sábado, 5 de outubro de 2013

3308) Krokodil (4.10.2013)




É uma nova droga, que se espalhou na Rússia e já apareceu em outros países. É injetável, causa um “barato” fortíssimo, mas os compostos químicos de que é formada corroem as veias por dentro. A carne apodrece de dentro para fora, e a certa altura incha e começa a se despregar dos ossos. A pele fica com aparência de couro de crocodilo, daí o nome.

O Krokodil é composto, segundo a imprensa, de codeína, gasolina, solvente de tinta, óleo e álcool. Tudo isto pode ser legalmente comprado (e misturado) por qualquer pessoa. Para aumentar o efeito, quando a dose é pequena, os viciados tomam vidros inteiros de uma espécie de colírio, Tropikamid, o qual ajuda a destruir o fígado, os rins, etc. Não admira que seja chamada uma “droga comedora de carne” (“flesh eating drug”).  As imagens de um documentário no You Tube (http://bit.ly/JTr5MZ) são fortes, mostram doentes em diferentes graus de decomposição física.

Quem usa essa droga? Na maioria jovens, desocupados, que nunca (ou pouco) estudaram ou trabalharam. Têm entre 14 e 20 anos, e morrem geralmente entre os 20 e 25. Vivem em prédios abandonados, em condomínios tomados pelo matagal e pelo lixo, sem móveis ou com móveis apodrecidos, o chão coberto de detritos, de seringas, de frascos quebrados, de jornais velhos. Sobrevivem saqueando os prédios em volta, roubando qualquer tipo de material (metais, principalmente) que possa ser negociado no mercado negro ou nas feiras de trocas.

Um rapaz diz que jamais tomaria Krokodil, preferiria tomar heroína, que “faz menos mal”. O Krokodil é 10 vezes mais forte e 3 vezes mais barato do que a heroína. A relação entre as duas drogas é mais ou menos a que existe entre cocaína e crack: de repente, no mercado consumidor de uma droga tradicional, surge algo que se assemelha a ela mas é incalculavelmente mais “sujo”, mais tosco e mais prejudicial do que ela – mas é também muito mais barato. O lixo da droga.


Um dos entrevistados neste documentário fala da possibilidade de ser uma estratégia de “narco-terrorismo”, uma tentativa (do Afeganistão e outros países oprimidos) de destruir a Rússia pelas beiras, espalhando o vício e o caos social. Pode ser visto também como um sinal do apodrecimento de um sistema, que começa pelas extremidades: as classes mais pobres, as regiões mais remotas, os bairros mais abandonados. Diz o filme que 20% da população dessa cidade de Novokuznetsk são viciados em drogas. Uma proporção que só tende a aumentar. O terço final do filme mostra sobreviventes que são pouco mais do que zumbis, que mal conseguem fitar o interlocutor e responder perguntas. É a droga mais terrível que se consome no mundo, até surgir a próxima.





3306) Unanimidade burra (2.10.2013)





Nelson Rodrigues é autor de frases brilhantes. Um dos maiores fazedores de frases da nossa língua, juntamente com Millôr Fernandes, Paulo Leminski, Guimarães Rosa, Glauco Mattoso, Otto Lara Resende... 

Não apenas a frase sentenciosa, que exprime um conceito redondo, impactante: “Nem toda mulher gosta de apanhar, somente as normais”. Mas a frase-incompleta, que precisa vir apensa a um texto maior, mas dá-lhe um colorido e significado inconfundíveis: “o olho rútilo e o lábio trêmulo” é uma imagem rodriguiana que serve para descrever o personagem tomado por uma emoção incontrolável, seja a luxúria, a raiva, a cobiça.

Uma das frases mais desperdiçadas pelos que o citam, no entanto é o famoso “toda unanimidade é burra”. 

Eu diria que toda frase que tem o formato “todo x é y” é burra, mas esse tiro-no-pé tautológico me força a equacionar a coisa de outra forma. 

Frases com o formato “todo x é y” não exprimem uma verdade científica (uma verdade exterior à mente que a enuncia, uma verdade verificável por terceiros), nem mesmo uma opinião definitiva do autor. 

Frases assim são explosões, desabafos, e não é por lhes faltar um ponto de exclamação que são menos exclamativas. Podem até não ser verdade, mas são algo que o autor pensou por impaciência num certo instante e resolveu explodir.

O problema com esse formato de frase é que esse é o modelo preferido de enunciado para a afirmação de preconceitos: todo baiano é preguiçoso, todo árabe é terrorista, todo russo joga bem xadrez... 

Nelson disse sua frase (quanto quer de aposta?) porque era um insatisfeito em seu estado normal e um revoltado em momentos mais intensos. Gostava de ser do contra, de desafinar o coro dos contentes. Se dez pessoas juntas tivessem a mesma opinião ele via nisso um sinal de preguiça mental, de passividade, de obediência cega, de mentalidade admirável-gado-novo.

O problema, hoje, é que quando um livro faz sucesso e começa a ser elogiado logo aparece alguém proclamando: “Esse filme não pode prestar, porque toda unanimidade é burra”. Se todo mundo em volta concorda quanto a um fato recente no País, surge alguém para dizer que essa interpretação é burra, valendo-se de Nelson. 

Nelson era um ressentido cósmico, um existencialmente inadaptado, um Seu Lunga sem paciência para com a estupidez e a mesquinharia humanas. Na ditadura, ele, um conservador, via-se ilhado em redações aguerridamente esquerdistas e oposicionistas. Individualista até o tutano, não queria nenhum grupinho dizendo-lhe o que pensar. 

Discordo muitas vezes de suas idéias, mas hoje, quando ele começa a virar unanimidade nacional, é preciso a todo custo defendê-lo da burrice alheia.


terça-feira, 1 de outubro de 2013

3307) Os biocibs (2.10.2013)




Recentemente, no VII Fantasticon (São Paulo), participei juntamente com o escritor Luiz Braz de um debate sob o tema “Nós, Ciborgues – Nosso Futuro Pós-Humano”. 

Luiz, que tem escrito nos últimos anos uma ficção científica complexa e elaborada (incluí um conto dele em minha antologia Páginas do Futuro, pela Casa da Palavra) lembrou que estamos nos aproximando de uma época em que os órgãos humanos começam a ser não somente substituídos por próteses cibernéticas, mas substituídos com expansões inesperadas. 

E citou o exemplo de um inglês que, tendo um defeito na vista que o leva a ver tudo em preto e branco, fez implantar sensores especiais que transformam em sons as impressões cromáticas, o que lhe possibilita, literalmente, “ouvir as cores” do ambiente à sua volta. E perguntou: não será que a ciência desta vez está muito mais adiantada do que a ficção científica?

Os ciborgs já são até meio antigos na FC. A pesquisadora Lúcia Santaella prefere o adjetivo “bio-cibernético” aplicado a esses corpos, e esse termo me evoca de imediato o romance A Era dos Biocibs, de Jimmy Guieu (1960), onde o termo já aparecia. De um modo geral, ciborgues ou seres biocibernéticos são seres humanos aumentados, com diferentes funções. 

Em Limbo (1952) de Bernard Wolfe, braços e pernas com sistemas hidráulicos substituem os membros orgânicos voluntariamente amputados. 

Em Neuromancer (1984) de William Gibson o cérebro dos personagens é plugado numa rede de computadores. 

Em “Scanners live in vain” (1950) de Cordwainer Smith, humanos são capazes de controlar e monitorar funções e sensações corporais.

A FC pode imaginar expansões cibernéticas em qualquer direção. 

Pessoas com implantes de antenas-bigodes-de-gato, sensíveis aos movimentos alheios e à deslocação do ar, mesmo no escuro. 

Mucosas nasais hipersensíveis (humanos com olfato de cães). 

Tatuagens medicinais (tintas com substâncias curativas ou alucinógenas). 

Chips-GPS implantados em dançarinos para perfeita coordenação de balés. 

Microfones direcionais acoplados aos ouvidos, ampliando o som do local para onde o portador está olhando. 

Combinações de plugs-e-tomadas neurais, mútuas, para ampliar as sensações durante o sexo. 

Miniamps auriculares para músicos de palco, com vários canais. 

Telas digitais luminosas subcutâneas na palma da mão. 

Cyberportas no crânio para plugs que têm na outra ponta pele sintética e cabelos. 

Sistemas internos de controle e de revigoração, ativados por combinações de gestos tipo ginástica. 

Adesivos químicos na pele para não dormir, para não cansar, para dormir, para descansar. 

As possibilidades, como sempre, são infinitas.








3305) Bloqueio de escritor (1.10.2013)




O ofício literário é cheio de mitos bons e maus. Um dos piores é o “bloqueio do escritor” (“writer’s block”), o popular “branco”, que acontece quando o sujeito se vê meio que congelado, a mente imobilizada, incapaz de produzir uma única idéia, uma única frase. Eu sei o que é ficar empacado num conto ou num romance – aliás, tenho mais contos empacados do que contos publicados. Chega um ponto em que a gente não enxerga o que vai acontecer em seguida, ou enxerga mas não consegue encontrar o tom de voz adequado para dizê-lo. A gente para e vai fazer outra coisa, à espera de que o problema esteja resolvido na próxima vez em que a gente tentar. Às vezes se resolve sozinho. Geralmente, não.

O escritor Steven Brust, interrogado sobre o que faz quando lhe “dá o branco”, respondeu: “Externamente, ando pela casa pisando forte, dando olhares ameaçadores para todos, e ameaçando matar o cachorro, até que finalmente consigo desenganchar, e então tudo melhora, eu percebo o quanto estou me divertindo em escrever aquilo, peço desculpas a todo mundo que possa ter ofendido, e ameaço matar o cachorro. Por dentro, eu fico checando todos os conselhos que dou aos meus alunos sobre como visualizar a próxima cena (o que às vezes funciona). E digo para mim mesmo o tempo todo: você já passou por isso, é parte do processo, fica frio, vai dar certo. Releio o que escrevi até aquela altura. Examino listas de desdobramentos possíveis. Ou então ignoro o livro por completo e tento pensar em outras coisas. Escrevo críticas imaginárias na minha mente, culminando com o trecho em que o crítico imaginário diz: ‘Mas o melhor momento do livro é quando...’, e tento concluir a sentença descrevendo o trecho do livro que não estou conseguindo escrever. Cedo ou tarde, alguma combinação desses procedimentos funciona, e a vida volta a ser uma coisa boa. Exceto pelo cachorro. Continuo ameaçando livrar-me dele.”

O “branco” é uma combinação de indecisão intelectual e pavor emocional. Tem suas raízes no mesmo desvão psicológico onde se situa a “brochada”, a impotência sexual num indivíduo fisicamente capaz de executar o que pretende. É um pavor cumulativo, que tende a aumentar quando a vítima pensa: “não, não é possível, está acontecendo de novo, vai acontecer pelo resto da minha vida!”. Alguns escritores tiveram “brancos” que duraram anos ou décadas. Dashiell Hammett não escreveu mais nada entre 1934 (ano de seu último livro, The Thin Man) e sua morte em 1961. Alguns autores se retiram da literatura alegando insatisfação ou outro motivo. Quem nos garante que não são vítimas do “branco”, mas são orgulhosos demais para admitir?


domingo, 29 de setembro de 2013

3304) Ozymandias (29.9.2013)




A reta final do seriado Breaking Bad (cujo último episódio será exibido hoje à noite) foi uma porrada atrás da outra. Estes últimos capítulos têm trazido um bombardeio. Mortes cruéis de gente inocente. Atos de coragem espantosa e de covardia repugnante. Momentos dolorosos de revolta de quem percebeu ter sido enganado a vida inteira por alguém em quem confiava...

A série (para quem não sabe) conta a transformação do tímido professor de química Walter White num fabricante e traficante de metanfetamina, passando por cima de tudo e de todos, praticando assassinatos, tortura, chacinas, o escambau. Ao saber que tem câncer, ele decide enriquecer para garantir o futuro da família. Numa narrativa quase do tipo “o médico e o monstro” (com grande atuação de Bryan Cranston no papel), ele tem momentos em que é o marido leal e o pai carinhoso que foi em outros tempos, e segundos depois se transforma no cruel e implacável “Heisenberg”, o pseudônimo que adotou no mundo do crime.

Esse nome remete ao princípio célebre da Física, o “Princípio da Incerteza” formulado por Werner Heisenberg. Pode ter sido adotado por mero despiste (Walter pode ter pensado em usar como pseudônimo o nome de um químico, pode ter achado que era bandeiroso demais, e em vez disso escolheu um físico que todo mundo conhece). Mas pode ter um significado simbólico. O Princípio de Heisenberg diz que não podemos calcular ao mesmo tempo a posição e a velocidade de uma partícula sub-atômica. Ora, se determinamos sua posição, não podemos saber com que velocidade estava se movendo: é como a foto de um carro ou de um avião. Se calculamos sua velocidade, isso implica em considerar seu movimento ao longo de um certo trecho de espaço, e assim não podemos apontar uma única posição, pois há uma sucessão delas.

A certa altura, Heisenberg diz: “ Meu negócio não é a droga, nem o dinheiro. Meu negócio é o império”. Outros nome famoso associado à série é “Ozymandias”, título do antepenúltimo episódio. Ele se refere ao poema de Percy B. Shelley sobre a estátua de um rei antigo, tombada no chão do deserto. É no deserto de Albuquerque, Novo México (onde transcorre a ação) que Walter começa a fabricação de sua droga (num furgão), é lá que enterra seu dinheiro, que despacha seus inimigos. Ali, duas elevações rochosas se erguem como os pés da estátua do rei descrito por Shelley. De todo o poder, resta somente o pó. De todo o ouro e de todos os santuários, resta somente o chão. Da família, em nome de quem tudo aquilo aconteceu, e que Walter White afirma proteger acima de tudo, ninguém sabe o que restará quando o último tiro for disparado.


sábado, 28 de setembro de 2013

3303) "The Act of Killing" (28.9.2013)




Por volta de 2005, o cineasta Joshua Oppenheimer viajou para a Indonésia pensando em documentar os crimes de guerra cometidos pelo regime que, em 1965, tomou o poder e promoveu um verdadeiro genocídio em seus inimigos políticos, principalmente comunistas e chineses. A certa altura, começou a entrevistar os carrascos propriamente ditos e se espantou ao ver como eles não apenas não negavam os massacres cometidos, mas se orgulhavam deles (“mostram que somos ferozes, e isso amedronta nossos inimigos”) e faziam questão de contá-los em detalhe.

Oppenheimer chamou o principal deles, Anwar Congo, um negro de seus 70 anos, e lhe pediu que co-dirigisse o filme, recriando as cenas das execuções. O que se segue é uma experiência–limite de cinema documentário. Anwar convoca ex-colegas e amigos para fazer o papel de torturadores e de torturados; mostra como matou mais de mil pessoas estrangulando-as com arame (“porque o sangue sujava nossas calças”); e produz, para deleite próprio e louvor de sua pessoa, números musicais de uma natureza espantosamente “kitsch”, uma mistura entre o cinema “naïf” e os espetáculos indianos de Bollywood.

O filme The Act of Killing (lançado em 2012) nos propõe uma situação quase surreal, porque o diretor adquire a confiança do entrevistado e o leva a pagar um mico de proporções globais, bem como confessar crimes que poderiam levá-lo ao Tribunal de Haia. Mas Anwar vê o filme na versão pronta, mostra-a aos amigos e à família, e diz estar orgulhoso do que fez. Outro torturador diz para a câmara que não tem medo das cortes internacionais: “Quem define o que é crime de guerra são os vencedores, e nós vencemos”. Eles se orgulham da impunidade, num regime baseado na corrupção, na intimidação em troca de dinheiro, e na existência de milícias violentas que têm Anwar Congo como um dos seus ídolos.

Neste link (http://bit.ly/15S0RqH), o co-produtor Werner Herzog diz que o filme é uma das mais radicais experiências em documentário que ele já assistiu; e esta matéria (http://bit.ly/13pW54k) no Guardian também traz pequenos trechos do filme, que aliás será lançado no Brasil em breve, no Festival de Cinema do Rio. The Act of Killing não é apenas a denúncia da violência, mas mostra a maneira como a “sensação de estar trabalhando num filme” transpõe certos entrevistados para um estado alterado de consciência em que ele passa a representar-a-si-mesmo para a câmera, com resultados imprevisíveis. Todo curso ou oficina de documentário deveria discutir este filme em sala de aula. Além de ser um mergulho na violência humana, é outro mergulho na nossa sede do simbólico e da representação.


sexta-feira, 27 de setembro de 2013

3302) VII Fantasticon (27.9.2013)




(Prêmio Argos)


No fim de semana passado fui a São Paulo para o VII Fantasticon, o evento anual de literatura fantástica organizado por Sílvio Alexandre na Biblioteca Viriato Corrêa (em Vila Mariana), a biblioteca municipal dedicada ao gênero. Participei de dois debates: sobre Julio Cortázar, na companhia de Marcelino Freire, e sobre cyborgs, junto com Luiz Bras. Recebi o Prêmio Argos, concedido pelo CLFC (Clube de Leitores de Ficção Científica), pelo “Conjunto da Obra”. Agradeci ao clube, sem o qual não teria jamais me animado a escrever e publicar contos do gênero. E dediquei o prêmio a dois dos meus primeiros editores na FC: Sérgio Fonseca de Castro (que me publicou na antologia Verde... Verde..., 1988) e Roberto Nascimento, que publicou no fanzine Somnium os primeiros contos que iriam constituir meu livro A Espinha Dorsal da Memória, de 1989.

O mais interessante para mim, este ano, foi ver que o evento está ampliando as áreas de contato entre os três gêneros que geralmente aparecem juntos nos critérios de classificação dos países de língua inglesa (FC, fantasia e horror) e o fantástico considerado do ponto de vista da literatura “mainstream”. Eu já fiz palestras no Fantasticon sobre o fantástico em Guimarães Rosa e em Ariano Suassuna, e sobre a FC de William Burroughs; este ano, vi (entre outras mesas) Ignácio de Loyola Brandão e Manuel da Costa Pinto comentando o realismo fantástico da revista Planeta, e Jorge Schwarz e Andréa del Fuego discutindo a obra de Murilo Rubião.

Acho que este é um estímulo importante para contrabalançar as pesadas doses de literatura-de-gênero em língua inglesa que são a principal leitura do fã e pretendente a escritor do gênero no Brasil. Vejo jovens que leem centenas de contos de FC/fantasia/horror em inglês e não têm idéia de que são Guy de Maupassant, José J. Veiga, Hoffmann, Borges, Ítalo Calvino, Stanislaw Lem, Garcia Márquez, e tantos outros. Correm o risco de, mais do que leitores de um gênero, tornarem-se leitores de meia dúzia de fórmulas. E quando começam a escrever, reproduzem essas fórmulas, que já eram velhas quando eles nasceram, e onde é preciso ser muito sagaz e experiente para inventar uma variante realmente nova.

O Fantasticon é uma tribuna em que autores, críticos e editores se encontram para conversar. Senti falta, este ano, da tradicional “Mesa dos Editores”, em que eles avaliam o mercado e falam dos seus projetos. Mas a discussão propriamente literária é sempre de alto nível, sem pedantismo, sem jargão. Autores e leitores conversam sobre a experiência profunda de ler e de escrever ficção fantástica, e isto é o mais importante.


quinta-feira, 26 de setembro de 2013

3301) O velho matador (26.9.2013)




Foi num churrasco na casa do marido da minha sobrinha que eles se chegaram a mim. Vi logo que eram estrangeiros, pela roupa, depois pelo modo como se fechavam num canto, falando baixo, e logo depois iam em diferentes direções, abordando diferentes pessoas. Chegaram até mim, e eu sou um homem que todo mundo chama o Rei da Simpatia. Apertei suas mãos, aprendi seus nomes, ofereci bebidas e assentos, desejei que se divertissem; e me afastei. Era a festa dos meus 75 anos, eu não podia parar num só lugar a noite inteira.

Marcamos reunião para o dia seguinte, e eles voltaram. Queriam fazer um documentário para passar lá na Europa, sobre minha atividade nas milícias. Eu disse a eles que foram as milícias que livraram nossa pátria do comunismo, da corrupção e do voto. Desdobrei exemplos. Eles perguntaram se eu repetiria tudo para eles, com as câmeras, e eu disse que sim, que claro. Falei do meu orgulho em ter executado com minhas mãos mais de mil criminosos políticos que tinham tentado aplicar idéias estrangeiras sobre o nosso povo. Expliquei a eles que todo mês alguém da TV estatal mandava me convidar para um programa para que eu explicasse isto aos jovens.

Trouxeram as máquinas de filmar, viajaram comigo cruzando o país, ficamos companheiros. Eles eram muito concentrados no que faziam, mas sorriam nos intervalos. Só pareceram meio chocados quando re-encenei algumas cenas de interrogatório ou de execução, quando supervisionei a reconstituição de aparelhos especiais, quando mostrei alguns dos souvenirs que preservara.

Fomos a todos os lugares de despejo: à Lagoa dos Patos, ao Brejo da Capelinha, ao Paul Turfoso. Fiz um histórico de todas as execuções heróicas que tinham ocorrido em cada local, e em cada gravação senti, enquanto mostrava tudo com gestos largos e explicava com voz sadia, uma estranha comoção se apossar de mim, como se todas as almas dos corpos que eu executara naqueles locais estivessem ali, à minha volta, esperando somente uma palavra minha para poderem ficar livres para sempre.

Despedimo-nos entre malas e abraços. Voltei às minhas atividades, ao meu gamão, à minha piscina, aos meus churrascos. Então veio a fama, a invasão da imprensa. Atribuíam-me frases que eu talvez tivesse dito, sim, mas talvez não. Fui notícia e fui especial de horário nobre por toda parte. Meus netos, trêmulos de indignação, me mostravam nos iPhones as capas de revistas estrangeiras onde eu era chamado de carrasco e de assassino. Mas da minha varanda, do alto dos meus cabelos brancos, eu olho a cidade, em todas as direções, como que esperando que um inimigo qualquer se erga. Nenhum se ergueu. Nenhum se erguerá.


quarta-feira, 25 de setembro de 2013

3300) Narrativa e games (25.9.2013)






Às vezes, num videogame, exige-se do herói uma série de aventuras, como ocorre com os “doze trabalhos de Hércules”. Tais aventuras não têm necessariamente que se dar nesta ou naquela ordem, a menos que nos convenha. São pedaços de história separados do restante do fluxo de tempo. Se é de Hércules que estamos falando, pode ser que quando o herói limpa as estrebarias do Rei Augias ainda não tenha cortado as cabeças da Hidra de Lerna, ou pode ser que sim. No jogo, como no mito, esses episódios têm autonomia – como um quadro que, dentro de um museu, conta somente sua própria história. Eles pertencem à história principal (das servidões impostas a Hércules) mas cada um deles conta sua história única e irredutível às outras. Isso pode contar a favor de quem escreve uma variante qualquer desse mito.

Na maioria dos jogos é possível estabelecer parâmetros, numa escala de mais e menos, para aspectos como “ação”, “violência”, “enigma”, “habilidade”, etc.  As principais recompensas de um videogame são de ordem emocional, embora as emoções sejam manipuladas o tempo inteiro, e intelectuais. Um game não nos satisfaz fisicamente, porque envolve menos do nosso corpo. Uma atividade física real, que exige todos os nossos recursos, produz uma adrenalina maior do que a do game mais alucinado. Mas as recompensas maiores do game são intelectuais, porque quando resolvemos um enigma isso é uma vitória completa e verdadeira do intelecto, mas quando derrubamos a socos meia dúzia de leões-de-chácara isso não significa nada em termos de nossa invulnerabilidade bélica. É uma vitória ilusória. Nada aconteceu ao nosso corpo, nada dependeu dele. No caso da vitória do intelecto, ele fez o que se esperava que fizesse. Os videogames, pelo menos por enquanto, dirigem-se ao nosso cérebro antediluviano ou reptiliano, em primeiro lugar, através de sua mecânica da atividade física insetóide, incessante. E depois à nossa mente estrategista, capaz de encontrar soluções, de perceber padrões de recorrência nos fenômenos e aproveitar-se disto.

Tudo que se refere ao corpo num videogame (natação, esgrima, dança, artes marciais, pilotagem, parcours, etc.) é ilusão, é mera transferência pseudo-sensorial, comercialmente acessível a qualquer um. É possível viver ali experiências (escalar o Everest, descer em corredeiras, boxear com cangurus) que seria imprudente tentar na vida real. Mas quando é necessário perceber uma pista através de um anagrama ou de uma citação disfarçada, esse pequeno triunfo intelectual de quem decifra corretamente é o mesmo que ocorreria num livro ou num filme. Um videogame não enche a cisterna do corpo, mas enche o dedal da mente.


segunda-feira, 23 de setembro de 2013

3299) O violão (24.9.2013)






Quem me contou essa foi Éder, um cara que trabalhou comigo quando eu morava na Bahia. Éder era um compositor veterano, também cantava de vez em quando, fez parte de algumas bandas, tinha gravado disco solo. Ele disse que certa vez estava em São Paulo numa espécie de festival de artes, meio chic, meio alternativo, numa galeria de arte. A galeria tinha um porão que eles transformaram numa adega com recitais de poesia e pocket shows.



Ele estava lá, na platéia, tinha ido ver a apresentação de uma banda de amigos dele, uma turma jovem. Depois do bis de encerramento, o pessoal chamou Éder ao palco, porque ele era uma espécie de padrinho da banda. Começou aquele “can-ta! can-ta!”  Ele disse que ficava muito honrado e que cantaria, se houvesse um violão, porque infelizmente, apesar de ser admirador de Jimi Hendrix, não tocava guitarra. Diz Éder que um violão rapidamente apareceu, era satisfatório, a banda se retirou deixando-o à vontade no palco para fazer um ou dois números. Ele ajustou a correia, calibrou os botões, deu uma checada na afinação, que estava OK. E começou.



Éder diz que o violão tinha uma tensão ideal de cordas, uma ótima sonoridade de bojo nos graves, e uns agudos cristalinos. E nas posições em pestana produzia uma sacudidela e um balanço que botaram todo mundo pra dançar. Pode-se checar isto nas postagens posteriores no YouTube ou nos blogs.  (Verdade seja dita, não existe música tão dançante que não haja alguém, em vez de dançar, filmando).



Durante cerca de quarenta minutos (a captação em vídeo mais longa tem 37 e meio), Éder tocou algumas de suas músicas mais conhecidas, e uma ou duas novas. “As músicas eram outras coisas,” disse ele. “Não eram o que eu pensava, ritmicamente; e estavam cheias de notas e de detalhes que eu não sabia mas que o violão parecia saber por mim. Meus dedos iam direto, como quem já fez aquilo mil vezes, mas para minha mente, que de um certo ângulo afastado contemplava tudo, era a primeira vez”.


“E depois?” perguntei. Ele disse: “Encerrei, a banda voltou ao palco, nos despedimos, ficamos naquela onda de camarim, de tomar cerveja e comentar detalhes. Mais de uma hora depois, quando saiu a última foto com os últimos autógrafos, olhei em redor e perguntei pelo violão. ‘Que violão?’, disseram. ‘O que eu toquei, quero botar preço nele.’ ‘O violão não era seu?’ perguntaram. ‘Vi esse violão hoje pela primeira vez’, disse eu. E os outros: ‘Gozado, estava aqui num case, que por sinal ainda há pouco alguém veio buscar. Tinha seu nome escrito num adesivo, e como nós vimos você na platéia, achamos que estava a fim de tocar, e puxa, cara, valeu, valeu demais, noite pra entrar na história.’