terça-feira, 9 de julho de 2013

3233) Baleia na Flip (9.7.2013)






Ela se esgueira por entre as pernas da multidão e passeia encantada com tantas luzes e cores. Entende que está havendo festa, e quer participar. Aqui e ali jogam-lhe um osso de galinha, um resto de hot-dog que ela abocanha antes que chegue ao chão. Passa invisível e célere, vendo tudo com olhos compreensivos. 

Vê madames grisalhas com xales e chapéus de palhinha enfeitados de flores, fotografando os barcos a oscilar no rio. Jovens casais de mãos dadas e olhares paralelos. Vendedores de churros e de cordéis. Músicos de rua tentando tocar mais alto do que a algaravia dos grupos que passam diante deles e sorriem sem escutá-los. 

Baleia ergue as orelhas e recebe a música; entende o riso largo no rosto do rapaz cabeludo, de chapéu, cigarro oblíquo na boca. Ela sabe quando alguém está feliz.

Baleia vai se esquentar na banda ensolarada da Praça da Matriz, a meia distância das pessoas de papelão colorido penduradas em arames, dos pés-de-livros. Passam professoras tangendo bandos de crianças rumo a um circo azul. Homens rosados, de barbas muito brancas, caminham devagar, sempre sorrindo, principalmente quando falam sozinhos segurando algo junto à orelha. 

Na ponte embandeirada, grupos se cruzam indo e voltando, apontando para coisas que Baleia procura em vão com seus olhos obedientes. Um estralejar de rojões bem perto a faz dar um pulo e sumir correndo por entre as tendas de doce e de pipoca.

Agora é de noite. As ruas estão escuras e brilhantes, os restaurantes estão mais cheirosos, o movimento aumentou. Já não se ouve o cloc-cloc das charretes com seus cavalos imprudentes que não respeitam o direito de ir-e-vir dos cães. 

A música recrudesceu, e Baleia já sabe que onde músicas são tocadas paira uma exaltação boa e as possibilidades de osso de galinha aumentam. Ela cruza a ponte. Para diante da entrada de uma tenda gigante, cavernosa, onde ressoam vozes pausadas e cultas através de alto-falantes. Todos os dias os humanos, sempre tão agitados, se organizam em filas pacientes para ter acesso ao que ocorre lá dentro.

Baleia vai, vem, ilude uma mosca grandona que lhe persegue o focinho, senta-se alerta olhando a grande parede ocre coberta de sinais. Ela tem hoje os ouvidos cheios de canções e de conversas. 

Seus olhos estão acostumados a ver aquelas formiguinhas pretas inscritas por toda parte, e percorrem aquelas linhas, cujo sentido está quase ao seu alcance, até que se detêm na derradeira palavra. Um frêmito atávico, genético, ativado por milênios de simbiose, relampeja em seus neuroniozinhos e Baleia assoletra: “P-r-e-á-s...”. Preás! Sua cauda sorri de reconhecimento. Preás! A vida presta.







segunda-feira, 8 de julho de 2013

3232) 10 Canções (7.7.2013)





(Sidney Miller, Brasil - Do Guarani ao Guaraná)



“O mundo é um moinho” (Cartola), tocando no rádio da prateleira do botequim quase deserto, na noite em que Vamberto fumou um maço de cigarros, tomou oito uísques e ligou onze vezes para o celular de Marlene, que só dava fora de área.

“Luzia Luluza” (Gilberto Gil), cantarolado quase toda tarde por Soninha enquanto vende ingressos na bilheteria de um multiplex, lembrando o primo que lhe mandou esse mp3 no dia em que soube onde ela passaria a trabalhar.

“Stairway to Heaven” (Led Zeppelin) cantado mais-ou-menos ao violão por um rapaz numa festa, e servindo de trilha sonora involuntária para algo que acontecia num terraço próximo. 

“Private Dancer” (Tina Turner), que quando tocava nas festas Mariinha botava pra quebrar nas coreografias, sem entender pirocas da letra.

“Alice’s Restaurant” (Arlo Guthrie), numa versão em português, fidelíssima e aparentemente integral, que Laércio escutou cantada no bar ao lado de um restaurante onde ele estava tendo a reunião de trabalho mais crucial dos últimos dez anos, e viajou na manhã seguinte sem nem saber quem era o cara.

“Puxando fogo” (Elino Julião), que lembrava a Carlos sua infância, quando seus pais tinham uma barraca de bebida e tiragostos, e de vez em quando, no domingo à noite, depois da saída do último freguês, eles botavam essa música, dançavam os dois na barraca vazia, depois desarmavam tudo e iam para casa na maior paz.

“Até pensei” (Chico Buarque), que tocava numa loja de discos, fazendo Adalberto parar para escutá-la por três minutos, findos os quais encontrou casualmente na calçada o Dr. Vieira que não via há anos e que depois de uma boa prosa acabou por oferecer-lhe o emprego de que ele tanto precisava.

“Rue Watt” (Boris Vian). Era (ele descobriu muitos anos depois) a música-tema, ou, como se dizia na época, “a característica”, do melodrama rádio-folhetinesco “A Bastilha do teu Coração”, onde sua mãe era locutora e atriz. Teve um choque quando ouviu a música durante seu doutorado em Bardologia.

“Na Emenda” (Trio Nordestino), impossivelmente escutado por Guilherme e Mariana em Amsterdam, da calçada, vindo de um terceiro andar de uma casa desconhecida, numa noite de inverno zero-graus, e que os consolou do frio, da distância, da nostalgia gastronômica e de alguns desencontros da alma.

“Pois é, pra quê?” (Sidney Miller), uma balada nostálgica e existencialista, puxada por um assobio estradeiro e um violão mínimo, cartum e litogravura cravando e certificando as arestas ásperas do espírito do ser, o recorte cruel das aparências pop, a gincana de colagens dos tropicalistas. A fotografia de um momento cheio de curvas, feita por uma mente que queria tudo entender.









3231) Rorschach (6.7.2013)




Este sobrenome evoca o criador dos famosos cartões com borrões de tinta que os psicólogos mostravam aos pacientes, pedindo uma interpretação. A primeira vez que ouvi falar neles foi num livro de FC da antiga Coleção Futurâmica, Pânico na Terra de L. R. Fanthorpe. Um capítulo inteiro, numa nave, mostra a psicóloga da equipe submetendo todos os oficiais a esse teste, e qualificando o resultado de cada um. Muitos desses borrões são simétricos, porque produzidos através de respingos de tinta num cartão que é depois dobrado sobre si mesmo, e desdobrado depois, exibindo as manchas.

Muitos anos atrás vi numa revista francesa de cinema, em algum lugar, a expressão “Glauber Rorschach” para se referir ao diretor baiano. A vantagem das imagens Rorschach é que elas permitem uma grande variedade de interpretações. Estas não são totalmente espontâneas. O borrão simétrico induz uma semelhança inconsciente com plantas ou com animais que têm esse tipo de estrutura.

O personagem chamado Rorschach na série dos Watchmen (roteiro para quadrinhos de Alan Moore, filme de Zack Snyder) tem uma máscara como um tecido branco cobrindo sua cabeça e seu rosto inteiro. Nessa superfície branca de tecido flutuam e deslizam manchas negras, num movimento perpétuo, como um protetor de tela escondendo o verdadeiro rosto de alguém. Talvez os borrões pretos no espaço branco reflitam o nosso moído mental inconsciente, que nunca cessa, nunca diminui, e nunca chega a lugar nenhum. Um holograma da mente humana.

E como é possível haver um tecido assim, por onde as manchas passem sem deixar rastro? Poderíamos estabelecer (quem é de FC pensa logo em algo deste jeito) que esse tecido é uma espécie de superfície polímera, recoberta de pequenas estruturas em forma de poliedro bidimensional (no caso, mais precisamente, em forma de hexágono). Cada hexágono-célula pode estar apagado ou aceso, zero ou um. Como ele está cercado por seis outros hexágonos, podemos estabelecer que o fato dele ser preto ou branco depende de cada condição momentânea dos seis que o limitam. Se em cada microssegundo houver em volta dele, por exemplo, cinco positivos e um negativo (ou seis positivos e nenhum negativo), positiva ela será. Se no instante seguinte as outras mudarem, ficando, p. ex., quatro negativas e duas positivas, a célula no centro desse círculo imediatamente ficará negativa. O estado de cada ponto luminoso dependerá dos que o cercam, mas nenhum deles controla o processo.

As manchas negras na máscara branca de Rorschach têm a imprevisibilidade estatística das tempestades, dos terremotos, de tudo que é tão grande que não pode ser previsto a curto prazo.


3230) Mostra a tua cara (5.7.2013)




A última vez que a Avenida Presidente Vargas e a igreja da Candelária ficaram daquele jeito foi no famoso comício das “Diretas Já”, que dizem que deu um milhão de pessoas. Não importa quantas foram. Nunca se vira tamanha quantidade. Mas no comício sobre a Emenda Dante de Oliveira havia um esforço concentrado e consciente vindo de cima, vindo das elites políticas, dos caciques partidários, dos notáveis com cacife para opinião política. Havia um sistema de som, um planejamento de mídia, e acima de tudo um palanque, onde oradores diriam mais ou menos o que se esperava que dissessem. Havia um centro.

Nada contra essa visão do mundo, só que é muito copernicana. O mundo não funciona de maneira tão simples. O fato de existirem criaturas e sistemas com aspecto de mandala não quer dizer que esse seja o estilo preferido da Natureza. Vai ver que às vezes ela se baseia em algoritmos químicos. Vai ver que às vezes se baseia numa eletromagnética binária do espaçotempo, e por cima dela um sistema retroalimentador e motoperpetuante chamado Vida.

A multidão não tem um centro pelo simples fato de que grande parte das coisas da Natureza não o tem. Suas características são outras. A multidão pode ser vista como uma câmara cheia de gás, lacrimogêneo ou não, onde é possível comprimir cada vez mais o gás e fazer suas moléculas, mais apertadas umas às outras, movimentaram-se num ricochete cego como o de bolas de pinball.

A multidão não é centro, é fatia estatítica de um Todo que é cada vez mais mapeado e investigado com fervor. Daí a importância de institutos de pesquisas e de coleta de dados porta-a-porta, algoritmos qualificadores, sistemas de amostragem mais sutis. Hoje a Presidente Vargas fica cheia e não se vê sistema de som, político ou palanque. Não existe Big Bang, não existe centro, não existe o Monarca de qualquer regime político. A multidão mostra que por baixo dessas Unidades aparentes o mundo é torvelinho perpétuo. Não tem rosto, tem coreografia e fluxo.

Cada avenida dessas, dura de gente (como se diz na Paraíba), é uma espécie de holograma onde está pelo menos um exemplo de cada elemento do Todo. Graças à rua estamos sabendo quem é isto ou aquilo, pelo menos no momento, já que as paixões políticas são tão intensas quanto passageiras. Olhando a multidão passar fica mais claro quem é contra ou  a favor de Dilma, quem repete slogan centenário, quem puxa hino, quem oferece caipirosca, quem mostra suástica, quem mostra foice e martelo, quem mostra cruz. Se o mundo fosse um lugar justo, coisa que nem sonha, cada um de nós poderia sair em praça pública e dizer quem é, sem medo e sem arrogância.



3229) Palavras difíceis (4.7.2013)





Um dos conselhos mais frequentes em cursos de escrita criativa ou em oficinas literárias é: “aumente o seu vocabulário”. O conselho é bom, mas às vezes mal interpretado. Muita gente folheia o dicionário ao acaso, procurando palavras que nunca viu, anotando-as e depois procurando um modo de encaixá-las num texto.


Devia ser proibido usar uma palavra sem tê-la visto, antes, nuns dez contextos diferentes. É o contexto que nos ensina o significado de uma palavra. Criança aprende a falar assim. Nunca vi uma criança de 5 anos procurar uma palavra no dicionário. 

Cem por cento do nosso vocabulário se forma via contexto. Uma variedade de contextos define uma palavra melhor do que qualquer dicionário. Aliás, os bons dicionários, mais do que somente definir, contextualizam o tempo todo.

Palavra difícil é aquela que a gente nunca viu antes. Para muitos leitores, o verbo “contextualizar”, usado acima, é uma palavra banal; para outros será uma palavra difícil, porque nunca a viram. 

Palavras de vocabulários específicos são sempre “difíceis” para quem não é do ramo: escanteio, sustenido, cacófato, ciberespaço, alínea, hipotermia, pirangueiro, sincopado, catraca, virabrequim, deletar... Ninguém nasce conhecendo essas palavras e algumas pessoas morrerão sem conhecê-las. São fáceis? São difíceis? Para alguns sim, outros não.

Usar palavras difíceis para fingir erudição é uma armadilha em que todo principiante cai em algum momento; é um tropeção inevitável em qualquer aprendizado. 

Algumas profissões, como as da área jurídica, se deixam aprisionar num jargão obscuro e pomposo. É como uma moeda que só tem valor num país pequeno. Quando esse cacoete irritante invade o terreno da comunicação (como o jornalismo) ou da arte (como a literatura) suas limitações ficam mais evidentes. A linguagem é para ser compreendida, e enriquecida, em medida equivalente, e sem parar.

Quando as oficinas literárias nos aconselham a aumentar nosso vocabulário estão sugerindo que usemos as palavras de maneira mais nítida, mais específica. Ao invés de dizer que Fulano vinha montado num cavalo, fica melhor dizer se era um alazão ou um baio.  Um boxeador nocauteou o outro com um soco, mas é mais interessante dizer que foi um gancho de esquerda. Se um personagem é mulher, o uso de termos específicos como balzaqueana, ninfeta, periguete ou matrona nos dá uma fotografia mais precisa da criatura. 

Cada palavra dessas vem carregada de contexto, carregada de conotações previamente acumuladas ao longo de muitos anos e de utilização intensa. Se você nunca viu a palavra, deduza pelo contexto e vá se acostumando. É assim que todo mundo aprende.









quarta-feira, 3 de julho de 2013

3228) Ariano e Tolkien (3.7.2013)






A obra de Ariano Suassuna passa por muitos territórios, que vão da música ao teatro, mas os que me interessam mais são o romance, a poesia e a ilustração gráfica. (Sem diminuir, claro, a importância dos demais.) 

Nesses três campos ele desenvolveu a vertente fantástica de sua criação: a articulação de um universo emblemático, simbolista, repleto de ressonâncias cósmicas, profundamente impregnado de um passado simultaneamente histórico e mitológico, carregado de implicações éticas e morais.

Como escritor, Ariano pertence a uma linhagem que também inclui J. R. R. Tolkien (de O Senhor dos Anéis), e há mais semelhanças entre eles do que parece à primeira vista. 

Há paralelos na vida pessoal: a perda precoce do pai e a importância da figura materna, e o fato de que ambos se dedicaram desde cedo à carreira de professor universitário, praticando a literatura nas horas vagas, por assim dizer.

A semelhança, no entanto, é mais literária do que biográfica. São escritores que têm uma profunda identificação com a tradição e o passado, e uma certa aversão a modismos e modernismos de superfície. 

Ambos católicos, criaram ciclos romanescos onde o Catolicismo está ausente como fato e presente como espírito, através de temas de pecado e redenção, e da luta do Bem contra o Mal. 

Ambos recorrem a fontes lendárias de um passado remoto – escandinavo no caso de Tolkien, ibérico no de Ariano. Ambos têm uma identificação instintiva com a simbologia da realeza e das ordens cavalarianas, com os emblemas e brasões, com a genealogia das famílias nobres, com a heráldica. 

E em ambos esse painel de heróis tem sua grandiosidade e nobreza contrastadas à presença de protagonistas humanos, frágeis, mas igualmente notáveis: os pequenos hobbits de Tolkien, e, em Ariano, a figura picaresca, plebéia e moralmente escorregadia de Quaderna.

Do ponto de vista técnico, ambos produziram trilogias épicas (a de Ariano ainda em progresso) recheadas de poemas bem integrados à trama. Ambos revelam um fascínio pelo grafismo, e produziram numerosas ilustrações para os próprios textos. 

Tolkien, filólogo, criou um idioma élfico com alfabeto próprio. Ariano produziu também um alfabeto armorial, inspirado nos desenhos dos ferros de marcar gado. Seus admiradores recorrem constantemente a esses alfabetos nas obras relativas ao universo de cada um.

O mundo de Tolkien é totalmente fictício; o de Ariano, em comparação, é de um realismo histórico-geográfico quase excessivo. 

O que aproxima os dois é o avistamento de um Passado grandioso, semi-histórico, semi-lendário, que se superpõe ao Real na obra de Tolkien, e na obra de Ariano é um pólo energizador do Presente.






segunda-feira, 1 de julho de 2013

3227) O Xerife Indefeso (2.7.2013)




(Ed Harris em Appaloosa)

A arte da narrativa é como um isqueiro onde duas pedras se chocam e desse choque sai fagulha. É o choque entre um personagem e uma situação que o influencia. O personagem, “x”, tem um conjunto de características dramáticas. A situação, “y”, tem outras. O segredo é botar o personagem numa situação invulgar, ou complexa, ou violenta, ou inesperada, que de alguma maneira provoque uma perturbação à qual ele vai ter que responder, agindo. Ao agir, ele muda a situação, a qual, por sua vez... Muitas, muitíssimas histórias interessantes se baseiam nessa função de “x e y”, um personagem tal numa situação qual.

O Xerife Indefeso é um desses achados. “Xerife” pode ser visto num sentido amplo – o cara responsável pela ordem ou pelos valores num local. Digo xerife porque na minha memória afetiva essa imagem está mais associada ao filme de faroeste do que à literatura, embora cada leitor possa contribuir seus próprios exemplos. O Xerife Indefeso é o Gary Cooper de Matar ou Morrer, contando os minutos para a chegada dos pistoleiros que vêm matá-lo, e pedindo ajuda, inutilmente, à população, que deixa tudo nas suas mãos e se esconde. É o xerife ético e irritadiço de Marlon Brando, na Caçada Humana de Arthur Penn, querendo impor, mais até que a lei, a voz da sensatez numa cidadezinha endinheirada, bêbada, preconceituosa e violenta.

Esse personagem é interessante porque é o lado solitário do poder. Uma versão simétrica ao Pistoleiro Solitário (Shane, os filmes de Eastwood, etc.), que é marginal e se garante sozinho. O Xerife Indefeso é o representante da lei, da justiça e do governo; e muitas vezes está só, acuado na lei da selva.

Eu ia dar um exemplo noutro gênero e me veio à mente Outland – Comando Titânio, com Sean Connery como o policial de uma estação espacial mineradora. Mas esse filme é conhecido justamente como uma versão tecno-futurista de Matar ou Morrer. Apesar de ter um roteiro com outras tramas paralelas, ele tem essa mesma contagem regressiva para a chegada da espaçonave com os pistoleiros que vêm matar Connery.

O Xerife Indefeso (no sentido de não ter ninguém para defendê-lo além de si mesmo) é a solidão do poder, o combate quixotesco de um ético ou de um sensato num mundo onde o Mal está botando as unhas de fora. É possível ser o “representante da civilização” e ser um inocente como James Stewart em O homem que matou o facínora, um xerife que está ficando cego como Robert Ryan em À Borda da Morte, ou ser o destemperado e idiossincrático Roy Bean de Paul Newman. O Poder também dá oportunidades de grandeza aos grandes individualistas, quando lutam por uma coletividade que os abandona.


domingo, 30 de junho de 2013

3226) Os Adversários (30.6.2013)




(foto: Bazuki Muhammad)

No dia em que o Botafogo foi campeão com o gol de Maurício (há dezoito cariocas que se refestelam nessa frase carregada de semântica afetiva) eu vi o Flamengo tremer e o Catete vibrar. Eu morava numa casa encravada na ladeira da Tavares Bastos, no Catete, de onde eu descortinava (sim, descortinava, isto aqui é uma crônica) uma vasta visão horizontal desses bairros. Aquele jogo foi uma predestinação. O juiz era um rapaz que chamavam “Bianca”, e nosso medo era que o Botafogo, notoriamente inferior, apelasse para a violência intimidando Sua Senhoria. Sua Senhoria se saiu até que bem, e o Flamengo teve chance de vencer até o último lance de Zico em campo, uma falta que passou raspando na trave esquerda do gol alvinegro. E aí vem aquele contrataque veloz puxado pela esquerda (o Flamengo só leva gol em contrataque, por que será), bola cruzada na área, o negão se jogando pra frente como um mané-gostoso e esbarrando na bola com o pé para o fundo das redes. O chão do Rio ficou se tremendo, e os terraços se povoaram como por encanto.

Eu fico meio feliz quando, no dia em que perco, pelo menos a festa do adversário é uma festa bonita.  O torcedor de futebol não deve amar tanto seu time que não veja (mesmo que roendo-se de inveja) o momento bonito do adversário. Às vezes uma derrota que nos parece meramente incômoda, acaba-festa, desmancha-prazeres, é para nosso adversário um triunfo em Trafalgar, uma invasão de Iwo Jima, uma façanha nas Termópilas. Demos um tropeção que nos custou caro; na arquibancada deles, parecia o começo de um milênio novo. Ninguém entende direito os fatos históricos de que faz parte. A historiografia demonstra que muitos soldados ingleses só tempos depois foram saber que haviam ganho a batalha de Waterloo.

Só achamos um sabor de vitória nas derrotas elas permitem ao nosso adversário continuar vivo. Sem o Maracanazo de 1950, o futebol uruguaio poderia já ter degenerado em rugby, sua tendência mais preocupante.  Os outros times, as Itálias, as Espanhas, as Alemanhas, as Franças, também têm direito de ganhar. Os Botafogos, os Campinenses, os Vascos, os Santa Cruzes, os Cruzeiros, os Fluminenses, os Náuticos precisam existir, precisam crescer, tornarem-se grandes, porque é a grandeza da montanha que faz a do alpinista. Temos que alimentar nossos adversários, tratar bem deles, fortificá-los, dar-lhes coragem e força para as lutas que travaremos. Quando perdemos, temos que aplaudir sua vitória e agradecer sua sobrevida. Adversário só presta grande. Não queremos que desapareçam; queremos que se tornem fortes, para terem coragem de vir de novo ao nosso encontro.




sábado, 29 de junho de 2013

3225) Sim, Majestade (29.6.2013)




Eu era príncipe. Disseram-me desde cedo que eu estava sendo preparado para mandar. Um desejo meu era uma ordem.  A ordem, às vezes, nem precisava ser dada: eu pequeno erguia o dedo, e era como se tivesse desferido uma seta. O que eu apontava era trazido e posto aos meus pés, rodeado de olhares expectantes. Para eles, se eu, com cinco anos de idade, apontava algo, era porque havia um relâmpago do sagrado comandando aquele gesto, havia uma orquestração de vibrações divinas focalizando meu olhar e meu desejo naquele objeto. Eu apontava, ordenando. Eles traziam, colocavam aos meus pés e diziam: “Sim, majestade”.

Dizem que a infância é o melhor da vida, e que nada no presente se compara ao que nos ficou para trás. Entrar na adolescência foi para mim o difícil treinamento de viver num mundo que, estranhamente, se recusava a se dobrar ao meu reinado. Eu dizia: Não quero que chova amanhã; e chovia. Eu jogava uma pedra para cima e dizia: Eu não quero que ela caia; e ela caía. Eu chicoteava os servos, cuspia de fúria, babava de revolta; havia certos setores do mundo que não me reconheciam como rei.

Devo dizer que isso me entreteve durante anos? Que isso exauriu minhas forças, estragou o melhor de mim? Não vi a queda lenta do império que me cabia comandar. Vi o reino, o meu reino, se extinguir; vi a vida do mundo se esvair; vi um mundo tão selva em seu lugar. Os incêndios lavraram na medula das minhas fortalezas, dos meus refúgios. Vi meu povo de joelhos diante de alguém, dando-me as costas. As correntes da escravidão nos sujigaram a todos. Fomos levados a um cativeiro distante num lugar inóspito onde os pássaros bicavam sem motivo o nosso rosto. Lavramos pedras, quebramos rochas, nenhum dos escravos sabia que escravo era aquele, tão silente. O que me consolava era erguer a marreta e pensar: “Quebra, pedra” – e a pedra quebrava.

Tempestades de areia e uma doença de manchas roxas exterminaram nossos carcereiros. Fugi tanto deles quanto dos outros escravos (ser um deles me envergonhava) e me perdi no deserto. Um dia vi-me cercado por uma tempestade de areia e julguei morrer, mas logo percebi não ser areia, e sim uma espécie de névoa, de vapor dágua. Uma névoa muito fina que me envolvia e me gelava os dutos de respiração acostumados ao sol escaldante. Percebi estar entrando num mundo onde a natureza era diferente da que eu conhecera. Vi diante de mim uma massa enorme de granito com mais de duzentos metros de altura. E quando a névoa se esgarçou percebi que aquilo era um pé, um pé ciclópico. Uma voz perguntou na minha mente: “E agora, consegues me ver?”. E eu abaixei minha cabeça e disse: “Acho que sim, majestade”.


sexta-feira, 28 de junho de 2013

3224) Eu me lembro - I (28.6.2013)






(armazéns de algodão na rua Miguel Couto)



Eu me lembro de barraquinhas do lado de fora do Mercado São José, no Recife, onde eu, aos 13 anos, via pilhas de revistas Suspense, X-9 e Meia Noite, mais altas do que eu. 

Eu me lembro de andar na beira do Açude Velho e um dia ver uma abertura na calçada e lá embaixo uma espécie de sala cheia de canos muito grossos, tubulações de ferro, instrumentos zumbindo. 

Eu me lembro do Beco da Fome no Rio de Janeiro e o meu prato preferido, “arroz com dois ovos fritos”. 

Eu me lembro de Crush e Grapette, de Kitut e Presuntada Wilson, de confeitos Gasosa, dos Drops Dulcora, “quadradinhos, embrulhadinhos um a um”.

Eu me lembro das quatro enormes cabeças de bronze que havia na Praça Sete, no meio da avenida Afonso Pena em Belo Horizonte. 

Eu me lembro dos animais empalhados na vitrine do Palacinho da Criança. 

Eu me lembro das antigas redes Entrelivros e Unilivros, no Rio, com balcões cheios de livros de ponta-de-estoque a preço de banana. 

Eu me lembro das folhas de plástico transparente e colorido que eram colocadas diante das TVs em preto-e-branco. 

Eu me lembro da campanha política para prefeito entre Severino Cabral “Pé de Chumbo” e Newton Rique “Mão de Seda”. 

Eu me lembro dos doces de leite cortados em forma de losango nos cafés de Belo Horizonte. 

Eu me lembro de quando algumas meninas do Estadual da Prata eram barradas na entrada porque estavam com sutiã preto sob a blusa branca.

Eu me lembro da estátua da “Samaritana” de Abelardo da Hora na Praça da Bandeira, em frente ao Correio. 

Eu me lembro da casa em forma de navio que havia na praia de Boa Viagem. 

Eu me lembro de quando Arlindo “Nova Seita”, pandeirista da Escola de Samba XV de Novembro, trouxe a bateria da escola para tocar dentro da casa da gente no Alto Branco. 

Eu me lembro do banheiro do Cine Paissandu, no Flamengo, com suas pias e privadas em louça toda negra. 

Eu me lembro da Festa da Mocidade no descampado onde depois virou a Rodoviária Velha e depois na Praça da Bandeira em frente às Damas.

Eu me lembro do incêndio da academia de artes marciais de Ivan Gomes, na Maciel Pinheiro. 

Eu me lembro do “galeto al primo canto” da Palhoça do Melo, no Recife. 

Eu me lembro da Rua do Catete esburacada e cheia de tapumes de ponta a ponta para as obras do metrô. 

Eu me lembro de quando o carro com Juscelino Kubitschek acenando passou diante da nossa casa na rua Miguel Couto, subindo rumo ao centro de Campina. 

Eu me lembro dos pirulitos de melaço, pequenos cones enrolados em papel de embrulho, enfiados nos orifícios feitos em tábuas quadradas, presas na ponta de um cabo que os vendedores levavam inclinado ao ombro como um fuzil numa parada militar.