domingo, 2 de dezembro de 2012

3046) A cantora virtual (2.12.2012)




(Hatsune Miku)


Ela é projetada no palco à frente da banda, que são músicos de carne e osso, tocando instrumentos de verdade. Ela, a estrela, é feita do que parecem ser feitas as estrelas: luz, vibrações, campos de energia que produzem em 3-D a silhueta de uma lolita nipônica cantando uma mistura de holo-karaokê com visual de hentai preteen. Na platéia, os teens analógicos pagam ingressos, compram bonecos, escrevem fanfic, compõem muitas das canções que ela canta no show.  É um show interativo, um mega-game em que você vê no palco algo que foi em parte criado por você. 

É uma coisa parecida com os Gorillaz, a banda cujos personagens só existiam em desenho animado, e a música era cantada e tocada por músicos atrás de uma cortina, ou coisa parecida. É o caso de Rei Toei, a “idoru” pop de William Gibson, cujo ser holográfico não se limitava ao palco, mas frequentava restaurantes, dava entrevistas em público. Interativa. Alumiosa. 

É assim que um homem a vê pela primeira vez: “E então os olhos dela encontraram os de Lanney. Foi como se ele cruzasse uma linha. Na estrutura do rosto dela, na geometria de ossos que o moldava, estavam codificadas histórias de fugas de dinastias inteiras, e privações, e migrações terríveis. Ele viu lápides funerárias nas escarpas de prados alpinos, com neve em fileiras sobre os seus lintéis. Uma fila de pôneis, hirsutos, o seu bafo branco e gelado, seguindo em trilha no alto de um canyon.  As curvas do rio lá embaixo eram riscas distantes de prata.  Chocalhos de ferro balançando nas rédeas, espalhando um clangor ao por-do-sol. Lanney estremeceu. Sentiu na boca um gosto de metal estragado”.

Por trás da mulher holográfica capaz de ter um olhar assim, existe tecnologia. O mesmo homem reflete depois: “Ela não é de carne, é de informação. Ela é a ponta de um iceberg, não, de uma Antártica de informação. (...) Ela induzia a visão nodal de uma maneira nunca vista; ela a induzia como narrativa”.  O olhar eletrônico dela é um teste de Rorschach subliminar, infravisível, capaz de bombardear uma descarga de ícones instantâneos bem na medula do inconsciente.

A cantora audiovirtual tem voz proporcionada por dubletes, ou tem voz sintetizada na mesma mesa que sintetiza as melodias que ela vai cantar?  Hatsune Miku (http://bit.ly/RuzsRD) está nas luzes da ribalta, ela própria é na verdade uma das muitas luzes dessa ribalta, e o que se pode dizer que alguém que é feita somente de informação e luz. Se estamos chegando à borda exterior do universo trans-humanista, os primeiros batedores que vêm ao nosso encontro são assim, digitais, holográficos, transparentes, súcubos angelicais, geishas skinpunks. 


sábado, 1 de dezembro de 2012

3045) Do Oral ao Digital (1.12.2012)



(A Morte de Sócrates)


São evidentes as semelhanças entre a Cultura Digital de hoje (Internet, mp3, computadores, smartphones, etc.) e a Cultura Oral de antigamente (comunidades rurais, tecnologia zero, contatos face-a-face, etc.). Esa Cultura Oral é a tese, o início; a Cultura Moderna urbana (a indústria, a tecnologia, o comércio) é a antítese, que veio para produzir algo novo. A Cultura Digital vai ser essa síntese, quando se instaurar por completo dentro dos nossos hábitos, do nosso cotidiano e principalmente dentro do nosso mercado de trabalho (ou seja, quando for possível ganhar a vida no interior dela).

Na Cultura Oral, as criações artísticas (histórias, anedotas, canções, danças) eram feitas por indivíduos mas esse autor isolado rapidamente desaparecia, e até mesmo não fazia questão de aparecer. Na modernidade (a indústria fonográfica, editorial, etc), o autor individual passou a ser reconhecido, celebrado, remunerado. A Cultura Digital está nos levando de volta à situação anterior. O que é necessário é fazer uma síntese entre os aspectos positivos de uma e de outra.

Na Cultura Oral, as pessoas produziam histórias e canções para falar de si, para comentar a vida comunitária, para exprimir seus impulsos de transcendência (refletir sobre o mundo, a vida). Foram os “primitivos” que inventaram o conceito de “Arte pela Arte”, não foram os burgueses.  A burguesia (o mundo moderno) impôs de vez o conceito de Arte por Profissão. (E olhe, nada tenho contra isto – sou um artista profissional.) Como vamos fazer a síntese? Porque o mundo nos empurra (caso o mundo não acabe por outros fatores) cada vez mais na direção de um futuro voltado à Arte pela Arte.

Na Cultura Oral, uma obra não tem uma forma fixa; cada vez que é reproduzida sofre interferências. Uma anedota não tem uma “versão original” – tem uma historieta básica que cada um reproduz ao seu modo, com suas palavras. Peças da “Commedia dell’Arte”, canções populares, mitos e lendas, romances em verso, histórias de trancoso, nada disto tem um Original, só tem versões. Já a Modernidade produziu o conceito de uma obra escrita, impressa, registrada, arquivada, e qualquer reprodução tem que ser feita igualzinha a esse original, sem mudar uma vírgula. Interferências nesse original são severamente punidas. (Em princípio, ninguém mexe num texto de Shakespeare ou num romance de Balzac.) Na Cultura Digital, a facilidade de mexer e propagar essas alterações torna inviável essa vigilância. Vai ser preciso encontrar uma síntese; talvez escritores e compositores passem a produzir obras já contando com as possíveis intervenções alheias, quem sabe até estimulando-as, dialogando com elas.


sexta-feira, 30 de novembro de 2012

3044) Fuleco é de lascar (30.11.2012)




Estou puxando pela memória para tentar lembrar alguns exemplos de casos assim, em que pessoas, por falta de familiaridade com um idioma que estão estudando ou utilizando, produzem verdadeiras aberrações linguísticas ou termos sem sentido. Foi o caso da escolha do nome para o mascote da Copa do Mundo. (Pensando bem, o próprio conceito de mascote da Copa do Mundo já é uma idiotice.) (Pensando melhor ainda, Copa do Mundo também.)

A Fifa encarregou pessoas de sugerir nomes pro boneco a partir de palavras-símbolo referentes ao Brasil, à ecologia, etc.  “Zuzeco”, por exemplo, foi uma solução proposta por eles – uma mistura de “azul” (o nosso céu) e “ecologia”. Chinfrim, mas vamos em frente. Fiquei muito perplexo com outra escolha: “amijubi”. O mascote se chamaria Amijubi. Por que? Amizade e júbilo.  Pense numa palavra-naftalina do nosso idioma, é esta última. Ao longo de toda minha vida só a vi por escrito, e mesmo assim na imprensa de jornal pré-1960 e em discursos de inauguração de alguma coisa. Nunca vi um único brasileiro usar a palavra “júbilo” numa conversa.

Vai ver que eles pensaram o mesmo, e a terceira solução – e que parece já estar definitivamente aceita – foi “Fuleco”. Por que? Futebol e ecologia. Nada contra os dois, mas fuleco é de lascar.  Lembra fuleiro, fulo, furreca. Uma mistura de Fu-Manchu com Cacareco. Lembrei-me daquele livro “English as she is spoke”, um guia de idiomas, aparentemente autêntico, onde o autor pretende ensinar inglês ao leitor mas vê-se que não tem a menor idéia do que está fazendo. O título, que queria ter dito “O inglês como ele é falado”, é uma amostra das distorções e desinformações do autor.

Não custava nada chamarem o mascote de Tatu-Bola. Primeiro porque ele é um tatu-bola mesmo, e por isto foi escolhido. Segundo porque é um nome oferecido de bandeja pelo povo (incluindo-se aí os zoólogos e os dicionaristas) do país que sedia a Copa. Custava nada ser tatu-bola?  Este episódio, por mais que seja inspirador de galhofas, pode dar também uma dose de melancolia. O mundo globalizado está virando um grande mal entendido entre culturas, entre idiomas, entre hábitos e crenças. Daqui a pouco não se acha no planeta um par de pessoas que interpretem os mesmos fatos da mesma maneira.

Eu nada tenho contra palavras inventadas, mas eu gosto de snark e não gosto de Zuzeco, e gosto de supercalifragilisticspiralidocious e não gosto de Amijubi.  Gosto de nonada, parangolé, zazueira, crisbeles, riverão, alfômega, panamérica, solaris, ciberespaço, grokkar, robot, grifinória, ludopédio, convescote, monstruário, baurets, in-a-gadda-da-vida... mas não gosto de Fuleco.


quinta-feira, 29 de novembro de 2012

3043) F de Foguete (29.11.2012)



(Elon Musk)


A espaçonave tem sido um símbolo da ficção científica desde o seu começo. O primeiro livro sobre a ida de um artefato mecânico à Lua foi Da Terra à Lua de Julio Verne (1865), mas não se tratava de um foguete, e sim de uma bala de canhão. Balões e veículos de formatos improváveis (e meios de propulsão mais improváveis ainda) foram numerosos no século 19, pela imaginação de H. G. Wells, Garrett P. Serviss e outros. A Encyclopedia of Science Fiction de John Clute menciona como duas das mais convincentes espaçonaves do início da pulp fiction as que aparecem em The Shot into Infinity”de Otto Willi Gail (1925) e The Voyage of the Asteroid de Laurence Manning (1932). Cito estas datas porque aqui no Brasil já tínhamos em 1923 pelo menos duas obras: A Liga dos Planetas de Albino Coutinho, com seu “aeroplano”, além do cordel História do Homem que Subiu Em Aeroplano até a Lua atribuído a João Martins de Athayde, mas cujo verdadeiro autor talvez seja Leandro Gomes de Barros.  Espaçonaves cientificamente canhestras, mas em todo caso são provas de que a FC no Brasil surgiu par-a-par com a dos EUA e Europa.

Elon Musk é um jovem (nasceu em 1971) empresário dos EUA que está tentando reaquecer sozinho a corrida espacial. Segundo ele, a astronáutica dos foguetes está mais do que defasada, tanto no aspecto técnico quanto no econômico. Parece delírio? Bem, ele é o criador do PayPal, uma das coisas que deram mais certo até hoje no mundo da web. Diz Musk (http://bit.ly/Rc9t45) que a tecnologia aeroespacial não experimentou melhorias materiais desde os anos 1960, e na verdade pode até ter regredido. Para ele, “as empresas aeroespaciais têm uma incrível aversão ao risco”, e seu excesso de cuidado chega até o ponto em que, num engraçado paradoxo, “um componente que nunca foi ao espaço não pode ir ao espaço”.

Além disso, diz ele, a febre de terceirização faz essas empresas delegarem tarefas a subcontratantes que por sua vez chamam outros, a um ponto em que “é preciso cruzar quatro ou cinco camadas de poder até chegar a alguém que esteja de fato fazendo alguma coisa”. Por isso, diz ele, o voo espacial é tão caro. Isso, e os custos de produção dos foguetes (que ele afirma ser capaz de reduzir a 10% dos custos atuais). “Imagine”, diz ele, “se cada avião durasse apenas uma viagem. Não haveria transporte aéreo”.  O projeto de Musk é enviar um foguete tripulado a Marte em 10 ou 20 anos, a um custo muitíssimo inferior ao que vem sendo praticado pela NASA. A antiga inequação “Estado paquidérmico x Empresariado ágil” parece estar emergindo de novo, após meio século de corrida espacial financiada pelos governos.



quarta-feira, 28 de novembro de 2012

3042) Droga e liberdade (28.11.2012)






No filme The Corporation, a certa altura os realizadores questionam o uso maciço de propaganda dirigido às crianças nos EUA para que comprem (ou peçam aos pais) brinquedos, doces, etc.  Os entrevistadores perguntam se não é eticamente errado manipular com publicidade as mentes despreparadas dos pirralhos, fabricando desejos, num momento em que elas não têm uma visão crítica sobre o que estão assistindo. Uma executiva responde, rindo: “But it’s just a game!”. É só um jogo! Para a mentalidade dos executivos, é um jogo de números entre as empresas, como o Banco Imobiliário. Eles precisam melhorar a relação dos números da própria empresa (vendas, lucro, etc.), e a relação entre os números da empresa e os dos concorrentes.

Todos nós somos assim, não é mesmo? Todos somos politicamente corretos, religiosos, bons cidadãos, mas no momento em que alguém bota um putufú de dinheiro em cima da mesa e diz: “Será seu, se você fizer tal e tal coisa”, argumentos brotam dos lugares mais inesperados da nossa mente, convencendo-nos de que não estamos fazendo aquilo pelo dinheiro, mas por uma lista de motivos nobres que daria duas voltas-à-esquina. Se uma fábrica de pipoca me oferecesse um salário mensal de 100 mil reais para dirigir seu setor de publicidade, forçando todas as crianças da Paraíba a comerem pipoca desenfreadamente, eu pensaria: “Ora... Pipoca é milho!  É cultura indígena! O milho faz parte de nossa dieta desde tempos imemoriais. Contém amido!  Melhor vê-los comendo pipoca do que mascando chicletes”. E assim por diante.

Não é impossível que alguns fabricantes e vendedores de crack, metanfetamina, heroína, etc., sejam cidadãos corretos em sua vida doméstica: bons pais, bons maridos... Podem ser honestos, incapazes de desviar para si um só centavo que não seja seu.  E se lhes perguntarem pela destruição causada pela droga que vendem, eles responderão, como o químico nerd de Breaking Bad: “Compra droga quem quer, usa quem gosta. São adultos, e são livres para escolher”.  Ora, ninguém é livre para escolher. Nossas escolhas aparentemente livres são sempre influenciadas por alguém de fora. Nossa liberdade de escolha se dá sempre num corredor de pressões e proibições. O fantasma da liberdade (como dizia Buñuel) nos faz imaginar que somos sempre donos das nossas opções, mas agimos dentro de limitações estabelecidas por quem nos explora. Uma criança é livre para escalar um parapeito e pular de um vigésimo andar. Mas essa “livre” escolha a precipita numa situação em que fica impedida de escolher, para sempre. A droga é uma livre escolha que em alguns casos conduz ao cancelamento de todas as liberdades.



terça-feira, 27 de novembro de 2012

3041) "Laranja Mecânica" (27.11.2012)




Está saindo pela Editora Aleph (SP) uma edição comemorativa dos 50 anos de “Laranja Mecânica” de Anthony Burgess. É um clássico da ficção científica psicossocial.  O romance pressupõe três coisas: 1) a proliferação de gangs criminosas de jovens urbanos, num grau que a Londres de 1962 mal seria capaz de imaginar); 2) a utilização, pelo Estado, de técnicas de lavagem cerebral, ou condicionamento por aversão; 3) a contaminação da gíria dos jovens londrinos com termos vindos da língua russa.  É uma FC voltada para a sociologia e a psicologia. Não precisa de aliens, espaçonaves, pistolas de raios.

Burgess escreveu o livro numa Inglaterra cujas principais tribos de delinquentes juvenis eram os mods, os rockers e os teddy-boys. Eram a “juventude transviada” de uma época em que o rock começava a fazer soar seus primeiros acordes e as drogas eram consumidas em pequenos focos isolados. Ele tentou revestir sua extrapolação futurista de traços não-realistas, para ressaltar seu lado alegórico: roupas, hábitos, linguagem.  Queria que a violência do livro fosse “mais simbólica do que realista”. Não previu que seu livro e o filme resultante, de Stanley Kubrick, se transformariam em influência e (em alguns aspectos) em modelo.

A tradução de Fábio Fernandes enfrenta com criatividade o desafio de ter que inventar e adaptar palavras o tempo todo. O mais interessante desta edição comemorativa é a inserção de textos e entrevistas de Burgess, em que ele conta uma viagem sua a Leningrado, explica a origem do título, e faz uma avaliação de suas intenções ao escrever o livro. Ele quis fazer uma discussão sobre o livre-arbítrio – um criminoso tem tanto direito a fazer escolhas quanto nós?  “O homem ou a mulher que nunca fez o mal não pode saber o que é o bem”, diz Burgess. “Não sei a medida de livre-arbítrio que o homem possui de verdade, mas sei que o pouco que parece ter é precioso demais para ser usurpado, por melhores que sejam as intenções do usurpador”.

Burgess afirma que o editor norte-americano de “Laranja Mecânica” decidiu cortar o 21º. capítulo da edição inglesa. Achava esse capítulo (que mostra um Alex mais amaciado, menos radical, preparando-se para entrar na vida adulta) “britânico demais, ameno demais”.  (Este capítulo está incluído na edição brasileira.) Segundo Burgess, foi essa edição incompleta que Kubrick adaptou para o cinema. Por que Burgess não protestou, não interferiu, não os processou? Talvez porque tenha visto nesse corte um exercício do livre-arbítrio alheio. A possibilidade de dois finais diferentes para a história meio que simboliza a nossa liberdade (e paradoxalmente a nossa obrigação) de escolher.

domingo, 25 de novembro de 2012

3040) Os robôs zumbis (25.11.2012)


(Oscar N)

Os ferros-velhos de robôs são tão melancólicos quanto os cemitérios de automóveis. Elegias fúnebres celebrando à luz do sol a oxidação e o esboroamento dos seres de metal. O marrom da ferrugem roendo como um câncer as placas luzidias, os circuitos labirínticos. Himalaias do desperdício industrial, o estado-da-arte de ontem sendo hoje arrastado e solto no lixão dos descartáveis. Aqui e acolá um sacoleiro de chips faz sua coleta esperançosa, mas os tecno-monturos erguem colinas a perder de vista, pois a cornucópia eletrônica não para de vomitar silos e mais silos de placas-mães.

Nos lixões de robôs já filmei com celular a imensa vala comum onde sub-empregados esqueléticos seguravam os autômatos pelos braços e pernas, balançavam, atiravam lá de cima, fazendo-os cair no fundo e ir escorregando por cima dos corpos desconjuntados dos que os precederam. Andróides, ciborgues, robôs, servomecanismos; contrafações humanóides estruturadas em circuitos eletrônicos, esqueletos hidráulicos, microengrenagens, massa muscular sintética, sistemas nervosos em fibra ótica mais fina que um cabelo de bebê. Conseguimos reproduzi-los mais depressa do que nossa própria reprodução biológica/coital. Bilhões de espantalhos articulados, programáveis, obedientes ao controle remoto e à administração wireless dos governos. E que quando quebram são jogados fora. Pra que consertar? Quando um deles cai, dez outros se erguem de uma linha de montagem em Xangai, em Mumbai, em Dubai, em lugares onde nem chegou o Google Earth.
 
Aquilo que tomba hoje vem a se erguer amanhã. E de repente as ruas estão tomadas pelo clang-clang dos retirantes cibernéticos, cambaleando sob o sol, vagando sem destino, sem tarefa, sem missão. Quem os reergueu da tumba aberta? Quem trouxe de volta esses lázaros de titânio e categute? Talvez um vírus; um restinho de vida num pseudo-cadáver se transmitiu por wi-fi em círculos concêntricos na vala comum e despertou a todos, ferindo um nervo ainda vivo, desencadeando sub-rotinas mentais, e pronto, aqui estão eles invadindo as praças, atravancando avenidas, executando gestos sem sentido que lhes foram impostos ao ferro-em-brasa de um algoritmo – aparafusar peças não-existentes, colher soja no asfalto vazio, orientar trânsito no espelho dágua da pracinha. Mortos vivos, Doppelgangers insetóides, que não têm fome de nossos cérebros nem nos desejam mal, mas que estão a cada dia inviabilizando nossas cidades. Pela sua mera quantidade e surdez. Pela automatização compulsiva que os arrasta, e que não nos deixa outro remédio senão nosso último esporte radical, despedaçá-los a tiros e esperar que as balas sejam mais numerosas.

sábado, 24 de novembro de 2012

3039) O samba e o baião (24.11.2012)



(Donga)


A industrialização musical cria modelos e processos. Tudo que não for feito de acordo com o processo e que não fique parecido com o modelo soa como coisa falsa, e muitas vezes é uma coisa mais verdadeira, “the real thing”. 

Crianças que tomam água de coco em caixinhas longa-vida tomam susto ao ver um coco de verdade ser aberto. 

Espectadores veem um grupo numa praça fazendo teatro de rua, e perguntam “onde está o teatro”. 

Algo parecido acontece na música. O disco criou um formato padrão de canção popular, imposto a ferro e fogo durante um século; e pensamos que só é canção se for assim.

Nos anos 1940, Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira começaram a escrever baiões que eram gravados com grande sucesso. O sanfoneiro de Exu lembrou uma toada que ouvia desde a infância, um pedacinho melódico muito simples, com versinhos soltos e saudosos sobre uma ave que foge do sertão por causa da seca. Cantarolou esses farrapos de música para Humberto, e logo os dois deram uma formatada final na melodia, que o letrista cobriu com estrofes simétricas. 

“Asa Branca” é esse produto híbrido entre pedaços de cantiga anônima e elementos novos, eruditos. Um verso como “Quando o verde dos teus olhos se espalhar na plantação” não é verso da tradição oral, é verso feito de caneta por um leitor de José de Alencar.

Algo parecido ocorreu com “Pelo telefone”, o primeiro samba gravado em disco, em 1917, e assinado por Donga.  

Assinado é bem o termo, porque Donga fez um apanhado de refrões, chamadas e batuques que eram cantados nas festas da casa de Tia Ciata, na “Pequena África” do Rio de Janeiro. 

Em seu livro Feitiço Decente Carlos Sandroni analisa em detalhe essa colcha de retalhos de toadas, e o modo como ela foi alinhavada às pressas para se enquadrar nos limites de tempo de uma gravação fonográfica. “Pelo telefone” gerou numerosas polêmicas, não só de autoria, mas também quanto ao fato de ser ou não o primeiro samba gravado. (Esta discussão está no saite Cifrantiga: http://bit.ly/10dgwwO).

A criação musical popular é solta, mutante, indisciplinada. Na cultura oral, todo mundo mexe nas músicas, tira e põe versos, muda o que não gosta ou o que não lembra.  

Já a indústria cultural precisa de critérios nítidos: tamanho fixo e formato fixo para as obras, autoria inequívoca, registro, e depois do registro ninguém mexe mais. Voz no vinil, cifra na partitura, letra no livro: a indústria precisa disso para uniformizar seus produtos. 

Cultura oral e indústria sempre trabalharam com conceitos opostos. É curioso que agora a Cultura Digital começa a arrastar esses conceitos para longe da indústria e para perto da cultura oral antiga.







sexta-feira, 23 de novembro de 2012

3038) O Diário de Dilma (23.11.2012)



(ilustração: Caco Galhardo)


A revista Piauí tem uma página intitulada “O Diário de Dilma”, um pseudo-diário atribuído à presidenta Dilma Roussef. A gente tem o direito de achar que está numa democracia quando alguém ridiculariza o mandachuva do país e não é preso. O “Diário de Dilma” não ridiculariza a presidenta, até pelo irrealismo da proposta, mas faz uma engraçada justaposição entre o pessoa real e a personagem literária, uma perua sempre preocupada com o penteado, o vestido, a decoração; que reduz às mais terrificantes banalidades alguns episódios sérios do momento; que suspira de langor por um embaixador bonitão, ou por um ministro cujo charme a conduz a devaneios. A revista atribui o “Diário” ao jornalista Renato Terra, mas, como também o atribui, em primeiro lugar, à própria presidenta, uma coisa relativiza a outra, e talvez o texto não seja produto de nenhum dos dois.  Talvez o seu redator seja alguém insuspeito e improvável.

O “Diário” de outubro (na Piauí de novembro) vem sob o título “Malandro é o curupira, que só faz gol de calcanhar”.  É a reta final da campanha eleitoral, e “Dilma” comenta: “Tô cheia de usar vermelho por causa desses comícios! Encomendei uns blazers bacanas de verão, laranja, azul Klein, rosa-choque, mas o Lula insiste em me botar de vermelho.  Pareço um tomate”. No dia 4, após o primeiro debate entre Barack Obama e Mitt Romney, ela anota: “A Ideli não confessa, mas é louca pelo Romney. Cada vez que a tevê dá um close naquele queixo talhado a buril, ela dá uma tremelicada. É sutil mas eu percebo”.

Parece os diários das adolescentes que leem Thalita Rebouças. Em 5 de outubro ela se queixa: “Sabe onde me enfiaram agora? Na exposição de um tal de Caravaggio. Legal até, mas o povão está interessado nisso? Tive de fazer biquinho e cara de raciocínio, o que é péssimo para as comissuras. Vou mandar a conta do refil do botox para a União e não quero nem saber”.  No dia 17, ela fica matutando: “Tadinho do Zé Dirceu. Será que tem consulado do Equador aqui em São Paulo?”. Fica ansiosa para saber quem matou Max na novela Avenida Brasil, manda a Abin investigar, recebe a resposta e, na véspera de um comício na Bahia, diz que “dependendo do clima, incendeio a militância revelando o nome ali mesmo”.

O “Diário de Dilma” funciona um pouco como aquelas canções de Juca Chaves satirizando o governo Juscelino (eita, fui longe agora – talvez só eu e Dilma lembremos essa época!). É uma leitura galhofeira de fatos reais, e a verdade é que nada reafirma tanto a solidez de um regime quanto a magnanimidade com que tolera (quem sabe até financia) a atividade dos que o submetem à caricatura.


quinta-feira, 22 de novembro de 2012

3037) Dicas de escritores (22.11.2012)



Sou leitor desses decálogos e mandamentos de escritores sobre como escrever. Em geral são escritos no imperativo:  ”faça isso, não faça aquilo, procure fazer assim, jamais faça assado”.  Tudo isso deveria ser escrito na primeira pessoa: “eu faço isso, eu não faço aquilo, eu procuro fazer assim, eu jamais faço assado”.  Não importa se o autor é William Faulkner ou John Updike. Na grande maioria dos casos um bom autor só consegue ser ele mesmo. Ele sabe fazer, sabe como o consegue, e passa a informação adiante. Nada obriga essa descoberta dele a ser útil para mim, ou para Fulano. Mas é sempre lucrativo aprender como funcionam os processos criativos alheios.


Os grandes autores (profissionais, consagrados, com dezenas de títulos, milhões de livros vendidos, com prêmios e honrarias, poder, credibilidade) concentram todas as suas forças criativas na própria literatura, o que, em termos práticos, isso significa sua própria maneira idiossincrática de praticar a literatura.  Fazem isso a tal ponto que muitas vezes parece não haver espaço, neles, para admirar a literatura alheia, ou pelo menos a literatura alheia que é diferente da sua.

Decálogos sobre “como escrever” parecem decálogos de etiqueta sobre “como se comportar em público”.  É impossível universalizar tais instruções, porque o que funciona num local e num momento não funciona no outro. Mas cada conselho “faça isso, não faça aquilo” exprime verdades construídas na prática, e em grande parte dos casos eles nos ajudam a entender melhor nossos próprios defeitos, e construir nosso próprio método de trabalho.

Muitos autores acordam e escrevem durante duas horas, sem parar, antes do café da manhã. “É o melhor momento”, dizem; “a mente está a mil”. Agradeço sempre a informação, mas de nada me vale, como de nada valeria eu explicar a eles que estas linhas estão sendo redigidas às 04:19 da madrugada – e não estou pensando em ir dormir nem tão cedo. Há quem prefira escrever à mão num caderno, há quem prefira ditar, há quem escreva poesia com o polegar num tecladinho luminoso. Caneta Bic ou Mont Blanc, Parker 51 ou Futura? Máquina Olivetti ou máquina Remington (são tão diferentes quanto um PC e um Mac)? No calor ou no frio? Trancafiado a sós ou no alarido de um café?

O conselho é realmente útil quando vem de alguém com uma combinação de cacoetes, talentos ou inabilidades parecida com a nossa. Às vezes um conselho bobo (“não use a primeira pessoa, nunca”, “escreva no presente do indicativo, não no passado do verbo”, “prepare resumos do que vai fazer em seguida”) salva a carreira de um sujeito e de nada adianta para outro.