sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

2729) Os Bretons e os Dalis (2.12.2011)




Recentemente, o quadrinista Frank Miller (O Cavaleiro das Trevas, Sin City, 300) soltou o verbo em seu blog, num acesso de mau humor que ecoou por toda a websfera, descendo o cacete nos jovens do movimento “Ocupem Wall Street” e chamando-os de filhinhos-do-papai mimados, ignorantes em política e “trabalhando sem saber em nome dos inimigos da América, que são a Al-Qaeda e o Islamismo”. 

Que Miller é um reacionário ranzinza todo mundo já sabe. Basta ler suas graphic novels, que são retratos vívidos, realistas e cruéis de uma certa mentalidade norte-americana de hoje. Esperar que ele apoiasse o “Ocupem Wall Street” seria tão inútil quanto imaginar que Nelson Rodrigues pudesse ter sido a favor das passeatas estudantis de 1968. 

Num artigo a respeito (http://acheiusa-octavio.blogspot.com/), o escritor e artista de HQ Octavio Aragão comenta outro ângulo da questão o da efemeridade dos movimentos em si. Diz ele: 

“Será que os manifestos, as revoluções ideológicas e movimentos de caráter modernista ainda têm as mesmas características daqueles que reformataram o mundo nos séculos 18, 19 e 20? Ou funcionam apenas como interregnos entre duas fases de aperfeiçoamento do mesmo sistema contra o qual os manifestantes se rebelam? Há muito que movimentos de contracultura pop são absorvidos com a mesma velocidade com a qual surgem – hippie, mod, rocker, punk, new wave, new romantics, hip-hop, rap, funk... – e seus discursos, por mais contundentes que sejam a princípio, são fagocitados pela moda, pelos meios de comunicação, pelos inimigos contra os quais surgiram a princípio, contribuindo para o aperfeiçoamento dos adversários, que saem cada vez mais fortes de cada confronto, cada “revolução”. 

Eu faria uma comparação desses movimentos com o Movimento Surrealista parisiense dos anos 1920. Há duas figuras emblemáticas desse movimento: seu fundador, André Breton, e seu participante mais famoso, Salvador Dali. 

Breton tinha qualidades (era grande poeta, tinha um enorme carisma, era um desses delirantes que acham que estão mudando o mundo) e defeitos (era autoritário, egocêntrico, como todo fundador-de-movimento-cultural). Mas tinha um viés esquerdista que o fez apoiar a Revolução Russa e o tornou para sempre “persona non grata” na mídia dos EUA. 

A qual num passe de mágica fez a palavra “surrealismo” se colar à figura apolítica, clownesca e “ávida por dólares” de Salvador Dali. 

Todo movimento tem um lado radical e um lado festivo, tem o seu Breton e o seu Dali. O Sistema rapidamente identifica os dois, sepulta o primeiro através de listas negras e chás-de-silêncio; e promove o outro. Simples assim.






quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

2728) Perda total (1.12.2011)



Esta história é verídica, descontados os detalhes que sou forçado a inventar para manter a sua lógica interna. 
Vítor era um conhecido meu que produzia shows no Recife, trinta anos atrás. Por mais de uma vez me levou para cantar meus batuques apocalípticos em coletivas no Teatro do Parque e na Universidade Rural. 

Houve uma época em que era o responsável pela programação de uma Lona Cultural, ou coisa parecida, que havia em Olinda, para onde ele trazia toda semana uma atração nacional. Reza a lenda que certa vez Vítor conseguiu, depois de muito esforço, trazer uma grande cantora da MPB para se apresentar na tal lona; umas versões dizem que foi Simone, outras que foi Nana Caymmi, mas isto é secundário. 

Fiquemos com Simone. Vítor foi buscá-la no aeroporto cheio de salamaleques e cortesias, buquê de flores na mão. Agradeceu muitíssimo a boa-vontade dela em vir cantar cobrando metade do cachê habitual. Levou Simone e a banda para o melhor hotel que seu parco orçamento permitia. 

De tarde levou-a com os músicos a Olinda, para a passagem de som. A cantora e a banda elogiaram o som, o que deixou Vítor nas nuvens, porque era uma aparelhagem caríssima e sofisticada que ele acabara de comprar. Terminada a passagem de som, já ao anoitecer, Simone e banda voltaram para o hotel, pois o show seria às 22 horas. Vítor pegou o fusca e correu para casa, onde morava sozinho, para jantar e trocar de roupa. 

Saía do banho quando o telefone tocou. Era o cara do som. 

“Vítor, temos uma pequena zebra aqui”. 

Ele: “O que foi?”. 

O cara: “Quando ligamos o som e a iluminação ao mesmo tempo houve uma sobrecarga”. 

Ele: “Isso prejudica algum dos dois?”. 

O cara: “A verdade é que prejudica tudo. O sistema elétrico pifou.” 

Ele: “Ih, danou-se. Tem um de reserva?”. 

O cara: “Não, ninguém tem isso de reserva, e a verdade é que o teu som novo queimou. Perda total.” 

Ele pensou durante alguns intermináveis segundos e disse: “E se a gente tirar o som novo e trocar pelo som velho, que está guardado?”. 

O cara: “Mesmo assim teria que providenciar outra luz completa, e também trocar todo o sistema elétrico da lona. É trabalho para 24 horas, no mínimo. E outra coisa, já tem uma multidão aqui do lado de fora, a gente não sabe se abre e deixa entrar, ou se diz ao público o que aconteceu.” 

Ele: “Tá danado. Segura as pontas, estou indo pra aí”. 

Vítor me contou isto anos depois, tomando uma cerveja em Copacabana. Eu perguntei: “E aí? Fizesse o quê?”. 

Ele respondeu: “Fui pro aeroporto, peguei um avião pra Salvador, e passei seis meses em Porto Seguro. Voltei pro Recife tão bronzeado que a galera quase não me reconhece”.







quarta-feira, 30 de novembro de 2011

2727) Macondo - The Game (30.11.2011)




(xilogravura: Stephen Alcorn)

Este lançamento da Carybernetics para 2035 traz um oxigênio novo para o mundo dos “computer games”, que andava meio saturado de temas como zumbis por nanotecnologia, espada-e-feitiçaria neo-islâmica e impérios submarinos.

A abertura do game nos traz em câmara subjetiva descrevendo o voo de uma folha de árvore através de uma floresta tropical, que de súbito se abre num barranco, mostrando um povoado de casas de barro e solares rústicos, enquanto a voz do autor nos diz:

“Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía recordaria o dia remoto em sua infância quando seu pai o levou para conhecer o gelo”. 

 A palavra final fecha o movimento da câmara sobre um cubo maciço, cercado por ciganos e coberto de serragem, onde a câmara penetra exibindo o intrincado menu.

Toda a árvore genealógica dos Buendía está ali, entrelaçada à história da Colômbia e às outras obras de Márquez (é brilhante a conexão com o universo do Outono do Patriarca).

Os amantes de violência e ação têm farto material para batalhas através das guerras quixotescas perdidas pelo Coronel Aureliano (note-se que mesmo quando o jogador consegue ganhar essas batalhas, a situação política o força a travá-las de novo, interminavelmente).

Idem quanto ao duelo entre José Arcádio e Prudencio Aguilar, que tem de ser travado em sonho, ou pesadelo, por todos os seus descendentes. Há também pequenos momentos de descontração, como o minijogo de forjar e derreter peixinhos de ouro, ou a possibilidade de produzir microtatuagens na pele de José Arcadio.

Há muita sutileza na recriação de Remédios a Bela, cuja imagem só é vista por microssegundos (alguns jogadores conseguiram capturar frames do seu rosto, mas as versões falsificadas são muito mais numerosas que as legítimas). Os numerosos Arcádios e Aurelianos são recriados a partir de um mesmo avatar, com adição de pequenos detalhes que os diferenciam. (Uma das opções do jogo é ver toda a história através da matriarca Úrsula: nesta versão, todos os Arcádios e Aurelianos são totalmente diferentes entre si.)

Para os que apreciam mais o mistério do que a aventura, a decifração dos manuscritos do cigano Melquíades pode servir como um fio condutor para o desenrolar de toda a história, embora os criadores do jogo tenham tomado algumas liberdades, incluindo nele praticamente toda a obra restante de Márquez.

Em resumo: uma prodigiosa reconstituição gráfica da floresta, dos bananais, dos pântanos caribenhos; e uma proliferação de subnarrativas que justificam o slogan dos produtores, que promete “cem anos de entretenimento” a quem quiser zerar o jogo. Cotação: 5 estrelas.









terça-feira, 29 de novembro de 2011

2726) A palavra vôte (29.11.2011)




“Vôte!” é uma dessas exclamações tipicamente nordestinas que de vez em quando os visitantes nos pedem para explicar e não temos a menor idéia sobre o lugar de onde veio ou sobre o que significa ao pé da letra. Usamos, e acabou-se.

Tecnicamente, é uma interjeição que exprime assombro, repulsa, susto, perplexidade. "Vôte! Que diabo é isso? Parece um homem vestido de mulher!" Equivale mais ou menos ao "Eu, hein!" muito popular no Rio, e ao "T'esconjuro!" muito usado nas regiões rurais...

Como um dos meus passatempos favoritos é imaginar etimologias possíveis para as palavras, penso às vezes que a origem de “vôte!” deve ser alguma expressão do tipo "Vou te esconjurar..." ou semelhante.

Já cheguei a imaginar que o termo informal “wot” em inglês seria um equivalente ao nosso “vôte”, por ser usado em contextos semelhantes, como exclamação de surpresa. Mas sua pronúncia, no entanto, é “uót” (mais ou menos a mesma da sua forma gramatical, “what”). Não tem como fazer a pronúncia “uót” virar “vôte”; é mera coincidência, certamente.

É palavrório típico do povão, daí os versos de advertência e censura de Laurindo Pereira de Sousa, o poeta popular conhecido como Bernardo Cintura:

É um bom vício amolar
para o sujeito que amola,
é feio pedir esmola
se se pode trabalhar.
É mau vício não pagar,
dizer dito: vôte, oxente,
isso é lá vício de gente,
isso é vício de vadio;
pra quem tem calor ou frio,
de vício só aguardente.
(citado por Cristino Pimentel, em Abrindo o Livro do Passado).

O poeta nivela “vôte” e “oxente”, ditos populares, a ações de mau gosto como não pagar uma dívida; mas se trai no final quando absolve a cachaça, e cá pra nós, perde um pouco de credibilidade pra falar mal do vôte alheio.

Um saboroso livro memorialista é o do pintor popular pernambucano Celestino Gomes, Da Roça a Roma. Chamo-o de pintor popular porque é um autodidata que sempre vendeu seus quadros na rua, mundo afora, e nunca acessou o “Grand Monde” das artes. Em suas memórias ele conta, narrando sua paixão impossível por uma jovem:

“Numa tentativa alucinada de amante, escrevi um bilhete. O texto: ‘Me prepondero com indiferença, amor e cortesia, ser um dos seus eleitos. Se você por acaso aceitar-me, como Julieta aceitou Romeu, escreva-me dizendo sim; jamais diga não a este saudável pretendente’. Ela recebeu o bilhete, dizendo que me daria a resposta em quinze dias. Qual foi a minha surpresa! No mesmo dia ela vem dizer, feito uma jararaca: ‘Não, não e não, de jeito nenhum, vôte condenado’.”

Dizemos “vôte” quando queremos dizer: nem pensar, de jeito nenhum, desaparece daqui, ave Maria que coisa horrorosa.







domingo, 27 de novembro de 2011

2725) Os gols perdidos (27.11.2011)




Uma das curiosidades da história de Pelé é o endeusamento que os torcedores fazem dos famosos gols perdidos por ele na Copa de 1970. Chamar de gols perdidos é injustiça, aliás. Gol perdido é aquele que é facílimo de fazer e o cara não consegue. No caso de Pelé, foi justamente o contrário. Foram gols quase impossíveis de fazer e que ele quase fez. Aí reside a arte e o mistério.

O primeiro foi no jogo de estréia do Brasil na Copa, contra a Tchecoslováquia, país que sempre foi bom de bola. Pelé dominou a bola no centro do campo e viu que o goleiro estava adiantado. Mandou um chute por cobertura que ao descer passou raspando a trave, desnorteando o goleiro, a torcida e os câmaras de TV, nenhum dos quais estava preparado para fazer aquele movimento num lance tão “sem perigo de gol”. Daí em diante, dezenas de jogadores já fizeram esse gol. Só Pelé não fez. Mas o gol é dele, não é mesmo?

Os outros dois foram na partida semifinal, quando ganhamos do Uruguai por 3x1. Um deles veio de um tiro de meta batido pelo goleiro uruguaio, Mazurckiewicz, que em vez de dar um chutão para o alto cometeu a imprudência de mandar a bola para o meio do campo a meia-altura. No meio do caminho estava Pelé, que, sem dizer água-vai, rebateu a bola para o gol com um chute fortíssimo, que o goleiro só defendeu porque era, na época, um dos melhores do mundo.

Mais tarde, Pelé foi lançado em profundidade, perseguido pelos zagueiros, e o goleiro saiu ao seu encontro. Como a bola vinha em diagonal, todo mundo pensou que Pelé ia dominá-la puxando-a para a esquerda, no que seria o movimento natural, pelo fluxo da jogada. Ele simplesmente passou por cima da bola sem tocá-la, rodeou o goleiro, alcançou a bola pelo lado oposto e chutou para o gol, A bola saiu, raspando a trave. Zico fez esse gol, anos depois; outros jogadores já devem tê-lo feito. Mas a quem pertence o gol?...

A obra de arte pertence a quem primeiro teve o vislumbre de sua existência e a trouxe, mesmo incompleta, ao mundo. Eram jogadas que não existiam no futebol, e a genialidade de Pelé (“data vênia” os muitos gênios do futebol que vieram antes ou depois dele) estava não somente na execução das jogadas, mas na invenção. Pelé foi um artista inventor, no sentido que Ezra Pound atribuía a alguns poetas. Esses gols que ele não marcou brotaram de improvisos geniais, feitos em fração de segundo, talvez pensados antes, como todo grande improviso, mas sem poder saber quando as circunstâncias certas ocorreriam. “A bola não quis entrar”? Paciência. Esses gols entraram para a arte e a técnica do futebol, e é para isso que existem os poetas-inventores.

sábado, 26 de novembro de 2011

2724) Os degraus do improviso (26.11.2011)




O improviso musical é uma coisa fascinante, e acho que fascina ainda mais aqueles indivíduos que têm um pouquinho de familiaridade com um instrumento mas não chegam a ser grandes músicos. Eles percebem (porque também tocam um pouco de piano, ou de guitarra, de sax, seja lá do que for) o quanto aquilo é difícil de fazer, e admiram melhor a aparente facilidade de quem o faz. 

Para quem é totalmente leigo, tudo parece ou igualmente fácil ou igualmente impossível. Apenas o semi-talentoso é capaz de entender de verdade o que o talentoso está fazendo.

No caso da música, temos, por exemplo, aquelas circunstâncias em que não se espera do músico que ele improvise, e sim que execute com perfeição. Não pode engolir uma nota sequer, não pode pular uma pausa, tem que ser tudo do jeito que está escrito na partitura ou consagrado na memória. 

Cabe ao músico juntar a essa reprodução perfeita uma dose de emoção pessoal que dê ao público uma impressão de algo novo, espontâneo, de uma coisa que está acontecendo ali pela primeira vez. 

A música erudita, de concerto, tem um pouco desse espírito. O concertista não está ali para inventar música, mas para recriar algo que já existe.

Depois, há um degrau intermediário em que o músico trabalha com partes iguais de memória e de momento. É quando, na música popular, chega o momento do solo instrumental. O cara sabe a melodia que vai tocar, tem uma idéia aproximada do que vai fazer; mas o resultado, que não precisa ser igual a nenhuma versão anterior, vai depender do momento, de sua “inspiração”. 

Inspiração é a capacidade de se concentrar no que está tocando e fazer, em frações de segundo, as escolhas melódicas mais adequadas, mais surpreendentes e mais cheias de informação nova, sem entrar em choque com a harmonia subjacente (a sequência de acordes que serve de base ao solo).

E existe o improviso total. O cara está ouvindo uma música pela primeira vez (no estúdio ou no palco) e precisa descobrir caminhos, sem muito tempo para pensar, confiando na sua bagagem musical (conhecimento de acordes e de escalas) e na sua “inspiração”. 

Ele chega ao estúdio para tocar no disco de Fulano, mostram-lhe as partes já gravadas da música e o trecho onde ele vai tocar. Ele escuta, pega o jeitão da música, empunha o instrumento, manda gravar e toca. Às vezes tem que refazer, porque não saiu legal. Outras vezes, faz um improviso perfeito como se já tivesse tocado aquilo mil vezes. 

Ou então sobe ao palco para dar canja num show alheio, com músicos com quem nunca tocou, numa canção que desconhece. E faz um improviso que fica para a História. Como? Não sei, mas já vi acontecer.





sexta-feira, 25 de novembro de 2011

2723) “O Grande Tertiano” (25.11.2011)




É um conto antigo do grande Anthony Boucher, escritor de romances policiais e de ficção científica, crítico, editor e, incidentalmente, o homem que fez a primeira tradução e publicação de Jorge Luís Borges nos EUA. 

“The Greatest Tertian” (1952) é um conto em forma de artigo acadêmico de um pesquisador de uma civilização alienígena do futuro, estudando as lendas longínquas do distante planeta Terra. 

Nesse futuro, a história da Terra se diluiu em lendas confusas e somente dois terrestres (=tertianos) ainda são lembrados. O primeiro, conhecido como Shark Oms, era um detetive de rara inteligência, que desvendava os crimes mais complicados. O segundo, chamado Shark Sper, era um dramaturgo e poeta que escreveu as maiores comédias e tragédias do teatro de seu tempo.

O lance de ousadia acadêmica do autor do artigo consiste num raciocínio indiscutível. Ele aponta o fato de que essas duas figuras lendárias viveram na mesma cidade terrestre, chamada “Londres”, em datas, segundo os registros, muito próximas. Sabem-se centenas de episódios da vida do detetive Shark Oms, mas nenhum dos seus escritos sobreviveu. Por outro lado, preservou-se toda a obra do dramaturgo Shark Sper, mas quase nada de sabe sobre sua vida. Ora (pergunta o autor), isto não sugere que os dois são um único indivíduo? 

Esse indivíduo seria “o grande tertiano”, famoso pelas suas deduções brilhantes e pelos seus versos geniais.

O conto de Boucher ironiza as nossas tentativas de interpretar os farrapos de evidências que temos a respeito de civilizações desaparecidas. Pedaços de biografias, datas contraditórias, fatos cheios de lacunas, versões conflitantes que às vezes coincidem num ponto secundário, nomes que soam de um jeito parecido e podem ser o mesmo... 

A idéia (um tanto borgiana, com um viés satírico) de considerar que Sherlock Holmes e Shakespeare foram a mesma pessoa não está muito longe dos estudos de hoje em dia tentando determinar a existência de um imaginário poeta chamado Homero que teria escrito a Ilíada e a Odisséia

Lembra também uma especulação de Carl Sagan (acho que no livro Cosmos) ao falar das tragédias de Ésquilo ou Sófocles, das quais só conhecemos um pequeno número. Diz Sagan que é como se uma civilização futura ouvisse falar em Shakespeare mas só tivesse preservado peças como Timon de Atenas, Bem está o que bem acaba, Coriolano, e tivesse vagas referências a textos perdidos com os títulos de Hamlet, Rei Lear ou Romeu e Julieta

A história é uma montagem de cacos e farrapos, feita, em partes iguais, de deduções como as de Sherlock Holmes e de uma imaginação criadora como a de Shakespeare.






quinta-feira, 24 de novembro de 2011

2722) A segunda Brasília (24.11.2011)



(elefante branco da África do Sul, foto de Gero Breloer)

A Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016 se aproximam. Olhando o horizonte de eventos, ainda não consegui enxergar a bola rolando no gramado nem os atletas correndo nas pistas. O que enxergo são as partes superiores dos estádios, dos ginásios, dos viadutos, dos complexos esportivos e das vilas que serão erguidas por construtoras eufóricas. Tanto dinheiro gasto talvez tenha um bom reflexo na pirâmide social brasileira. Alguém vai passar da classe C para a B, e alguém vai passar da B para a A-. A classe A+, como sempre vai continuar sendo um clube fechado com número fixo de sócios. E o fato de toda essa movimentação atingir menos de 1% da população não tem muita importância, porque ao restante caberá o consolo de sempre, a “geração de empregos”.

Na África do Sul, a maioria dos estádios construídos para a Copa de 2010 está entregue às baratas, porque o futebol local não tem força econômica suficiente para torná-los rentáveis. Estão fechados para jogos, abrindo apenas para que turistas de todos os países entrem e tirem fotos para mostrar na volta para casa: “foi aqui que nossa Seleção ganhou de Fulano ou Sicrano”. Não sei como anda a média de público no Campeonato Brasileiro, mas me lembro que no primeiro semestre o campeonato regional com maior média de público era o pernambucano, com 7 mil pagantes. Na maioria dos Estados (com exceção de Rio e São Paulo) existe apenas um grande clássico unindo duas grandes torcidas: Gre-Nal, Ba-Vi, Cruzeiro x Atlético, etc. Esses jogos serão capazes de tornar rentáveis os elefantes brancos?

O que se desenha no horizonte é uma nova Brasília de concreto, cimento, aço, cifrões invisíveis e tenebrosas transações. Brasília (independentemente das coisas positivas que sua criação acarretou) provocou rombos gigantescos e fortunas instantâneas. Quando eu era pequeno ouvia histórias de como Brasília tinha sido construída. Fulano de Tal se comprometia a entregar pelo preço X um total de 50 caminhões de areia. O caminhão entrava no canteiro de obras, sua entrada era registrada (“Primeiro caminhão!”), ele ia até o final, saía, dava a volta, entrava de novo (“Segundo caminhão!”) e passava o dia assim.

Essa lenda urbana lembra a bolsa inesgotável das histórias de cordel; e bate com a das republiquetas latino-americanas que no desfile do Dia da Pátria, diante de embaixadores estrangeiros, faziam a mesma meia-dúzia de batalhões darem a volta ao quarteirão e desfilarem de novo. Algo me diz que depois desses mega-eventos esportivos o valente Eduardo Galeano vai ter que acrescentar um apêndice de 50 páginas ao seu clássico As Veias Abertas da América Latina.

2721) A morte da menina (23.11.2011)



No século 19, grande parte da literatura popular era publicada em folhetins, aqueles rodapés dos jornais diários, em forma de narrativa seriada. Todo dia, ou toda semana, conforme o caso, saía mais um capítulo da história. O leitor recebia o jornal em casa, se fosse assinante; ou ia até a banca para comprá-lo. Exatamente como hoje. E nesse contato diário com o jornal ele ia, entre outras coisas, acompanhando aventuras policiais, de capa-e-espada, melodramas sentimentais ou dramas familiares.

O folhetim era mais típico da França, mas foi Charles Dickens o grande folhetinista inglês, e um dos maiores de todos os tempos. A maioria dos seus romances foram publicados primeiro assim, como folhetins serializados, que os leitores corriam a comprar assim que o jornal saía às ruas. Um desses romances foi A Velha Loja de Curiosidades (1840-41), do qual se conta a seguinte história.

A protagonista é Nell, uma órfã de bom coração que vive perseguida pelas piores adversidades, como é de praxe no gênero. Todo mundo se comovia com a bondade da menina, os sacrifícios que era obrigada a fazer, e a doença que ia minando sua resistência, fazendo todo mundo ficar temeroso pela sua vida. Os jornais com a história de Nell vinham de navio da Inglaterra para os EUA. Cada navio trazia um pacote de jornais com novos capítulos da aventura. E a ansiedade dos leitores era tanta que, reza a lenda, quando um desses navios chegou ao porto de Nova York os marinheiros no convés viram lá embaixo, no cais, uma multidão de gente se espremendo, se empurrando, e gritando para eles no navio: “A menina morreu?...”

A ansiedade em saber o que acontece num folhetim (e a telenovela cumpre hoje a mesma função) impedia os leitores de ficarem em casa, esperando que o jornal fosse enfiado por baixo da porta. Não, eles trocavam de roupa, pegavam um tílburi ou um cabriolé (sei lá o que servia de táxi naquele tempo) e iam até o cais do porto no dia e hora previstos para a chegada do navio. E o grito coletivo da multidão mostrava que todos supunham, provavelmente com razão, que a tripulação do navio já tinha lido os episódios mais recentes e sabia o desfecho da história.

Hoje, lemos nas revistas os resumos de todos os capítulos de novelas que irão ao ar durante a semana. O suspense novelesco cumpre duas etapas. Primeira, sabermos “se a menina morreu”. Segunda, saborearmos, munidos desse conhecimento, cada momento de drama, cada diálogo sentimental, cada arroubo dos atores. Temos primeiro a notícia da cena (a fruição do enredo) e depois a cena em si (a fruição do estilo). Não são emoções contraditórias; são complementares.

2720) O mar e o sertão (22.11.2011)




Glauber Rocha popularizou a frase “O sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão”. A linguagem profética é um subgênero da poesia. Uma linguagem em tom elevado, usando imagens vívidas num contexto paradoxal que pode ser interpretado de mil maneiras diferentes. 

Há uma forte interpenetração entre profecia e poesia. Aí estão livros como Mensagem de Fernando Pessoa, as visões versejadas do sapateiro Bandarra, as Centúrias de Nostradamus. 

As profecias das bruxas de Macbeth, da pitonisa de Delfos, ou dos sermões de Antonio Conselheiro compartilham essa linguagem. Estamos sempre a um passo de entendê-la por completo, e ela sempre nos escapa por um pouquinho. E cada fato que acontece diante dos nossos olhos parece confirmar, de um modo diferente, essas visões. 

Minha profecia predileta ainda é a do Padre Cícero: “Vai chegar o tempo em que a roda grande vai passar por dentro da roda pequena”. A frase de Deus e o Diabo na Terra do Sol também traz embutida em si essa promessa de que o mundo sofrerá mudanças radicais – promessa, aliás, que é a mercadoria mais vendida pelos profetas de todos os tempos. 

Essa troca de posições entre o mar e o sertão parece também se harmonizar com o que a ciência nos diz sobre a forma antiga dos continentes. Havia o tal de Gonduana em que a América do Sul se encaixava no “sovaco” da África como duas peças de quebra-cabeças. Dizem meus amigos cearenses que as palavras atuais “Ceará” e “Saara” vêm de uma mesma palavra remota, que preservava a lembrança de quando essas duas regiões eram uma só, antes da separação dos continentes. 

Glauber nos fez imaginar um sertão sendo invadido pelos tsunamis torrenciais produzidos pelo efeito estufa e pelo degelo dos polos, enquanto por uma descompensação geológica qualquer o leito do oceano ficaria exposto ao sol, o plancto ressecando em rochas indestrutíveis. 

Mas talvez o sentido da profecia não esteja em “virar a moeda” de quem está quieto, no caso o Oceano Atlântico. Ela se refere somente ao sertão. Visitem o Cariri cearense, a feira de Juazeiro, vejam aquelas pedras fósseis com esqueletos de peixe, achadas nas regiões caririzeiras mais áridas. O sertão pode virar mar porque naquele mesmo local existia um mar que virou sertão. 

O que esteve submerso um dia, e hoje não passa de um raso requeimado pelo sol, pode ser submerso de novo. O oceano talvez se detenha diante do Arquipélago da Borborema, rodeando-o. Os peixes encravados nas pedras do Juazeiro abrirão os olhos, abrirão as guelras e voltarão a nadar nas suas águas antiquíssimas. O sertão é uma mera fase entre dois momentos do mesmo mar oceano. Quem sobreviver, verá.