sábado, 2 de outubro de 2010

2362) Os melhores começos (2-10-2010)



Um grande começo de livro é aquilo que os norte-americanos chamam de “hook”, gancho, algo que se crava no sujeito e o suspende no ar, levando-o consigo. (Ou pelo menos o ergue pelo cinturão.) São aquelas primeiras linhas que não deixam o cara ir embora. Encontrei há pouco um saite (aqui: http://www.infoplease.com/ipea/A0934311.html) que lista os 100 melhores começos de livros. Isto, é claro, reflete apenas o gosto e a informação do autor, e não quer dizer nada estatisticamente, a menos que tenhamos uns 20 ou 30 saites semelhantes e possamos cruzar as informações. E mesmo assim é evidente que os livros famosos, aqueles que todo mundo cita e repete, acabarão tendo precedência. Deve haver uma infinidade de começos de livros melhores do que “Durante muito tempo eu costumava me deitar cedo”, com que Proust inicia Em Busca do Tempo Perdido, mas esse singelo início se contaminou de tudo que vem em seguida, e da mística de Proust, e hoje aparece em todas as listas.

Melhor do que este é, por exemplo, o devastador início do Murphy (1938) de Samuel Beckett: “O sol brilhou, já que não tinha alternativa, sobre o nada de novo”. Todo o espírito do autor já vem anunciado nesta frase; é pegar ou largar. Reencontrei nessa lista um começo que eu conhecia há anos sem saber quem era o autor ou qual era o livro: “O passado é um país estrangeiro. Lá eles fazem as coisas de um modo diferente.” A frase é de L. P. Hartley, abrindo seu romance The Go-Between (1953), que aliás foi filmado por Joseph Losey (O Mensageiro).

Alguns professores recomendam que a primeira frase seja uma frase intrigante, que desperte a curiosidade e até mesmo a incredulidade do leitor, compelindo-o a ler o livro só para ver que diabo significa aquilo. Para mim, é o caso deste pitoresco início de Waiting (1999), de Ha Jin: “Todos os verões, Lin Kong regressava à Vila do Ganso para se divorciar de sua esposa Shuyu”. Começar o livro dando um tom de indefinição e dúvida é um recurso muito apreciado por autores pós-modernos, como mostram alguns exemplos: “Num certo sentido, eu sou Jacob Horner” (John Barth, The end of the road, 1958); "Foi assim, mas não foi” (Richard Powers, Galatea 2.2, 1995); “Isto tudo aconteceu, mais ou menos” (Kurt Vonnegut Jr., Matadouro 5, 1969).

Por questão de gosto pessoal, sinto-me bem quando um escritor abre seu livro com a enunciação de uma verdade absoluta, até porque muitas vezes o resto do livro se dedica a desmenti-la ou relativizá-la. Gosto do modo como Graham Greene começa The End of the Affair (1951): “Uma história não tem começo nem fim; escolhemos arbitrariamente um momento da nossa experiência para a partir dali olhar para trás ou para a frente”. Um início neste tom nos prepara para uma narrativa feita em retrospecto (estou supondo; nunca li esse livro) e para a percepção de que uma história não são os fatos que aconteceram no passado, são o que o narrador parece lembrar enquanto nos conta.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

2361) Arthur Penn (1-10-2010)



Morreu dias atrás, aos 88 anos, Arthur Penn, que dirigiu alguns dos filmes mais interessantes do cinema norte-americano das décadas de 1960-1970, mas nunca foi tão levado a sério como outros, menos talentosos do que ele. Não vi os filmes do final de carreira de Penn, mas vi seus oito primeiros filmes, realizados entre 1958 e 1975. Todos são bons ou ótimos. O mais conhecido é Bonnie & Clyde – Uma Rajada de Balas (1967), que influenciou todos os filmes de gangsters feitos desde então. Caçada humana (1966), já lançado em DVD no Brasil, é um thriller que revela a sordidez e o fascismo latente nas cidadezinhas dos EUA. Um preso (Robert Redford) foge da cadeia e passa a ser perseguido por toda a cidade, e somente o xerife (Marlon Brando) tenta fazer valer a lei. O elenco tem Jane Fonda, Robert Duvall, E. G. Marshall e Angie Dickinson. Night Moves (1975) mostra Gene Hackman no papel de um detetive particular problemático; é um filme que eu gostaria de rever, porque na época o achei tão bom quanto o badalado Chinatown de Polanski.

Um dos filmes mais elogiados de Penn é sua transposição para a tela da peça The Miracle Worker, a história de Ann Sullivan, a enfermeira/professora que consegue humanizar e instruir uma menina cega, surda e muda, que quando adulta tornou-se a escritora Helen Keller. O filme, O Milagre de Ann Sullivan (1962) foi um enorme sucesso e as duas atrizes (Anne Bancroft e Patty Duke) ganharam o Oscar. Outro filme que ganhou prêmios variados foi Pequeno grande homem (1970), em que Dustin Hoffmann faz o papel de um chefe índio, dos 17 aos 120 anos, contando a saga do extermínio das tribos nativas dos EUA.

Outro western pouco convencional é Um de nós morrerá (1958), filme de estréia de Penn, em que ele mostra Paul Newman no papel de um Billy the Kid cheio de encucações freudianas, e seguido por toda parte por um escritor que documenta suas façanhas, personagem que viria a se tornar um clichê do western (sua mais recente encarnação é em Os Imperdoáveis de Clint Eastwood). O filme mais leve e divertido de Penn é Deixem-nos viver (“Alice’s restaurant”), em que ele toma por base uma canção de Arlo Guthrie, “Alice’s Restaurant Massacre”, uma das mais longas da história da música folk, com 18 minutos de duração entre canto e monólogo.

Deixei para o final o melhor filme de Penn, na minha opinião: Mickey One (1965), um thriller kafkeano filmado no estilo da nouvelle vague francesa. Warren Beatty, que faz o papel-título, era apaixonado pelos filmes de Godard e Truffaut e insistia em fazer algo parecido nos EUA. Juntou-se com Penn para fazer (além de Bonnie & Clyde) este exercício surrealista que tem tinturas de Orson Welles e Fellini, e é um dos filmes mais extraordinários (no sentido de “diferente de tudo”) de sua época. Penn nunca mereceu grandes honrarias da crítica, mas por mim bastariam estes oito filmes para compor um retrato cruel e criativo do país em que foram feitos.

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

2360) A palavra texto (30.9.2010)




Para mim, esta é uma das palavras mais importantes e onipresentes do idioma. Gosto de pesquisar etimologias (passatempo tão interessante quanto jogar Sudoku ou Tetris), e fico sabendo que sua raiz indo-européia mais remota é a partícula “teks”, que significa “tecer”. O que já nos projeta no território recursivo da autodefinição, pois sem dúvida a própria palavra “tecer” vem da mesma raiz. 

Por isso, quando ouvimos falar, por exemplo, que “em Campina Grande sempre floresceu com ímpeto a indústria têxtil”, estamos nos referindo não só à confecção de roupas, mas também à prosa e à poesia.

Um verbete do saite A Word A Day comenta a palavra “subtile”, que à primeira vista parece significar “sutil”, mas acontece que “sutil” em inglês é “subtle”. O que seria esta outra? Seria talvez o que em português distinguimos como “sútil”: “composto de pedaços cosidos uns aos outros; costurado”. Basta lembrar a palavra “inconsútil”, que significa “algo inteiriço, que não foi costurado”, como a túnica de Jesus. 

Como dizia Emílio de Menezes: “Anda! Beija-me aos pés a clâmide inconsútil...” Uma coisa sutil é uma coisa que é sútil de tal maneira que é necessário um esforço para distinguir as costuras ou urdiduras do tecido.

Tecido, por sinal, é sinônimo etimológico de texto. Um pedaço de pano e um poema são a mesma coisa. Assim como um tecido, um texto não é um mero aglomerado de fios, porque se o fosse se desfaria com facilidade, mal o erguêssemos nas mãos. 

(É o que acontece com os livros mal escritos – mal a gente acaba de ler um parágrafo e passa para o seguinte, tem a sensação de que o anterior está se desmanchando e sendo levado pelo vento.) 

Assim como num pano existem a trama e a urdidura (os fios horizontais e os verticais) num texto há estruturas transversais umas às outras, que se engancham apertadamente entre si e se dão firmeza.

O interessante é que o A Word A Day indica as seguintes palavras que também vêm da raiz “teks” (tecer): arquitetura (em que o “tecer” não se dá através de fios, mas de macroestruturas), tectônico (a arte de construir, mas aplica-se especificamente às placas geológicas que suportam os continentes), tecnologia (o conjunto de instrumentos e procedimentos que se interligam para produzir uma transformação no mundo físico). 

Em tudo existe a ideia básica, que não se diluiu, de um conjunto de elementos concretos que se apóiam uns aos outros.

Não sei se algum leitor já visitou a cidade paraibana de São Bento, no alto Sertão, um pouco pra lá de Brejo do Cruz. Durante o dia inteiro escuta-se o traque-traque (ou seria melhor dizer o tek-tek?) de centenas de teares artesanais fabricando redes. 

Passei uma semana lá fazendo um trabalho e nada me fascinou tanto quanto o modo como os tecelões faziam as lançadeiras correr de um lado para outro, por entre as trocas de posição das armações da madeira, enquanto as crianças enchiam de fios as espôlas. Não percebi que todos estavam escrevendo um texto.





quarta-feira, 29 de setembro de 2010

2359) A estética do Meu Passado Me Condena (29.9.2010)




O título brasileiro deste dramalhão de Basil Dearden (Victim, 1961) virou clichê. 

 Títulos como Assim caminha a humanidade, Suplício de uma saudade ou Adeus às ilusões, que não têm nada a ver com o título em inglês do filme, são produto da imaginação das distribuidoras nacionais, e acabam se tornando pequenas jóias onde se cristalizam idéias fundamentais do gênero folhetinesco.

No folhetim há sempre alguém que tem um passado misterioso, uma culpa escondida, um esqueleto no armário, um conflito mal resolvido, uma identidade deixada para trás. 

Em inglês há uma expressão sintomática. Quando se diz “he is a man with a past”, “ele é um homem com um passado”, subentende-se logo que é um passado especial e problemático, um passado que (como disse indelevelmente William Faulkner) até hoje não passou. 

Já vimos isto no horário nobre, não é mesmo? 

É o filantropo de cabelos brancos que de repente alguém reconhece como um traficante de escravos quando tinha cabelos pretos. 

É a dama de sociedade que numa festa é reconhecida pelo frequentador de um bordel. 

É o morador obscuro de uma pensão cuja foto aparece nos postes da rua num cartaz de “Procura-se”.

Todo mundo tem um passado que é como um fogo de monturo: parece extinto mas continua a fumegar lá dentro, esperando o momento certo de fumegar cá fora. Nas telenovelas ou nos romances surgem a todo instante homens incorruptíveis ou esposas de honestidade a toda prova que, não obstante, estremecem de maneira inexplicável ao escutar o nome de uma cidade, ou à simples menção de um episódio rumoroso ocorrido no passado. Por que esse susto? O que têm eles a esconder?

O romance policial, que tanto deve ao folhetim, vive em grande parte deste recurso dramatúrgico básico, o de que todo indivíduo consiste em camadas de tempo superpostas, de tal modo que mesmo por baixo do mais imaculado dos presentes pode estar se abrigando um passado infestado de cupins ou cânceres. 

Ninguém é perfeito, e ainda menos aqueles que parecem ansiar por uma perfeição pública, por uma reputação inatacável. 

Cedo ou tarde o beneficente milionário é assassinado em sua biblioteca, e descobrimos que quem lhe cravou a espátula nas costas foi o homem cuja vida ele arruinou na Tasmânia ou em Bornéu. 

Cedo ou tarde o vagabundo ou mendigo encontrado morto nos arredores da mansão é identificado como um reles chantagista que vivia a extorquir a família inteira, sob a ameaça de revelar as atividades da matriarca durante a ocupação nazista em Paris. 

Todo mundo tem um passado que preferiria que não viesse à tona, e muitos são capazes de chegar ao crime para que isto não aconteça. No folhetim ocorre às vezes que o vilão mais repugnante acabe se revelando um homem de princípios nobres, que procedia daquela forma por estar preso a um juramento ou um compromisso. Ocorre mais frequentemente, porém, que um indivíduo impoluto se revele vilão. O passado mais condena do que absolve.






terça-feira, 28 de setembro de 2010

2358) Inventores de palavras (28.9.2010)




Guimarães Rosa, compulsivo criador de neologismos, comenta no segundo prefácio de Tutaméia (são quatro ao todo!), intitulado “Hipotrélico”, a nobre arte de inventar palavras. 

Dá exemplos ilustres: Cícero inventou “qualidade”, Comte “altruísmo”, Stendhal “egotismo” (ou “egoísmo”), Guyau “amoral”, e por aí vai. 

Na vereda aberta pelo mestre, tenho anotado também inventores e invenções como Oliver Wendell Holmes (“anestesia”), Santos Dumont (“aeroporto”), Sir Francis Galton (“eugenia”), Goethe (“morfologia”), Thomas Huxley (“agnóstico”, “biogênese”), John W. Campbell (“hiperespaço”), William Gibson (“ciberespaço”), Montaigne (“ensaio”, no sentido literário), Gelett Burgess (“blurb”, aqueles textozinhos de propaganda, bem chamativos, que surgem nas capas e contracapas dos livros).

Dito assim até parece que é função dos escritores, e somente deles, a criação de palavras novas. Ilusão trêda! Os exemplos acima são em sua maioria de cientistas ou filósofos que precisam de um termo novo para batizar uma atividade (mesmo que apenas mental) nova. Surgem numa esfera superior do raciocínio e do discurso. Mas não são de jeito nenhum o único laboratório em que palavras novas são forjadas ou são renascidas por desvio de contexto. 

E o próprio Rosa (visitem Tutaméia, tem mais coisas do que no Louvre) dá numerosos exemplos de como as palavras são geradas por gente comum, gente do povo, inclusive citando termos divertidos criados pelos doidos de quem ele cuidou em Barbacena, nos seus tempos médicos. 

E compare-se esse extenso levantamento com o famoso parágrafo de “São Marcos”, em Sagarana onde ele fala que “as palavras têm canto e plumagem”, e dá uma Golconda de exemplos.

Quem inventa as palavras, então? Os dicionaristas? Os filósofos? Os doidos? Direi eu que algumas pessoas nascem com o dom de inventar palavras plausíveis (atentem para esta importante distinção). 

Eu posso inventar a palavra “ductopesgante” para descrever a sensação de pegar um pedaço de fita durex enrolado sobre si próprio; mas quem me garante que essa palavra vai grudar? Provavelmente não, porque foi feita aleatoriamente, no teclado, ao invés de seguir as maneiras formativas intuitivas do idioma. 

Quando um camelô diz que um filme em 3D é em trimensão, quando um sindicalista diz que uma lei é imexível, quando um futebolista propõe uma solucionática, quando um poeta diz que está expondo coisas num monstruário, todos estão instintivamente lançando mão da alquimia interna da língua brasileira, e é por isso que reconhecemos essas palavras novas como palavras legítimas, e algumas delas se impõem.

Há escritores e eruditos que não conseguem inventar uma palavra, por mais que tentem, e há inventores de palavras que são meros lavradores, radialistas, estudantes, comerciantes, taxistas, garçons, seja lá o que for. 

Não tem nada a ver com erudição ou literatura. É uma arte em si, e graças a ela nossa Língua Geral cresce e se aperfeiçoa.





segunda-feira, 27 de setembro de 2010

2357) A situação e o desfecho (26.9.2010)


("Meu caro Watson, talvez fosse melhor a gente esperar o inspetor Lestrade")

O desenhista Gahan Wilson é um dos mestres do cartum fantástico. Este gênero talvez não esteja consignado nos compêndios, mas existe e prolifera nas revistas e jornais, alicerçado na obra de artistas como Edward Gorey, Charles Adams (criador da “Família Adams”), e muitos outros. 

Wilson ficou famoso por seu traço que alterna linhas de simplicidade aerodinâmica com áreas do desenho festivamente coberta de detalhes (muitas vezes horripilantes e hilários). Publicou em revistas de grande circulação como Collier’s, The New Yorker, Playboy e outras, mas foi através das páginas do The Magazine of Fantasy and Science Fiction que o conheci (bem como na edição brasileira dessa mesma revista, e da saudosa Galáxia 2000). 

O universo temático de Wilson é instantaneamente familiar a quem aprecia a obra de Ray Bradbury, Tim Burton, Roger Corman, Robert Bloch, Roald Dahl.


Wilson afirma (em http://graphicnyc.blogspot.com/2009/09/creepy-funny-absurdist-world-of.html): 

“O que é importante é escolher um tópico e apegar-se a ele. Digamos, duas pessoas numa mesa de restaurante. Não abandone isto para pensar noutra cena, porque se o fizer você vai ficar andando e não chega a lugar nenhum. Você tem que manter a decisão de achar algo engraçado naquele restaurante. E acaba achando”.


Numa entrevista à Locus em março de 1999, Wilson fez um comentário interessante sobre a arte do cartum (não necessariamente do cartum fantástico). Disse ele: 

“Um cartum é uma forma maravilhosamente complexa de arte visual e arte literária. É o único meio de expressão em que as duas coisas estão inteiramente entrelaçadas. Num cartum com legenda, um cartum realmente bem feito, se você remover a legenda o desenho não faz mais sentido, e se você remover o desenho a legenda não faz mais sentido. Eles são interdependentes. Mas acima de tudo um cartum é algo literário. Se ele é rico de significado e bem feito, o leitor pode imaginar o que vai acontecer em seguida ou como foi que aquela situação veio a acontecer. Ele é um momento dentro de uma história”.


Um cartum de Wilson mostra uma loja de animais empalhados, o cliente junto ao balcão onde há dois homens. Um deles aponta para o outro e apresenta: “Meu falecido sócio”. Só então a gente percebe que o outro está numa posição excessivamente comportada, mãos cruzadas sobre o balcão, olhar fixo. 

Se víssemos apenas a imagem talvez achássemos que ele estava distraído, indiferente à conversa. Por outro lado, a legenda sozinha não diz muita coisa. 

É um pouco o contrário do que Hitchcock preconizava para o uso do diálogo. O diálogo deveria ser meio irrelevante em relação à cena, para que essa própria irrelevância destacasse o que realmente importa, ou seja, o que estamos vendo. São receitas diferentes, mas importantes. Wilson: O diálogo deve ser complemento. Hitchcock: O diálogo deve ser contraste. O que não pode ser é redundância.








sábado, 25 de setembro de 2010

2356) O Ulisses galês (25.9.2010)




Ao listar os equivalentes ao Ulisses de James Joyce em diferentes países, o escritor Joshua Cohen usa de vez em quando o que poderíamos chamar de licença poética. Por exemplo: quando considera que o Ulisses do País de Gales é a peça radiofônica Under Milk Wood escrita por Dylan Thomas em 1954. 

Afinal, se falamos no Ulisses estamos falando no gênero romance e no livro que redefiniu (ou, segundo alguns, avariou para sempre) as regras do gênero. O livro de Joyce expandiu as possibilidades do romance como gênero canibalizante de todos os outros: prosa literária, ensaio, poesia, dramaturgia, o escambau. 

Assim Cohen justifica sua escolha: 

“É também, além do Ulisses galês, o Ulisses dramatúrgico. Under Milk Wood era de início uma peça radiofônica e foi depois adaptada para o palco. Vozes misteriosas convidam a platéia a espreitar a vidas-em-sonho e os monólogos interiores dos habitantes de um vilarejo no País de Gales chamado Llareggub (“bugger all” ao contrário, algo como “que todos se danem”). Depois desta introdução, os habitantes despertam e a plateia, agora conhecendo quais são as motivações e os sonhos de todos eles, começa a acompanhar a história de suas vidas. Under Milk Wood é uma das tentativas mais abrangentes de dramatizar o universo mental de um mundo provinciano”. 

Como se vê, há duas conexões principais entre a peça de Dylan Thomas e o livro de Joyce. 

A primeira é essa utilização do monólogo interior, o qual aliás não foi inventado por Joyce, assim como a guitarra não foi inventada por Jimi Hendrix. Joyce psicografou os pensamentos erráticos que fluem nas bordas semiconscientes da mente. Imagino (nunca li nem escutei a peça) o que um poeta como Dylan Thomas (criador de imagens espantosas, quase surrealistas, e manejador de um vocabulário dos mais surpreendentes) pode fazer com os recursos do rádio e do teatro. 

A segunda conexão é o fato de que Joyce era irlandês e Thomas galês. Dentro da cultura da Grã-Bretanha, irlandeses e galeses são meio nordestinos, ou seja, pertencem a uma cultura menor dentro de uma maior, cuja língua compartilham, mas parecem se alternar o tempo todo entre ímpetos separatistas e estratégias de subversão mítica e verbal. 

A comparação feita por Cohen é surpreendente mas acaba rendendo uma boa linha de análise quando faz a equação entre a prosa de Joyce e a poesia de Thomas como eclosões do Modernismo em língua inglesa. Há mais coisas em comum entre os dois do que se imaginaria a princípio. 

Thomas deu ao seu volume semiautobiográfico o título de Portrait of the Artist as a Young Dog (1940), o que parece a todos uma referência ao A Portrait of the Artist as a Young Man (1917) de Joyce. Mas ele afirmou que a expressão “retrato do artista quando jovem” designa um subgênero da pintura e serve de título a numerosos quadros. 

Em todo caso, Dylan Thomas e James Joyce são como duas montanhas diferentes, feitas do mesmo basalto, que se contemplam à distância.








sexta-feira, 24 de setembro de 2010

2355) A palavra show (24.9.2010)




É uma silabazinha onipresente a partir do instante em que a gente aperta o botão do controle remoto. Assistir TV é escutar esse vocábulo que, como um Aleph, comprime no grão de si mesmo um universo de significação. 

Não se trata apenas do Fantástico, o Show da Vida mas de qualquer coisa que a TV esteja mostrando: é um show de calouros, um show de prêmios, tudo é um show de cobertura, um show de imagens, um show de transmissão... 

A TV é um show permanente, e neste sentido essa palavra pertence muito mais ao universo televisivo do que ao universo musical (“vou assistir um show de MPB”). O que chamamos de “show business” não se refere propriamente à música, embora instintivamente associemos estas duas coisas. Refere-se à televisão, a Máquina Mostradora por excelência.

“To show” significa “mostrar”, e é isso que a TV faz melhor do que ninguém. A TV não analisa, não interpreta, não questiona, nem mesmo quanto tenta fazer isso, ou quando parece estar conseguindo. A função orgânica da TV é mostrar. 

Ela mostra uma coisa, depois mostra outra coisa, depois mostra outra coisa, depois mostra outra coisa, depois mostra outra coisa, depois mostra outra coisa, e assim por diante, ao infinito. Foi criada para isto, e pense num produto que correspondeu à intenção! 

Mostra qualquer coisa, e, como as chamadas e os plimplins da Globo nos lembram o tempo inteiro, mostra acima de tudo a si mesma.

A expressão inglesa “to show off” significa “exibir-se, pavonear-se”, ou, mais paraibanamente, “se amostrar”. Dizemos que “o time do Santos ganhou a partida e deu um show”; isto não quer dizer apenas que jogou bem, mas que fez a costumeira exibição de firulas e pedaladas. 

O sujeito que se amostra está tentando ser-e-parecer mais do que é, está exagerando a si mesmo, está fingindo uma imagem um passo além da realidade; lamentavelmente, todo show tem um pouco disto. É da natureza do espetáculo de massas parecer que está mostrando algo quando na verdade se está mostrando uma versão mais colorida, mais ruidosa, mais luminosa e mais rica daquele algo. 

Em inglês, a palavra “show” no sentido de “exibição, espetáculo” data de 1561; no sentido de “ostentação exibicionista”, de 1713 (http://www.etymonline.com/index.php?term=show).

Ariano Suassuna, notoriamente ranzinza para com tudo que tenha cheiro de Bom Ar norte-americano, costuma chamar as apresentações musicais de “espetáculos”, e justifica: “Na minha terra, xô é uma palavra que se usa para espantar galinha”. 

Muita gente nem chama de “shows” aqueles espetáculos discretos, tipo voz-e-violão, de artistas como Elomar ou João Gilberto. Chama-os de concertos ou recitais, ou coisa equivalente. Porque é da essência do “show” musical o exibicionismo, as plumas e paetês, os naipes de sopros, as bailarinas, a fumaça de gelo seco... 

Uma tradução extremamente liberal da expressão “show business” nos daria “mostrar serviço”, e, no frigir dos ovos, é disso mesmo que se trata.





quinta-feira, 23 de setembro de 2010

2354) “Contos Obscuros de Poe” (23.9.2010)


A imprensa já divulgou, mas se eu registrar aqui talvez acabe atingindo uma meia dúzia que lê a mim e não lê a imprensa. Hoje à noite estarei lançando em João Pessoa meu livro mais recente, a coletânea Contos Obscuros de Edgar Allan Poe, publicado pela editora Casa da Palavra, do Rio de Janeiro. É o quarto volume de uma série de antologias do fantástico, que já inclui Páginas de Sombra: Contos Fantásticos Brasileiros (2003), Contos Fantásticos no Labirinto de Borges (2005), Freud e o Estranho: Contos Fantásticos do Inconsciente (2007). O lançamento terá lugar no Centro Cultura Zarinha, na Avenida Nego, a partir das 19 horas, com uma palestra, e depois sessão de autógrafos. (Os leitores de Campina não pensem que serão desprestigiados – estou organizando o lançamento daí, que deverá acontecer no mês que vem).

A intenção deste livro é chamar a atenção para a obra sempre atual de Edgar Allan Poe, que é uma espécie de Augusto dos Anjos norte-americano, com a diferença de que tornou-se mais famoso como contista, não como poeta. Assim como Augusto, Poe teve uma vida cheia de problemas, entre eles uma saúde frágil, um temperamento neurastênico, e uma penúria crônica. Ambos morreram relativamente moços: Augusto com 30 anos, Poe com 40. E viveram, cada um, num contexto literário regionalista, que não compreendia aquela sua fixação com o Universo, as galáxias, a evolução futura da Humanidade.

Talvez o traço mais distintivo de Poe seja sua fusão entre a racionalidade analítica e a alucinação obsessiva. Muitos de seus contos são narrados por indivíduos desequilibrados que se auto-analisam sem parar, e isto era decerto um traço do próprio autor. Poe ficou órfão desde a infância (era filhos de um casal de atores ambulantes) e foi adotado por um comerciante rico, que o criou como um jovem aristocrata sulista (algo equivalente a ser o filho de um fazendeiro nordestino rico). Dos 6 aos 11 anos de idade ele estudou na Inglaterra, o que influenciou não apenas seus modos como a sua literatura. Chegando à idade adulta brigou com o pai adotivo, foi embora de casa e passou a viver na pindaíba, pedindo dinheiro emprestado, conseguindo empregos como jornalista e perdendo-os logo depois, devido ao seu temperamento desabrido e a sua arrogância intelectual. Poe era um desses sujeitos inteligentes que têm pouca paciência para com quem é menos inteligente do que eles.

Sua personalidade peculiar identificou-se com o “conto de Blackwood”, gênero literário popularizado na época pelo famoso Blackwood Magazine, que consistia num pequeno ensaio introdutório explicando um fato espantoso da natureza ou da ciência, seguido de um episódio fictício com aparência de relato verdadeiro. Usando esta fórmula da época, Poe criou as bases do conto de terror moderno, do conto analítico-detetivesco, e da ficção científica. Inventou sozinho, no começo do século 19, a literatura do século 20 que se prolongou até o século 21.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

2353) A arte da definição (22.9.2010)



Sempre que falo em ficção científica, alguém me pede uma definição do gênero, e eu respondo que há uma fartura delas, centenas e centenas à escolha – e todas me parecem plausíveis. Nos meus tempos de movimento cineclubista, principalmente quando atrelado ao movimento estudantil, havia uma fase inicial da discussão que era chamada de “definição de conceitos”. O que é cinema? O que é mercado cinematográfico? O que é arte? O que é cultura? O que é povo? O que é povo brasileiro? O que é cinema brasileiro? E seguia nesse caminho. Em geral, as definições de conceitos levavam tanto tempo que o debate propriamente dito não começava nunca.

Responder essas perguntas não é tão fácil quanto parece. O que é cinema brasileiro? Ora, pensará alguém, são os filmes feitos no Brasil. Mas um filme feito no Brasil por uma equipe argentina e com dinheiro argentino é brasileiro? E um filme feito no Chile, com tema chileno, por uma equipe brasileira e com dinheiro brasileiro? Uma co-produção Brasil/EUA pode ser chamada de “filme brasileiro”? Se um filho de franceses roda em São Paulo uma adaptação de uma peça de Sartre ambientada na França, isso é cinema brasileiro? E assim por diante.

Uma definição é uma pequena utopia mental: o sonho de uma chave que abre todas as portas. Uma frase que descreve com exatidão centenas, milhares de exemplos. Suficientemente abstrata para poder abranger as características gerais de todos eles, e ao mesmo tempo suficientemente específica para poder dar conta do perfil único e peculiar de cada um. Definições precisas são um instrumento útil nas ciências, mas em se tratando de arte ou literatura é outra história. Como observou Todorov em sua análise da literatura fantástica, “a evolução segue aqui um ritmo completamente diferente: toda obra modifica o conjunto dos possíveis, cada novo exemplo muda a espécie”.

Uma definição pode ser definida como uma lista de características que incluem um conjunto de objetos numa categoria abstrata. Essas características devem ser necessárias, ou seja, um objeto só pertence à categoria se apresentar todas elas. Ela deve se situar a meio caminho entre dois perigos: o da definição excessivamente vaga, que acaba incluindo objetos que não pertencem à categoria, e o da definição demasiado restritiva, que acaba deixando de fora objetos que pertencem a ela.

Em literatura, uma definição nunca é conclusiva, porque toda obra literária é heterogênea. Se cada obra fosse uma coisa só, como as formas geométricas, seria fácil criar uma definição que cobrisse todos os exemplos de um gênero e não incluísse nenhum que aparenta pertencer a outro. Mas a existência de, digamos, O Homem Demolido, um romance policial ambientado num futuro em que existem telepatas, anula essa possibilidade. Qualquer definição de romance policial ou de FC que o inclua estará incluindo uma obra de, num certo aspecto, é “um estranho no ninho”.