sexta-feira, 23 de julho de 2010

2296) A máquina e a droga (17.7.2010)




Podemos dizer que existe gente viciada em computador do mesmo jeito que falamos em gente viciada em cocaína? Será que o uso compulsivo do automóvel tem algo a ver com o uso compulsivo do cigarro? A necessidade de ter uma televisão ligada o tempo todo dentro de casa pode ser comparada à necessidade de tomar um drinque a toda hora? 

Pergunto porque estes são comportamentos que observo o tempo inteiro nos outros ou em mim, e os observo sem preconceito ou repulsa, apenas constato que para certas pessoas algumas das coisas acima são imprescindíveis, e para outras não.

George Orwell afirmou certa vez: 

“As máquinas têm que ser aceitas, mas provavelmente é melhor aceitá-las do mesmo modo como aceitamos um remédio, ou seja, resmungando, e com alguma desconfiança. Assim como um remédio, uma máquina é uma coisa útil, mas é perigosa, e tende a estabelecer uma dependência. Quanto mais vezes recorremos a elas maior o poder que adquirem sobre nós”. 

Tudo que se torna indispensável é perigoso.

O celular, por exemplo, este bravo símbolo do século 21, tornou-se indispensável para muita gente – para mim, pelo menos, que tanto relutei em comprar um. Não adianta vir alguém me dizer: “Ora, e como você resolvia as coisas quando não existia celular?”. É uma pergunta sem sentido. É o mesmo que eu dizer que sou feliz sendo adulto e alguém perguntar se não era feliz quando vivia de fraldas dentro de um berço. Provavelmente era, mas nem por todo o Leite Ninho do mundo eu trocaria minha vida atual por aquela. 

As verdadeiras transformações são irreversíveis. Morreu. Cabô. Aquele tempo, tchau. Sem celular eu sou apenas um ser unicelular, uma ameba abobalhada e muda.

A distinção entre dependência-da-máquina e dependência-da-droga é acima de tudo de ordem moral. Irritamo-nos com quem depende da Internet, do carro, do telefone; mas não sentimos uma repulsa instintiva por essas pessoas. Por outro lado, quando ficamos sabendo que Fulano de Tal usa drogas continuamente, várias vezes por dia, e se ficar sem usá-las perde o controle, não apenas nos preocupamos pela sorte de Fulano, mas passamos a vê-lo como alguém inferior, corrompido, digno não só de pena mas também de desprezo. 

Talvez porque a droga esteja historicamente associada ao submundo, exploração de pessoas indefesas, chantagens obrigando os viciados a cometer atos inomináveis para obter a próxima dose. 

Como a tecnologia de celulares e internets não apenas não é proibida, mas é fortemente incentivada (eu quase diria: imposta goela abaixo), fica mais fácil passar a mão na cabeça dos que pela manhã ligam o computador antes mesmo de escovar os dentes.

A diferença principal é que a droga produz dependência psicológica ou química, e as máquinas produzem dependência psicológica e social. Criamos uma nova forma de conviver através das máquinas e por alguma razão ela nos satisfaz a ponto de não podermos mais conviver sem elas.






quarta-feira, 21 de julho de 2010

2295) Dona Militana (16.7.2010)



Faleceu no mês passado, no Rio Grande do Norte, uma mulher de 85 anos considerada por muita gente a maior romanceira do Brasil. “O que diabo é romanceira?”, pergunta o Brasil, este país que vive a perguntar e responder a si próprio. E responde: Romanceira é uma mulher que recita de cor romances em versos com séculos de idade, romances cujo autor ninguém sabe nem precisa saber (um conceito bastante pós-moderno de literatura), romances que ela aprendeu na infância ao ouvi-los recitados por uma outra romanceira de 80-e-tantos anos cujo nome, infelizmente, não ficou registrado. E talvez não fosse preciso.

A cultura oral brasileira é feita assim, por pessoas sem rosto e sem nome, mas que passam adiante uma tradição. Comparada à imensa maioria das nossas romanceiras, Dona Militana Salustiano é uma Madonna. Gravou um CD triplo acompanhada por artistas variados (de Gereba a Antonio Nóbrega), recitou em teatros pelo Brasil afora (vi-a ao vivo uma única vez, em São Paulo, no SESC Pompéia), foi louvada na imprensa. Que bom. Através dela foi exibida e louvada uma multidão indistinta de velhinhas com dicção precária e memória inquieta, capazes de recitar sem pausa um romance de centenas de versos, salmodiados numa cantiga monocórdia igualmente sem autor conhecido.

Essas velhas romanceiras são personagens de uma história de ficção científica brasileira, versão oblíqua do romance Fahrenheit 451 de Ray Bradbury, filmado por François Truffaut. Nesse livro-filme, uma sociedade futura, totalitária, proíbe os livros e obriga todo mundo a assistir TV interativa. A população emburrece; os dissidentes são rastreados pelos bombeiros (uma espécie de polícia secreta) que incineram os livros guardados clandestinamente. Os dissidentes encontram um recurso: passam a guardá-los na memória. Cada pessoa decora um livro, e antes de morrer recita-o em voz alta para alguém jovem que se encarregará de manter viva a obra desse autor (Tolstoi, Jane, Austen, Balzac, etc.).

Dona Militana viveu numa sociedade em que o romance tradicional não era proibido, mas era menoscabado. A censura que sofreu não foi a da perseguição, mas a do desdém. Os romances que sabia de cor não eram considerados subversivos, eram considerados “coisa de gente velha, de gente pobre”. Velha e pobre como realmente foi, ela se sabia depositária de um tesouro, que protegia não por seu valor teórico, mas pelo valor afetivo que lhe atribuiu, de tão ligado que estava às suas memórias mais remotas de menina.

O CD Cantares, produzido pela Fundação Hélio Galvão, de Natal, teve uma tiragem de mil exemplares (já esgotada). Tem 52 faixas, o que parece muito até para um disco de Madonna, mas talvez seja pouco diante dos 800 romances que Dona Militana, ao que se diz, sabia de cor. Que imenso acervo se perdeu, pensamos. Ou talvez não. Sendo o Brasil o que é, quem nos garante que não existam mais dez, mais cem Donas Militanas nas filas do SUS de nossas cidades?

2294) O ser humano segundo Heinlein (15.7.2010)



Foi um dos momentos mais constrangedores da minha biografia. Eu era um dos palestrantes numa mesa redonda, num teatro repleto de gente. Estava sentado na primeira fila, e os palestrantes eram chamados de um em um para subirem ao palco. Quando chegou minha vez, o apresentador, que era meu amigo e meu fã, disse algo como:

“E agora temos o prazer de chamar ao palco este indivíduo talentoso que orgulha a Paraíba: o escritor, poeta, jornalista, pesquisador, folclorista, ator, cantor, músico, compositor, roteirista e teatrólogo Braulio Tavares!” 

Tive que subir embaixo de uma gargalhada geral e estrondosa, porque o público captou de imediato o absurdo da coisa.

Desde esse dia, sempre que participo de algo peço para ser identificado como ”escritor e compositor”, e fim de papo. Se tem uma coisa que eu aprendi na vida é que fazer muitas coisas diferentes não produz uma impressão de competência, e sim de desorientação. O “homem dos 7 instrumentos” geralmente não toca bem nenhum deles.

Portanto, quando me cabe apresentar alguém, ao vivo ou por escrito, e me dão um papelucho dizendo que o sujeito é “escritor, romancista, poeta, jornalista e ensaísta”, deixo “escritor” e risco o resto, porque para mim já está tudo contido no primeiro termo.

E que sentido tem dizer que Fulano de Tal é “compositor, músico, instrumentista e arranjador”? Basta chamá-lo de músico. Se ele vai dar uma palestra sobre a arte do arranjo, aí sim, podemos dizer: “músico e arranjador”. E assim por diante.

Sempre existe uma categoria geral que engloba as outras e salva o indivíduo (o indivíduo sensato) de passar por um vexame.

As atividades artístico-culturais me parecem todas muito próximas. Não vejo um mérito especial no fato de Fulano ser ator, dramaturgo e diretor teatral. Ninguém é obrigado a saber fazer tudo, mas se alguém o faz, isto é normal. O ser humano deveria ser múltiplo, mas num sentido muito mais amplo. 

Se existe algum problema na literatura brasileira é o fato de que a esmagadora maioria dos nossos escritores consta de funcionários públicos, jornalistas, professores e outras profissões de gabinete. Nelson Rodrigues se queixava de que em nossa literatura não há um único personagem que saiba bater um escanteio, e eu completaria: nem um escritor.

Por isso, a definição ideal de um ser humano é a que foi fornecida por Robert Heinlein:

“Um ser humano deveria ser alguém capaz de trocar uma fralda, planejar uma invasão, esquartejar um porco, pilotar uma nave, projetar um prédio, escrever um soneto, fazer um balanço contábil, erguer um muro, consertar um osso fraturado, consolar um moribundo, obedecer ordens, dar ordens, cooperar, agir sozinho, resolver uma equação, analisar um problema novo, espalhar estrume num terreno, programar um computador, cozinhar uma boa refeição, brigar com eficiência, morrer com elegância. Especialização é para os insetos.” 

Precisa dizer mais?





2293) Auto-ajuda e otimismo (14.7.2010)



Alguém consegue imaginar uma prateleira cheia de livros de auto-ajuda escritos por autores russos? Eu não consigo. O espírito russo, para mim, é algo próximo da tragédia, da crise existencial, do pessimismo cósmico. Filósofos pessimistas parecem algo essencial à alma eslava, talvez pela proximidade da Sibéria, talvez pelo fato de viverem num inverno eterno, o que é meio caminho andado para o inferno, por mera assonância. Quando pensamos em Rússia, pensamos em vastas tragédias coletivas como Guerra e Paz ou em intensas tragédias pessoais como Os Irmãos Karamazov. Não haverá nenhum escritor, nenhum poeta russo que celebre a alegria de viver? Talvez Maiakóvski, com sua camisa amarela, sua poética expansiva, a plenos pulmões. Mas, não... Maiakóvski suicidou-se.

O livro de auto-ajuda é algo próximo, isso sim, da mentalidade norte-americana. O americano tem uma crença inabalável na alegria de viver. Foi a civilização americana que inventou o otimismo. Antes dela, as coisas boas só aconteciam por exclusão, quando as coisas ruins davam chabu. O americano médio pode até ser ateu, pode até não acreditar em Cristo ou num Deus qualquer; mas ele acredita no trabalho, na esperança, acredita que tudo vai dar certo a curto, a médio ou a longo prazo. Fernando Sabino teve um momento totalmente californiano quando disse sua famosa frase: “No fim tudo dá certo. Se ainda não tá dando certo, é porque ainda não chegou no fim”.

O livro de auto-ajuda, que tanto sucesso faz, é uma invenção tão norte-americana quando a gilete ou o hot-dog. O norte-americano crê, com uma intensidade admirável, que haverá um retorno positivo para os seus esforços. Caso você lhe diga que Deus não existe, ele sorri, dá-lhe um tapinha nas costas e diz que acredita na liberdade de crença. Mas se você disser que é pessimista e que o esforço humano no planeta Terra está condenado ao fracasso, ele foge às carreiras, apavorado, como se você estivesse fervilhante de vírus contagiosos e mortais. Se brincar ele pula pela janela mais próxima, mesmo que esteja num décimo andar (ele acredita que vai cair num toldo, como os personagens dos filmes).

Todo este arrazoado é para dizer que a maior contribuição da cultura norte-americana para a civilização não foram a gilete, o hot-dog nem o cinema, foi o Otimismo. Até o final do século 19, que foi quando os EUA começaram a se aprumar como nação, o mundo era uma paisagem de El Greco descrita por Kierkegaard. As coisas aconteciam, havia alegria e festas, mas essas coisas eram consideradas pausas entre cataclismos. A civilização norte-americana, com sua mentalidade prática, pés-no-chão, voltada para resultados positivos e imediatos, trouxe para o ser humano uma nova razão para viver. Os livros de auto-ajuda cumprem essa função importantíssima. Não, não estou sendo irônico. Livro de auto-ajuda não tem nada a ver com literatura. Deveríamos guardá-los na mesma prateleira dos analgésicos e dos antibióticos.

terça-feira, 20 de julho de 2010

2292) Espanha campeã (13.7.2010)



(foto: Dani Pozo)

A Espanha tornou-se campeã do mundo num jogo que não chegou a ser um dos melhores da Copa (a final raramente o é). Um fã do futebol, independentemente do time por que torce, gosta de ver acima de tudo um grande jogo, de futebol bonito, com um resultado justo no final. Às vezes um grande jogo não tem um futebol bonito. Torna-se grande pelos seus contornos trágicos ou dramáticos, pelo conflito humano que se desenrola em campo, pelas alternativas que em questão de minutos levam uma equipe do céu ao inferno. O jogo em si pode ser um bumba-meu-boi de chutões e trombadas, mas torna-se grande pela emoção que provoca.

Espanha 1x0 Holanda ficou num meio termo. Não teve a dramaticidade da disputa pelo 3o. lugar, em que a Alemanha venceu o valente Uruguai por 3x2, com duas viradas no placar e bola na trave no derradeiro lance. Se a história dessa partida tivesse ocorrido entre espanhóis e holandeses, aí sim, teria sido uma das maiores finais de todos os tempos. O que houve no domingo foi um jogo disputado, mas num 0x0 que se prolongou até os 117 minutos. Não que os times não criassem chances. Pelas oportunidades que tiveram, poderia perfeitamente ter sido um jogo de 2x2, decidido com um gol na prorrogação. Refletiria melhor o que foi realizado em campo, e seria um prêmio para o esforço dos dois. A vitória espanhola foi justa, porque a Holanda desolandizou-se, recuou, ficou descendo o sarrafo (fez algumas faltas desclassificantes, que nunca vi numa final de Copa) e esperando o contra-ataque. Sou fã histórico da Holanda, mas este time, francamente, não mereceu ganhar, e felizmente não ganhou.

Ganhou a Espanha, que tem um talento enorme para envolver taticamente o adversário no jogo coletivo, e superá-lo tecnicamente nas disputas individuais; mas tem dificuldade para liquidar a partida. Fica como um toureiro que passa a tarde cravando bandarilhas no touro e não puxa a espada. A Holanda teve dois lances isolados de Robben frente a frente com Casillas; o goleiro e a Justiça Divina prevaleceram. Seria um castigo imerecido o time espanhol perder um jogo como esse nos pés de um jogador que não é craque (é apenas um bom jogador como vimos dezenas nesta Copa), e é um jogador cai-cai, que em vez de decidir a jogada prefere sofrer a falta e passar a responsabilidade para um companheiro. Não gosto de jogador assim.

Iniesta, que não é goleador mas é craque, fez uma partida como altos e baixos mas acabou sendo o autor do gol do título. A Espanha jogou com coração e fibra, com talento e calma; não perdeu a cabeça nem nos momentos mais difíceis. Não foi um grande jogo; não deve ter sido um dos dez melhores jogos da Copa. Mas teve o desenho épico de uma final, em que cada chance perdido, cada defesa, cada lance decisivo é ampliado um bilhão de vezes pelas lentes ciclópicas da mídia. É bonito a gente poder sentar no sofá e ver ao vivo um capítulo da História acontecer diante de nós. Eu vi e gostei. Arriba, España!

2291) Espanha x Holanda (11.7.2010)



(foto: Monirul Bhuiyan)

Chega ao fim a Copa do Mundo com um encontro que, sem ser improvável, não é certamente o que a maioria das pessoas estaria imaginando. Eram tantas as alternativas: Itália, França, Brasil, Argentina, Alemanha, Inglaterra... Os habituais suspeitos. A verdade é que existe no futebol o que os coleguinhas chamam “o seleto clube dos campeões”, e que são justamente estas seis seleções acima, eternas candidatas, mais o Uruguai, que é campeão também, embora nunca mais tenha ameaçado. Oooops... Pois não é que este ano los orientales, com Loco Abreu, “cavadinha” e tudo, botaram todo mundo no bolso, inclusive nós, e ficaram entre os finalistas? Dou meus parabéns a todos os uruguaios, na pessoa do escritor Eduardo Galeano, um dos poucos literatos que já escreveram coisas inteligentes sobre “el fútbol”.

O Uruguai foi uma das boas surpresas desta Copa, nem tanto pelo grande futebol, mas pela façanha. Até o Paraguai acabou saindo com uma relação custo-benefício melhor do que a nossa. A Argentina viveu um melodrama operístico nas mãos do Loco Maradona, indo do êxtase à catástrofe numa volta do ponteiro grande. Foi tão repentina a reviravolta que o time foi recebido com festa em Buenos Aires. Ficaram tão zonzos que estão achando que ganharam a Copa. Já o Chile fez uma campanha honrosa, nas mãos de outro Loco, o Bielsa. Pois é. Acho que foi isso que faltou ao Brasil: um doido. Temos bons técnicos, mas o que lhes falta é um grão de loucura.

Enfim – Holanda e Espanha estão, até a tarde de hoje, vivendo aquele Limbo Paradisíaco da pré-decisão, quando todos os nossos sonhos estão ao alcance da mão. Um dos dois será campeão pela primeira vez; o outro dará pela enésima vez com a cara na porta e voltará para casa em pleno “complexo de viralata”. Já falei aqui que a Copa do Mundo deve um título à Holanda, pelos seus muitos e belos serviços prestados à arte do futebol. Torci pelos holandeses nas finais de 1974 e 1978, apenas para vê-los sendo derrotados pelos donos da casa (Alemanha e Argentina). Ironicamente, na terceira vez em que chegam à decisão, torcerei pelo outro. Gosto do futebol da Espanha, que, ao longo da Copa, foi ficando cada vez mais parecido com o futebol do Barcelona, que para mim é o melhor time do mundo no momento. Puyol, Piquet, Iniesta e Xavi são uma espinha dorsal capaz de sustentar qualquer equipe. A única coisa que faz falta à Espanha é... Lionel Messi.

O time da Holanda é um time correto, todos jogam bem, mas é uma seleção sem o rock-and-roll que tinha na década de 1970. Fiquei meio atravessado com eles pelo modo como ganharam do Brasil, vencendo mais pelos nossos defeitos do que por terem exibido um grande futebol. Não importa,. Hoje tem jogão! Gosto de decisões como a de hoje porque, mesmo tendo preferência, na verdade não torço por ninguém: torço pelo futebol. Quero ver um grande jogo, com grandes jogadas e grandes gols. E se vencer o melhor, pra mim valeu.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

2290) Deterioração do caráter (10.7.2010)



Parece que há uma epidemia em curso no Ocidente, de achar que “o mundo não é mais o mesmo”, “as novas gerações se comportam de uma maneira que, no meu tempo, seria inadmissível” e assim por diante. Será verdade? Eu, pelo menos, acho; e vivo a repetir essas frases, mas repito-as com a consciência de que são o karma que cabe a cada geração de ex-candidatos a revolucionários. Os contestadores de hoje (cabelo moicano, tatuagens, promiscuidade, drogas) dirão daqui a 30 anos: “Esses jovens de hoje não têm noção de valores!”. E la nave va.

Li na Web (http://www.city-journal.org/2008/18_4_otbie-british_character.html) um artigo assinado por um gentleman com o irresistível nome de Theodore Dalrymple (que a revista informa ser médico, e autor do livro Not With a Bang But a Whimper) em que ele fundamenta críticas desse tipo com algumas argutas observações sobre o ser humano e as civilizações de língua inglesa. Teríamos muito a aprender com a decadência britânica, porque parece que todas as decadências se assemelham.

Mr. Dalrymple fala que sua mãe chegou à Inglaterra fugindo da Alemanha nazista e se encantou com os ingleses, com seu caráter, seu modo de ser. Diz ele: “Os britânicos lhe pareceram indivíduos centrados, controlados, respeitadores da lei, e ao mesmo tempo tolerantes com outras pessoas, por mais excêntricas que fossem, e com uma visão profundamente irônica da vida, que os encorajava a rir de si mesmos e a perceber sua própria desimportância no universo. (...) Eram polidos e atenciosos, em vez de intrometidos e presunçosos; os que eram seguros de si procuravam não humilhar os tímidos ou retraídos; e mesmo os mais bem-sucedidos tinham consciência de que seu sucesso era uma mera gota dágua num oceano de possibilidades, e bem que poderia ser ainda maior se eles tivessem se esforçado um pouco mais ou tivessem mais talento”.

Não sei se os ingleses são assim, mas se alguém é assim eu bato palmas. Mr. Dalrymple observa mais adiante que um inglês deve ser o único indivíduo que, quando alguém pisa no seu pé, ele pede desculpas. Mas ele registra com dissabor que “a cultura e o caráter dessa contenção tipicamente britânica transformou-se no seu contrário. Atitudes extravagantes, veemência de expressão, o hábito de se vangloriar, de se exibir, ausência de qualquer tipo de inibição... é isto que temos que admirar hoje, e a antiga modéstia é objeto de escárnio”.

Nada disto tem a ver com o Brasil, não é mesmo? Eu, pelo menos, acho que não. Ademais, essas coisas geralmente se manifestam em movimentos pendulares – numa hora vão na direção de Mais Bagunça, aí quando a coisa está bagunçada demais começa um movimento na direção de Mais Disciplina, que acaba por se tornar insuportável, e aí lá vem a Mais Bagunça de novo... Enfim, “mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, como dizia Camões. Mas algo me diz que, se bem que o Brasil tenha esperanças, o império britânico (infelizmente) nunca mais será o mesmo.

2289) “Casamento do Céu e do Inferno” (9.7.2010)



(Drummond, por Portinari)

O terceiro poema de Alguma Poesia (1930), livro de estréia de Carlos Drummond, é uma espécie de grão original de onde brotarão inúmeros outros, expandindo o primeiro, contradizendo-o, questionando-o, desmentindo-o, aprofundando-o. Drummond tinha uma amplitude temática impressionante, mas, como todo poeta que vai fundo, circula reiteradamente por entre um número finito de situações. Este “Casamento” (que no título ironiza William Blake e sua visão grandiosa do choque entre o Sagrado e o Profano) faz parte das primeiras investidas modernistas contra a moral pequeno-burguesa e a noção do amor romântico, que justifica essa moral e lhe doura a pílula. Nos versos iniciais, termos como “azul de metileno” e “diurética” cortam de cara qualquer possibilidade de romantismo açucarado (uma terminologia plebéia que lembra Augusto dos Anjos).

CDA contrapõe o jeitão meio atabalhoado dos defensores da pureza ao dos semeadores do pecado. De um lado, os anjos, que se limitam (como a mãe do poeta, no poema anterior, “Infância”) a espantar mosquitos dos cortinados das lolitas, e São Pedro, que dorme. Do outro, o Diabo modernista, armado de luneta. Drummond satiriza a poesia parnasiana de Bilac, que dizia, em “Virgens Mortas”: “Quando uma virgem morre, uma estrela aparece, / nova, no velho engaste azul do firmamento”. Drummond afiança: “...diz-se que tem virgens tresmalhadas, incorporadas à via-látea, vagalumeando...” E se Drummond avisa que o Diabo tem um “olho torto” e espreita tudo “por uma frincha”, ecoa também Bilac no mesmo soneto, quando faz aos namorados uma advertência pudica: “Piedade! Elas veem tudo entre as moitas escuras...” Drummond iguala as virgens mortas e o Diabo no mesmo voyeurismo sacana.

Drummond fala que o mundo está cheio de suspiros de “bocas machucadas”, e que “os corpos enrolados / ficam mais enrolados ainda / e a carne penetra na carne”. Imagino que na época este verso terá causado um ligeiro escândalo. Bilac, um dos mais sensuais dos nossos poetas, usava imagens assim, mas as usava envoltas nos véus de musselina da mitologia grega ou outro maneirismo aparentado. Drummond, em seus versos sem métrica nem rima, diz a coisa com o nome da coisa e o leitor não consegue ver naquilo outra coisa senão a coisa.

A estrofe final é de uma sem-cerimônia libertária: “Que a vontade de Deus se cumpra! / Tirante Laura e talvez Beatriz, / o resto vai para o inferno”. A citação às musas de Petrarca e de Dante Alighieri manda a pureza de volta para a Idade Média. Nos tempos modernos, parece dizer o poeta, toda mulher só pensa mesmo naquilo, então, fazer o quê? E que saborosa ambiguidade a desse ótimo “Que a vontade de Deus se cumpra!” Ou seja, se o mundo está entrando numa época de “liberou geral” é porque Deus quis. O poeta diz uma frase de velhinha cristã fazendo o pelo-sinal, mas a diz num tom de quem esfrega as mãos satisfeito e olha o mundo com um olho... ousarei dizer que “torto”?

2288) “Rede de Intrigas” (8.7.2010)



Este filme magnífico de Sidney Lumet (Network, 1976) é um dos ataques mais devastadores já feitos pelo cinema à televisão. Esta guerra entre cinema e TV vem há muitos anos, e o mais interessante é que não importa por qual dos dois a gente torça: cada crítica que um faz ao outro nos parece inteiramente justificada. Lumet é um diretor competente, um desses mestres do cinemão realista tradicional, autor de filmes que admiro muito (O Homem do Prego, A Colina dos Homens Perdidos, Assassinato no Orient Express, Um Dia de Cão, etc.). Ele contou aqui com um roteiro devastador de Paddy Chayefsky, que ganhou os principais prêmios nesse ano: Oscar, Globo de Ouro, Los Angeles Film Critics, New York Film Critics e Writers Guild. Não digo isto por ser deslumbrado com prêmios (na maioria dos casos são bobagens), mas porque parece que todo mundo nos EUA, naquele momento, estava ansioso por alguém que mostrasse o que a TV andava fazendo naquele país. Chayefsky veio e mostrou. Mostrou tão bem que um filme de 35 anos atrás parece ter sido feito para analisar a TV de hoje, com seu sensacionalismo, sua amoralidade, seu concubinato com o grande capital, seus “irreality shows”, sua capacidade de transformar em dinheiro tudo que toca.

Lumet é um diretor com um veio teatral forte, e costuma extrair boas interpretações dos seus atores. Deste filme, cinco foram indicados ao Oscar, e três ganharam (Faye Dunaway, Peter Finch e Beatrice Straight). Grande parte do poder de convencimento do filme se deve a essas interpretações. Além destes citados, William Holden, Ned Beatty e Robert Duvall estão excelentes e dão extrema credibilidade às brigas dos executivos de uma emissora mediana, comprada por um grande conglomerado financeiro, que de repente começa a fazer sucesso quando o âncora (Peter Finch) de seu principal telejornal – uma espécie de Cid Moreira ou William Bonner – entra num surto psicótico e torna-se uma espécie de guru alucinado que verbaliza de forma incoerente a insatisfação do público.

Ned Beatty disse uma vez: “Nunca recuse nenhum papel. Trabalhei somente um dia em Rede de Intrigas e fui indicado para um Oscar”. A cena em que ele usa o mesmo tom messiânico do personagem de Peter Finch para explicar a este o que é globalização e capitalismo multinacional é antológica. Network deveria ser exibido em todos os nossos pretensos Cursos de Comunicação, que ensinam tanto beabá de clichês. A maior parte das pessoas que faz televisão não tem idéia do que é a televisão. Stanislaw Ponte Preta batizou a TV de “máquina de fazer doidos” e todo mundo pensou que ele se referia ao público. Não era. Estava falando das pessoas que fazem televisão. Para quem assiste é um ópio, ajuda a relaxar e a dormir para enfrentar o batente do dia seguinte. Para quem a faz, é uma cocaína. Basta ver este filme de Lumet, onde não há um só personagem que não esteja rilhando os dentes o tempo todo.

2287) Nem Deus nem a Ciência (7.7.2010)



(Raimundo Carrero)

O escritor Raimundo Carrero, que é um católico penitente, sofrido, dostoievskiano, declarou numa entrevista: “O homem moderno não acredita em Deus, e, mais gravemente, tem orgulho de dizer que não acredita em Deus. E não acredita na Ciência. Está fazendo as maiores loucuras com a Terra, e não acredita também no Espírito da Terra”. É uma boa maneira de colocar o problema da catástrofe ambiental generalizada que estamos começando a vivenciar, porque para alguns este estado de coisas se deve à Ciência, ou melhor, ao poder que a Ciência adquiriu no mundo, desbancando a Religião. Para mim, não é nada disso.

Fala-se que é a Ciência que está destruindo o mundo, e que o grande mal do Homem Moderno é o excesso de racionalidade, de lógica. Peço licença para discordar. Ciência, racionalidade e lógica tem certamente um papel importante em tudo quanto existe de ruim no mundo: as guerras, a exploração econômica de países pobres e de populações ignorantes, a destruição do meio ambiente e tudo o mais. Mas isso não é tudo, e na verdade não é nem um terço da história toda.

Lógica e racionalidade são atributos do neocórtex cerebral que o ser humano desenvolveu há pouco tempo (100 ou 200 mil anos). É a parte do cérebro capaz de pensamento abstrato, planejamento, linguagem, percepção. É o cientista dentro de nós, e é a parte mais recente do nosso cérebro. Só que ela não decide muita coisa: quem decide, quem nos mobiliza e nos faz agir, são estruturas mais profundas. Por exemplo: o que os cientistas chamam de cérebro mamífero (“sistema límbico”). O cérebro mamífero é típico das criaturas de sangue quente, que amamentam filhotes e cuidam deles com altruísmo e dedicação, e que se associam em hordas, bandos e manadas obedecendo a um “contrato social” instintivo. Esse contrato lhes diz que juntos estão mais seguros e mais felizes do que sozinhos; e que um gesto de generosidade feito hoje poderá ser retribuído amanhã. Sem isso, nenhum ser sobrevive, nenhuma espécie sobrevive, como aliás estamos a ponto de constatar, por nossa conta e risco.

No entanto, por dentro destes dois, existe o mais antigo. Todo ser humano tem um cérebro réptil, o mais antigo de todos, incrustado no centro do seu. Por trás dos males do mundo, ou pelo menos por trás desse trio que acabei de citar, o que existe, como fator propulsor, é um espírito predatório e destrutivo do ser humano. Um espírito egoísta e auto-centrado, que só reconhece a si próprio como objetivo e se comporta como se o mundo lhe pertencesse por direito. Eu diria que existe em muitas sociedades humanas uma espécie de Espírito Reptiliano, um espírito de sangue frio e olho de lince, permanentemente focado em tudo quanto possa contribuir para sua sobrevivência, mesmo que à custa da sobrevivência de quem quer que seja, inclusive dos seus semelhantes, do grupo a que pertence, do planeta que habita.