quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

2411) As Instâncias do Poder (26.11.2010)

(Quando viajo este blog vira uma Casa da Mãe Joana. O artigo abaixo, de número 2411, era para ter sido postado aqui no dia 26 de novembro, quando foi publicado no Jornal. Não foi. Vai agora. Vale a numeração. Perdão, leitores.)



Tudo que o Imperador da Ruritânia faz está a cargo dos chefes de setor. O chefe de cada setor (ao qual chamaremos, de agora em diante, de Primeira Instância) está cercado, em seu vasto gabinete de trabalho, por dez sub-chefes, cuja função é providenciar para que suas ordens sejam executadas, e, em caso de dúvida, auxiliá-lo na sua tomada de decisões. Esses dez sub-chefes formam, portanto, a Segunda Instância. Cada um deles, por sua vez, tem cem assessores encarregados de distribuir tarefas, organizar as coisas. Somados, esses mil assessores formam a Terceira Instância, que constitui de certa forma a interface entre poder decisório/organizatório e a mão de obra encarregada de produzir resultados. Observe-se que cada um dos mil assessores tem a seu cargo mil funcionários.

Ora, sucede que um dia o Chefe do Setor de Diapasão amanheceu com enxaqueca, em plena reta final do Levantamento Estatístico de Afinações, a que cabia um recenseamento das afinações predominantes no Império. Todo ano era preciso contar quantas músicas haviam sido gravadas no tom de dó, quantas no tom de dó sustenido, quantas em ré, e assim por diante. Cabeça latejando, o Chefe, inundado de zeros e percentagens, virou-se para os sub-chefes e disse: “Quer saber duma coisa? Essa situação é kafkeana, dadaísta, ionesca. De agora em diante só se pode gravar música num tom. Sol bemol, por exemplo”. Dito isto, desligou o monitor para poupar energia, desceu para a cafeteria, tomou um tylenol e fez um lanche.

À tarde o videofone tocou. Um dos sub-chefes, o Número Oito, atendeu e disse: “Não, não sei, e não tenho tempo a perder com tecnicalidades. Não é fá sustenido, é sol bemol!” E desligou. O Chefe abaixou o jornal (onde estava conferindo a tabela do campeonato e calculando quantos pontos seu time teria que ganhar para fugir do rebaixamento). Ficou pensativo. Onde tinha ouvido, recentemente, a expressão sol bemol?... Engraçado, depois que uma enxaqueca passa o mundo parece meio irreal. Voltou à tabela.

No fim do expediente ele repassava a última planilha Excel com o recorte regional das estatísticas quando deu um pulo horrorizado e chamou o Número Oito. Este lhe garantiu que sim, a ordem fôra repassada e a esta altura já estaria provavelmente na Terceira Instância. O Chefe se desesperou. “Manda voltar! Era um modo de dizer!”. Depois de hora e meia de atividade febril, concluiu-se que seis dos subchefes tinham conseguido, por motivos vários, cancelar a ordem. Mas quatro deles (logo, eles, os mais eficientes! que injusta é a vida!) já tinham providenciado para que sua Terceira Instância desencadeasse o processo. Não demorou muito para que o noticiário das 19 horas informasse que a nova determinação estava sendo posta em prática em todo o Império, e que o Imperador assinara uma lei regulamentando sua execução. “A culpa é das telecomunicações eletrônicas”, disse alguém. “Tudo ficou fácil demais”.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

2415) O Ulisses israelense (1.12.2010)




(a tradução brasileira, de Nancy Rozenchan, pela Editora Imago) 

A literatura israelense contemporânea é pouco traduzida aqui no Brasil, e o único autor de quem consigo lembrar sem consultar uma enciclopédia é Amos Oz. 

Então, não sei avaliar (a não ser na base do chutômetro) a possivelmente complicada linha genealógica literária que para Joshua Cohen faz de Past Continuous (1977) de Yaakov Shabtai (1934-1981) o “Ulisses israelense”, meio século depois do de Joyce. 

A intenção de Cohen é tentar identificar em cada nação qual o livro que melhor dá continuidade às experiências estilísticas de Joyce: oralidade, fluxo de consciência, mescla de discursos aparentemente disparatados, dilatação da passagem do tempo, mistura erudito/plebeu, épico/banal, etc. Em algumas literaturas, esse momento só se dá muitas décadas depois do Ulisses

Cohen descreve assim o livro: 

“Escrito num único parágrafo, o único romance deixado completo por Shabtai é uma intrincada crônica da vida israelense em meados dos anos 1970. Frases intermináveis expõem o entrelaçamento das vidas de um grupo de amigos e parentes que se encontram nas ruas e nos salões de Tel Aviv após a morte do pai de um dos protagonistas. Discute-se socialismo e religiosidade, pratica-se sexo, os costumes dos judeus europeus são diagnosticados como irrelevantes, mas o que faz deste romance um marco da literatura em hebreu é o espantoso domínio do autor sobre as longas frases com cláusulas embutidas e digressões coloquiais”. 

Os três personagens principais são o fotógrafo Caesar, o tradutor Goldman e o pianista Israel. O livro se abre com a morte do pai de um deles em 1 de abril e se encerra com o suicídio do filho em 1 de janeiro, cobrindo o período simbólico de nove meses. É um livro várias vezes premiado em seu país, e considerado o primeiro romance escrito em hebreu vernacular. 

Uma resenha no New York Times lamenta a decisão dos tradutores norte-americanos de partir em ocasionais parágrafos uma obra que no original é um único parágrafo do começo ao fim (o tipo de decisão que provoca nos tradutores e editores conscienciosos um calafrio de presságio e insônias cheias de culpa). 

Diz Alan Leichuk no NY Times que a narrativa avança por meio de associações entre personagens, seguindo um deles por várias páginas, depois acompanhando outro com quem ele se relaciona, até encontrar um terceiro e passar a segui-lo, até que depois de várias voltas estamos novamente de volta ao primeiro e tudo recomeça. Ele comenta: 

“É o retrato mais prodigioso e provavelmente mais realista da sociedade israelense contemporânea; não há utopias de kibbutz, nem a mística de Jerusalém, nem otimismo sionista, nem heroísmo de Sabra, e sim um retrato de proporções balzaqueanas de uma família e de um povo em crise, vidas vividas no fim de um sonho que se desgarrou, e de um paraíso em explosão”. 

Um curioso reflexo do livro de Joyce num mundo judeu cuja existência Joyce talvez não conseguisse imaginar.









terça-feira, 30 de novembro de 2010

2414) Imprensa e liberdade (30.11.2010)




Toda vez que um governo anuncia qualquer medida de controle da imprensa, os jornais, rádios e TVs se assanham e se pintam para a guerra. E têm mais é que fazer isso mesmo. Se a imprensa não defender seus próprios interesses, quem vai fazê-lo? A Sociedade Protetora dos Animais? 

Alguns jornalistas, no entanto, como qualquer outra categoria, gostariam de ter liberdade ilimitada. Dizer o que bem entendessem, ficando tudo por isso mesmo; publicar qualquer coisa sem terem que prestar contas a nenhum tipo de controle externo. O que ocorre é que, como com qualquer cidadão, a liberdade do jornalista termina onde começa a liberdade alheia.

Na vida real, acabamos sempre chegando à situação expressa no velho clichê de “não devemos confundir liberdade com libertinagem”. A imprensa não tem liberdade para publicar injúrias, calúnias ou difamações – se um cidadão comum é punido pela lei, se o fizer, por que motivo uma empresa não o seria? 

A imprensa não pode pregar o ódio ou o racismo. O grande teste sobre liberdade de imprensa é sempre perguntar: Você defende a proliferação de jornais nazistas ou de estações de TV da Ku-Klux-Klan?

Durante o tempo da ditadura militar o antagonismo entre governo e imprensa era de tal ordem que se criou, principalmente em nós, jornalistas, a noção de que o governo está sempre errado (“porque todo governo é mal intencionado, é corrupto, e se pudesse calaria para sempre a boca da imprensa”) e a imprensa está sempre certa (“porque ela é a consciência crítica e o olho vigilante da população, e só trabalha movida pelos interesses mais altruístas, éticos e desinteressados”). 

Sejamos realistas – nem sempre é assim. Às vezes, os governos podem ser democráticos, e órgãos da imprensa podem ser golpistas. Às vezes, os governos podem estar pensando no bem da população, e alguns órgãos da imprensa podem estar pensando apenas em encher os cofres de dinheiro suspeito. E assim por diante. Ocorre em qualquer país, em qualquer época. É da natureza humana.

Já falei aqui que a maior liberdade de imprensa seria um jornalista poder publicar num jornal uma matéria de duas páginas, exaustivamente pesquisada, denunciando os trambiques do próprio dono do jornal. 

Sempre que digo isso, todo mundo ri: “Ora, isso seria impossível”. Por que é impossível? Ora, porque todo mundo sabe que dentro de uma empresa todos os interesses (dos empregados) estão subordinados aos interesses dos patrões. O jornal pertence ao patrão, e serve para defendê-lo. Qual o patrão que é doido de permitir esse tiro-pela-culatra, esse hara-kiri de voltar a arma contra si mesmo? 

Surge daí o corolário: é raro, raríssimo, um jornalista ter plena liberdade para escrever o que quiser. “Liberdade de imprensa” é uma expressão ideal, é como quando os professores de Física: “Em condições normais de temperatura e pressão...” ou então “Uma esfera ideal desliza sem atrito por um plano inclinado...” Não existe na vida real.





segunda-feira, 29 de novembro de 2010

2413) Um Morcego na Porta Principal (28.11.2010)




Vi na TV a cabo este documentário sobre Jards Macalé (direção de Marco Abujamra e João Pimentel), que vem, não sei se por coincidência ou colateralidade, na esteira de vários outros trabalhos sobre artistas ligados ao Tropicalismo, como é o caso de filmes sobre Tom Zé e Os Mutantes. 

Macalé foi ligado ao Tropicalismo – mas do mesmo jeito que Tom Zé, outro grande bloco-do-eu-sozinho, também foi. Macalé é um sujeito imprevisível, personalista no bom sentido, que dança conforme a própria música. 

Como se sabe, existe Artista Bumbo e Artista Tarol. 

Artista Tarol é aquele que chama uma atenção danada, fazendo solos e floreios, exibindo-se, arrancando aplausos. Artista Bumbo é o que quase não aparece, mas é ele quem dita o ritmo. 

O Artista Tarol é muito bom para fazer enfeites, mas se entregue a si próprio perde o rumo porque não tem uma idéia muito clara de quem é nem pra onde está indo. Em geral, produz melhor se tiver ao lado um Artista Bumbo, que fica meio fora dos holofotes, ajudando o outro a se exibir, e mandando recados telepáticos: “Agora acelera. Agora retarda. Agora um breque. Agora samba. Agora maracatu”.

E há os que são Bumbo e Tarol de si mesmos, como Jards Macalé, que já foi hippie tropicalista, sambista de breque à Morengueira, cirurgião de dor de cotovelo, semi-roqueiro pop com tempero da Zona Norte... faltam rótulos. Numa única vida já teve mais encarnações do que certas socialites tiveram em vidas passadas. 

O filme reúne um bom material de arquivo com áudios e vídeos raros, de uma época em que fazer audiovisual custava uma gruta de Aladim, e o edita com depoimento dos companheiros de geração do Morcego.

Vi ou revi imagens de palco em que Macalé, debruçado sobre o violão, ronca, se esguela, rasga um rugido lá das entranhas da garganta, soluça e balbucia: trinta anos atrás ele fazia o que tempos depois consagrou Tom Waits diante do microfone. 

O violão de Macalé parte de um refinamento harmônico quase erudito para uma vigorosa desconstrução quase punk, de batidas e pancadas, lapadas e rasqueios sem intenção caligráfica. O filme dá uma boa ideia dos muitos e surpreendentes lados do parceiro de Waly Salomão nas canções de “morbeza romântica”. Fico pensando que os garotos punk de hoje, que torcem o nariz para a caretice do samba e da MPB, se vissem Macalé por inteiro concederiam: “Esse aí não, esse aí é maneiro”.

Com as gravadoras, principalmente, a personalidade de Macalé sempre foi angulosa e cheia de arestas, arriscada de conviver muito de perto ou durante muito tempo. Como todos os grandes individualistas, veste o próprio personagem 24 horas por dia, e quem não gostar que se explôda. Diz na cara o que lhe dá na telha, não costuma abaixar o queixo nem diminuir a voz. 

Como tantos outros artistas chamados de maldito, na verdade é maldizente, nunca teve papas na língua nem cardeais no Vaticano. Bolerista elétrico? Bossa Nova trash? Trópico-dadaísta? Faltam rótulos.






2412) Passeio num Lugar Público (27.11.2010)




Foi graças a Lula & Chico Pereira que, em 1967, entrei em contato com a obra de José Agrippino de Paula, o escritor pop-existencial-tropicalista (minha Nossa Senhora, como esses rótulos são insuficientes) que é uma espécie de 29 de fevereiro na nossa literatura – tem horas que existe, tem horas que não. 

Agrippino é mais conhecido pelo seu livro Panamérica (1967), mas o que li naquela época foi seu primeiro romance, Lugar Público (1965), que num certo sentido é superior ao livro mais conhecido. 

Na época, a Revista Civilização Brasileira (uma espécie de bíblia mensal dos jovens intelectuais de esquerda, em cujas fileiras eu era doido para entrar) promoveu um debate sobre literatura com meia dúzia de escritores, enviando para todos as mesmas perguntas. 

Do que foi respondido só me lembro de uma frase de Agrippino: “Para mim tanto faz começar um livro pela primeira página quanto pela última”. Tipo isso.

Lendo Lugar Público fiquei sabendo por que. O livro é um romance fora-de-esquadro em que cada parágrafo é uma unidade solta, independente dos demais. Cada vez que ele faz ponto-parágrafo, saltamos para outro espaço e outro tempo. 

O que nos desnorteia é que graficamente os parágrafos se sucedem como os de um livro normal ou os deste artigo. Se estivessem separados por vinhetas, ou numerados, o desnorteamento seria diferente, e menor. O modo como ele corta de um parágrafo para o próximo lembra o jeito como Godard usava um corte brusco em pontos onde no cinema tradicional se usaria uma transição lenta (fusão, escurecimento e clareamento, etc.).

Há parágrafos de duas linhas e parágrafos de muitas páginas. Vários deles retornam ciclicamente, inclusive alguns com visões surrealistas tiradas de quadros de Hieronymus Bosch. 

Na maior parte do tempo, a história acontece numa cidade asfixiante, tenebrosa e opressiva, espécie de antologia das áreas mais boca-do-lixo e fuliginosas de São Paulo, e mostra as perambulações de um grupo de intelectuais com nomes como Pio XII, Péricles, Napoleão, Galileu, Bismarck... 

Os personagens são meio sem rosto e quase intercambiáveis, por trás desses nomes de gente famosa. Há um narrador na primeira pessoa que às vezes parece um personagem constante, às vezes parece um dos que são nomeados nos outros trechos.

A prosa de Agrippino (e em Panamérica isto é ainda mais intenso) é uma prosa meio autista, de quem contempla e descreve tudo sem envolvimento afetivo e sem ligar muito para o que ocorre. Uma linguagem gravador-e-câmara muito diferente da que o “nouveau roman” francês praticava. 

O que talvez mais impressione é percebermos que há pessoas que vivem assim, que veem as coisas assim, que pensam assim. Mais distanciados e estranhados do que qualquer brechtiano radical. 

Se o livro de Agrippino se intitulasse Relatório Coletivo de Alienígenas Amnésicos Naufragados no Planeta Terra, poderia ser lido e interpretado como um dos clássicos da FC brasileira.











2410) O Politicamente Correto (25.11.2010)




O quer significa ser “politicamente correto”, esta expressão tão em moda? É curioso como em poucos anos um rótulo passa de elogioso a ridículo. Existe alguém, hoje em dia, que afirme publicamente que age de tal ou tal maneira porque é politicamente correto? Deve existir, porque afinal o mundo é grande; mas o desgaste desta expressão, pelo menos na sociedade onde vivo, parece em certas horas ser maior do que o mundo.

A utilização consciente e sistemática do termo é uma coisa (me parece) do ambiente acadêmico, de esquerda, norte-americano. (Sim, o marxismo não morreu. Está vivinho da silva no interior da Tróia para onde se infiltrou na calada da noite. Fermenta nos cursos estruturalistas, nos programas de ação afirmativa, nas cadeiras que estudam o feminismo, a política do corpo, a semiótica de classe, a cyber-escravidão, a dialética do desejo, da submissão e do poder.) Surgiu como uma tentativa de resposta intelectual, argumentada, teorizada, às atitudes de menosprezo ou preconceito contra as mulheres, os negros, os gays, os índios, os imigrantes, os portadores de deficiência e outras minorias.

A teoria por trás disto é de que as estruturas de poder em nossa sociedade se exercem em função de uma ideologia produzida por e para uma minoria dona dos meios de produção, masculina, branca, heterossexual, patriarcal, de classe média para cima e (no caso específico dos EUA) de origem anglo-saxã e religião protestante. As minorias citadas antes são, no contexto dessa ideologia, grupos subalternos, que obedecem porque têm juízo. O mundo não foi feito para eles. Melhor ficarem caladinhos, sem reclamar, se não serão mandados embora do mundo.

O Politicamente Correto se revoltou contra esta situação e inverteu os estatutos de comportamento. Note-se que a expressão não é, p. ex., “moralmente, ou eticamente correto”. A inspiração dessa atitude é uma inspiração política, de trazer para perto de si os “partidos” pequenos de oposição, inexpressivos numericamente, mas, se agrupados numa aliança política, com poder-de-agito bastante para fazer uma diferença no jogo político. Foi isto que acabou por desgastar o rótulo. Porque muitos norte-americanos brancos que defendem os índios ou os negros na verdade não morrem de simpatia por eles nem pelo destino deles. Defendem-nos porque é politicamente correto, ou seja, é politicamente útil defendê-los.

Os membros de uma minoria desprestigiada (os “paraíbas”, p. ex.) sabem quando alguém sente uma simpatia natural e instintiva por eles, quando alguém não se julga superior a eles – por ter uma índole igualitária, ou por um princípio ético permanente. E sabe quando esse “alguém” se julga superior a eles mas não os ofende porque seria taticamente reprovável ofendê-los (ou seja, dizer o que realmente pensam); não seria politicamente correto, não seria politicamente útil. O membro da minoria ergue o rosto, cruza o olhar com ele e pensa consigo: “Esse aí, não”.



quinta-feira, 25 de novembro de 2010

2409) “O Grande Gatsby” (24.11.2010)



Não lembro muita coisa deste livro de Scott Fitzgerald, que li numa tradução da Civilização Brasileira quando tinha meus 18 anos. Gostei, mas o que acabou me ficando na memória foi a luxuosa adaptação dirigida por Jack Clayton em 1973. Um filme que saiu na capa da “Time” mas foi depois bombardeado pela crítica. Não o acho um mau filme, mas David Thomson (um crítico sempre capaz de descrições devastadoras) o considera “ um filme desastroso, feito com um cuidado vulgar e equivocado”. De fato, o filme parece em muitos momentos uma daquelas festas de casamento de milionários, em que vigoram duas leis: não há limite de gastos, e nada pode dar errado. Como se sabe, são leis incompatíveis.

Sempre imaginei que os “roaring twenties” fossem algo mais animado do que o cinema costuma mostrar, mas isto talvez se deva ao deslumbre de minhas fantasias de nordestino. O “Gatsby” de Clayton é limpinho demais, cenográfico demais, parece que antes do diretor gritar “Ação!” alguém passava um aspirador de pó no cenário e no elenco inteiro. Para efeito de contraste, a oficina de lanternagem de Wilson, cuja esposa o trai com Jay Buchanan, é uma ilha da futura Grande Depressão que escapuliu por uma fenda do espaço-tempo e desabou à beira da estrada. A vitória da magia do cinema é que dois climas cenográficos tão artificiais pareçam verdadeiros apenas quando justapostos.

Gatsby (Robert Redford) é, como o Cidadão Kane de Wells, o milionário que tem tudo, menos o que realmente queria. No caso dele, o amor de Daisy (Mia Farrow), uma melindrosa encantadoramente fútil, casada com um jogador de polo preocupado com a escalada da miscigenação racial (Bruce Dern, em mais um papel de marido truculento traído pela esposa). Daisy acaba sendo o grande personagem do filme, porque Mia Farrow, conscientemente ou não, a transforma numa personagem patética, aparentemente incapaz de inspirar uma paixão tão devastadora em quem quer que fosse. De certa forma, é ela quem encarna o espírito de sua época, um espírito de riqueza desperdiçada, de festas permanentes e sem alegria, de frivolidade inconsequente.

Os ricos de Fitzgerald em 1920 não são diferentes dos ricos de Fellini “A Doce Vida”) ou Antonioni (“A Noite”) em 1960. Gatsby dá gigantescas festas boca-livre como quem espalha mel para atrair nuvens de moscas. Tem a esperança de atrair a mulher amada – porque ele sabe que cedo ou tarde ela aparecerá. Daisy é fragílima e onipotente; aquele tipo de mulher a quem os homens chamavam de “cabecinha de vento”, qualidade que, por uma razão misteriosa, as torna mais irresistíveis do que uma mulher com o juízo no lugar. Gatsby e Buchanan a disputam às cegas; nenhum dos dois sente firmeza nos sentimentos dela, talvez porque percebam que ela mesma não tem a menor ideia do que está sentindo agora e do que pode vir a sentir daqui a cinco minutos. É um romance de mal-entendidos, e o crime que o encerra é o mal-entendido mais patético de todos.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

2408) O nosso século 19 (23.11.2010)




(Gustave Doré, Londres)

Fala-se muito hoje que o romance realista clássico não tem mais lugar em nossa sociedade tecnológica, informatizada, pós-moderna. A grosso modo, o romance realista é o romance que conta uma história com começo, meio e fim, descrevendo a vida de pessoas reconhecíveis num ambiente complexo, descrito com nitidez social e verossimilhança histórica. Esse romance seria mais ou menos, ressalvando a peculiaridade de cada autor, o romance praticado por Balzac e Flaubert (França), Charles Dickens (Inglaterra), Tolstoi e Dostoiévski (Rússia), etc. Esse tipo de literatura, para muitos críticos, teria sido posto em xeque, ou até mesmo inviabilizado, por uma literatura mais introspectiva e psicológica, além de estruturalmente descontínua e fragmentada: a de James Joyce (Irlanda), Virginia Woolf (Inglaterra) e Marcel Proust (França).

Curiosamente os nossos “balzacs” foram todos do século 20: Jorge Amado, Érico Veríssimo, Graciliano Ramos, Raquel de Queiroz. São os nossos grandes realistas, e, mesmo com a pressão das vanguardas, eles continuam a ser lidos e continuamos a considerar que sua literatura corresponde a uma necessidade do público leitor. O leitor tem necessidade de literatura mimética, de literatura que pareça contar uma história real com pessoas de verdade. Talvez esta necessidade tenha sido produzida artificialmente ao longo de dois séculos, mas que existe, existe.

Um artigo recente de George Packer (http://tinyurl.com/2c5652u), intitulado “Dickens in Lagos”, propõe uma ideia interessante. Ele relata um diálogo com um jovem leitor de Burma, que adotou o pseudônimo de Somerset em homenagem ao escritor inglês Somerset Maugham, um realista de boa cepa. O rapaz, fã também de Charles Dickens, afirmava, para surpresa do britânico: “Nenhum inglês ou americano vivendo no século 21 pode entender Dickens tão bem quanto eu. Eu vivo numa atmosfera dickensiana. Nosso país está atrasado em pelo menos dois séculos em relação ao mundo ocidental. Minha vizinhança – sombria, pobre, com pequenas manufaturas domésticas, crianças brincando na rua, casais brigando o tempo inteiro, gente endividada, gente suja. Isso é puro Dickens. Eu cresci nessa atmosfera tipo Dickens. Estou mais preparado para entender Dickens do que esses romances modernos. Eu não sei o que é ar condicionado, o que é metrô, o que é datiloscopia”.

O retrato feito pelo jovem Somerset é curioso porque reflete em grande medida uma realidade brasileira. É um retrato incompleto, é claro, e não invalida a literatura de vanguarda de hoje, mas explica parcialmente por que motivo os autores de 150 anos atrás continuam atuais: porque a realidade social e o repertório literário de grande parte de cada país está mais próximo de Dickens do que de Paul Auster, mais próximo de Dostoiévski do que de Robbe-Grillet. A literatura do século 19 continua viva nas periferias do século 21, e nada indica que não tenha, ela também, uma longa existência pela frente.




domingo, 21 de novembro de 2010

2407) Os Índios Tabajaras (21.11.2010)



Eu os escutava muito quando era pequeno, porque fizeram grande sucesso na Era do Rádio, quando a música era somente música, sem imagem, e não dependia da carinha bonita, do rosto varonil ou da roupa exótica de quem estivesse cantando. 

Não que os Índios Tabajaras dispensassem este último item. Nas revistas e jornais daquele tempo surgiam as fotos daquele “cadavre exquis” antropológico: dois índios cor de bronze, cheios de penachos e pinturas de urucum, empunhando violões iguais ao de Canhoto ou de Dilermando Reis. Eram anunciados pelo locutor com certo espanto. Era como se dissesse: “E agora com vocês, pelas ondas da Rádio Borborema, um quarup gravado in-loco diretamente da tribo dos Urubu-Kaapor na Amazônia!” Tipo isso. 

Ouvir uma música tocada pelos Índios Tabajaras gerava uma expectativa meio surrealista. Com dez anos, sentado no sofá da casa da Rua Miguel Couto, eu ouvia o rádio enchendo a sala, não com um quarup cheio de maracás e bate-pés, mas dois violões (ou guitarras com eco, tipo havaiana) de límpido timbre, solando: “Maria Helena és tu... a minha... inspiração...” 

É pena que esta coluna seja em mero papel, leitor, mas os Índios Tabajaras que mesmerizaram minha infância podem ser escutados hoje no YouTube. Por exemplo, seu lado romântico e melódico está em “Begin the Beguine” de Cole Porter (somente áudio: http://tinyurl.com/2ga3du3), no tema de “Johnny Guitar” (somente áudio: https://tinyurl.com/y38lqhn6). 

Mas imaginem o pasmo dos gringos vendo-os, paramentados de índio, tocando clássicos como a “Hora Staccato” de Grigoras Dinicu (http://tinyurl.com/2fdzf68). 

Nasceram na serra do Ibiapaba (CE), foram morar na cidade, aprenderam a tocar violão. Tocaram no Brasil inteiro nos anos 1950. Viajaram pelo mundo, e a partir dos anos 1960, com músicas estouradas nos EUA, mudaram-se para lá. No início dos anos 1970 tinham 48 LPs gravados com 8 milhões de cópias vendidas. 

Muita gente se pergunta por que motivo esses caras foram tão famosos fora do Brasil e hoje ninguém mais lembra deles. Eu diria que, por um lado, eles sofreram da Síndrome de Carmen Miranda, do exotismo que fascina lá fora mas aqui dentro provoca um muxoxo de desconfiança: “Pra que essa palhaçada?... Por que não se vestem como qualquer pessoa?...” 

O povo brasileiro tem uma relação estatisticamente contraditória coma exploração do próprio exotismo. Mas não há como um norte-americano ou um europeu não ficar embasbacado diante de dois índios tocando peças clássicas impecavelmente, ao violão. Parece cena de um filme de Glauber. 

Para terminar, vejam Nato, o solista, explicando com bom humor alguns aspectos de sua técnica: http://tinyurl.com/2bsenp6, e depois dando um arraso naquele número que é um teste tradicional de velocidade, o “Voo do Besouro” de Rimsky-Korsakoff. E um pequeno clip dos dois sendo saudados nos programas de Johnny Carson, Ed Sullivan, etc.


sábado, 20 de novembro de 2010

2406) O Ulisses britânico (20.11.2010)



Joshua Cohen elegeu, como o equivalente britânico do Ulisses de Joyce, o romance Mrs. Dalloway de Virginia Woolf. 

Alguém pode estranhar a enorme diferença de ponto de vista entre os dois livros. O Ulisses é na verdade o romance de uma cidade inteira, Dublin, com seus bairros, suas vielas, seus bares e bordéis, seus variados sotaques e dialetos (toda cidade grande os tem), ao passo que o livro de Woolf é uma história intimista, que ocorre toda dentro da mente da protagonista. 

Não li este livro por inteiro; tive-o há anos numa boa tradução de Mario Quintana. Cohen justifica assim sua escolha: 

“É a resposta britânica feminina à masculinidade irlandesa. A narrativa de Woolf acompanha um dia de junho na vida de Clarissa Dalloway, enquanto ela organiza uma festa que dará à noite. O que era externalizado em Joyce – detalhes físicos, ação – é internalizado em Woolf – detalhes mentais, psicologia. Seu livro é um triunfo da nossa voz mais íntima”. 

Os dois livros têm em comum a história de “um dia na vida de uma pessoa”, e um discurso que acompanha os ritmos e associações verbais da mente semi-consciente, ao invés de nos dar uma descrição pretensamente objetiva do mundo exterior. 

As diferenças entre um e outro também são grandes. Mrs. Dalloway é uma história intimista, mas Ulisses é aquilo que o pessoal chama de um grande painel social, com uma sucessão de ambientes e uma multiplicidade de personagens e de situações capaz de deixar tonto o leitor. Um é um livro pequeno voltado para dentro; o outro é um livro grande voltado para fora. 

A certa altura do livro, diz Woolf: 

“Ela tinha a sensação constante, enquanto olhava os táxis, de estar longe, muito longe, lá no alto mar e sozinha; sempre tivera a sensação de que era muito, muito perigoso viver por um dia que fosse”. 

É o tema guimarãesrosiano do “viver é muito perigoso” em Grande Sertão: Veredas, só que aqui não se fala do sertão de jagunços e tiroteios, mas da angústia de experimentar a intensidade de cada momento. Mrs. Dalloway, como grande parte de ficção de Virginia Woolf (e de autores como Clarice Lispector) fala do modo quase insuportável como o momento presente é experimentado por um tipo de pessoa excessivamente sensível, com acuidade fora do normal para todo o entrecruzamento de impressões sensoriais, lembranças e emoções que podem se concentrar num breve instante. 

A ficção de Virginia Woolf (junto com a de Proust e de Joyce) serviu para equacionar de forma diferente a questão do tempo literário, da possibilidade de se dilatar ilimitadamente um instante vivido por um personagem. 

Cabe aqui a frase famosa de Borges em “O Aleph”: “O que vi foi simultâneo; o que descreverei agora será sucessivo, porque a linguagem assim o é”. Essa possibilidade de infinita subdivisão desse instante psicológico em tempos simultâneos foi uma das grandes conquistas da literatura praticada por esses autores.