terça-feira, 30 de outubro de 2012

3015) Os jeans e a FC (28.10.2012)




Recentemente comentei nesta coluna o romance Zero History de William Gibson (http://bit.ly/KomW6C), talvez o primeiro livro de FC que tem como tema a fabricação de jeans. Gibson, que de certo modo inventou a realidade virtual em Neuromancer (1984) começou em seus últimos livros a explorar a virtualização da realidade física. Ele percebeu que a realidade daqui de fora dos computadores é tão artificial quanto a da Matrix. Ela é o que chamamos de “mídia ambiente” (“media landscape”), um espaço físico completamente artificializado através de linguagens superpostas, entrelaçadas e conflitantes: arquitetura, vestuário, publicidade, decoração, urbanismo, comunicações, etc. Tudo é linguagem. E tudo é produto de uma máquina feita de gente, planejamento, sistemas e maquinismos.

Na selva barroco-pop, as pessoas estão anestesiadas, embrutecidas de tanta poluição semiótica. E Gibson imagina a criação de produtos que estão limpos dessa sujeira linguística, produtos que utilizam uma linguagem não-referencial, produtos tão simples que não se parecem com nada. Em Reconhecimento de Padrões (2003) é A Filmagem (The Footage), fragmentos de um filme anônimo, que brota aos poucos na Internet sem que se saiba quem o dirigiu, onde, quando. Um filme esteticamente perfeito, para os cinéfilos de um culto que o investiga e acompanha (é este o tema do livro). Em Zero History, é a marca de jeans “Gabriel Hounds”, que tem textura perfeita, corte, acabamento. Um jeans que não se parece com nada, e é vendido clandestinamente, sem propaganda, só para os iniciados. Gibson parece procurar produtos que são verdadeiros paradoxos: produtos no mais alto grau de refinamento de uma cultura e ao mesmo tempo esvaziados de cultura, objetos platônicos que só significam a si mesmos, sem nenhum referencial exterior.

Scott Morrison é um fabricante de jeans-sob-medida em Nova York (http://3x1.us) que certa vez distribuiu calças novas para os lavadores de pratos de um restaurante para que estes os usassem durante o trabalho, na cozinha quente, enfumaçada. O uso “quebra” as fibras e amolda os jeans ao corpo (tem gente que entra na banheira com o jeans novo para acelerar esse processo). Morrison procura o que os japoneses chamam “wabi-sabi”, a beleza do que é “imperfeito, impermanente, incompleto”, a beleza que decorre do uso humano, do desgaste humano, das pequenas vacilações humanas na feitura que dão aos objetos uma marca única, incapaz de surgir da máquina. Ao seu modo, Gibson, como Philip K. Dick, procura estabelecer, num mundo de máquinas, quais são os sinais da presença humana, da vida humana, da imprevisível e inimitável ação humana.


sábado, 27 de outubro de 2012

3014) Cifrões eletrônicos (27.10.2012)





Uma das coisas boas do capitalismo (sistema tão perseguido nesta impiedosa coluna!) é o fato de que ele se esforça o tempo inteiro para descobrir maneiras mais fáceis e mais fluidas de produzir, de transportar, de estocar, de expor, de vender, de cobrar, de entregar.  Vive disto, não é mesmo? – então tem mais é que aplainar os caminhos pedregosos que ligam estes processos. 

O dinheiro eletrônico surgiu para eliminar a necessidade de transferir sacos cheios de moedas metálicas de um continente para outro.  As máquinas de cartão de crédito foram um passo adiante, e agora existem sistemas como o Square em que qualquer celular pode se transformar numa maquininha dessas. Você pluga na entrada dos fones de ouvido a engenhoca eletrônica, passa ali o cartão bancário, digita seus dados (ou aperta sua impressão digital), e presto! – o dinheiro foi transferido. Para isto, claro, o celular precisa baixar o aplicativo correspondente.  O Square é uma criação de Jack Dorsey, que é também um dos criadores do Twitter. Numa matéria da Wired (http://bit.ly/KUEM27), Dorsey argumenta que os novos smartphones têm muito mais poder de processamento do que um Banco inteiro de décadas atrás, e seria bobagem não aproveitar isso para disseminar o ato da venda eletrônica.

Gigantes da transação eletrônica como PayPal e VeriFone rapidamente copiaram a inovação, e Jennifer Miles, vice-presidente desta última, admitiu: “Square pegou uma indústria sonolenta, que há anos vinha fazendo as coisas sempre do mesmo modo, e introduziu uma inovação; mas é um processo que pode ser replicado”. Também faz parte do capitalismo essa disposição constante em copiar o que o concorrente fez e está dando resultado. Dorsey não liga. Ele parece fixado (como Steve Jobs, um dos seus gurus) na maneira mais simples e prática de fazer as coisas. Diz ele: “O desafio que eu coloco para nossa equipe de produção é criar um aplicativo que eles mesmos queiram usar. Isto é uma coisa que eu aprendi na Apple. É a razão pela qual eles estão o tempo todo surpreendendo os usuários”.

O sistema de livre concorrência obriga à produção de muita bobagem desnecessária, mas em seu lado positivo ele cria uma mentalidade de design, de excelência, de aperfeiçoamento em busca da melhor forma de fazer as coisas. As futuras sociedades socialistas devem ficar de olho nesse aspecto do capitalismo. A concorrência criativa força as melhores mentes a buscarem as melhores soluções, e em certo ponto isso se torna uma corrida estética, à procura da beleza e da funcionalidade, e deixa para trás a acumulação onívora de capital, a sede predatória pelo lucro incessante.


sexta-feira, 26 de outubro de 2012

3013) Tarzan 100 Anos (26.10.2012)





(1a. edição em livro) 


O romance Tarzan dos Macacos foi publicado pela primeira vez no número de outubro de 1912 da revista The All-Story Magazine e iniciou uma das franquias mais bem sucedidas da pulp fiction e da cultura de massas. Edgar Rice Burroughs publicou cerca de 20 romances envolvendo o lord inglês perdido na selva ainda criança e criado pelos macacos africanos. Ao que se diz, foi ele o primeiro escritor a ganhar um milhão de dólares produzindo ficção popular. ERB criou outras séries de grande sucesso: as aventuras de John Carter em Marte, adaptadas há pouco para o cinema, e as histórias de Pelucidar, o reino subterrâneo.

Na revista Million (set-out 1991), Brian Stableford dá um balanço na obra desse típico escritor “pulp”. Diz ele que o núcleo do mito de Tarzan está nos dois primeiros livros (Tarzan of the Apes, 1912; The Return of Tarzan, 1913), e que nos romances seguintes Burroughs limitou-se a repetir situações. Quando tentou introduzir novidades, os resultados foram bizarros, e ele dá como exemplo Tarzan e os Homens-Formigas (1924), Tarzan no Centro da Terra (1930), Tarzan e o Homem Leão (1934). Diz ele também que Tarzan e a Cidade Proibida (1938) é obra de um ghost-writer, o qual, ainda por cima, tinha pouca familiaridade com o universo do personagem.

O charme de Tarzan, diz Stableford, é que ele tem o coração de um leão e a mente de um aristocrata, e os dois não estão em conflito. Ao conhecer as capitais européias ele as despreza e volta para a selva natal, porque os parâmetros morais na selva são mais elevados do que os das cidades. Tarzan é a mais bem sucedida fantasia do “bom selvagem” não corrompido pela civilização.  Sua selva é uma construção bizarra, impossível de encontrar na vida real: muitos dos animais em Tarzan dos Macacos, inclusive os leões, não habitam a floresta. Seus macacos são um composto imaginário de diversos tipos. A primeira versão do livro tinha inclusive tigres que um editor prudente achou melhor suprimir.

Stableford diz que em geral compara-se Tarzan com Mowgli, o menino-lobo do Livro da Selva de Kipling, ele também um bebê criado e adotado pelos animais selvagens. A comparação mais precisa (diz ele) seria no entanto com o Peter Pan de James Barrie – alguém que vive numa Terra do Nunca e só é capaz de ser feliz dentro dela. Peter Pan e Tarzan se decepcionam com o mundo civilizado, um mundo forjado pelos adultos, em torno de problemas adultos, ambições e hipocrisias adultas, concessões e negociações típicas dos adultos. Voltar para a selva ou para a Terra do Nunca é voltar para um mundo de aventuras sem risco e violência sem culpa, característicos da infância.


quinta-feira, 25 de outubro de 2012

3012) A frase de Feynman (25.10.2012)



(Richard Feynman)


A gente sempre imagina (os livros escolares têm grande parte da culpa) que a humanidade está constantemente evoluindo da ignorância para o conhecimento, da barbárie para a civilização.  Diria Augusto dos Anjos: “Ilusão trêda!”.  A barbárie não desaparece com o surgimento da civilização: é diluída por ela, assim como o leite já existente numa xícara não desaparece quando derramamos café dentro dela. Civilização e barbárie, ignorância e conhecimento, tudo isto continua a ser produzido sem parar. Varia apenas o ritmo e a intensidade de cada um.

É confortável pensar que a evolução humana é uma lei da natureza, mas as idéias confortáveis são tão perigosas quanto os paraísos artificiais. Não duvido nada que nas próximas décadas aconteça alguma catástrofe planetária (calma, estou virando a boca pra lá), de natureza econômica ou ecológica, e em um simples século a gente perca tudo que aprendeu. Como teria dito uma vez Einstein: “Não sei que armas serão usadas na Terceira Guerra Mundial, mas na quarta serão arcos e flechas”.

Perguntaram ao físico Richard Feynman (procurem meus artigos sobre ele no Mundo Fantasmo): Se algum cataclismo destruísse todo o nosso conhecimento científico, mas você pudesse deixar para os homens futuros uma simples frase, que frase seria essa?  Que informação essencial, comprimida numa pequena cápsula, permitiria reencontrar o caminho perdido da ciência?

Feynman respondeu que um ponto de recomeço importante seria a hipótese atômica, ou seja, o nosso conhecimento sobre a matéria de que o Universo é feito. E ele sugeriu a frase: “Todas as coisas são feitas de átomos, minúsculas partículas que giram em movimento perpétuo, atraindo-se umas às outras quando estão a pequena distância, mas repelindo-se quando tentamos apertá-las umas de encontro às outras”. Para Feynman, esta descrição contém uma quantidade enorme de informação sobre o mundo. O fato da matéria que parece sólida consistir em “grãos” invisíveis, separados por espaços vazios; o fato de esses grãos manterem relações de energia entre si (atração e repulsão); o fato de que, quando tentamos interferir no equilíbrio das partículas, essa energia reage de maneira violenta (como quando pegamos dois ímãs e tentamos forçar suas extremidades iguais uma de encontro à outra).

Feynman esgota o assunto? Claro que não. Biólogos, astrônomos, geneticistas etc. iriam certamente propor outras frases, outras fórmulas. Bem que poderíamos compilar uma antologia delas e gravá-las em todas as línguas, em todas as montanhas, em todas as memórias. Uma nova Tábua de Esmeralda, preservando as células-tronco do conhecimento, para fazer o mundo nascer de novo.


quarta-feira, 24 de outubro de 2012

3011) Contracapa de post (24.10.2012)




&  quando você toma a primeira cerveja do dia antes mesmo de levantar da cama, está na hora de revisar parâmetros  &  não sei onde a generosidade me surpreende mais, se entre os abastados, se entre os mendigos  &  comemorar aniversário é fazer um risco a mais na parede da cela  &  pensavam que iam me prender e eu saí voando com gaiola e tudo  &  eu gostaria de dar um pulinho rápido no futuro só para saber como vão chamar a época em que eu vivi  &  sou do tipo que se remexer na cesta de lixo do escritório traz de volta metade das coisas  &  um submarino repleto de pássaros coloridos  &  passei a vida me preparando contra catástrofes que nunca aconteceram, ou seja, deu certo  &  a roda só foi inventada quando havia cem pessoas pensando naquilo o tempo inteiro  &  um túnel com lojas de shopping nas paredes laterais  &  a imagem fala à razão, o som fala ao inconsciente  &  hoje em dia só quem acha um mecenas são os bobos da corte  &  certas pessoas são como os guindastes, levantam tudo mas se caírem não se levantam sozinhos  &  o governo oferece pacote completo: anistia, amnésia e eutanásia  &  o simples fato do sujeito concordar em ir para a guerra já o torna merecedor de uma medalha por bravura  &  todo escritor devia ter uma luzinha vermelha na testa que piscasse furiosamente sempre que ele está trabalhando  &  uma pistola de dois canos e uma faca de duas lâminas  &  o sertão é divino e a cidade é maravilhosa  &  uma dor serve também para nos garantir que o resto do corpo não está doendo  &  uma tragédia é um drama do qual a gente não consegue rir tempos depois  &  a vida é uma guerra sem exército inimigo  &  o poeta é um mero para-raios, esperando a poesia acontecer  &  Wall Street está durando mais do que o Muro de Berlim  &  em História deveríamos dizer sempre “um segmento de fato”, porque fatos não têm começo nem fim  &  o que mais precisamos na vida é de coisas que não nos deixem ficar pensando no significado da vida  &  o pavão é tão burro que não sabe que é bonito, pensa que aquilo quer dizer força  &  se eu pegasse dois dias de cadeia por cada piada politicamente incorreta que já falei, ia ter de reencarnar pra poder pagar tudo  &  ver futebol sem torcer por nenhum dos dois times é como tomar cerveja sem álcool  &  o melhor lugar para esconder dinheiro é gastando  &  tão samurai que lhe basta uma pena de ganso para estripar um exército inteiro  &  eu bebo a vida naquelas canecas de agarrar com a mão inteira  &  por aí tem candidato a prefeito que não conseguiria mestrar um jogo de RPG  &  um olho de vidro com um aquário dentro onde nadam peixes cegos  &


terça-feira, 23 de outubro de 2012

3010) A retórica da FC (23.10.2012)



(ilustração: John Schoenherr)


O fantástico e a ficção científica se baseiam numa retórica em que, como observou Samuel R. Delany, expressões metafóricas são usadas de um modo literal. Na literatura comum, expressões como “voltar ao passado”, “virar bicho”, “ser um morto-vivo”, “atravessar paredes”, “ler o pensamento” são metáforas. No fantástico e na FC, tudo isto acontece ao pé da letra. Ademais, essa retórica especial combina palavras comuns para formar sentidos inesperados, e Delany dá o célebre exemplo da frase de Heinlein: “The door dilated”. A porta se dilatou. O leitor de FC deve ser alguém capaz de imaginar um mundo em que as portas são aberturas na parede que se dilatam e depois se fecham de novo.

Uma imagem como “pistola de raios desintegradores” (anos 1920?) é um produto dessa retórica, concebido numa época em que “pistola” era algo banal, e “raios” eram um aspecto do mundo físico intensamente estudado pela ciência, resultando em descobertas divulgadas pelos jornais (mais do que hoje, aliás). A noção de que raios pudessem desintegrar não era absurda, portanto, e o fato de poderem ser produzidos (por que fonte de energia? com que tipo de controle?) em algo do tamanho de uma pistola era uma conveniência narrativa. A literatura mainstream não dispunha dessas licenças retóricas. Tinha que se restringir ao já existente, ou ao que um dia existira.

Uma vez, escrevendo um conto de FC ambientado em outro planeta, eu quis fazer um personagem, que precisava conversar com uma autoridade qualquer, dizer: “Onde tem uma cabine telefônica?”. Vi logo a bobagem de usar a expressão “cabine telefônica” num futuro cheio de espaçonaves mais velozes do que a luz, e com dezenas de raças (e culturas, e tecnologias) alienígenas. Falei: “Onde tem um emissor de presença?”. E logo o personagem era levado a uma sala escura, e na extremidade oposta aparecia a imagem do escritório do figurão. “Emissor de presença” é uma tecnologia retórica para empregar o mesmo procedimento (comunicação à distância) evitando expressões datadas. “Emissor” tem parentesco linguístico com “transmissor” (que também poderia ter sido usado). E “presença” sugere algo mais que a simples reconstituição sonora da voz – sugere algo como um Skype, que sob diferentes nomes e formas foi um dos primeiros sonhos telecomunicatórios da FC. A retórica da FC nos obriga a descartar as expressões comuns e criar novas combinações de termos (ou mutações das palavras já existentes) para forçar o leitor a, assimilando a palavra ou expressão desconhecida, assimilar o conceito inesperado e novo. Assim surgiram “máquina do tempo”, “ciberespaço”, “andróide”, “steampunk”, etc.


domingo, 21 de outubro de 2012

3009) "A Volta do Parafuso" (21.10.2012)





Esta noveleta de Henry James (1898) é um clássico da literatura de terror, e teve uma ótima adaptação para o cinema (Os Inocentes, Jack Clayton, 1961 – aqui, uma boa e informativa crítica de Colm Tóibín: http://bit.ly/SXIoxz). É a história de uma governanta que vai cuidar de um casal de crianças (10 e 8 anos) numa mansão assombrada pelos fantasmas de um casal de criados que, quando vivos, estavam fazendo tudo para perverter o garoto e a garota. A governanta vê os fantasmas; as crianças parecem não vê-los, e tudo conduz a um desfecho trágico.

Já correu um Açude Velho de tinta a respeito desse livro, que é um dos grandes exemplos do que a gente chama “o fantástico todoroviano”. A teoria de Tzvetan Todorov é de que uma história legitimamente fantástica é aquela que permite o tempo inteiro duas leituras: uma leitura sobrenatural (os fantasmas existem de fato) e uma leitura realista (tudo não passa de um delírio provocado pela sexualidade reprimida da governanta). As duas leituras estão entrelaçadas, e qualquer pessoa que queira defender uma delas encontrará numerosas pistas ao longo do texto.

Um aspecto que se discute menos sobre esta pequena grande história é que James foi um dos primeiros e melhores formuladores da teoria que hoje chamamos “Não Mostrar o Monstro”. Quando queremos assustar o leitor, é melhor a abordagem indireta, que sugere mas não afirma, implica mas não descreve, deixa tudo à imaginação do próprio leitor. Amigo de Robert Louis Stevenson, James talvez tivesse em mente, ao escrever, o clássico Dr. Jekyll e Mr. Hyde que o amigo publicara em 1886, e onde a natureza exata das perversidades de Mr. Hyde não fica bem clara.

Diz James, no prefácio à edição de Nova York de A Volta do Parafuso: “Já vimos, em ficção, uma forma magnífica de malfeito ou, melhor ainda, de mau comportamento, atribuída, vemo-la prometida e anunciada como se fosse pelo bafo quente do Abismo – e então, lamentavelmente, reduzida ao âmbito de alguma brutalidade específica, uma imoralidade específica, uma infâmia específica retratada. (...) [Para evitar isto,] basta tornar bastante intensa a visão geral que o leitor tem do mal, calculei – e essa já é uma tarefa charmosa – e sua própria experiência, sua própria imaginação, sua própria compaixão (pelas crianças) e horror (dos falsos amigos delas) lhe fornecerão, de forma satisfatória, todos os pormenores. Faça-o pensar no mal, faça-o pensar por si, e você estará livre das frágeis especificidades”. O que é induzido e sugerido se multiplica em um milhão de fantasias de horror nas mentes de um milhão de leitores. E cada horror será personalizado.




sábado, 20 de outubro de 2012

3008) Anonymous (20.10.2012)





O que é o Anonymous, ou, talvez, quem são os Anonymous?  Eles não têm nome: têm “nicks”, “usernames” ou “logins”; não têm rosto, têm máscaras de Guy Fawkes. Nos últimos anos, têm sido o pesadelo e a nêmesis de governos, polícias, corporações. Invadem saites, roubam informações secretas e as divulgam para o mundo inteiro, bloqueiam ou desfalcam contas bancárias, convocam manifestações de rua e de praça. As autoridades os chamam de neo-terroristas, mas eles nunca (ao que eu saiba) tiraram vidas humanas. Atacam a informação e a propriedade privada. São uma bomba-de-nêutrons ao contrário: fazem ruir as infra-estruturas e deixam as pessoas intactas. Estiveram presentes na Primavera Árabe, apoiaram o saite Wikileaks em suas campanhas de vazamento de informações econômicas e militares, combateram departamentos de polícia e a Igreja da Cientologia.

Os Anonymous são o novo Anarquismo – sem bombas, mas sempre infernizando a vida dos arquiduques. Uma multidão espontânea, não-coordenada, sem líderes; na verdade são um conjunto de subgrupos de hackers e agitadores, que agem cada qual por conta própria e mandam a conta ser cobrada à griffe. Num artigo na revista Wired de julho (http://bit.ly/LVLPbf) Quinn Norton analisa esse aspecto sem-forma do movimento. Em junho de 2011 o FBI prendeu e cooptou “Sabu”, um ativista de intensa participação; até que isto foi revelado em março de 2012, “Sabu” entregou uma infinidade de companheiros. Isto quebrou a espinha do movimento? De jeito nenhum. Nos Anonymous, nenhum indivíduo é insubstituível. Conan Doyle dizia que nenhuma corrente é mais forte do que o mais fraco dos seus elos. Os Anonymous parecem ser uma corrente que só pode ser quebrada se todos os seus elos o fôrem, simultaneamente.

Quinn Norton comenta que o grupo é uma “do-ocracy”, uma “fazer-cracia”, onde tudo converge para ações específicas: “indivíduos propõem ações, outros se juntam a eles ou não, e depois a bandeira dos Anonymous é hasteada sobre o resultado. Não há ninguém para dar a permissão, nenhuma promessa de louvor ou de crédito, portanto cada ação deve ser sua própria recompensa”. É um anarquismo eletrônico, sem líderes, não hierárquico, não vertical. Ordens são dadas e obedecidas dependendo do contexto – quem obedece hoje pode estar mandando amanhã e obedecendo de novo no mês que vem. Uma combinação de brodagem com ativismo. Até hoje, quem entrava na política o fazia via política estudantil ou política sindical, até chegar na política partidária. Agora há uma geração inteira na faixa dos 15-20 anos que entra na política pela via do anarquismo eletrônico. Sei que nada será como antes, amanhã.



quinta-feira, 18 de outubro de 2012

3007) A glória secreta (19.10.2012)




(Saul Steinberg)


Fala-se que no Oriente há uma cordilheira de montanhas de calcário escavadas por dentro, formando uma colmeia de galerias. Vive ali um povo frugal e contemplativo. Seus poetas diferem dos de outros lugares pelo fato de que não escrevem: compõem  suas obras mentalmente, às vezes em silêncio, às vezes em voz alta. Exploradores e turistas europeus já foram admitidos às câmaras internas onde eles vivem sem jamais saírem, alimentados e mantidos pela comunidade.

Lord Gregson informa, em Journeys Through the Lands of the Sun, que foi conduzido ao longo de um corredor por um guia que lhe recomendava silêncio. Os corredores cavados na pedra são baixos, e um europeu precisa curvar-se para atravessá-los. No fim, numa câmara circular com uns seis metros de diâmetro, via-se uma esteira simples, onde um homem estava sentado. Quando Gregson entrou, ele se servia de água de uma bilha, num caneco de barro. Gregson e o guia se sentaram; o homem não pareceu dar pela sua presença. Ficou concentrado, as mãos pousadas sobre os joelhos, e depois de meia hora fechou os olhos e recitou uma longa sequência de frases que deixaram o guia emocionado. Ele explicou depois a Gregson que o homem tinha contado o reencontro entre um homem e seu cavalo. Os dois haviam se perdido numa batalha, muito tempo atrás, e nesse dia o cavalo, reconhecendo o guerreiro no meio de um curral cheio de gente e animais, galopou até ele e se ajoelhou aos seus pés.

Criam histórias assim, para si e para ninguém, ou melhor, para os curiosos (em geral crianças e velhos) que se dão o trabalho de visitá-los. Não têm o direito de escrever, porque escrever seria partir o fio de inspiração que liga o poema ao poeta. O poema (diz aquele povo) pertence ao corpo do poeta, nasce nele, deve morrer com ele. Fala-se que algumas tribos, mais radicais, cortam a língua dos poetas para que nem mesmo a palavra falada quebre esse vínculo.

Isso nos lembra de um dos Buendía de Garcia Márquez, que esculpia peixinhos de ouro delicadamente ourivesados, durante meses, e quando terminava uma dúzia derretia todos e recomeçava. Lembra também o que escreveu Arthur Machen em A glória secreta, quando fala que Cristóvão Colombo, ao descobrir a América, deveria ter jogado ao mar seus tripulantes, voltado sozinho para a Europa e fruído em silêncio, até morrer, seu maravilhoso segredo. E nos permite pensar em civilizações antigas cujas principais conquistas tenham sido do pensamento e do espírito, e cuja existência desconhecemos porque deixaram poucas ruínas físicas, assim como tantos animais invertebrados não deixam fósseis que comprovem sua passagem pela Terra.



3006) Pobre com carro (18.10.2012)



(Pawla Kuczynskiego)


Freud dizia que o dinheiro não traz felicidade porque não é um desejo de infância. Talvez seja por isto que a posse de um automóvel enche de lágrimas felizes os olhos de tantos brasileiros. Desde os primeiros cambaleios infantis esses pobres diabos são induzidos a puxar por um cordão uma traquitana qualquer com quatro rodas e a produzir onomatopéias tipo rom-rom-rom e pi-biiit. 

Para milhões desses desventurados, o carro torna-se o mais multifuncional dos símbolos. Ele é rito de passagem para o mundo adulto, é diploma de ascensão social, é triunfo tecnológico sobre o Espaçotempo, é alcova sobre rodas, é escafandro protetor contra os esbarrões da plebe, é talismã semiótico, é prótese locomotora em quatro dimensões... 

O verbo ser é um conceito abstrato, metafísico, mas ganha carne, osso e metal com este sinônimo reluzente: “ter um carro”.

Muitos amigos meus dizem que pagariam qualquer preço por um frasco de perfume com “cheiro de carro novo”, e só não mango porque eu, por exemplo, gosto de cheiro de livro velho (mas não, não compraria um frasco de perfume, compraria um livro velho – como se tivesse poucos).  

E assim não é difícil entender porque nossas cidades não funcionam, nosso transporte público é uma porcaria, nossos urbanistas fazem as pessoas se adaptarem ao trânsito e não o contrário. 

Diz-se mundo afora que “país rico não é aquele onde pobre tem carro, é aquele onde rico anda em transporte público”.  Duvido que vejamos o Brasil ser assim um dia. O sonho dos governos brasileiros e da indústria brasileira é termos um dia 200 milhões de carros para 200 milhões de pessoas. E as cidades que se explodam.

O saite “Livable Streets” (http://bit.ly/1V86RK) faz um apanhado de pequenas mudanças que poderiam ser implementadas em nossas ruas para expandir o espaço humano e controlar melhor o espaço dos automóveis. Isto de nada adianta, contudo, se o país continuar se suicidando com o aumento da produção e venda de automóveis, sob o pretexto de geração de divisas e criação de empregos. 

A psicose automobilística endivida milhões de famílias hipnotizadas pela fantasia de ascensão social e inviabiliza as cidades. Cidades deformadas e desfiguradas pela ideologia individualista do cada-um-por-si, onde usar transporte público ou é uma tortura (onde ele é entregue às baratas) ou é humilhante mesmo onde ele tem boa qualidade. Refugiar-se no carro é a derradeira ilusão da classe média. Ela imagina estar melhorando de vida e está apenas trocando a pobreza por uma engorda-para-abate, uma espécie de empobrecimento financiado que a leva a trabalhar e produzir cada vez mais para ficar com cada vez menos.