico.
E eu salto assim de um mundo de De Chirico
aos talk-shows da Globo matutina,
onde já ferve a escuma natalina
da busca do consumo a qualquer preço,
e tomo, com o estômago ao avesso,
o café fraco deste fim de vida.

4.
Quanto pinheiro e bola colorida,
ouro de tolo, neve de algodão!
Fumega ainda o resto da eleição
que devastou da pátria a auto-estima.
Quebra-o-pau pra valer no andar de cima
e a gente aqui, pensando em crediário.
Por que o espelho me sussurra: “Otário!”
e eu torço tanto pra que acabe logo?
Dezembro é o velho poço em que me afogo
tendo somente o sol por testemunha.

5.
Mas este ano foi de arrancar unha,
e eu nem sei se me escapuli inteiro,
com vergonha de ser um brasileiro
que se acha melhor do que o Brasil.
O povo à rua sai, com-mais-de-mil,
e tudo volta ao que já estava antes;
última-forma no quartel de Abrantes,
“plus ça change, plus c’est la même chose”,
nossa democracia é mera pose
e no fundo quem manda é o Grande Irmão.

6.
Sigo em busca do derradeiro Não
pelas curvas da estrada do Talvez.
Resta pouco a cumprir, menos de um mês,
de sorriso e champanhe obrigatórios.
Os Natais se parecem aos velórios
em tensão, em teatro coletivo.
Cada qual se contenta de estar vivo
o resto é lucro, mesmo sem ter resto.
Basta tocar a musiquinha, e, “presto!”:
o milagre acontece novamente.

7.
O que vai ser de nós, daqui pra frente?
Os dados, como sempre, estão girando,
como o planeta, e não se sabe quando
(e se) vão colapsar, dizendo “fim”.
Enquanto isto, o que restar de mim
vai batucar as letras do teclado,
saborear a cerva, olhar de lado,
rir em silêncio da comédia humana...
Feliz Natal, galera. A vida engana,
e o melhor de um deserto é a miragem...





quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

3692) "A Festa de Randolfo" (24.12.2014)



O texto "Randolf's Party" foi o primeiro texto em prosa de John Lennon que eu li na vida, quando "O Pasquim" o publicou em 1969, numa tradução, se não me falha a memória, de Rebeca Nauslauski. 

É do livro “In His Own Write”, que Lennon publicou em 1964, no auge da Beatlemania, e que lhe valeu comparações com James Joyce (que ele nunca tinha lido, e que provavelmente morreu sem ler). Explica-se. O inglês brincalhão de Lennon é todo salpicado de palavras inventadas ou destoantes que substituem a palavra normal que esperaríamos na frase. Os trocadilhos dele não tentam misturar os significados, mas apenas confundir os sons.  Sua prosa na maioria desses contos é uma distorção sonora das palavras habituais: “Christmas” vira Chrisbus, Chrispbut; Randolph vira Rangolf, Randoff, Randoob... 

É como se um texto normal estivesse sendo lido em voz alta por um liverpudliano bêbado, com voz pastosa; por causa disto, tudo que ele diz fica semi-ininteligível e sujeito a confusões.


A FESTA DE RANDOLFO 
(John Lennon) (tradução BT, 1981)         

Era época de Nemtal, mas Randolfo estava só.  Onde estariam seus velhos amigos Bernie, Dave, Nicky, Alice, Beddy, Freba, Viggy, Nigel, Alfred, Clive, Stan, Frenk, Tom, Harry, George, Harold?  Onde estariam nesse dia? Ruindolfo olhou, chorumbático, para o único Cartão-de-Napalm que recebera: um de seu pai, que morava muito equidistante dali.

“Não posso nemtender isso de estar assim tão souzinho no único dia do ano em que todo joão-alguém pode expirar receber um amígado ou dois?” pensou Randófilo. Em todo catso, ele continuou penduricalhando os enfeites naftalinos, bem como o seu pede-meia.  Repentintinamente tocaram na sineta da torta da frente.  Oras, mas quem poderá estar me tilintando a estas horas?  Ele abril a porta e quem viu alívio? Senão seus amínguos Bernie, Dave, Nicky, Alice, Beddy, Freba, Viggy, Nigel, Alfred, Clive, Stan, Frenk, Tom, Harry, George, Harold - pois eram.

“Entrem tanto, velhos ambigos, meus bem-armados, meus comparseiros!”  Com um grande sou-riso em sua face, Rindolfo os anfitriou benvindamente.  E eles invadiram a cela-de-visitas, a gargralhar e sorrir dentes, com exclamaçons de “Boas Fezes, Randótimo” e deram-lhe tapas nas costas e assaltaram-lhe em cima e o derroubaram no chão e lhe repisaram na cabeça: “Nós nunca lhe gostamos, esses ânus todos em que o conhecemos.  Você nunca hipertenceu mesmo à nossa turma, tá sabendo, seu moribundamole?”

E os sacanas é claro que o assassinaram, assim, sacas?  Mas no final das contras ele não morreu sonzinho, não é?  Bobas Festas e Feroz Ano Novo, Randoido, meu amigo de fel, meu irmão caramarrada.




terça-feira, 23 de dezembro de 2014

3691) A felicidade é chata (23.12.2014)




Há uma frase muito citada de Balzac, acho que do Esplendor e Miséria das Cortesãs (1838-47), em que o autor diz: “A história da felicidade é entediante, de modo que podemos pular os cinco anos seguintes”.  

Tem muita gente que não gostaria de ir pro Céu: para eles, seria um grave problema, porque o Céu é monótono. (Eu mesmo já dei minha contribuição, com um poema intitulado “Quero ir pro Inferno”) 

O Paraíso seria como o desses filmes espíritas: uma espécie de clínica, com gramados verdinhos estilo Windows XP, todo mundo de branco, passeando de mãos dadas, tomando suco de groselha e escutando “Because”.


Pra mim tudo isso decorre de uma indefinível sensação subconsciente, em nossa cultura, de que trabalho é uma coisa ruim, esforço é uma coisa ruim, e que um lugar ideal (=um paraíso) teria que ser um lugar sem esforço, conflito, incerteza, choque de vontades e de opiniões...  

É a mesma regressão infantil que nos fez inventar geringonças mecânicas e eletrônicas para nos poupar de esforços físicos. Acabamos inventando mil-e-uma outras geringonças (esteiras, academias) para fazer esforços desnecessários. Ninguém percebe, claro, porque somos O País dos Cegos.

Mas no próprio momento de imaginar isso alguma coisa no subconsciente do imaginador se rebela, mete os pés.  Sabe que essa idealização é falsa, e que no fundo ele não quer viver nessa pasmaceira.  

Os cinco anos de felicidade imaginados por Balzac (suponho que sejam cinco anos de felicidade de um casal) não foram passados, certamente, deitados na relva, num ano de 365 feriados-com-rivotril. A vida real, mesmo feliz, não é entediante.  

Entediantes são essas fantasias toscas e kitsch de repouso-a-perder-de-vista que a cabeça da gente imagina quando a gente está no fundo do poço do cronograma estourado, do relógio que galopa, das contas que não batem, dos planos que vão por água abaixo, das picuinhas domésticas, do azedume da fadiga, do rancor mal dormido entre os fracassos.

É compreensível que pessoas com décadas de exaustão e dívidas sonhem com jardins tecnicolor à beira de regatos murmurejantes.  É uma fantasia compensatória, mas que não pode se sustentar como definição de felicidade. 

Data vênia, amigos que vivem no sufoco (e eu sei tanto o que é isso!), mas só existe felicidade se for uma “felicidade guerreira”, uma felicidade em que o corpo e a alma (ou só a alma, se se trata do Além) tenham coisas relevantes para cuidar.  

É compreensível, em nossa cultura do trabalho escravo, que os paraísos tenham tinturas de ócio, mas os cinco anos que Balzac pulou devem ter sido animadíssimos, e dariam outro livro tão bom quanto.







domingo, 21 de dezembro de 2014

3690) Medo de errar (21.12.2014)




(Dimas Batista)



Zé de Cazuza conta no livro Poetas Encantadores que encontrou com Pinto do Monteiro e na conversa Pinto falou que tinha feito uma cantoria dias atrás com Dimas Batista.  Zé de Cazuza perguntou como tinha sido, e Pinto respondeu: “Uma merda. O homem tá com medo de errar”. E Zé de Cazuza: “Ah, sim.  Ele formou-se em Direito.” 

Dimas foi um dos primeiros cantadores de viola a ter curso superior.  O episódio narrado por Zé mostra a falta de cerimônia entre esses grandes poetas, que conviveram durante a vida inteira, e mostra essa fase de transição entre os cantadores totalmente intuitivos, como Pinto, e os que começaram a se valer de estudo, erudição, educação formal.  

É a velha oposição entre Romano do Teixeira e Inácio da Catingueira: o desafio estava empatado até que Romano puxou o assunto de Mitologia Grega, coisa que o ex-escravo Inácio não tinha leitura para acompanhar.

É engraçado, mas isso me lembra Vanderlei Luxemburgo, o polêmico técnico atualmente no Flamengo.  Ele diz: “O medo de perder tira a vontade de ganhar”.  

Vanderlei tem uma porção de defeitos, mas ele usa para o futebol um raciocínio bastante correto.  Diz ele que se um time empata 5 jogos ganha 5 pontos, sem ter perdido nenhum jogo; mas se ganha 2 jogos e perde 3, ganha 6 pontos.  Melhor, portanto, partir pra cima sem medo de perder.  

Aliás, foi para incentivar essa busca pela vitória que a Fifa decidiu atribuir 3 pontos por vitória, fato relativamente recente, de 1994. (Até uns 20 anos atrás, em competições oficiais, uma vitória dava apenas 2 pontos.) 

Voltando à história inicial.  Eu não diria que Dimas (a acreditar na versão de Pinto) estava com medo de errar porque se formou em Direito.  Acho mais possível que ele tenha se formado em Direito porque tinha medo de errar, e aí não falo daquela cantoria específica, mas do estilo de cada cantador.  

Existem cantadores reflexivos, que gostam de pensar as coisas bem direitinho, o que em princípio parece ser o contrário da cantoria.  Dimas, pelo que já ouvi em gravações, era um daqueles poetas de cantoria lenta, cadenciada, mantendo sempre o embalo sob controle, escandindo as palavras com precisão.  O contrário daqueles repentistas que pensam e cantam com tal rapidez que chegam a atropelar as palavras.  

São dois modos de pensar, dois perfis mentais diferentes, que se refletem no estilo do improviso. Perfeccionismo e cantoria não combinam. Gosto do jeitão de Dimas, que é o de Oliveira de Panelas, de Diniz Vitorino; e gosto de cantador arrojado, acelerado, que parece estar cantando sem pensar, como Louro Branco.  Mas são estilos pessoais.  Um não conseguiria cantar como o outro, mesmo que quisesse.







sábado, 20 de dezembro de 2014

3689) O teatro dos meninos (20.12.2014)



Fiquei matutando numa coluna de L. F. Verissimo. Dizia ele: 

“O compositor e crítico de música Virgil Thomson (americano, 1896-1989) se divertia com o fato de que, na Espanha, as crianças brincavam de tourada sempre em três: um fazendo o papel do touro; outro, o do toureiro; e um terceiro gritando “Olé!” Os papéis podiam ser trocados, claro, mas as funções não mudavam: um touro, um toureiro e um espectador, que Thomson preferia ver como um representante do público — ou da crítica.”

Verissimo lembra que a obra de arte não é só o diálogo entre o artista e o espectador (ou leitor), mas a relação triangular que envolve também a crítica. Mas a imagem que ele usou ficou me remoendo o juízo até que lembrei o que é que ela me lembrava.  

Era esse trecho de “A busca de Averroés”, um dos melhores contos de Jorge Luís Borges (em “O Aleph”).  Averroés era o grande erudito árabe que viveu na Espanha, e Borges tenta reconstituir alguns dias de sua vida neste conto.  A certa altura ele diz:

“Foi distraído de suas distrações eruditas por uma espécie de cantilena. Olhou através das grades da varanda: lá embaixo, no pátio de terra batida, meninos seminus brincavam. Um deles, equilibrando-se nos ombros de outro, estava brincando de ser um muezim: com os olhos cerrados, entoava o canto monótono do muezim: não existe Deus senão Alá. O garoto firme e imóvel que o suportava sobre os ombros era a torre de onde ele salmodiava; outro, ajoelhado, prosternando-se na areia, era a congregação dos fiéis. A brincadeira não durou muito: todos queriam ser o muezim, nenhum queria ser a congregação ou a torre.”

O fato de ambos os episódios terem a Espanha como cenário me sugere que Thomson era um leitor de Borges. Em todo caso, não custa nada especular. Talvez os meninos espanhóis tenham propensão à metalinguagem.  Talvez algo na cultura deles (ou na cultura popular deles) lhes ensine que em cada experiência de vida existem essas três funções.  Talvez todos prefiram ser o toureiro ou o muezim; talvez alguns se contentem com ser a platéia ou a congregação; e os mais estóicos, mais calejados, se disponham a ser o touro ou a torre.




sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

3688) O Apanhador (19.12.2014)



O artista Richard Prince produziu uma obra que é um fac-símile perfeito da primeira edição do livro de J. D. Salinger O Apanhador no Campo de Centeio, em todos os detalhes, apenas com o nome de Prince na capa, como autor.  

Prince é um “apropriartista”, um praticante da “arte da apropriação”, uma moda recente (aliás nem tanto) que consiste em pegar uma obra alheia, fazer-lhe alterações microscópicas ou nem tanto, e devolvê-la num novo contexto.  Prince é famoso pelas fotos que fez das fotos de propagandas de Marlboro, e já foi alvo de um processo por apropriação de fotos alheias. (Ele não ganha muita grana com isso – faz quadros que são vendidos por milhões.)

Li um artigo de Kenneth Goldsmith, outro apropriartista (falo dele aqui: http://tinyurl.com/mtf7jqg), onde ele comenta o processo judicial em que Prince se envolveu por ter copiado fotos de um livro sobre rastafáris. 

Greg Allen, (do blog ) publicou um livro com 400 páginas de documentos desse processo, incluindo testemunhos, declarações juramentadas, sumários da corte.  

Goldsmith acha esse livro (Canal Zone Richard Prince YES RASTA: The Book) uma leitura essencial sobre a “arte de apropriação”: “Na verdade, esta coleção de documentos constitui o livro definitivo sobre práticas apropriativas nas artes, pois é repleto de advogados citando em minuciosos detalhes narrativos exemplos anteriores de roubo e pilhagem, envolvendo todo mundo de Marcel Duchamp a Jeff Koons”.

O que esses artistas fazem não é arte, é crítica de arte, é uma discussão pública dos conceitos artísticos. Arte conceitual que consiste em sacadas puramente mentais não é arte (pra mim): é crítica, e não digo isso para diminuí-la, pelo contrário.  A arte precisa mais de críticas desconcertantes do que de obras de arte que induzem ao bocejo. 

Porém, falar de “arte conceitual”, uma arte apenas de sacadas inteligentes mas sem a produção de obras materiais, é como falar de "sexo mental”.  Toda obra de arte é, em seu início, conceitual, mas depois requer criação. Não havendo um “fazer novo”, o artista ficou no meio do caminho.

Arte (pra mim) é “poiesis”, o ato de fazer. Dela não resultam só idéias, mas “um objeto a mais somado ao mundo”. O gesto de Marcel Duchamp mandando um urinol para a exposição como objeto de arte produziu um circuito conceitual, mas não uma obra nova. O “Apanhador” de Prince, idem: deflagrou uma ótima discussão, mas dela nem brotou um livro nem uma obra de artes plásticas. 

É um gesto crítico, uma discussão interna das mais proveitosas, mas dela não resulta nada que um público seja capaz de usufruir. O mundo da Arte ficou mais nítido, mas não ficou maior.




quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

3687) No Campo de Centeio (18.12.2014)



Dizem que o ato mais anarquista da arte moderna foi quando Marcel Duchamp foi numa loja de material de construção, comprou um mictório de porcelana branca, daqueles de banheiro público masculino, e o mandou para uma exposição, com o título “Fonte”. Hoje, parece até um gesto acadêmico. Duchamp pegou um objeto industrializado, anônimo e anódino, e esfregou na cara de todo mundo que aquilo era uma obra de arte pelo simples fato de que ele estava dizendo. Tudo isso foi num contexto de uma certa impaciência dos artistas com a catação-de-lêndeas dos teóricos, cuja função é pegar dois fios de cabelo contíguos e dizer que um deles é arte e o outro não é.  A mesma situação que fez Mário de Andrade desabafar: “Conto é tudo aquilo que o autor chama de conto”.

A onda agora é o que chamam “appropriation art”, “arte da apropriação”, e na verdade é a industrialização e mercantilização do que Jorge Luís Borges havia sugerido (como “experiência pensada”, de caráter filosófico e estético) no conto “Pierre Menard, o autor do Quixote”. Pierre Menard decidiu reescrever o Dom Quixote e até conseguiu em alguns momentos reproduzir (sem consultar o original) trechos inteiros da obra de Cervantes!  Os apropriartistas (se este termo pegar, favor citar o Jornal da Paraíba e a data de hoje) vão além.  Pegam uma obra de arte criada por outra pessoa (e não um objeto qualquer) e a expõem como se fosse sua.

Vejam o caso de Richard Prince, um notório apropriartista norte-americano.  Sua façanha mais recente foi a publicação de O Apanhador no Campo de Centeio, o romance de J. D. Salinger, em seu próprio nome. Uma reprodução quase idêntica da primeira edição do livro, de 1951, mesma capa, “um perfeito fac-símile do original, inclusive o papel espesso e cremoso e a clássica tipologia”. Os comentários elogiosos ao autor permanecem na contracapa só que em nome de “Richard Prince”.  O qual, num rasgo de modéstia ou de dominação, insere na página final a nota: “Esta é uma obra de arte de Richard Prince. Qualquer semelhança com um livro é coincidência, e não foi intencional da parte do artista”.  Cópias não assinadas da obra são vendidas ao preço de algumas centenas de dólares; cópias autografadas, na casa dos milhares. Exatamente os preços atuais de cópias da primeira edição do livro, autografadas por Salinger.

Prince é um picareta? Não sei. Ele é pintor também, e seus quadros valem milhões. Dinheiro com isso ele não está ganhando. Está querendo enganar alguém? Se o quisesse, não estaria usando um dos livros mais famosos do país.  Preciso de uma teoria a respeito, mas meu espaço acabou, ufa. Daqui pra amanhã eu arranjo.


quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

3686) Heróis em casa (17.12.2014)




“Todo menino, Sr. Corregedor, cria para si mesmo seus Príncipes e Princesas, deuses e demônios, heróis e Cavaleiros, Anjos puros e terríveis, numes tutelares que se tornam os modelos de suas vidas.  No meu caso, foram os mortos da minha família e as terríveis Divindades tapuio-sertanejas; e quantas pessoas não já morreram, no mundo, de uma dura morte, só por causa de fidelidades e divindades semelhantes a essas minhas?  Eu tive a sorte – ou a desgraça, ou a sina, não sei! – de ter os meus heróis em casa, como brasas ardentes colocadas desde muito antes do meu nascimento sobre a minha cabeça, asas de fogo e de navalha a me chamarem para o alto”.


Quem diz isso é Pedro Dinis Quaderna, o narrador do Romance da Pedra do Reino de Ariano Suassuna.  Quaderna é de uma estirpe particular de anti-heróis. Ele vem de uma família de titãs monstruosos, e isso é o que importa, visto que ele mesmo aos próprios olhos não vale nada nem é ninguém.  

“Tive a sorte de ter meus heróis em casa” é um impulso de grandeza mais do que compreensível da parte de alguém que na fazenda onde foi criado era visto como um mero agregado, um primo pobre, o beneficiário de uma boa ação.

Quaderna, no entanto, não descende de heróis.  O maior exemplo de grandeza em sua família é seu bisavô, conhecido como D. João, o Execrável, que lavou os lajedos na serra de Belmonte com o sangue quente de mulheres e crianças, sonhando com isso desencantar um castelo e promover o retorno de Dom Sebastião.  

Os antepassados de Quaderna são, na sua bestialidade, uma encenação melodramática, uma caricatura de um tempo em que era preciso derramar sangue humano para garantir a aliança com o divino.

Há um movimento constante de sublimação dentro da Pedra, em que Quaderna esvazia o que é guerra em encenação (as cavalhadas), esvazia a ambição política na (reconhecidamente mais impecuniária) ambição das letras, esvazia um duelo mortal numa patuscada de penicos.  Enquanto sonha com um trono qualquer, Dinis Quaderna pensa consigo mesmo que a melhor coisa que existe é mesmo estar vivo, haja vista sua descrição quando lhe perguntam o que é o Mundo, segundo a filosofia do Penetral: 

– Estou pensando numa estrada, numas pedras, num bode, num pé de catingueira, numa Onça, numa mulher nua, num pé de coroa-de-frade, no vento, na poeira, no cheiro de cumaru e num jumento trepando numa jumenta!” 

(Se alguém tiver uma definição melhor do Mundo, favor publicar na Internet.)  

A recusa da violência, numa linhagem ou dinastia que convive com ela na boa, a recusa de batizar o mundo com sangue, é um traço mais dos Vilar do que dos Suassuna, e acaba sendo o traço dos Quaderna.






terça-feira, 16 de dezembro de 2014

3685) Música, imagem e idéia (16.12.2014)



Coube a Ezra Pound dar uma das mais simples, ricas e eficazes receitas para definir a poesia, em seu ABC da Literatura (Editora Cultrix, São Paulo). Ele diz, no capítulo IV: “Contudo, as palavras ainda são carregadas de significado principalmente por três modos: fanopéia, melopéia, logopéia.  Usamos uma palavra para lançar uma imagem visual na imaginação do leitor ou a saturamos de um som ou usamos grupos de palavras para obter esse efeito.” Já vi estudantes recitando ladainhas para decorar isso. E na verdade nem precisa tanto esforço.  Basta entender o que é.

“Fanopéia” se refere à utilização das palavras para produzir imagens visuais (ou sensoriais de um modo mais amplo – imagens auditivas, olfativas, táteis, etc.) na mente do leitor.  “Fano—“ vem do grego “phainen”, “mostrar”, tornar visível uma imagem.  Por exemplo, “diáfano” é algo que se deixa trespassar por uma imagem.  A fanopéia é portanto a produção de uma imagem na mente do leitor, pelo uso de palavras. Se eu digo: “Um círculo vermelho com um quadrado amarelo no centro”, produzi uma fanopéia em quem leu essa frase.

“Melopéia” vem do grego “melo”, que significa música e deu origem a termos como “melodia”.  É a produção de uma impressão musical, melódica, na mente do leitor, pela combinação de sons sugeridos pelos fonemas usados nas palavras do verso.  E “logopéia” vem de “logos”, que significa “idéia”; mesma origem de “lógica”, etc.

O que diz Pound?  A poesia usa palavras arranjadas de tal maneira que produzem, na mente de quem as lê, impressões visuais (e sensoriais, num sentido mais amplo), impressões melódicas e impressões de idéias abstratas (que não se relacionam nem com a imagem nem com o som).  Música, imagem e idéia.  Cada poema, cada verso, traz essas três coisas, em proporções que variam o tempo inteiro. 

E esse elemento, “---péia”, de onde vem? Vem do grego “poein, poiein”, que significa “fazer, criar, compor”.  É a mesma palavra que está na raiz de “poeta” e “poesia”.  O poeta é um fazedor. (“El hacedor” é o título de um conto de Borges em homenagem a Homero.)  A poesia é algo que é criado, construído, composto.  Não cai do céu nem brota do chão. É o resultado de uma ação conjunta da emoção, da inteligência e da vontade. Poesia é a criação, através de palavras, de impressões visuais, impressões melodiosas e idéias abstratas.  Claro que a fórmula de Pound não encerra o assunto. (Alguma fórmula já encerrou algum assunto?)  Mas é um ponto de partida. Não explica o “por quê” nem o “para quê” da poesia, mas não conheço nenhuma outra receita que explique melhor o “como”, a maneira como a arte da poesia produz os efeitos que produz.





domingo, 14 de dezembro de 2014

3684) O céu dos escritores (14.122014)



Um amigo postou dias atrás numa rede social este pequeno episódio que aparece nas memórias de Isaac Asimov. Ele conta um sonho que recordou com enorme clareza ao despertar (segundo ele, algo raro de lhe acontecer). Sonhou que morreu e foi pro Céu, que consistia nos habituais relvados verdejantes, nuvens, ar perfumado e coros celestiais cantando à distância. Ele perguntou se era o Céu, e o Anjo ao lado confirmou.  Isaac: “Mas meu lugar não é aqui. Eu sou ateu.”  “Não houve erro nenhum,” disse o Anjo. “Quem decide quem vem pra cá somos nós.”  Ele olhou em volta e perguntou: “Será que tem aqui uma máquina de escrever que eu possa usar?”  E o significado do sonho ficou claro para ele.  O Paraíso, na sua cabeça, era o ato de escrever, e ele achava que já estava no Paraíso há cinquenta anos, e sempre tinha sabido disto.

Esse é mais um ponto de semelhança entre Asimov e Jorge Luis Borges, para quem o Paraíso era uma espécie de biblioteca. O ato de ler e de escrever está associado neles a uma espécie de paraíso das endorfinas ou serotoninas, não sei exatamente quais são as substâncias associadas ao nosso ofício, só sei que são celestiais.  Devem ser as mesmas que muitas pessoas descrevem experimentar após quarenta minutos caminhando ou trinta puxando ferro. 

Pode ser que o Além seja mais hierarquizado do que a gente imagina, e que cada pessoa tenha direito a um céu de acordo com o que de fato mais gostava de fazer.  Escritores que reclamam do “sacerdócio” e das privações da vida de autor deverão ser proibidos de escrever, e contentar-se com um Paraíso onde se joga o bilhar e mais nada.  Bem feito. Escritores que trabalham na boa, sem fazer drama, terão direito a usar seu tempo como quiserem, seja ao teclado ou se distraindo.  (Há distrações e entretenimento no Paraíso, e não é algo tão kitsch e careta como alguns podem estar pensando. Tem mil coisas legais. Só não tem sexo, drogas e rock-and-roll.  Asimov e Borges até agora não se queixaram.) 

Como seria o céu de Philip K. Dick?  Um mundo onde tudo fosse inquestionável, moeda de um lado só, realismo de ferro?  Como seria o de Lovecraft?  A volta à mansão da família, sem roedores em volta?  Como seria o céu de Leandro Gomes de Barros?  Uma utopia asimoviana sem carestia, sem esposas e sem sogras?  E o céu de Antonio Conselheiro, seria um Empíreo de taipa?  O de  Jorge Amado, seria um céu que comportasse Vadinho?  Por outro lado, não consigo imaginar um sujeito até relativamente banal, embora ótimo escritor, como Henry Miller, em outro lugar que não seja um paraíso, e em outro paraíso que não seja um paraíso em seus próprios termos.