quinta-feira, 3 de julho de 2014

3541) Histórias policiais (3.7.2014)



(G. K. Chesterton)

Será que o leitor de literatura policial (especialmente a do que chamamos de “mistério detetivesco”) é um leitor diferente de todos os outros?  Jorge Luís Borges dizia que sim, dizia que foi a literatura de Edgar Poe e Conan Doyle que criou esse leitor desconfiado, que não havia antes na tradição literária. Um leitor em-guarda, de pé atrás, meio paranóico, que desconfia de tudo que lhe é contado. (Nesse sentido, o leitor de livro policial é o contrário do leitor de literatura fantástica, do qual o que se espera é justamente uma “voluntária suspensão da descrença”).

Chesterton dizia algo parecido com o escritor de romance policial, que para ele não era um escritor como os outros.  Seu detetive, o Padre Brown, às vezes parece uma fotografia de Cartier-Bresson convivendo com gravuras em metal de romances antigos. Disse ele uma vez que escrevia para esquentar o mercado da literatura policial (a expressão é minha, não dele) e fazer com que fossem escritos muitos outros livros (diz ele), porque na verdade o que ele queria era ter muita coisa do gênero para ler. (Aqui: http://tinyurl.com/o6jar5n).

Porque (continua Chesterton) o escritor de romance policial deixa de desfrutar do maior prazer do leitor do gênero, que é defrontar-se com um mistério inexplicável, e sair deslindando tudo, fio por fio. O escritor foi quem criou o mistério, portanto ele já sabe como o mistério acaba. Ele é o Guardião do Spoiler Terminal. Ele sabe tudo, portanto ele não consegue se encantar com nada. Daí precisar de livros alheios.

“Não posso me mostrar pasmo,” diz Chesterton, “no fim do livro, com uma revelação que eu já estava planejando desde o início, nem posso me mostrar desconcertado e questionador quanto à ocultação de algo que eu próprio me esforcei para ocultar.”  Ler e escrever um romance policial é como jogar xadrez consigo mesmo, de ambos os lados do tabuleiro, tentando esquecer o que acabou de planejar, enquanto dá a volta à mesa. Alguém pode chegar a esse ponto, de ignorar coisas que acabou de pensar?

R. L. Stevenson conta em seu “Episódio sobre Sonhos” que em sonho imaginou uma história melodramática de amor e crime, e que no momento do desfecho jamais poderia ter esperado a reviravolta que houve na situação. “Mas como pode ser,” pergunta ele, “como pude ignorar essa surpresa, se era a minha própria mente que estava criando o que eu estava assistindo?”.  Em todo caso, a capacidade de ler um parágrafo que a gente acabou se escrever com os olhos de alguém que nunca leu aquilo é algo que se desenvolve, se exercita. Ajuda a escrever, ajuda a deixar as coisas da página com um certo 3D.


quarta-feira, 2 de julho de 2014

3540) O passeio dos mortos (2.7.2014)



Conta-se que no ano de 1647 os habitantes de uma cidade na Itália (Venzone, na província de Udine) tiveram um dia uma surpresa macabra.  Escavações no cemitério local revelaram o corpo de um homem que resistira à decomposição, mesmo morto há muitos anos. Era (diz-se) um dos membros da família Scala, a mesma que estava patrocinando aquelas escavações e obras de reforma no cemitério. Deram-lhe o nome de O Corcunda, porque tinha a espinha fortemente curvada.  Logo alguém começou a dizer que o defunto era mágico, fazia milagres, etc.  Esse culto durou até 1797, quando a invasão das tropas de Napoleão atingiu aquelas bandas. Soldados arrancaram com faca pedaços do corpo e das partes do Corcunda, por terem ouvido dizer que eram afrodisíacas.

A explicação científica é que a rocha calcária, atravessada por centenas de correntes subterrâneas muito alcalinas, deixa o terreno propício à conservação dos tecidos, dependendo de outros fatores. Depois disso tudo, os habitantes começaram a praticar um ritual.  Num dia festivo e de homenagem, o morto é retirado do esquife, vestido com roupas e enfeites da moda do momento, e é trazido à luz do sol, até a viúva. Ela o conduz, passeia e conversa com ele, conta-lhe novidades, fala da saudade que sente; no fim, ele é levado de novo para a cripta. Em dias festivos, veem-se numerosas famílias passeando ao sol, entrecruzando-se nas alamedas ao lado dos seus mortos queridos.

As fotos no saite mostram (em preto e branco) uma espécie de pátio externo, e uma fila dupla de pessoas, o vivo mantendo de pé o morto, diante de si, às vezes tendo que usar as duas mãos para mantê-lo erguido. O sol é forte, faz com que os vivos contraiam o rosto, mas eles sorriem para a câmera, não demonstram estar horrorizados ou incomodados. Os mortos têm a cara devastada e arenosa de todas as múmias. Numa foto mais próxima, um homem de meia idade segura um corpo cujo rosto parece dizer “eu sou você amanhã”.

“Nós que aqui estamos, por vós esperamos”.  É uma antiga inscrição nos cemitérios; serviu de título a um belo poema-documentário brasileiro.  Os mortos só não contavam com o imperialismo da vida, a ditadura da vida, essa força expansionista e dominadora que quer tudo manter dentro de si. É preciso trazer o morto à vida, dedicar-lhe um sábado de sol cheio de cerimônias e rezas, cachorros-quentes e bandeirolas, orações contritas, reencontro, ritual.  De nada adianta os mortos esperarem por nós, porque nós é que estamos invadindo seu reino, descobrindo e inventando a pedra-filosofal que um dia nos permitirá trazê-los de volta, intactos, saudáveis, conscientes, todos eles, ao mesmo tempo ou de um em um.


terça-feira, 1 de julho de 2014

3539) Literatura e biografia (1.7.2014)





Uma das coisas que gosto é ler biografias de escritores, cineastas, etc.  Quando me interesso pelo trabalho de um artista, fico curioso em conhecer aquela figura por trás de livros tão interessantes, canções tão bem feitas. “Quem é o camarada que escreveu um livro tão genial, tão maluco, tão imprevisível?”  Acho isso uma expansão natural da nossa curiosidade por alguém.


Isso modifica nossa visão da obra? Depende. Há leitores que só sabem pensar em termos de pessoas, e para eles a obra é apenas um caminho para saber o que Shakespeare achava do amor, o que Drummond pensava do Brasil, quais as raízes das neuroses de Kubrick ou quais as preferências sexuais de Nelson Rodrigues. 

Às vezes chamo esses leitores de “leitor Contigo”, porque o ideal para eles seria a existência de uma Revista Contigo da literatura, revelando fofocas sórdidas (“Leia aqui: a verdadeira razão das brigas de Scott e Zelda”), as especulações indiscretas (“Hemingway era mesmo impotente?”) ou uma miríade de factoides irrelevantes (“Não perca: a cor preferida de todos os ganhadores do Nobel”).

O outro tipo de leitor é mais fácil de encontrar entre escritores, críticos, professores de um modo geral, pessoas que pela sua formação (ou deformação) tendem a ver a obra de arte como o ponto final de tudo (“o mundo existe para resultar num livro”, como dizia Mallarmé). Ele não se interessa muito pelo autor, no que sua vida e sua pessoa têm de extra-obra. Ele procura na vida os ecos da obra, e não na obra os reflexos da vida.  

Biografias lhe servem para procurar feito um detetive tudo que ajudou na concepção de tal cena do filme, de tal verso do poema. O resto é irrelevância que vai para o porão da memória após a leitura. Eu sou assim.

Numa biografia, nada me intriga mais do que o processo criativo. Por isto gosto também do “making of” de um filme, ou dos relatos sobre as semanas de gravação de um CD, explicando o passo-a-passo dentro do estúdio. Como foi criada aquela pintura, aquela sinfonia, aquele curta-metragem?  

O processo criativo da arte (e o da ciência também, que é irmão do outro) é fascinante porque é imprevisível. Como sou também um artista criativo aos olhos de muita gente, recebo às vezes a pergunta: “Como foi feita a música X, o poema Y, o conto Z?” 

Respondo, quando posso, descrevendo o processo concreto: idéia inicial, quanto tempo levou, em que circunstâncias foi feito. Mas a maior pergunta, a que faço sempre ao abrir uma biografia ou estudo, é: “Como aquilo brotou na mente de uma pessoa?”. É a mais importante, que não sei responder nem sobre mim mesmo, e acabo indo procurar a resposta na mente dos outros.








domingo, 29 de junho de 2014

3538) O esporte Breton (29.6.2014)



(ilustração: Chema Madoz)

Por que chamamos o futebol de “o esporte bretão”? Aliás, chamamos não, chamávamos, porque faz tempo que não vejo um coleguinha da imprensa escrever isto sem que seja “em contexto” (ironicamente, etc.).  Falar assim a cru, a sério, é para quem diz “o escrete canarinho”, “a número cinco”...  Um estilo em extinção.  Houve uma época, no entanto, em que dizia-se isso a três por dois, provavelmente para lembrar a todos que era uma arte vinda da Inglaterra.

Então, por que não dizermos “o esporte inglês”?  Porque a Inglaterra também é chamada de Grã-Bretanha.  Isso deixa uma curiosidade: esses dois nomes de país são sinônimos?  Não, explica um videozinho didático que vi por aí na web, explicando a complicadíssima relação jurídico-institucional-hierárquica entre as Ilhas Britânicas (olha o nome aí) e suas atuais e antigas colônias. É um negócio mais complicado do que a partilha do espólio do Império Romano.  

Acontece que quando eu ouvia falar “Bretanha” meu ouvido não me arrastava para a Inglaterra. Bretanha para mim era aquela região mágica do litoral da França, em forma de triângulo mineiro truncado ou leão ruginte, apontando para noroeste em pleno Atlântico. Uma região mística, pau-a-pau com São José de Belmonte e a Área 51.  A Bretanha francesa de Nantes, onde Julio Verne criou um futuro que só aconteceria retroativamente em forma de steampunk.  Bretanha de Ernest Renan, que botou sob o microscópio da História o DNA de Cristo. De Pierre Souvestre, o homem que criou Fantomas. 

É a terra dos bretões, nome dado pelos romanos: Britannia. Os bretões da Inglaterra (“britons”) tinham sua língua, seus costumes, e foram encurralados pelos romanos ilha adentro. Depois veio a briga-de-cachorro-grande, a batalha dos normandos contra os anglo-saxões, mas eles, sempre ali.  O mais famoso que herdou seu selo, foi, na minha discreta opinião, André Breton, mais em nome e espírito do que em berço (nasceu na Normandia francesa, outra mina de ouro pra quem faz minisséries de aventuras).  Breton foi o inventor do surrealismo, esse terremoto psíquico que liquefaz a consciência disciplinar que nos foi imposta e deixa o inconsciente de fogo falar suas palavras de fogo. O criador da escrita automática, das enquetes eróticas, da hipno-imaginação.

“Esporte bretão” porque é um esporte místico, misterioso, apocalíptico, supersticioso, ocultista, cortejador dos deuses venais e das vestais do mistério. O futebol é um balé coreografado por escritores assim. Uma coreografia de dois grupos de bailarinos em cima de um tabuleiro de xadrez, onde de vez em quando uma casa explode e leva consigo um craque-dançarino para o além. Ou um time inteiro.


sábado, 28 de junho de 2014

3537) Vilões do passado (28.6.2014)



Se um cara é um grande artista, estou falando de artista grande mesmo, será que somos capazes de perdoar qualquer coisa politicamente incorreta que ele tenha feito no seu passado? (Esse conceito de politicamente correto/incorreto, aliás, está se expandindo exponencialmente, o que é um perigo.)  Na lista dos escritores politicamente apedrejados sempre aparecem Ezra Pound que teve simpatias pelo fascismo, Louis-Ferdinand Céline que era antissemita, e meia meia-dúzia de espantalhos habituais, que, como Guy Fawkes, conhecem a fama e o opróbrio na mesma medida.

Por exemplo: os escritores franceses colaboracionistas, cúmplices dos nazistas que invadiram o país e o sujeitaram durante alguns anos vergonhosos.  A Resistência Francesa foi uma coisa notável, mas ao mesmo tempo fomos ensinados a não achar que era tudo assim tão simples.  Em Hiroshima meu Amor, de Alain Resnais, vemos a violência e a humilhação a que é submetida uma mocinha que fica amante de um soldado alemão. Precisava mesmo, fazer aquilo tudo com ela?

As lealdades políticas já serviram para inflar carreiras artísticas ou literárias. e no mundo da esquerda isto já foi visto muitas vezes. O Partido decidia investir em determinados artistas e sufocar outros. Em alguns casos, tudo dava com os burros nágua, os exaltados resvalavam para o Limbo, os reprimidos explodiam em girândolas de idiomas. Vitória do Mercado?  Não, porque o mercado, como sempre, apenas corria a faturar um sucesso pré-existente.

Talvez no futuro nossos bisnetos vejam a briga ideológica entre a França de De Gaulle e a França da República de Vichy como uma mera dissensão entre iguais. Iremos todos para a mesma vala comum, misturando nosso DNA ao dos sacripantas contra quem lutamos a vida inteira. Estávamos todos (considerarão nosso bisnetos, à luz dos “ismos” em voga) no mesmo barco, o Titanic. Da literatura que produzimos só virá a se salvar o que ela tiver de literário, porque politicamente nos olharão com a mesma incompreensão com que olhamos os cristãos europeus da Renascença ou os fetichistas da natureza.

Chegará um momento em que será irrelevante dizer que Jorge Amado, George Orwell e David Siqueiros eram de esquerda; deles só ficará o que era seu e de mais ninguém. Pouco importa a linha ideológica a que se julgassem pertencentes. Tudo isso retrocederá para segundo plano à medida que os séculos passarem e eles forem vistos com outros olhos. Pouco importa o que acreditaram. Quem pode dizer para quem rezava Shakespeare quando não estava escrevendo?  Do ponto de vista de quem o lê, faz diferença se Fernando Pessoa acreditava mesmo em Deus ou não?


sexta-feira, 27 de junho de 2014

3536) A palavra friquitício (27.6.2014)



Numa destas colunas, dias atrás, usei o termo “friquitício” e pedi desculpas a uma parte dos leitores, avisando que explicaria o significado. De fato tentei fazê-lo, mas ficou sobrando um parágrafo; resolvi trazê-lo para uma página nova, e um novo título. É o caso em que uma mera nota ao pé da página é capaz de crescer até tornar-se uma coluna adulta. Se alguém perguntar como estes meus textos se reproduzem, podem dizer que é por divisão celular.

Friquitício é manha, exagero, fricote. Uma reação exagerada a alguma coisa. “Vou fazer um curativo. Deixe de friquitício, foi só um arranhãozinho besta.”  Usa-se muito com pessoas que fazem uma encenação de sofrimento exagerado quando, por exemplo, têm que tomar uma injeção, ou quando um dentista tenta esmerilhar seu sorriso ou cavucar-lhe as profundidades.  Pode ter origem em fricote, agitação, cena, drama, e pode também estar contaminado de “fictício”: inventado, falso. “Essa menina está com um machucão fictício”, disse um dia alguém de vocabulário mais amplo, e os que estavam em volta guardaram aquela palavra mágica cujo significado perceberam parcialmente.

É quase um sinônimo de “pantim”, palavra já comentada aqui: “Qualquer reação exagerada, artificial, ‘valorizando’ demasiadamente uma situação que não tem muita gravidade.” (Em http://tinyurl.com/m59zndo). Um fingimento, uma mentirinha, uma valorização no sentido que lhe damos no futebol: “Houve um esbarrão muito leve mas o atacante valorizou, caiu, está se contorcendo em dores...”

Friquitícios de toda ordem estão se sucedendo na Copa do Mundo. São habituais no futebol e se dirigem ao juiz, para induzi-lo à marcação de faltas. No grande futebol, com cobertura de TV, dirigem-se também às câmeras.  Hoje em dia, os jogadores são muito conscientes de estarem sendo filmados o tempo todo.  Erguem os braços para Deus, dizem palavras de ordem ou de fé de maneira exagerada para que o público possa fazer a leitura labial, exibem marcas de patrocínio de maneira fingidamente descuidada. E na hora do esbarrão, fazem o maior friquitício.

Tenho lido muita coisa sobre a Copa e observo que o que mais irrita os não-fãs de futebol é esse friquitício, esse pantim: “Ai, seu juiz! Ele me derrubou!”.  “Parecem um bando de mocinhas, de efeminados,” bradam leitores nos saites esportivos; “é revoltante a desonestidade e a cara-de-pau desses caras, que ganham salários milionários, e em vez de jogar ficam fingindo terem sido atingidos por um esbarrãozinho de nada, para conseguir punições para o adversário.”  E eu concordo.  No jogo de futebol, no campo, tem muita coisa chata, mas a mais chata é o friquitício.


quinta-feira, 26 de junho de 2014

3535) Livros recusados (26.6.2014)






Em 2013, J. K. Rowling, autora de “Harry Potter”, publicou o romance policial The Cuckoo’s Calling, sob o pseudônimo de Robert Galbraith. O livro recebeu alguns elogios mas não esgotou a tiragem inicial de 1.500 cópias. Houve um vazamento, por indiscrição de uma das poucas pessoas que sabiam do segredo, e a imprensa investigou até comprovar que o livro era de Rowling. Na mesma hora, 140 mil exemplares foram impressos e vendidos num piscar de olhos.

É um assunto recorrente na imprensa cultural: o que aconteceria se um livro original de um autor famoso fosse submetido anonimamente a uma editora?  Foi o que aconteceu com Claire Chazal, apresentadora de TV francesa cujo romance L’institutrice fez grande sucesso em 1997. Em 2000 o jornal Voici enviou o texto do romance, atribuído a uma autora imaginária, a várias editoras, inclusive a Plon, que publicara o livro original. O título foi mudado para La maîtresse d’école, a ação foi transferida de Auvergne para a Lorena, e a personagem principal, que se chamava Jeanne Villard, teve o nome trocado para Charlotte Florange. Além disso, o parágrafo de abertura foi mudado – trouxeram para o início um trecho que no original aparecia mais adiante.  Foi o que bastou para que o livro fosse recusado, inclusive pela Plon, que publicou o romance original.

A revista explicou: “Queríamos demonstrar que os romances de autores estreantes que já são personalidades públicas recebem um tratamento especial que não é dedicado a um livro de estreante anônimo.”  O que me parece óbvio, aliás.  É o que eu faria se fosse editor.  Por que não investir mais num nome que já tem grande popularidade? O erro, no caso, é não haver na editora quem reconhecesse um livro publicado por ela mesma (e, nas outras editoras, ninguém capaz de reconhecer um romance de sucesso). Isso mostra apenas o quanto o trabalho editorial em grande escala é segmentado, fracionado, sem que A saiba o que está sendo feito por B.  Ninguém pode ler tudo. Ninguém tenta ler tudo.

Há outros casos recentes, em que livros até de V. S. Naipaul (que havia ganho o Prêmio Novel poucos anos antes) tiveram título e nomes dos personagens trocados, foram oferecidos sob pseudônimo a editoras, e nenhuma se interessou em publicá-los. Surpreendente? Absurdo?  Para mim, não. A leitura de uma obra é sempre influenciada pelo nome que assina a obra. Mesmo que seja para elogiar um desconhecido ou espinafrar um monstro sagrado, a assinatura está sempre sendo levada em conta. Na nossa cultura em que a autoria é garantida por lei, registrada em cartório e recompensada financeiramente, o nome do autor faz parte do texto.


quarta-feira, 25 de junho de 2014

3534) Terra Oca (25.6.2014)




Era uma vez um planeta (o nosso) que era oco. Alguma coisa nas suas convulsões geológicas o deixara assim, e a velocidade com que girava tornava possível haver oceanos, continentes e mares não apenas no exterior da sua crosta sólida, mas na face interior dela também.  O oco interno era iluminado por um sol central de intensidade, tamanho, massa e variação cromática ideais.

Foram os homens de dentro, que em sua expansão, povoaram pela primeira vez o mundo de fora, até então entregue a feras descomunais. Brotaram do Polo Norte e desceram rumo a terras mais quentes. Alguns morriam com facilidade ao se aproximarem delas, mas outros pareciam despertar, redobrar de vigor. Ali se fincaram, ali esqueceram o trajeto dos seus ancestrais remotos. Pensavam mais na sobrevivência do que em ficar recitando as crônicas históricas de um mundo que não conheciam e de cuja existência não faziam questão.

Acostumados ao sol unânime e central do mundo de dentro, eles estranharam o mundo de fora. O sol girava sem parar, erguendo-se no primeiro abismo e pondo-se no último. Um sol rodopiante, descontrolado, num mundo sem paredes.  E nas horas em que o sol sumia, vinham horas espantosas cheias de terrores e constelações. E a tentativa de justificar a presença daqueles pontos de luz através de esferas, dentro de esferas, dentro de esferas, cada qual girando sobre si própria.

Existem pessoas que preferem um sol único, fixo, inalterável em si mesmo, podendo apenas ser oculto por invernos inteiros, mas confiadamente ali, onde sempre esteve e onde sempre deveria estar.  Um mundo em forma de esfera fechada. O que dizer das crises filosóficas de gerações de escribas teologais da Terra de Dentro, no século em que emergiram do outro lado do Poço, e descobriram que estavam pisando a superfície de uma esfera aberta?

Guerras por dissensão quanto a um axioma qualquer de teologia topológica. Impérios se ergueram, impérios tombaram.  Podemos descrever essa fase apenas em termos coletivos. Não há como saber se algum daquele filósofos (inteligentes, mas sem o instrumental de que se dispõe hoje) chegou a intuir mentalmente uma física, astronomia, geometria, etc. que pudesse se aplicar àqueles dois universos, a Terra de Dentro e a Terra de Fora.  Porque o mundo é binário, bipolar, contrário-complementar, oposto-simétrico.  O mundo não é apenas circular, esférico, concêntrico, harmonioso e uno.  Existe em nós a consciência atávica da existência de um mítico Aqui-Lá, um mundo com sinal invertido ao nosso, um mundo-do-espelho, um mundo de uma esfera fechada por paredes de matéria, que é o mundo primordial de onde viemos, e para onde tudo voltará um dia.


terça-feira, 24 de junho de 2014

3533) Clichê obrigatório (24.6.2014)





(George Raft em Scarface)



Quando Billy Wilder estava tentando filmar Pacto de Sangue, adaptando o romance de James M. Cain (Double Indemnity, 1943), foi oferecer o papel principal ao ator George Raft. 

Começou a contar a história do começo ao fim, e Raft perguntava repetidamente: “E a que altura aparece a lapela?”.  Wilder não sabia que lapela era essa e contou a história até terminar. Raft se espantou: “Então não tem lapela?”. E ele: “Que diabo é lapela?”  Raft: “Aquela cena em que o bandido vira a lapela do casaco, exibe o distintivo, e mostra que é da polícia ou trabalha para o governo, enfim, é um cara do bem.”  Wilde confessa que nunca ouvira essa gíria. 

Todo clichê é um velho amigo nosso, a prova disso é ver o quanto ele é bem recebido quando se apresenta: com simpatia, quase com alívio. 

Um clichê narrativo (“Acho que seria melhor dar uma olhada no porão para tirarmos qualquer dúvida”) é reencontrado com a mesma alegria de quando voltamos a um boteco simpático onde já fomos bem recebidos.  

Ou, mais rigorosamente, é recebido como algo sobre o qual já pensamos e que por isso achamos legal não precisar pensar de novo.

Comecei ontem a ler um romance qualquer e me dei de cara com dois bons exemplos.  

Um nobre sobe na charrete ou tílburi (é século 19) e diz ao seu cocheiro que siga para a rua tal. O cocheiro diz, nervoso: “Mas, senhor!  Foi lá que...” E o nobre o interrompe: “Silêncio!  Faça o que estou mandando!”  

Eu já vi essa cena dezenas de vezes, com Peter Cushing ou Vincent Price ou Basil Rathbone insistindo em ir, na calada da noite, ao local do crime, ao local de assombração, ao local do feitiço.

Em outra cena o personagem chega à casa de alguém e enquanto espera fica olhando um quadro na parede, e o descreve.  O parágrafo é cortado por um diálogo: “Gostou? Foi pintado por Fulano de Tal” – e o dono da casa aproxima-se por trás dele. 

Lembrei desta cena porque eu mesmo já a escrevi tintim por tintim, e só o fiz porque a lera mil vezes antes, ou a vira na tela do Babilônia ou Capitólio.

Esses pequenos efeitos narrativos, um dia, resolveram o problema de um escritor que precisava sugerir uma idéia ou dar dramaticidade a uma entrada em cena. Funcionaram, e funcionaram tão bem que continuam funcionando até hoje, nas mãos de qualquer um. 

Em geral, um clichê fica tão bem impregnado na nossa memória que acaba brotando no mais indesejável dos momentos, ou seja, quando começamos a escrever. Nesse momento crucial, o jovem autor precisa ter autodistanciamento e boa memória. 

E precisa ter por perto uma pessoa com credibilidade bastante e aproximação bastante para poder lhe dizer: “Velho, tire esse negócio aí, isso é o maior clichê.”







domingo, 22 de junho de 2014

3532) Ser soldado (22.6.2014)



Acho que a maioria dos soldados tornam-se soldados, pelo menos em desejo e fantasia, por volta dos cinco ou seis anos de idade.  Se bem me lembro, nesse período tudo que o camarada sonha na vida é ser tranquilizadoramente coletivo, e assim ser grande, ser forte, ser capaz de ser brutal, poder ver o medo nos olhos de quem o avista, poder empunhar aqueles instrumentos terríveis cheios de raios e trovões.  O menino quer ser um Deus atemorizante e invulnerável. Só o soldado é assim.

Ser soldado não é ser preparado apenas para matar, mas também para controlar o medo de morrer. Mais do que um poder sobre a morte, ser soldado implica num poder sobre o medo.  Uma das cenas mais vibrantes de um episódio recente de Games of Thrones ((HBO, cuja 4a. temporada terminou há poucos dias) é quando um gigante inimigo consegue arrombar a entrada de um túnel numa fortaleza, e cinco soldados da Guarda Noturna entram no túnel para detê-lo. O monstro é gigantesco, e quando se aproxima eles, aterrorizados e de armas em punho, gritam juntos o juramento que fizeram ao se alistar ali: “A noite está chegando, e minha vigília vai começar! Ela não chegará ao fim antes da minha morte! Eu nunca terei esposa, nunca possuirei terras, nunca terei filhos!  Nunca usarei coroa, e não conquistarei glórias! Eu viverei e morrerei no meu posto! Eu sou a espada da escuridão! Eu sou o sentinela no alto da muralha! Eu sou o escudo que protege os reinos dos homens! Eu dedico minha vida e minha honra à Guarda Noturna, nesta noite e em todas as noites que virão!”.  E partem para a batalha desigual.

Para uns, ser soldado evoca, de cara, a “licença para matar”, o apelo ao carcará sanguinolento que habita o inconsciente de toda pessoa civilizada.  Para outros, evoca a nobreza de mandar e a de obedecer.  Para outros ainda, a diluição-em-pixel numa estrutura maior, onde é possível obter anonimato e paz.  Para outros, há um trabalho a ser feito, alguém precisa fazê-lo, então que o faça bem feito, não importa a que custos ou sacrifícios. Para outros, é a escada mais curta para um trono.

Game of Thrones mostra soldados que quebram seus votos por causa de uma mulher. Soldados que correm o risco da morte, e mais, da desonra, mas não quebram a palavra dada.  Soldados que ganham todas as batalhas e perdem a guerra. Soldados pusilânimes em tempo de paz e heróis em campo de batalha.  Soldados cruéis que dos outros só esperam a crueldade.  Soldados que têm somente a mais vaga noção de por quê estão lutando, mas já que estão ali para lutar, tornam a luta em si a coisa mais importante de suas vidas, algo que faz valer a pena enfrentar a morte.