sexta-feira, 29 de novembro de 2013

3356) Gambiarra (29.11.2013)



Gambiarra é gato, é ligação clandestina, é fiação descoberta, é improvisação informal ligeiramente abaixo do piso de legalidade imposta aos autônomos em geral. 

Gambiarra é arranjo, é ajuste, é quebra-galho, é um pra-ver-se-cola alicerçado pelo norrau de quem faz isso o tempo inteiro.

Na minha infância, “gambiarra” eram aquelas cordas esticadas no ar, com lâmpadas penduradas, numa praça onde ia haver um comício, numa festa ao ar livre, etc. Este me parece ser o sentido português do termo, porque a Wikipédia registra: “Em Portugal, o significado predominante seria ‘extensão de luz’. Entre outros significados, destacam-se ‘ramificação de luzes’ (Ferreira, 1999)”. 

Uma definição em inglês que vi recentemente circulando nas redes sociais diz (tradução minha): 

“Gambiarra é uma definição brasileira para o desvio informal de conhecimento técnico. É uma prática cultural generalizada, que consiste em todo e qualquer tipo de soluções improvisadas para problemas do dia-a-dia, com qualquer material que se tenha à mão”. 

Entre os sinônimos em inglês sugeridos, está o divertido “McGyverism”, que faz referência ao McGyver da série de TV, o agente secreto capaz de inventar soluções improvisadas para tudo. (Eis um saite de gambiarras de cinema/TV: http://shittyrigs.com/).

Gambiarra é quando alguém resolve um problema mecânico, hidráulico, elétrico, etc. usando recursos improvisados. Claro que tanto pode produzir coisas bem feitas quanto mal feitas. A boa gambiarra indica conhecimento do problema e habilidade para resolvê-lo, mesmo que os materiais sejam de má qualidade e que haja maneiras mais eficazes de solucioná-lo. 

A gambiarra mal feita pode produzir curto-circuitos elétricos, estouros / vazamentos / infiltrações hidráulicas, construções de alvenaria tortas e instáveis e assim por diante. A gambiarra não é garantia de trabalho eficiente nem é indício de incompetência.

Já vi amigos da área de Engenharia se queixando de que seus cursos não estimulavam a invenção, e sim a assimilação metódica do que já foi inventado É compreensível: em Elétrica, em Mecânica e em Civil a quantidade de soluções já encontradas é enorme, são séculos de conhecimento acumulado. Diante de tal problema, faz-se assim ou assado. 

O lado negativo, parece, é que quando um problema prático extrapola a tradição alguns engenheiros ficam de mãos atadas, porque não foram ensinados a pensar “fora da caixa”. Vai daí que todo curso prático (Engenharia, Medicina, Arquitetura, etc.) deveria uma cadeira chamada “Gambiarra” que percorresse o currículo do primeiro ao último ano. A arte do improviso, para fazer frente ao Acaso, ao Imprevisível, ao Imponderável.








quinta-feira, 28 de novembro de 2013

3355) "O Pescador de Ilusões" (28.11.2013)





Revi este filme antigo de Terry Gilliam, que talvez seja o filme menos “Terry Gilliam” de toda sua obra. O diretor é conhecido pelas suas superproduções com direção de arte fantástica e barroca, enredos mirabolantes, verdadeiras “extravaganzas” como Brazil, o Filme ou As aventuras do Barão de Munchausen. Sua obra tem um pé na ficção científica, outro no gótico, e elastecendo a metáfora posso dizer que tem outros pés espalhados pelo steampunk, o surrealismo, o macabro, a magia-de-palco do século 19. Gilliam surgiu no grupo cômico Monty Python, mas embora seus filmes compartilhem com o MP um tom burlesco, satírico, exagerado, não são filmes de humor. Seus filmes não são engraçados. Pelo contrário – são cheios de situações que têm potencial cômico mas uma poderosa força gravitacional os arrasta o tempo inteiro para o território da angústia e do pesadelo.

The Fisher King conta a história de dois homens cujas vidas foram destruídas, e depois ligadas, por uma brincadeira de mau gosto de um deles. Jack Lucas (Jeff Bridges) faz um locutor de rádio que um dia, para parecer cínico e “blasé”, sugere a um ouvinte (com quem conversa pelo telefone, durante a transmissão) que vá a um bar de “yuppies” e fuzile todo mundo. Mal sabe ele que o sujeito vai fazer isso mesmo. A chacina arruína a carreira radiofônica de Jack.

Anos depois, ele, numa tremenda pindaíba, acaba conhecendo um morador de rua, Parry (Robin Williams) e descobre que Parry caiu na miséria depois que perdeu a esposa, morta justamente na chacina que ele involuntariamente ordenou. Daí em diante, começa uma história fantasiosa, tortuosa (o roteiro é cheio de três passos para a frente e dois para trás), às vezes sentimentalóide, mas geralmente simpática, em que esses dois sujeitos tentam reequilibrar suas vidas.

O “rei pescador” do título é, na lenda do Rei Artur, um rei ferido que busca sem sucesso o Santo Graal e acaba encontrando-o por acaso quando diz estar com sede e um maluco qualquer lhe oferece água numa taça. O maluco não sabia que taça era aquela: queria apenas dar a água. O Graal é a água, a empatia, a caridade, o desejo de ajudar alguém sem pedir nada em troca. É o contrário do gesto cruel de Jack, que deflagra a chacina (uma crueldade gratuita tão comum nos “humoristas” de hoje e nas redes sociais). O filme contrapõe estes dois gestos, o impulso da maldade-pela-maldade, só para se divertir, e o impulso da solidariedade desinteressada. São dois impulsos igualmente fortes no ser humano, e eu diria que a luta entre os dois é pelo menos tão importante quanto a disputa de duas facções políticas por cargos administrativos.


quarta-feira, 27 de novembro de 2013

3354) Orwell e o futebol (27.11.2013)






(Orwell, by Felipe Muanis) 

Dias atrás nas redes sociais foi postado um artigo de Lima Barreto em que ele descia a ripa no futebol, jogando-lhe em cima todos os defeitos e vícios possíveis. É conhecida a antipatia de Lima pelo jogo de bola, talvez aumentada pelo fato de que em sua época era um esporte de rapazes brancos e ricos, como são hoje o hipismo e o golfe. 

Já comentei aqui um ótimo livro de Mauro Rosso, Um Fla-Flu Literário, que contrapõe os artigos sobre futebol de Lima Barreto (contra) e de Coelho Neto (a favor). (Ver: http://bit.ly/13yAvnj).

Isto me lembrou outra diatribe famosa contra o esporte bretão, desta vez de um autor não menos bretão. George Orwell (1984, A Revolução dos Bichos) publicou em dezembro de 1945, no Tribune, um artigo devastador intitulado “O espírito esportivo” (“The sporting spirit” – aqui: http://bit.ly/4IGPTc). 

O gancho jornalístico foi a excursão do Dínamo de Moscou pela Inglaterra (certamente numa daqueles campanhas de boa vizinhança do pós-guerra), enfrentando clubes ingleses. Orwell começa dizendo que “se uma tal visita teve algum efeito nas relações anglo-soviéticas foi apenas a de torná-la um pouco piores do que estavam antes”.

Orwell vê o mal em todos os esportes competitivos (não poupa o boxe), e diz: 

“Joga-se para vencer, e o jogo não tem muito sentido a menos que se faça todo o possível para vencer. (...) No momento em que fortes sentimentos de rivalidade são despertados, a idéia de jogar de acordo com as regras desaparece. As pessoas querem ver um time por cima e o outro humilhado, e esquecem que não faz sentido uma vitória obtida através de trapaças ou da intervenção da torcida.” 

Orwell escreveu numa Europa esgotada pela guerra, onde os antagonismos nacionais persistiam: 

“O pior não é o comportamento dos jogadores, mas a atitude da torcida, e, para além da torcida, das nações que entram em fúria a propósito dessas competições absurdas, e acreditam seriamente – pelo menos por algum tempo – que correr, pular e chutar uma bola são testes para as virtudes nacionais”.

Ele observa com agudeza que entre o Império Romano e o século 19 o esporte não foi levado muito a sério, e que então, nos EUA e na Inglaterra, começou a ser tratado como uma atividade de altos investimentos. E diz: 

“Se alguém quiser aumentar a má-vontade já considerável que existe no mundo, não teria nada melhor a fazer senão promover jogos de futebol entre judeus e árabes, alemães e tchecos, indianos e ingleses, russos e poloneses, italianos e iugoslavos.”  

O que pensaria Orwell se tivesse visto os “hooligans” ingleses, as hecatombes de arquibancada, as batalhas campais dos torcedores em cidades pacíficas?






terça-feira, 26 de novembro de 2013

3353) Grandes idéias de FC (26.11.2013)




(freys, em Deviant Art)

Certas idéias científicas parecem óbvias, mas não vejo a ficção científica se dedicando a elas. Por exemplo: por que motivo não pesquisamos (nós, escritores, que ao contrário dos cientistas podemos pesquisar a custo zero) a formação de múltiplas personalidades (“o médico e o monstro”) na mente humana?  

Nem vou falar nas possíveis utilizações pacíficas desse divisionismo, mas citarei, para ver se atraio patrocinadores, algumas utilizações bélicas. Um soldado cuja mente seja, metade, uma máquina pré-ética de matar, e outra metade um carinhoso e patriótico pai de família. Cada um deles podendo ser ativado por um gatilho hipnótico (lembrem o filme O Telefone, de Don Siegel, com Charles Bronson), e assumindo o controle do corpo (do “cavalo mediúnico”) até concluir a tarefa prevista.

Faríamos melhor em investigar o cérebro humano, que bem ou mal estará conosco enquanto formos nós mesmos, do que em construir espaçonaves, gastar milhões de litros de gasolina para ir catar pedras num planeta baldio. 

Fernando Pessoa já ironizava o conceito de personalidade única no “Ultimatum”, um dos textos mais importantes de “Álvaro de Campos”. A produção de individualidades artificiais pode ser apenas uma questão de poucas décadas.

Antigas civilizações pré-colombianas doutrinavam seus neófitos aplicando-lhes na noite do “rito de passagem”, uma dose cavalar de ervas alucinógenas, e depois um passeio por dentro de cavernas labirínticas, ouvindo o eco de vozes, os cânticos, vendo os efeitos com archotes naquelas tortuosas galerias subterrâneas. Quem, no outro dia, acreditaria ter visitado menos do que um outro mundo que misturava cacos de inferno e de paraíso? 

Essas formas artesanais de controle mental mostram que o ser humano é sempre mais maleável do que parece, e Alguém, cedo ou tarde, usa isso em seu proveito.

Usar meios artificiais para criar personalidades distintas não seria mais do que levar às últimas consequências lógicas o processo de socialização que exige de nós atitudes diferentes em diferentes lugares ou atividades. Um Presidente poderia ser um orador carismático e cheio de empatia, e, longe das câmaras, um administrador enérgico, um negociador maquiavélico, e cada uma dessas personalidades só saberia das demais o necessário para funcionar.  

O emprego de múltiplas personalidades artificialmente controladas (inclusive pelo dono original daquele corpo) é uma possibilidade científica muito mais próxima e factível do que a construção de um império galáctico. 

Os escritores de FC preferem falar de impérios galácticos porque é mais fácil se movimentar no Passado (império é coisa do passado) do que no Futuro.






domingo, 24 de novembro de 2013

3352) Mente binária (24.11.2013)




Eu estava lendo um saite literário, com advertências e conselhos. Num certo post, o autor dizia algo assim: “Na ficção, o personagem é essencial. Ele tem que ter espessura, credibilidade. Se o personagem não parece uma pessoa – dentro das limitações de um texto, claro – a história não se sustenta”. O primeiro comentário do saite dizia: “Falso. E os personagens de Kafka, de Beckett? Que espessura eles têm? Parecem com quem? Isso que você fala é um absurdo.” A crítica do leitor tem uma certa razão, porque os personagens de Kafka e Beckett têm tudo menos essa “espessura” realista que o autor do saite reivindicava. Mas o que ele diz exprime, sim, uma verdade. Só que uma verdade parcial. E é sobre isto, não sobre literatura, que quero falar.

A mente de muitas pessoas funciona de modo binário, preto ou branco, sim ou não, 100% ou 0%. Acho que na infância elas assimilaram o conceito de “verdade” e “mentira”, e daí em diante se fixaram na atitude mental de considerar que qualquer afirmativa ou é cem por cento verdadeira ou cem por cento falsa. Eu chamaria a isso A Crispação Aristotélica – me parece que foi Aristóteles quem estabeleceu o conceito de que “se A é A, então A não é B”... algo assim.

Na discussão acima, a afirmação sobre a necessidade de verossimilhança dos personagens literários é uma verdade. Não no sentido científico de uma verdade factual, que pode ser objetivamente comprovada quantas vezes for preciso, mas no sentido de uma “verdade cultural”, de um conceito que faz parte da nossa cultura literária. É uma verdade parcial (digamos), que convive com a verdade parcial oposta. Anna Karenina e Joseph K podem coexistir no mesmo universo cultural. São verdades opostas, mas verdadeiras.

A imensa maioria das generalizações que a gente diz são verdades parciais. E a toda hora aparece um Leitor Binário, um Crispado Aristotélico para dizer que nossa afirmação é falsa, porque ele acaba de descobrir algumas exceções a ela. Qualquer afirmação vaga como, digamos, “os brasileiros gostam de futebol” é imediatamente denunciada, porque (dizem eles, triunfantes) nem todo brasileiro gosta de futebol. Ora, “os brasileiros” não significa (e é isso que ele não entende) “todos os brasileiros”. Significa “um número significativo de brasileiros”. É uma verdade estatística, cinzenta, difusa, como as da Física Subatômica.

E é a existência de gente assim, catadoras de lêndeas verbais, que obriga o redator a atulhar seus textos com a repetição de expressões como “na maioria dos casos”, “quase sempre”, “cerca de”, “aproximadamente”, “em torno de”, “grande parte”... Ressalvas que um leitor mais lúcido faz sem precisar de instruções.


sábado, 23 de novembro de 2013

3351) "Os Amantes da Ponte Nova" (23.11.2013)




Vi este filme (Os amantes da Pont Neuf, de Leos Carax, com Juliette Binoche) sem muita expectativa a não ser o fato de que Holy Motors, do mesmo diretor, foi talvez o melhor filme que vi no ano passado, e um dos mais desconcertantes dos últimos tempos. Os amantes... é de 1991 e conta a história de um casal de jovens sem-teto em Paris, que dormem na Pont Neuf, que está passando por uma reforma estrutural. Fechada ao trânsito, a ponte se torna algo tão isolado quanto um terreno baldio; como o forte do filme não é o realismo naturalista, não vemos um operário sequer trabalhando nos reparos. A ponte vive deserta, sem pedestres, sem interferências, e ali os personagens vivem sua vidinha: o junkie Alex, todo ralado, pé no gesso, muleta, cicatrizes de drogado pelo corpo inteiro, engolindo fogo na praça para sobreviver; Michelle, pintora que está ficando cega e rompeu com a família; e Hans, um velho que largou tudo para viver na rua com a esposa alcoólatra e agora, viúvo, acostumou-se àquilo.

É um filme menos surreal e mais linear do que Holy Motors, e acabou sendo o filme francês mais caro da época, porque o diretor teve que reconstruir cenograficamente a Ponte e os prédios em volta do rio. Durante todo o filme, Paris é um mero conjunto de figurantes passando ao fundo, meio fora de foco. O foco é todo nos sem-teto. O espaço onde Alex e Michelle vivem seus desencontros é uma espécie de ilha-da-fantasia; é patético quando, anos depois, eles marcam encontro na ponte, no inverno, e veem aquele local ocupado por carros, transeuntes, neve, como se tudo aquilo tivesse invadido o quarto de dormir dos dois.

Carax gosta de sequências longas, vagamente encaixadas na narrativa, que lhe permitem brincar com a câmara, a montagem e os atores, como numa sequência de fogos de artifício no céu, um passeio de lancha + esqui, e depois um longo plano dos dois correndo nus numa praia. O filme tem aquela sintaxe não-explicativa em que uma cena intrigante corta para algo completamente diferente como se nada tivesse acontecido. Os personagens são trancados, misteriosos, ressentidos, de modo que qualquer ação insólita que praticam (são muitas) parece natural, pois não sabíamos direito o que esperar deles. O diretor usa bem o recurso de eliminar todos os sons ambientes, com exceção de um (ou da música) para dar uma impressão de irrealidade, de alucinação. A vida dos moradores de rua mostra o tempo inteiro aspectos de sordidez e de liberdade, sem os clichês da crítica social, e só com uma ou outra escorregada num lirismo e num melodrama que lembram os filmes de Chaplin.


sexta-feira, 22 de novembro de 2013

3350) Clássicos da Zahar (22.11.2013)






Estou me devendo há algum tempo um comentário sobre a coleção Clássicos Zahar, que essa Editora vem lançando há algum tempo. São títulos que a gente pode chamar de clássicos populares – aqueles autores que hoje ocupam um lugar mais ou menos respeitável nas Histórias da Literatura, e que ao mesmo tempo produzem livros fáceis de ler, bem escritos, histórias interessantes contadas de um jeito envolvente. Livros que foram para minha geração o que Harry Potter e O Senhor dos Anéis têm sido para os mais jovens.

São todos livros em domínio público (autores falecidos há mais de 70 anos, de um modo geral). Isso significa que a editora economiza os 10% de direitos autorais que se paga sobre o preço de capa. Algumas editoras aproveitam isso para aumentar sua margem de lucro. Outras reinvestem isso, ou parte disso, em traduções caprichadas, prefácio e introduções, notas críticas e comentários ao texto, reprodução de ilustrações da edição original.

É mais ou menos o que tem feito a Zahar, numa série de clássicos em capa dura, como O Corcunda de Notre Dame de Victor Hugo (tradução, apresentação e notas de Jorge Bastos, ilustrações da edição original) ou O Conde de Monte Cristo de Alexandre Dumas, com tradução (vencedora do Prêmio Jabuti) de André Telles e Rodrigo Lacerda, uma edição de bolso com 1.663 páginas. Os mesmos tradutores verteram (e comentaram) A Mulher da Gargantilha de Veludo e outras histórias de terror, também de Dumas.

Já falei nesta coluna sobre as aventuras de Sherlock Holmes editadas e comentadas por Leslie Klinger; as notas são copiosas e, embora alguns críticos as considerem supérfluas ao texto em si, valem como uma profusão de janelas hipertextuais sobre a Inglaterra, sobre Conan Doyle, sobre a Ciência, a História e a Geografia da época. Na minha pilha de leitura está aqui do lado O Lobo do Mar de Jack London, que nunca li, e que tem tradução de Daniel Galera, apresentação de Joca Reiners Terron, notas e glossário de Bruno Costa.

O que é um clássico? Arrisco-me a dizer que é um livro que se torna mais novo e mais rico a cada reedição, porque a soma total do que tem a oferecer nunca se esgota. Um livro que se expande ao ser visto e comentado por sucessivas gerações de estudiosos. A edição de O Mágico de Oz de L. Frank Baum tem tradução de Sérgio Flaksman, apresentação de Martin Gardner, prefácio de Gustavo Franco, notas de Juliana Romeiro, ilustrações originais. Cada edição assim é única, é o texto clássico emoldurado pelas ressonâncias que produz naquele país, naquela época. Se daqui a um século algum livro meu for tratado assim, nem vou sentir falta dos direitos autorais.


quinta-feira, 21 de novembro de 2013

3349) Os cordéis de Pepys (21.11.2013)






Quando o inglês Samuel Pepys (1633-1703) faleceu, deixou uma imensa e bem cuidada biblioteca de mais de 3 mil volumes, uma das maiores de seu tempo (a coleção está hoje em Magdalene College, Cambridge). 

No meio daquilo tudo, inclusive raríssimas primeiras edições da época, havia uma coleção de mais de 1.800 baladas populares (letras de canções impressas de um só lado, em papel barato, como também se usou no Nordeste) e 115 folhetos de cordel (chamados “chapbooks” na Inglaterra). 

Pepys foi membro do Parlamento e Secretário Naval da Inglaterra; era um homem culto e influente. E tinha curiosidade pelo fervilhar cultural de seu tempo, inclusive a chamada literatura popular, além de admirar as soluções gráficas desses folhetos e baladas. 

Os 115 “chapbooks” colecionados por ele foram alvo de uma antologia organizada por Roger Thompson (Samuel Pepys’ Penny Merriments, New York, Columbia University Press, 1977)

Os chapbooks de Pepys são livros pequenos, em torno de 8,5 por 14 cm, enquanto nosso cordel mede cerca de 11 por 16. As ilustrações são em xilogravura; na Inglaterra, espalhadas ao longo do livrinho, enquanto que no Nordeste há uma só, na capa. E os chapbooks ingleses eram geralmente em prosa, enquanto quase a totalidade do cordel brasileiro é em verso.

Thomas divide a coleção de Pepys em oito temas. 

1) “História”, incluindo eventos históricos, lendas, vidas de personagens como Henrique VIII ou Robin Hood. 

2) “Mágica”: textos sobre crendices populares, quiromancia, astrologia, previsões do futuro, personagens como o Pequeno Polegar (Tom Thumb) ou o Dr. Fausto.  

3) “Crítica social”: condenando o alcoolismo, a vadiagem, a mendicância, o uso errado da terra, a usura, o falso moralismo.  

4) “Namoro”: regras de conduta e etiqueta para os namorados, e conselhos para o casamento e a administração do lar. 

5) “Gracejos e piadas”, semelhantes às nossas coletâneas de anedotas em almanaques e revistinhas.  

6) “Guias práticos”, com instruções culinárias, farmacêuticas e para outros tipos de necessidade cotidiana. 

7) “Histórias de malandros”, que têm um apelo universal e são, ao seu modo, precursores dos nossos cordéis sobre Pedro Malazarte, Cancão de Fogo, etc. 

8) “Relações conjugais e extra-conjugais”, histórias maliciosas de adultérios, traições, situações equívocas, numa linguagem cheia de duplos sentidos, ou claramente de encontro aos padrões de moral da época.

Havia cordel (ou “romanceiro popular”) na Inglaterra, na França, na Espanha, em Portugal, em todo canto. É o encontro entre as histórias simples da memória coletiva e a impressão barata de um livrinho cujo preço, uma moedinha, até os pobres podem pagar.












quarta-feira, 20 de novembro de 2013

3348) Crimes da ciência (20.11.2013)





(Ming)



A Ciência é admirável e terrível. Algo como um espetáculo que nos atrai, do qual não conseguimos afastar os olhos, mas se chegarmos muito perto corremos o risco de ser destruídos. 

Ela se baseia na busca de fatos e de constantes (as chamadas “leis da natureza”) objetivas, que existem no mundo. “Objetivos” quer dizer coisas que existem fora da nossa consciência, algo que não depende de nossa consciência para existir. 

Como dizia Philip K. Dick, "realidade" são todas as coisas que não desaparecem quando a gente deixa de acreditar na existência delas.

Nessa busca do que é objetivo, do que é coletivo, geral, universal, as ciências precisam muitas vezes considerar secundário todo indivíduo, todo caso isolado, toda pessoa. 

O que buscam, em princípio (tenhamos sempre cuidado com as generalizações – cada ciência tem métodos e objetivos diferentes), é o que há em comum entre todos os indivíduos. Nessa busca de constantes universais, os indivíduos às vezes saem perdendo.

Foi o caso que a imprensa noticiou assim: “Cientistas Matam Acidentalmente o Animal Mais Velho do Mundo”

Era um molusco oceânico descoberto perto da Islândia em 2006. Os cientistas calculam a idade deles contando os anéis em sua concha, por dentro e por fora. A avaliação era de que o molusco tinha 507 anos quando foi descoberto, mas a contagem era imprecisa. Para chegar ao número certo, seria preciso abrir a concha e olhar dentro. 

Foi o que eles fizeram, certamente tomando o máximo de cuidado. Nem sempre o máximo é o bastante, e durante o processo o bicho morreu. 

O que lembra aquela piada, em que o doente diz: “Doutor, o que é que eu tenho?”, e o médico: “Fique tranquilo, saberemos na autópsia”.

Temos o direito de sacrificar um ser vivo só para saber com “certeza científica” a idade que ele tem? Os cientistas provavelmente não teriam feito o que fizeram se tivessem certeza de que isso mataria Ming (até nome o molusco recebeu!). 

Não é o mesmo caso daquele lenhador norte-americano que meteu a motosserra numa árvore (há poucos anos) para ver que idade tinha, e descobriu que era A Árvore Mais Velha do Mundo. Neste caso, os anéis internos do tronco não poderiam ser cortados sem matar a árvore; no do molusco, acho que os cientistas tinham alguma chance de poupar o espécime.

É, amigos, a vida é frágil. Como disse G. K. Chesterton em Orthodoxy

“Dê uma pancada num vidro, e ele não durará um instante; deixe-o em paz, e ele vai durar mil anos. (...) A felicidade depende de não fazermos algo que podemos fazer a qualquer instante, e que, muitas vezes, não é muito claro para nós que não devemos fazê-lo.” 

Quando sabemos, é tarde demais.










terça-feira, 19 de novembro de 2013

3347) Erros de tradutores (19.11.2013)




Volta à imprensa e às redes sociais a discussão sobre erros de tradutores, em função de alguns livros recentes. Como passo 4 ou 5 horas por dia amarrando esse tipo de pingo dágua, me conforta perceber que não sou o único que erra, que erros podem ser perdoados, e que o mundo não se acaba quando a gente paga um mico.

Cito um post no Facebook da tradutora Denise Bottmann, figura exigente e respeitada na profissão: “A gente erra: seja o erro de ler errado, por distração, seja o erro de não saber direito o sentido e trocar alhos por bugalhos, seja o erro qualquer erro, errado em suma. Nenhum leitor deveria, sugestão minha, esperar uma plena reconstituição / restituição / recriação etc. do original, claro, mas tampouco esperar algo prístino, imaculado, impecável. A gente erra. Não de vez em quando, uma vez a cada morte de papa. Não, erra sempre, o tempo todo, seja aquela coisa mais crassa, idiota mesmo, seja aquela distração imperdoável, seja aquela simplificação grosseira ou qualquer outra coisa”.


Entre os resenhadores da imprensa, virou um hábito escolher o pior erro do tradutor para denunciar em público. (Poucas vezes vejo um resenhador abrir um parágrafo só para destacar um grande acerto, uma solução feliz encontrada pelo tradutor.) O desprestígio da profissão conduz a um círculo vicioso. Os erros se multiplicam graças à presença de centenas de pessoas mal preparadas, verdes, que traduzem porque precisam de dinheiro ou porque “moraram dois anos nos EUA e sabem inglês”. Alguns desses até poderiam virar bons tradutores, com o tempo, mas foram ridicularizados num caderno literário e desistiram. (Conheço casos.)

Um tradutor não é uma pessoa “que sabe inglês” (ou o que for). É um escritor. Quem não é escritor, jamais traduzirá. Escritor (tradutor) de literatura, de humanidades, de livros técnicos, de filosofia, de poesia: cada ofício destes exige talentos diferenciados. E sempre sabendo que o que estamos produzindo não é, nunca, um equivalente perfeito do original. A tradução é um jogo onde se perde o tempo todo, onde é proibido ganhar, e onde o teto possível é o empate.

O pior erro, aliás, não é nem quando a gente “come mosca” e não vê. É quando ocorrem certas coisas que somos incapazes de resolver de uma maneira melhor, e vão para a página assim, mancas, falhadas, porque não podemos deixar aquela linha em branco e não conseguimos encontrar (nem mesmo recorrendo aos amigos) uma solução satisfatória. O que fazer? Admitir o fracasso, assimilar a perda, respirar fundo e encarar o próximo parágrafo, com a esperança de que os próximos mil acertos insignificantes ajudem a curar aquela ferida, que é só nossa.