quinta-feira, 10 de outubro de 2013

3313) 19 medos (10.10.2013)





Antonio Lédio Martins, 39 anos, Salvador: medo de ter os tornozelos amarrados a um cavalo que em seguida será chicoteado, para que o arraste pelo solo pedregoso do sertão. 

Olaf Sigursson, 61 anos, Estocolmo: medo de que no encanamento de sua casa haja insetos mortos, incrustados no interior do cano, que liberam micróbios fatais. 

Amanda Stross, 40 anos, Perth: medo de que o chão afunde sob seu peso (ela pesa apenas 53kg), em qualquer circunstância: em casa, no escritório, na calçada, na praia.

Paulo Marcílio Guimarães, 23 anos, São Paulo: medo de perder o aviso de embarque no voo por estar com earphones escutando Metallica. 

Carmen Gomez de la Murta, 7 anos, Salamanca: medo de que os pais tenham colocado microcâmeras no banheiro para depois postar fotos dela na Web. 

Zhin Wan Yung, 56 anos, Beijing: medo de descer do trem para ir ao banheiro e o trem partir sem ele. 

Roberto Lísio Gonçalves, 23 anos, Fortaleza: medo de debruçar na amurada de uma cobertura e a amurada ceder ao peso de seu corpo.

Fernanda Câmara, 21 anos, São Paulo: medo de ficar bêbada e sair dando para todo mundo da festa. 

Raymond Ambreville, 39 anos, Bruxelas: medo de que um inseto entre pelo seu ouvido, rompa o tímpano e fique passeando dentro do seu crânio. 

Lucy Harrigan, 47 anos, Hong Kong: medo de beber uma lata de refrigerante e no final perceber algo sólido lá dentro. 

Alcino Guimarães Tortuga, 48 anos, Santarém: medo de estar mexendo nas gavetas da esposa e encontrar algo que irá estragar sua vida para sempre.

Bernardo Cardoso Almeida, 18 anos, Londrina: medo de perder a carteira, juntamente com o restante do dinheiro que costuma distribuir pelos outros bolsos. 

Raquel Ondina de Andrade, 30 anos, Aracaju: medo de ser eletrocutada no chuveiro quando toma banho sozinha. 

Almeyr Hongallon, 41 anos, Istambul: medo de ser atingido na calçada por um martelo que pode escapulir casualmente da mão do operário vinte andares acima. 

Merlânia Cordeiro Cardoso, 11 anos, Bayeux: medo que os povo comece a tomar craque e que o mundo se acabe numa invasão de zumbi.

Harrison Luna dos Sabros, 33 anos, Belém: medo de que alguém se suicide pulando de um prédio e caia em cima dele. 

Jerôme Farfan, 55 anos, Le Havre: medo de descobrir entre seus antepassados um carrasco, um traidor da pátria, um violador de donzelas. 

Louis Dickson, 51 anos, Seattle: medo de que tudo que escreve no computador esteja sendo copiado por um programa espião e isto leve sua firma à ruína. 

Joacildo Cardoso de Melo, 44 anos, Natal: medo de reconhecer num assaltante um ex-colega da escola pública, tentar usar isso em seu favor e ver que só fez piorar as coisas.









quarta-feira, 9 de outubro de 2013

3312) O Mágico e o Fantástico (9.10.2013)




(by Alexander Johansson)


Existem dois termos que a imprensa literária usa de modo intercambiável: “Realismo Mágico” e “Realismo Fantástico”. 

Eu acho que os dois exprimem coisas muito diferentes, acho que são usados de maneira irrefletida e confusa, e para aclarar essa confusão proponho a classificação abaixo.

O “Realismo Mágico” é aquele tipo de narrativa literária em que uma história aparentemente realista na sua descrição de ambientes e de personagens inclui também elementos impossíveis de acontecer, mas que obedecem a uma lógica emocional da própria narrativa. 

Exemplos clássicos são Cem anos de solidão (1967) de Garcia Márquez ou Midnight’s Children (1980) de Salman Rushdie. 

É um tipo de história característico de culturas em que um verniz europeu (cientificista, cartesiano) se sobrepõe a uma medula indígena ou milenar (dominada pelo pensamento mágico), o que dá origem a essas infiltrações. Predomina na América Latina mas também tem versões próprias nas literaturas orientais: Índia, China, Japão. O romance e o conto (ou seja, as prosas de ficção) são o seu território principal.

O “Realismo Fantástico” é algo próprio da prosa de não-ficção: o ensaio (ou pseudo-ensaio), a reportagem especulativa, o jornalismo investigativo voltado para assuntos misteriosos e controvertidos. 

Os melhores exemplos de realismo fantástico são os livros O Despertar dos Mágicos (1960) de Pauwels & Bergier (que usa esse termo em seu subtítulo) e Eram os Deuses Astronautas? (1968) de Erich von Daniken, que têm como precursor ilustre O Livro dos Danados (1919) de Charles Fort e a série Believe it or Not (1919) criada por Robert L. Ripley. 

Neste caso, não se trata de romances de ficção, e sim de explorações semi-jornalísticas de fatos inexplicados, curiosos, insólitos, absurdos. Para essas obras, o termo “mágico” não se aplica muito, porque ele não exprime a presença de uma visão mágica do mundo, e sim a mera existência de fenômenos extraordinários que o nosso “realismo” ainda não aceita: extraterrestres, criaturas fantásticas, conspirações, pseudo-ciência, etc.

A principal distinção entre os dois, contudo, é o fato de que o primeiro é composto de literatura de ficção, e o segundo de textos de não-ficção. 

O Realismo Mágico conta histórias assumidamente inventadas pelo seu autor, as quais, como toda obra literária, oferecem uma visão pessoal e profunda da condição humana. 

O Realismo Fantástico apresenta discussões factuais sobre assuntos controversos, geralmente propondo uma versão um tanto fantasiosa dos fatos, o que bastaria para classificá-lo como uma espécie de “jornalismo imaginativo” ou de “ensaística da imaginação”.








terça-feira, 8 de outubro de 2013

3311) O céu e o inferno (8.10.2013)



("Inferno", by merl1ncz)

Depois de uma vida inteira mergulhada no crime, no vício e nas drogas, Nicodemos foi fuzilado num beco durante uma emboscada policial, morreu e foi parar no inferno. Durante a vida inteira tinha zombado do bem e do mal, da virtude e do pecado. Achava que era igual a um bicho, uma criatura que após a morte simplesmente deixa de existir.

Assustou-se ao ver que o Inferno existia, sim. Um labirinto infinito, vastas cavernas vulcânicas, interligadas por passagens estreitas, onde pessoas em carne e osso eram mergulhadas em poças de lava, gêiseres de água fervente, ou braseiros perpétuos.  A carne dos corpos era destruída e recomposta sem parar. A dor era tão intensa que se tornava algo uniforme, onipresente. Quando diminuía, era possível aos condenados perceber que umas partes do corpo doíam mais e outras menos. Essa diferença trazia um requinte de sofrimento a mais: havia sempre um ponto onde a dor podia aumentar de novo.

No trajeto entre um castigo e outro os condenados eram chicoteados e arrastados ao longo de um chão coberto de navalhas.  O mais suportável dos tormentos era o Fundo do Poço, um buraco cheio de excrementos e de criaturas repugnantes, onde era preciso comer e beber, ao mesmo tempo em que coisas como enormes moluscos devoravam os condenados e depois os regurgitavam de volta.

Depois do que lhe pareceu uma eternidade de peregrinação de suplício em suplício, Nicodemos foi arrastado pelos tornozelos ao longo de alguns quilômetros numa rampa ascendente. No fim do trajeto os demônios o puseram de pé, enquanto destrancavam aos poucos um cofre de metal escuro, com inscrições em letras estranhas, do tamanho de uma cabine de elevador.

“E agora, vai ser o quê?” – balbuciou Nicodemos, por entre os lábios partidos e os dentes arrancados. “Para cada ano passado no Inferno, tens direito a um minuto no Paraíso,” informou um dos demônios, que era uma espécie de lagarto sem cauda com dois metros de altura. “Tenho direito ao Paraíso?”, espantou-se Nicodemos. O monstro explicou, enquanto manipulava engrenagens e alavancas: “Sem isto, qualquer alma morre. Este minuto a revigora, e a devolve como nova, para que voltemos a trabalhar com ela.  Essa trégua permite que tenhamos vocês a nossa disposição por toda a eternidade.”

Nicodemos entrou no cofre de ferro, a porta se fechou. Passou-se um minuto e ela voltou a se abrir para que ele saísse.  Não se sabe o que viu ou sentiu, porque o Inferno pode ser reconstituído por palavras humanas, mas o Paraíso não. Nicodemos retornou ao braseiro para mais um ano de tormentos, e estava estranhamente consolado, porque aquele minuto tinha valido a pena.


domingo, 6 de outubro de 2013

3310) A revista "Planeta" (6.10.2013)




Num debate recente no VII Fantasticon, em São Paulo, juntamente com Manuel da Costa Pinto, o escritor Ignácio de Loyola Brandão recordou os anos em que foi editor da revista Planeta, a grande divulgadora do realismo fantástico no mundo ocidental. Como lembro Loyola, a edição original francesa (Planète), surgiu em consequência do enorme sucesso do livro O Despertar dos Mágicos de Pauwels & Bergier (1960), livro que abordava temas obscuros como alquimia, holística, ocultismo, cabala, etc.  No ano seguinte os autores criaram a Planète, que em seu pico de vendagem chegou a mais de 100 mil exemplares.

Loyola comentou que, na época, era editor da revista Cláudia, onde publicava textos sobre moda, decoração, beleza, etc. Quando lhe ofereceram pilotar a edição brasileira da Planète, mesmo ganhando menos, não hesitou. Segundo ele, o número 1 da revista (que era mensal) teve tiragem de 20 mil; o 2, de 30 mil; o 3, de 40 mil.  Com poucos meses a revista atingiu e manteve um pico de vendagem de 120 mil cópias por mês, comparável à da edição francesa. Diz Loyola que houve um fato curioso: quando a Planeta pôs Chico Xavier na capa, no número seguinte a vendagem caiu para 70 mil, e foi preciso um longo tempo para voltar ao patamar anterior. Sinal de que? Segundo ele, um certo preconceito contra o espiritismo, na época. (E eu digo: se fosse hoje, com o recrudescimento da pregações religiosas, Chico Xavier faria aumentar a circulação da revista – que aliás ainda existe, só que noutro formato, e com uma orientação místico-religiosa totalmente diferente).

Loyola disse que ficou na Planeta de 1971 a 1979, e que considera este período crucial para que assuntos como OVNIs, sociedades secretas e mistérios arqueológicos começassem a ter um tratamento sério por parte da imprensa. Por outro lado, a Planeta publicava autores como Lovecraft, Borges, Sheckley e outros ligados ao fantástico e à FC. Umberto Eco, que fazia críticas à revista (“A mística de Planeta”, em Viagem na Irrealidade Cotidiana, 1984) , concede que a Planète foi “o primeiro caso de uma revista de luxo que se torna um acontecimento de massa”.  No Brasil, a revista serviu como um aglutinador de ufólogos, ocultistas, forteanos, estudiosos da alquimia e da Cabala... e de leitores de ficção científica. A presença de contos de FC no meio de artigos sobre Gurdjieff ou a Atlântida trazia o gênero de volta ao universo da pulp fiction, onde em termos de imaginação vale tudo. A Planeta formou minha geração, e ajudou a dar-lhe uma abertura européia bem-vinda num contexto editorial totalmente dependente dos EUA.


sábado, 5 de outubro de 2013

3309) Escritores duplos (5.10.2013)




(Cortázar em Paris, 1969)



Ter duas pátrias é como ter duas namoradas: por mais que a gente faça por uma, ela sempre vai achar que a gente faz mais pela outra. 

Quando um escritor tem dupla nacionalidade (seja oficialmente, seja por circunstâncias de vida), tem a chance de entrar para a história das duas literaturas, mas também corre o risco de virar uma nota de rodapé em ambas, se cada uma achar que ele deu mais atenção ao seu outro país de escolha.

Estou me referindo a autores que viveram intensamente duas culturas, não aos exilados ou aculturados. 

Joseph Conrad largou a Polônia onde nasceu, tornou-se marinheiro, acabou sendo um escritor inglês na Inglaterra; não creio que alguém possa considerá-lo um autor polonês, pois me parece que produziu pouco ou quase nada em seu idioma natal. (Conrad é também um caso de autor que tornou-se mestre numa língua que não era a sua, como Nabokov.) 

Caso parecido é o de Isaac Asimov, que nasceu russo por acaso, e é o mais norte-americano autor que alguém pode imaginar. Nada há de russo nele – embora haja muito em Nabokov, muito de russo aristocrata, cosmopolita, que aceitou viver nos EUA por falta de coisa melhor no mundo.

Dupla nacionalidade mesmo é um caso como o de Henry James, T. S. Eliot, John Dickson Carr e outros que durante a vida inteira oscilaram entre serem norte-americanos e serem ingleses. Essa capacidade de ver pelo lado de dentro duas culturas “separadas por um idioma” forneceu grande parte da força da obra deles.  

No caso da literatura lusófona, tenho a impressão de que figuras tão diferentes quanto Gregório de Matos e o Pe. António Vieira deveram igualmente às duas margens do Atlântico.

Mas os exemplos dos parágrafos acima tratam de escritores trafegando em dois países e um só idioma. No caso de Júlio Cortázar, ele foi um argentino que se refugiou em Paris aos 37 anos e de lá não mais saiu – mas continuou escrevendo em espanhol até o fim da vida, fazendo exatamente o contrário do que fez Conrad. E não por falta de opção, pois seu francês era impecável e ele ganhava a vida como tradutor da Unesco. 

Houve uma certa insatisfação na Argentina quando ele recebeu algumas honrarias na sua pátria adotiva (cidadania francesa, p. ex.), mas isso provavelmente está ligado à política – Cortázar sempre foi de esquerda, e era criticado em seu país por apoiar os regimes de Cuba e Nicarágua. 

Sua condição binacional está lindamente expressa na raiz do conto “O outro céu” (em Todos os fogos o fogo, 1966), em que o protagonista se alterna entre Paris e Buenos Aires simplesmente entrando numa galeria que fica numa cidade e saindo, na extremidade oposta, noutra galeria que fica na outra.








3308) Krokodil (4.10.2013)




É uma nova droga, que se espalhou na Rússia e já apareceu em outros países. É injetável, causa um “barato” fortíssimo, mas os compostos químicos de que é formada corroem as veias por dentro. A carne apodrece de dentro para fora, e a certa altura incha e começa a se despregar dos ossos. A pele fica com aparência de couro de crocodilo, daí o nome.

O Krokodil é composto, segundo a imprensa, de codeína, gasolina, solvente de tinta, óleo e álcool. Tudo isto pode ser legalmente comprado (e misturado) por qualquer pessoa. Para aumentar o efeito, quando a dose é pequena, os viciados tomam vidros inteiros de uma espécie de colírio, Tropikamid, o qual ajuda a destruir o fígado, os rins, etc. Não admira que seja chamada uma “droga comedora de carne” (“flesh eating drug”).  As imagens de um documentário no You Tube (http://bit.ly/JTr5MZ) são fortes, mostram doentes em diferentes graus de decomposição física.

Quem usa essa droga? Na maioria jovens, desocupados, que nunca (ou pouco) estudaram ou trabalharam. Têm entre 14 e 20 anos, e morrem geralmente entre os 20 e 25. Vivem em prédios abandonados, em condomínios tomados pelo matagal e pelo lixo, sem móveis ou com móveis apodrecidos, o chão coberto de detritos, de seringas, de frascos quebrados, de jornais velhos. Sobrevivem saqueando os prédios em volta, roubando qualquer tipo de material (metais, principalmente) que possa ser negociado no mercado negro ou nas feiras de trocas.

Um rapaz diz que jamais tomaria Krokodil, preferiria tomar heroína, que “faz menos mal”. O Krokodil é 10 vezes mais forte e 3 vezes mais barato do que a heroína. A relação entre as duas drogas é mais ou menos a que existe entre cocaína e crack: de repente, no mercado consumidor de uma droga tradicional, surge algo que se assemelha a ela mas é incalculavelmente mais “sujo”, mais tosco e mais prejudicial do que ela – mas é também muito mais barato. O lixo da droga.


Um dos entrevistados neste documentário fala da possibilidade de ser uma estratégia de “narco-terrorismo”, uma tentativa (do Afeganistão e outros países oprimidos) de destruir a Rússia pelas beiras, espalhando o vício e o caos social. Pode ser visto também como um sinal do apodrecimento de um sistema, que começa pelas extremidades: as classes mais pobres, as regiões mais remotas, os bairros mais abandonados. Diz o filme que 20% da população dessa cidade de Novokuznetsk são viciados em drogas. Uma proporção que só tende a aumentar. O terço final do filme mostra sobreviventes que são pouco mais do que zumbis, que mal conseguem fitar o interlocutor e responder perguntas. É a droga mais terrível que se consome no mundo, até surgir a próxima.





3306) Unanimidade burra (2.10.2013)





Nelson Rodrigues é autor de frases brilhantes. Um dos maiores fazedores de frases da nossa língua, juntamente com Millôr Fernandes, Paulo Leminski, Guimarães Rosa, Glauco Mattoso, Otto Lara Resende... 

Não apenas a frase sentenciosa, que exprime um conceito redondo, impactante: “Nem toda mulher gosta de apanhar, somente as normais”. Mas a frase-incompleta, que precisa vir apensa a um texto maior, mas dá-lhe um colorido e significado inconfundíveis: “o olho rútilo e o lábio trêmulo” é uma imagem rodriguiana que serve para descrever o personagem tomado por uma emoção incontrolável, seja a luxúria, a raiva, a cobiça.

Uma das frases mais desperdiçadas pelos que o citam, no entanto é o famoso “toda unanimidade é burra”. 

Eu diria que toda frase que tem o formato “todo x é y” é burra, mas esse tiro-no-pé tautológico me força a equacionar a coisa de outra forma. 

Frases com o formato “todo x é y” não exprimem uma verdade científica (uma verdade exterior à mente que a enuncia, uma verdade verificável por terceiros), nem mesmo uma opinião definitiva do autor. 

Frases assim são explosões, desabafos, e não é por lhes faltar um ponto de exclamação que são menos exclamativas. Podem até não ser verdade, mas são algo que o autor pensou por impaciência num certo instante e resolveu explodir.

O problema com esse formato de frase é que esse é o modelo preferido de enunciado para a afirmação de preconceitos: todo baiano é preguiçoso, todo árabe é terrorista, todo russo joga bem xadrez... 

Nelson disse sua frase (quanto quer de aposta?) porque era um insatisfeito em seu estado normal e um revoltado em momentos mais intensos. Gostava de ser do contra, de desafinar o coro dos contentes. Se dez pessoas juntas tivessem a mesma opinião ele via nisso um sinal de preguiça mental, de passividade, de obediência cega, de mentalidade admirável-gado-novo.

O problema, hoje, é que quando um livro faz sucesso e começa a ser elogiado logo aparece alguém proclamando: “Esse filme não pode prestar, porque toda unanimidade é burra”. Se todo mundo em volta concorda quanto a um fato recente no País, surge alguém para dizer que essa interpretação é burra, valendo-se de Nelson. 

Nelson era um ressentido cósmico, um existencialmente inadaptado, um Seu Lunga sem paciência para com a estupidez e a mesquinharia humanas. Na ditadura, ele, um conservador, via-se ilhado em redações aguerridamente esquerdistas e oposicionistas. Individualista até o tutano, não queria nenhum grupinho dizendo-lhe o que pensar. 

Discordo muitas vezes de suas idéias, mas hoje, quando ele começa a virar unanimidade nacional, é preciso a todo custo defendê-lo da burrice alheia.


terça-feira, 1 de outubro de 2013

3307) Os biocibs (2.10.2013)




Recentemente, no VII Fantasticon (São Paulo), participei juntamente com o escritor Luiz Braz de um debate sob o tema “Nós, Ciborgues – Nosso Futuro Pós-Humano”. 

Luiz, que tem escrito nos últimos anos uma ficção científica complexa e elaborada (incluí um conto dele em minha antologia Páginas do Futuro, pela Casa da Palavra) lembrou que estamos nos aproximando de uma época em que os órgãos humanos começam a ser não somente substituídos por próteses cibernéticas, mas substituídos com expansões inesperadas. 

E citou o exemplo de um inglês que, tendo um defeito na vista que o leva a ver tudo em preto e branco, fez implantar sensores especiais que transformam em sons as impressões cromáticas, o que lhe possibilita, literalmente, “ouvir as cores” do ambiente à sua volta. E perguntou: não será que a ciência desta vez está muito mais adiantada do que a ficção científica?

Os ciborgs já são até meio antigos na FC. A pesquisadora Lúcia Santaella prefere o adjetivo “bio-cibernético” aplicado a esses corpos, e esse termo me evoca de imediato o romance A Era dos Biocibs, de Jimmy Guieu (1960), onde o termo já aparecia. De um modo geral, ciborgues ou seres biocibernéticos são seres humanos aumentados, com diferentes funções. 

Em Limbo (1952) de Bernard Wolfe, braços e pernas com sistemas hidráulicos substituem os membros orgânicos voluntariamente amputados. 

Em Neuromancer (1984) de William Gibson o cérebro dos personagens é plugado numa rede de computadores. 

Em “Scanners live in vain” (1950) de Cordwainer Smith, humanos são capazes de controlar e monitorar funções e sensações corporais.

A FC pode imaginar expansões cibernéticas em qualquer direção. 

Pessoas com implantes de antenas-bigodes-de-gato, sensíveis aos movimentos alheios e à deslocação do ar, mesmo no escuro. 

Mucosas nasais hipersensíveis (humanos com olfato de cães). 

Tatuagens medicinais (tintas com substâncias curativas ou alucinógenas). 

Chips-GPS implantados em dançarinos para perfeita coordenação de balés. 

Microfones direcionais acoplados aos ouvidos, ampliando o som do local para onde o portador está olhando. 

Combinações de plugs-e-tomadas neurais, mútuas, para ampliar as sensações durante o sexo. 

Miniamps auriculares para músicos de palco, com vários canais. 

Telas digitais luminosas subcutâneas na palma da mão. 

Cyberportas no crânio para plugs que têm na outra ponta pele sintética e cabelos. 

Sistemas internos de controle e de revigoração, ativados por combinações de gestos tipo ginástica. 

Adesivos químicos na pele para não dormir, para não cansar, para dormir, para descansar. 

As possibilidades, como sempre, são infinitas.








3305) Bloqueio de escritor (1.10.2013)




O ofício literário é cheio de mitos bons e maus. Um dos piores é o “bloqueio do escritor” (“writer’s block”), o popular “branco”, que acontece quando o sujeito se vê meio que congelado, a mente imobilizada, incapaz de produzir uma única idéia, uma única frase. Eu sei o que é ficar empacado num conto ou num romance – aliás, tenho mais contos empacados do que contos publicados. Chega um ponto em que a gente não enxerga o que vai acontecer em seguida, ou enxerga mas não consegue encontrar o tom de voz adequado para dizê-lo. A gente para e vai fazer outra coisa, à espera de que o problema esteja resolvido na próxima vez em que a gente tentar. Às vezes se resolve sozinho. Geralmente, não.

O escritor Steven Brust, interrogado sobre o que faz quando lhe “dá o branco”, respondeu: “Externamente, ando pela casa pisando forte, dando olhares ameaçadores para todos, e ameaçando matar o cachorro, até que finalmente consigo desenganchar, e então tudo melhora, eu percebo o quanto estou me divertindo em escrever aquilo, peço desculpas a todo mundo que possa ter ofendido, e ameaço matar o cachorro. Por dentro, eu fico checando todos os conselhos que dou aos meus alunos sobre como visualizar a próxima cena (o que às vezes funciona). E digo para mim mesmo o tempo todo: você já passou por isso, é parte do processo, fica frio, vai dar certo. Releio o que escrevi até aquela altura. Examino listas de desdobramentos possíveis. Ou então ignoro o livro por completo e tento pensar em outras coisas. Escrevo críticas imaginárias na minha mente, culminando com o trecho em que o crítico imaginário diz: ‘Mas o melhor momento do livro é quando...’, e tento concluir a sentença descrevendo o trecho do livro que não estou conseguindo escrever. Cedo ou tarde, alguma combinação desses procedimentos funciona, e a vida volta a ser uma coisa boa. Exceto pelo cachorro. Continuo ameaçando livrar-me dele.”

O “branco” é uma combinação de indecisão intelectual e pavor emocional. Tem suas raízes no mesmo desvão psicológico onde se situa a “brochada”, a impotência sexual num indivíduo fisicamente capaz de executar o que pretende. É um pavor cumulativo, que tende a aumentar quando a vítima pensa: “não, não é possível, está acontecendo de novo, vai acontecer pelo resto da minha vida!”. Alguns escritores tiveram “brancos” que duraram anos ou décadas. Dashiell Hammett não escreveu mais nada entre 1934 (ano de seu último livro, The Thin Man) e sua morte em 1961. Alguns autores se retiram da literatura alegando insatisfação ou outro motivo. Quem nos garante que não são vítimas do “branco”, mas são orgulhosos demais para admitir?


domingo, 29 de setembro de 2013

3304) Ozymandias (29.9.2013)




A reta final do seriado Breaking Bad (cujo último episódio será exibido hoje à noite) foi uma porrada atrás da outra. Estes últimos capítulos têm trazido um bombardeio. Mortes cruéis de gente inocente. Atos de coragem espantosa e de covardia repugnante. Momentos dolorosos de revolta de quem percebeu ter sido enganado a vida inteira por alguém em quem confiava...

A série (para quem não sabe) conta a transformação do tímido professor de química Walter White num fabricante e traficante de metanfetamina, passando por cima de tudo e de todos, praticando assassinatos, tortura, chacinas, o escambau. Ao saber que tem câncer, ele decide enriquecer para garantir o futuro da família. Numa narrativa quase do tipo “o médico e o monstro” (com grande atuação de Bryan Cranston no papel), ele tem momentos em que é o marido leal e o pai carinhoso que foi em outros tempos, e segundos depois se transforma no cruel e implacável “Heisenberg”, o pseudônimo que adotou no mundo do crime.

Esse nome remete ao princípio célebre da Física, o “Princípio da Incerteza” formulado por Werner Heisenberg. Pode ter sido adotado por mero despiste (Walter pode ter pensado em usar como pseudônimo o nome de um químico, pode ter achado que era bandeiroso demais, e em vez disso escolheu um físico que todo mundo conhece). Mas pode ter um significado simbólico. O Princípio de Heisenberg diz que não podemos calcular ao mesmo tempo a posição e a velocidade de uma partícula sub-atômica. Ora, se determinamos sua posição, não podemos saber com que velocidade estava se movendo: é como a foto de um carro ou de um avião. Se calculamos sua velocidade, isso implica em considerar seu movimento ao longo de um certo trecho de espaço, e assim não podemos apontar uma única posição, pois há uma sucessão delas.

A certa altura, Heisenberg diz: “ Meu negócio não é a droga, nem o dinheiro. Meu negócio é o império”. Outros nome famoso associado à série é “Ozymandias”, título do antepenúltimo episódio. Ele se refere ao poema de Percy B. Shelley sobre a estátua de um rei antigo, tombada no chão do deserto. É no deserto de Albuquerque, Novo México (onde transcorre a ação) que Walter começa a fabricação de sua droga (num furgão), é lá que enterra seu dinheiro, que despacha seus inimigos. Ali, duas elevações rochosas se erguem como os pés da estátua do rei descrito por Shelley. De todo o poder, resta somente o pó. De todo o ouro e de todos os santuários, resta somente o chão. Da família, em nome de quem tudo aquilo aconteceu, e que Walter White afirma proteger acima de tudo, ninguém sabe o que restará quando o último tiro for disparado.