quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

3078) Checkpoints (9.1.2013)





O conceito de checkpoint é típico da informática e pode ser decisivo para a trans-humanidade do futuro, quando formos capazes de transferir nossas mentes para um suporte eletrônico (“copiar meu cérebro inteiro num pen-draive”). Nos games de ação, o checkpoint é aquele ponto ao qual você retorna toda vez que morre.

Digamos que é um jogo de II Guerra Mundial. Você está oculto no mato, numa colina, vendo lá embaixo uma ponte que precisa atravessar. Na cabeça de cá da ponte há uma pequena casamata de proteção, ocupada por inimigos. Você desce a colina atirando granadas, disparando a metralhadora. Os soldados da casamata respondem ao seu fogo. Ao chegar perto, você é atingido e morre. Black-out. Quando você recomeça, está de volta ao checkpoint, que é no mato, sobre a colina.

Mas digamos que você desce atirando, mata os inimigos e se refugia dentro da casamata. Você conquistou este ponto, e ele é agora o seu checkpoint. Sua tarefa passa s ser cruzar a ponte sob fogo inimigo e chegar ao lado oposto, onde há um jipe abandonado que pode ser útil para fugir. Você corre pela ponte, atirando. Se for atingido e morrer, você já não volta para o mato, na colina; volta para a casamata, um checkpoint mais avançado. Desse modo, cada posição conquistada faz com que você não precise recomeçar o jogo do zero, e assim você vai avançando.

Quem usa computador, quando precisa dar uma mexida mais profunda, dispõe de um recurso de salvar as configurações do sistema no momento atual, antes de começar a fazer alterações. Se der uma zebra, é para esses estado de coisas que você volta, quando botar ele para funcionar de novo. O mesmo quando a gente aperta “Ctrl + B” para salvar um arquivo. Se o computador apagar de repente, está tudo salvo até aquele ponto.

Uma utilização clássica desse conceito na FC é uma série de contos de John Varley, dos quais o mais famoso é “The Phantom of Kansas” (1976), em que a memória humana é salva em bancos e transferida para um novo corpo, quando a pessoa morre. Digamos que o cara salvou sua memória em 1 de janeiro pela última vez; se ele morrer no dia 15, ao despertar está de volta ao estágio anterior, e só perde o que lhe aconteceu nestes últimos quinze dias. A solução seria salvar de minuto em minuto – o que seria impraticável. Essa diferença (memórias recentes não recuperáveis) dá origem a tramas policiais, de mistério, etc., porque o personagem é capaz de “ressuscitar” mas está com “amnésia” quanto aos dias mais recentes. Ele só lembra o que lhe aconteceu até o checkpoint, ou seja, a última vez em que salvou sua própria personalidade no Banco. É um retrato literariamente plausível de um cenário futuro.



terça-feira, 8 de janeiro de 2013

3077) "Estrela Distante" (8.1.2013)






Este romance curto de Roberto Bolaño (1996) saiu pela Companhia das Letras e depois (a edição que tenho) na coleção da Folha de S. Paulo de capa dura, vendida nas bancas. O autor explica, numa nota inicial, que é uma expansão do último capítulo de seu A Literatura Nazista na América, coletânea de contos sobre escritores imaginários, um exercício meio borgiano em que Bolaño imagina toda uma fauna de nazistas, fascistas e simpatizantes da direita em geral, produzindo poesia, romance e até mesmo ficção científica no continente americano. O autor dedicou-se a expandir a história daquele último personagem, transformado aqui em Carlos Wieder, tenente da força aérea chilena, torturador, serial killer, que se infiltra como espião em grupos de poesia de vanguarda.

Essas biografias fictícias são o espaço ideal para Bolaño desenvolver sua prosa, jornalística no que este termo tem de melhor. Descrições breves e vívidas, com mergulhos ocasionais e surpreendentes na subjetividade do narrador, que na maior parte do tempo está apenas reconstituindo e comparando suas próprias lembranças e as lembranças alheias. Como em Os Detetives Selvagens (http://bit.ly/WnNhCq), Bolaño monta o mosaico do personagem de fora para dentro; não temos acesso à consciência de Wieder, e na verdade pouquíssimas falas suas são reproduzidas. Vemos o monstro pelo lado de fora, pelos relatos de como ele cruzou na vida de numerosas pessoas. Se bem que o narrador de Bolaño ousa descrever (sob o pretexto de estar supondo, estar imaginando como as coisas aconteceram) até mesmo um dos mais arrepiantes crimes do chileno.

Wieder é um criminoso que incomoda até os fascistas. O capítulo 6 narra o episódio em que ele cai em desgraça dentro do regime Pinochet, pela sua ousadia, crueldade e morbidez desafiadora. Lembra o nazista culto do conto “Deutsches Requiem” de Borges; lembra por outro lado o personagem de Dirk Bogarde no filme O Porteiro da Noite de Liliana Cavani. Tem a serenidade dos psicopatas movidos a certeza: “dominante, seguro, os olhos como que separados do corpo, como se olhassem a partir de outro planeta”. O narrador do livro (um possível Bolaño que jamais diz o próprio nome) cita um oficial de Pinochet para quem Wieder “não fez mais do que aquilo que todos os chilenos tiveram de fazer, deveriam ter feito ou quiseram mas não puderam fazer”. Na terrível reta final, o narrador diz: “Esta é a minha última transmissão a partir do planeta dos monstros. Não mergulharei nunca mais no mar de merda da literatura. De agora em diante, escreverei meus poemas com humildade e trabalharei para não morrer de fome e não tentarei publicar nada”.



domingo, 6 de janeiro de 2013

3076) A base da música (6.1.2013)





A música se compõe de ritmo, melodia e harmonia. Não sei se está assim nos compêndios musicais, mas é assim que está no meu ouvido e no meu entendimento. O ritmo é a sucessão de batidas fortes e fracas (acentuadas e não-acentuadas), a ordem que elas criam e as aparentes desordens que logo se revelam (idealmente) como ordens mais complexas e menos previsíveis, mas que a gente percebe depois de algum tempo. Ritmo é a parte mais básica da música. É algo que pode ser criado batendo com a mão na mesa ou o pé no chão, estalando ou tamborilando com os dedos... É a camada mais primal. Bebês incapazes de acompanhar uma melodia são sensíveis ao ritmo. O ritmo na música popular consiste basicamente na repetição das mesmas sequências de acentos fortes e fracos.

Uma melodia é uma sucessão de notas musicais no tempo, quando elas parecem estar contando uma historinha abstrata de tensões e relaxamentos, ascensões e quedas, avanços e recuos, percursos em linha reta e desvios inesperados. Cada cultura tem seu idioma melódico próprio; basta ouvir um CD de música folclórica chinesa ou indiana. Há pessoas com sensibilidade e imaginação melódica que são capazes de criar melodias mentalmente, cantarolando, sem saber tocar o mais simples instrumento. (Rosil Cavalcanti era assim.) Outros têm, como a gente diz, o “ouvido duro”, tapado, que só às custas de muito esforço consegue perceber as sutilezas melódicas. De um modo geral, não há ouvido tão duro que não possa ser educado até certo ponto. Meu ouvido é duro, e eu o eduquei na marra.

Ritmo e melodia são as coisas que mais chamam a atenção e mais “pegam” no ouvido das pessoas, e é nesses dois aspectos que se baseia a canção popular mais direta, mais simples: marchinha de carnaval, rock, forró, samba, etc.  Já a harmonia é uma conquista conceitual mais complexa – é o efeito estético produzido por duas ou mais notas soando juntas. A harmonia tem também uma “melodia” própria, porque uma sucessão de acordes bem concatenados pode causar um efeito estético equivalente ao de uma sucessão de notas. Dentro de uma sucessão harmônica é possível encaixar inúmeras melodias. Sambistas, bluesmen, etc. são especialistas nisso. É possível pegar a harmonia de “Garota de Ipanema”, acorde por acorde, e compor uma melodia nova que só vai guardar uma distante semelhança com a melodia original. Muitas acusações apressadas de plágio são feitas porque uma canção usa a mesma harmonia de outra já existente, mas cria uma melodia diversa em cima dela, ou seja, usa a mesma base para compor uma nova obra. O ouvinte percebe a semelhança, sem entender inteiramente o porquê, e fala em “plágio”.




sábado, 5 de janeiro de 2013

3075) O corpo (5.1.2013)






Tudo que a gente deseja é a certeza de que está vivo. Porque somos bichos, somos criaturas de carne, osso e sangue. Só se tem essa certeza através do corpo, pois a mente engana muito. 

Gente que come demais, que faz sexo demais, gente que malha demais, que corre, que sua... Todos fazem isto porque naquele instante privilegiado têm a certeza de que estão vivos, de uma maneira que um sujeito mais mental não tem. O corpo não mente.

A mente mente, pois basta-me ler Dostoiévski para me imaginar em Moscou, basta sonhar para estar noutro mundo, e nada me prova que não sou um mero avatar, um “carinha” manipulado por um jogador ultradimensional que neste instante deve estar dando uma boa gargalhada ao ler esta frase que digitei. 

A mente engana porque se recria muito bem, é capaz de superpor à realidade física uma realidade subjetiva, projetada.  E aliás é pra isso que a mente serve, não é mesmo? Se fosse só para enxergar o que temos diante do nariz, nem precisava.

Já o corpo, é uma coisa só, o tempo todo, sem esbarrar, apenas sentindo seus calores e frios, suas fomes e empanturramentos, sua dor e seus deleites. O corpo é apenas ele mesmo, bruto, concreto, descomedido. O corpo não sonha.  Para ele existe apenas o aqui-e-agora.

A tragédia de quem vive em coma profundo é ter-se tornado mente, somente.  É estar preso na própria mente sem sentir o próprio corpo, sem o contato com a vida que só se tem através do corpo. 

É por isso que a idéia Trans-humanista de que um dia poderemos fazer “upload” de nossas consciências para um Hiper-Ultra HD me parece fascinante mas impraticável. Supondo que eu pudesse tirar uma cópia instantânea, agora mesmo, de tudo que guardo nos meus vários níveis de (in)consciência e depois cremar meu corpo, como essa minha mente existiria a partir de então?  Como, sem esse espantoso instrumento de input sensorial que é o corpo? 

Pensem na nossa pele, nos milhões de nervos, nos sistemas nervosos autônomos, nos processos circulatórios, digestivos, respiratórios e musculares que ocorrem o tempo todo e que nossa mente monitora o tempo todo, só nos deixando lembrar dessas coisas quando uma delas começa a doer ou dá um piripaque. 

Mente digital sem corpo? Duvido. Ela se dissolveria em entropia de signos, de memórias desenraizadas, de imaginações sem bússola, uma ventania de pensamentos em todas as direções, sem a vida pulsando no corpo para lhes dar lastro, presença, um centro de gravidade.  

Sem corpo nossa mente se dispersaria em sub-rotinas cíclicas em círculo vicioso. O corpo é nossa interface com o mundo, e sem ele nossa mente seria a lixeira da biblioteca de Babel, sem função e sem sentido.









sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

3074) Didáticos eletrônicos (4.1.2013)





Nas discussões sobre o livro eletrônico (os Kindles, e-books e assim por diante) tem havido uma ênfase muito grande sobre o modo como essa nova mídia vai afetar a Literatura. Fala-se, p. ex., no perigo da disseminação rápida e incontrolável de versões não-revisadas (ou cheias de erros) de clássicos literários. O erro não é privilégio do texto eletrônico: eu tenho antologias-de-papel de Drummond e de Augusto dos Anjos, lançadas por editoras respeitáveis, com erros de revisão, versos fora do lugar, etc.  Fala-se, pelo lado positivo, na possibilidade de versões em hipertexto (edições críticas, p. ex.) desses mesmos clássicos, pois o livro eletrônico permite encher um texto de notas, observações, variantes, links informativos, etc., e esconder isso tudo com um simples toque numa tecla. Quando o leitor quiser ter acesso a isto, outro toque e o material crítico reaparece. Pra mim, isso é uma maravilha.

Existe outro departamento, contudo, onde o livro eletrônico tem tudo para crescer: é o livro didático.  Pensem em livros de Matemática, Biologia, Física, História, Geografia, Química, em que seja possível ramificar e ampliar indefinidamente a discussão de cada assunto. Pensem na possibilidade de livros didáticos que se tornem mini-enciclopédias em processamento constante, atualizando conteúdos (principalmente nas ciências humanas – História, Geografia, etc.). Pensem em livros eletrônicos de Matemática ou Física em que os problemas possam ser organizados de diferentes maneiras – por grau de complexidade, por tema, etc. Pensem na possibilidade de estudar Química ou Geometria com pequenas (e baratíssimas!) animações através de Flash ou de imagens Gif.

Já fiz parte de equipe de uma enciclopédia, e lembro que quando começou a tal da Internet nossos olhos brilhavam ao imaginar que finalmente o que fazíamos não estaria desatualizado e superado pelos fatos dentro de poucos meses. Além disso, todo mundo que tem filhos na escola reclama do alto preço do livro didático. É talvez o mercado mais disputado do mundo editorial, briga de cachorro grande. Esses big-dogs bem que poderiam se eletronizar, se agilizar, começar a investir na criação de webs paralelas em que o material de estudo fosse adquirido por assinaturas anuais. Conteúdos interativos, permanentemente atualizados, com enormes bancos-de-dados com exercícios, testes, problemas, links externos e tudo o mais para quem quisesse aprofundar as questões.  Ao invés daquelas mochilas cheias de livros pesadíssimos, vergando a espinha dos adolescentes, pequenos tablets com milhões de informações ao alcance de um toque. As possibilidades, como sempre, são infinitas.



quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

3073) Ser brasileiro (3.1.2013)




(Tarsila do Amaral)


Manuel Schneider é um alemão que mora em Curitiba e tem um blog (em inglês) sobre assuntos variados (aqui: http://bit.ly/X5SsHF). Numa postagem recente, ele enumerou 100 características dos brasileiros que lhe chamam a atenção, e na grande maioria ele acerta na mosca. Muitos são os clichês de sempre – a paixão dos brasileiros pelo futebol, pela caipirinha, pela praia, pela música. Mas é sempre útil a gente saber como alguém nos vê de fora. Sempre com a ressalva, é claro, de que dizer “os brasileiros” é uma espantosa generalização. O próprio autor percebe isso indiretamente quando diz, em seus itens numerados: “45. Os brasileiros parecem achar que os alemães bebem cerveja morna e comem salsicha (e chucrute) todos os dias. 46. Os brasileiros acham que os franceses jamais tomam banho”.

Ele diz: “22. É uma prática comum dos brasileiros cancelar encontros na última hora. Por sorte, ninguém nunca fica aborrecido com isto”.  Parece com aquela antiga máxima (que eu aprendi na própria Bahia) de que a maneira mais fácil de se esconder de um baiano é marcar um encontro com ele e comparecer. Dizer que ninguém se chateia é generalização (eu me chateio, e muito), mas eu diria que a gente sempre está preparado para essa eventualidade, e em geral já tem um “plano B”. O europeu não imagina que isso aconteça, e é pego de surpresa.

Outra que achei curiosa: “38. Brasileiros adoram compartilhar pizza. Nunca vi ninguém aqui comendo uma pizza sozinho”. Isto bate exatamente com a minha experiência pelo sentido oposto, porque sempre considerei a pizza um prato coletivo. Uma pessoa sentada sozinha num restaurante comendo uma pizza me chamaria a atenção.

Diz Schneider: “64. Já encontrei uma quantidade inacreditável de brasileiros que trabalham com enorme eficiência durante longas horas e estudam à noite ou nos fins de semana”. Eu concordo, e acho injusto quando nos comparam com coreanos ou japoneses que estudam/trabalham 16 horas por dia ou sei lá quanto. O mito de que o brasileiro não gosta de estudar nem de trabalhar é uma idiotice.

Mais um: “74. Os brasileiros são um povo muito flexível; eles tendem a mudar de emprego de 6 em 6 meses”.  O número em si é uma mera abstração, mas já vi muitos amigos estrangeiros impressionados com o modo como mudamos de vida sem muito problema e estamos sempre prontos para zerar tudo e recomeçar. O brasileiro adora ser freelancer, ser autônomo, fazer de tudo. Melhor do que isso só ser funcionário público com um belo salário (o que ele reconhece no item 69). E finalmente uma que achei divertida: “53. Nem todas as mulheres brasileiras são extremamente ‘quentes’. Algumas são apenas ‘quentes’”.



quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

3072) O rio de Heráclito (2.1.2013)





O filósofo Heráclito disse que “ninguém se banha duas vezes no mesmo rio”. Ele era um desses pré-socráticos cuja filosofia surgiu da observação constante da natureza e dos homens. Bons tempos em que era possível ser filósofo amador, sem ter que estudar Heidegger ou Wittgenstein. Heráclito era uma espécie de Manuel Xudu ou João Paraibano, compondo sextilhas em que pequenos aspectos da Natureza servem de ponto de partida para generalizações abstratas sobre o Universo. Ao que parece não deixou livros; o que escreveu sobrevive apenas em fragmentos citados nas obras dos que vieram depois. Tal como a maioria dos cantadores.

Heráclito queria registrar a mudança constante das coisas, e o rio lhe serviu como imagem perfeita. Ao longe parece estar paradão, imóvel, mas quando o vemos de perto percebemos que ele é uma coluna horizontal de água em deslocamento constante. As águas que nos tocam, quando entramos nele, vão embora para sempre, um instante depois.  Jorge Luís Borges não deve ter sido o primeiro a comentar que a frase de Heráclito nos sugere, como primeira generalização, que “o rio muda o tempo inteiro”, e a maioria das pessoas se detém aí. Mas, se continuarmos pensando, perceberemos que nós, também, mudamos tanto quanto o rio. O homem que entra no rio pela segunda vez também já é outro.

Isso certamente marcou a filosofia grega com esse conceito da diversidade (ou mudança) entrelaçada à identidade (ou permanência). Mas é bom examinar melhor esse aspecto. Ao descobrir ou intuir o conceito de mudança permanente, Heráclito não estava negando a identidade. Ele era filósofo mas não era doido. Sabia que o rio era o mesmo, sim, e sabia que ele também, mesmo mais limpo devido ao banho da véspera, era o mesmo. Sabia que era Heráclito banhando-se de novo naquele rio de Éfeso, não era Jackson do Pandeiro banhando-se no açude de Bodocongó.  Ele percebeu que todas as coisas têm identidade e mudança. São sempre as mesmas, e não-são-mais-exatamente-as-mesmas a cada segundo. Se o sujeito só enxergar a identidade, vai entrar em parafuso cada vez que o mundo botar uma transformação na sua frente; se só enxergar a mudança, corre o risco de não saber que nome assinar no cheque, ou para que casa deve voltar depois da farra.

A ênfase de Heráclito na mudança veio talvez para dar uma sacudida nos seus contemporâneos muito ceguetas, muito presos a uma noção da identidade permanente de todas as coisas. Para nós, ele não é o mero filósofo da mudança. É o filósofo que nos fez enxergar a identidade como um “Algo” que inclui em si todas as suas próprias mudanças concretas e sucessivas. Sem esses dois conceitos, é impossível pensar.


terça-feira, 1 de janeiro de 2013

3071) A Página de Fogo (1.1.2013)





Transporás o Pedregal ensandecido, dilacerando as Membranas do Ser e carpindo as incertezas de teu íntimo Semblante.  Pisa devagar nesta areia coberta de Presságios, para que não despertem as Sentinelas da Treva. Compulsa as nuvens, amealha os ventos.  Um espinho de dor fere o teu centro, e a lembrança de um Não será teu Sol.  À tua esquerda, o Campo-santo dos pássaros afogados; à tua direita, o Sumidouro para onde deslizaram os códigos do Setestrelo.  Seguirás sozinho, ou então te deixarás tombar, na Vereda vazia que te espera. E jamais conseguirás cerzir as Fendas do Passado onde o século se pôs. 

Cada minuto é fatal, e não existe um Elmo para a alma. Serás o Poço onde as tempestades se refugiam. Pensaste pureza e o que tombou em ti fervilhava em Pus. Avança!  Já deixaste para trás a Sesmaria da Punição, à qual sobreviveste, mas que conduzirás para sempre incrustada na Memória.  Só te resta pela frente o Pesadelo do Torvo Talismã, o futuro que em vão abjuraste mas com que os Fados te embeberam.

Ruma para a Neurópolis que te sequestrou a Mente. Lá, o Monstro é ubíquo, mutante.  Sua superfície é de celofane polarizado, frases de acrílico, raios catódicos. Mandalas de Odaliscas rodopiam ao som de tambores neuroniais. É uma criptobabel de signos minerais, um Templo à espera do Deus multicéfalo que o conquistará. Escorrem escamas de ouro pelos seus esgotos, e dos globos oculares de cada Gárgula pendem piercings em forma de Caduceu. Vai, ouve as multidões que se espremem nas ruas, por entre a Treva do Cataclismo; nenhum som cruza seus lábios em carne-viva senão o arquejo do Pandemônio.

Mergulha na Tisna e no Ácido desse crepúsculo de Sangue fuliginoso. Bebe o absinto que gorgoleja de suas Veias abertas com diamantes. Coloca teu pescoço entre as mandíbulas mecânicas do gramofone onde se escuta o vaticínio de suas Sibilas. O Monstro te espera para te trucidar e ressuscitar mil vezes, no Rito e na Pulsação dos Sabás perjuros. O Monstro rasga e se eleva à tua frente com o fragor tectônico de cordilheiras de Basalto e Obsidiana, olhos coruscantes de Acetileno, saliva bioluminescente de Moléculas em recomposição. Ele te focaliza mil olhos de mil formatos diferentes, e te recolhe com uma língua do tamanho de um Continente conflagrado. Aspira esse Hálito que corroerá teus pulmões pela última vez. O Corpo dele será a Sepultura perpétua onde passarás o resto da tua Eternidade. Em vez de garras ele tem baionetas, em vez de colmilhos tem câmaras de tortura com paus-de-arara e tronos-de-dragão – mas, nos desvãos mais úmidos de seu imenso corpo, a sua metade fêmea te amamentará com sexo, drogas e rock-and-roll. 

domingo, 30 de dezembro de 2012

3070) A FC de Pasárgada (30.12.2012)






Uma utopia é um lugar onde tudo acontece do jeito que a gente gostaria que acontecesse.  A utopia dos vegetarianos fecha os açougues, a dos dorminhocos multiplica os feriados. O Paraíso de algumas religiões, por exemplo, é uma variante da utopia. Não sei o que se passava na cabeça dos teólogos medievais que garantiam a existência, no céu cristão, de onze mil virgens. Para quê mesmo?... Atos falhos da psique, de que nem os eremitas do mosteiro estão a salvo.

A utopia de Manuel Bandeira tinha nome: “Vou-me embora pra Pasárgada...”. Bandeira quer ir para esse país imaginário (na antiga Pérsia, ao que parece) onde, ele garante, é “amigo do rei”. (É jeitinho brasileiro dando-se bem em qualquer lugar: “Eu sou ‘assim’ com os home”).  A ironia infantil do poeta denuncia logo de cara esse reinado impossível onde tudo é somente o desejo, desejo atendido no erguer de um dedo.

Os críticos destacam, nesse poema, a nostalgia do rapazinho tímido, fraco, assolado pela tuberculose. Ele anuncia a transformação miraculosa que sofrerá: “E como farei ginástica / andarei de bicicleta / montarei em burro brabo / subirei em pau de sebo / tomarei banhos de mar!”.  Tudo que lhe era proibido na vida real será possível nesse mundo.

Mas aí Bandeira nos vem com um trecho não muito distante da ficção científica futurista: “Em Pasárgada tem tudo / é outra civilização / tem um processo seguro / de impedir a concepção / tem telefone automático / tem alcalóide à vontade / tem prostitutas bonitas / para a gente namorar”. Parece com aquelas utopias urbanas meio dark de Robert Silverberg ou de Samuel R. Delany. Uma cidade cheia de gadgets para nos facilitar a vida, e só faltou dizer que as “prostitutas bonitas” são andróides, como as replicantes de Blade Runner ou as esposas-troféu de The Stepford Wives.

Utopias mecanizadas, como os eletrodomésticos inteligentes de The Jetsons. Guimarães Rosa, no Grande Sertão: Veredas, dizia: “Pois os próprios antigos não sabiam que um dia virá, quando a gente pode permanecer deitada em rede ou cama, e as enxadas saindo sozinhas para capinar roça, e as foices, para colherem por si, e o carro indo por sua lei buscar a colheita, e tudo, o que não é o homem, é sua, dele, obediência?”.  

O mundo automático é um sonho antigo, sonho de lavradores rudes: uma utopia onde os objetos trabalham sem nossa intervenção, como a bolsa que se enche inesgotavelmente de moedas nos contos de fadas, ou a toalha que ao ser estendida põe a mesa completa, no cordel. Essa utopia rural resultou no mundo urbano, moderno, high-tech.  Como todo sonho utópico que acaba se realizando, “deu no que deu”.


sábado, 29 de dezembro de 2012

3069) "Pânico no Ano Zero" (29.12.2012)





Neste filme dirigido (e interpretado) em 1962 por Ray Milland, um homem, sua esposa e o casal de filhos (na faixa dos 20 anos) estão na estrada com seu trailer rumo a umas férias na montanha quando veem de longe Los Angeles ser destruída por uma explosão atômica. As estradas ficam engarrafadas de carros em fuga, e começa uma luta desesperada pelos gêneros de primeira necessidade, e depois pela sobrevivência pura e simples, pois a Lei da Selva começa a se impor. Milland é um sujeito pacato de cujo passado nada sabemos (sequer sua profissão), mas uma das primeiras coisas que faz é comprar armas e afirmar que ninguém vai fazer mal à família dele. Nisto me lembrou muito o Walter White de Breaking Bad, para quem o argumento “estou defendendo minha família” justifica a priori qualquer transgressão, qualquer violência.

Eles se refugiam nas montanhas, abrigados numa caverna onde tentam simbolicamente recomeçar “do zero” a civilização. Arrumam a gruta com mesinha, cadeiras, etc., e dedicam-se à caça e às tarefas domésticas. Mas a Lei da Selva os persegue na pessoa de três jovens suspeitamente parecidos com os companheiros de James Dean em Juventude Transviada – rapazes que querem apenas assaltar, estuprar e divertir-se enquanto o mundo não acaba.

Milland faz um personagem complexo, porque adere com rapidez à violência (ao comprar as armas, por falta do dinheiro completo acaba assaltando o lojista), mas repreende com aspereza o filho que demonstrou prazer ao atirar num inimigo. Diz-lhe que ele tem o direito de matar alguém por auto-defesa, mas que não deve gostar daquilo.

A SF Encyclopedia informa que o filme se baseia (sem dar crédito) em dois contos de Ward Moore (publicados em 1953 e 54 na revista Fantasy & SF), intitulados “Lot” e “Lot’s daughter”. Há um certo paralelo com a história bíblica (os estranhos querendo estuprar a filha; a esposa que “olha para trás” e quer voltar para a cidade destruída).  Roubo, violência, assassinato a sangue-frio – o pai de família não recua diante de nada para proteger ou vingar a honra da família. Não sabemos quem atacou os EUA com bombas nucleares; sabemos que as grandes capitais do mundo foram atomizadas, que aquele ano foi denominado pela ONU “Ano Zero”, mas que a certa altura as conversações de paz chegam a um acordo. Os inimigos, na verdade, são os próprios norte-americanos. A certa altura, um médico se queixa de que as ruas estão cheias de patriotas matando e estuprando. É um pesadelo da Guerra Fria, e mesmo que as cenas de violência (tiros, socos, etc.) pareçam estranhamente ingênuas hoje, a transformação gradual dos personagens mantém o seu teor de ameaça.