sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

1677) Se beber, não dirija (27.7.2008)



As estatísticas sobre a recém-promulgada Lei Seca no trânsito têm sido as melhores possíveis. A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo divulgou uma complicada estatística ao fim da qual anunciava que a redução de mortes no trânsito nas últimas semanas foi de 57%. Eu considero isto um fato da maior importância. O cálculo foi feito comparando os fins de semana paulistanos (5a a domingo) antes e depois da vigência da lei. Segundo a Folha Online, “a soma dos 12 dias dos últimos três finais de semana do mês de junho é de 35 mortes, numa média de 2,91 mortes/ao dia. O cálculo dos outros oito dias (26 a 29 de junho, e de 3 a 6 de julho), dá um total de 10 mortes, numa razão de 1,25 mortes/ao dia. A diferença dessas duas médias -- de 2,91 a 1,25 -- é que aponta a redução de 57%.”

Note-se que a lei não proíbe o cara nem de beber nem de dirigir. Apenas estabelece uma penalidade para quem for apanhado fazendo as duas coisas juntas. Isto deveria valer para as drogas em geral. Se o sujeito quer usar, que use, mas qualquer bobagem que ele fizesse “sob o efeito” deveria ser punida com muito maior severidade, se fosse visível uma relação entre a droga e a bobagem. Como é o caso de bebida e carro. O álcool perturba a capacidade de guiar, mesmo que pessoas diferentes reajam ao álcool com maior ou menor resistência.

Temos a tendência e encarar as coisas com bom-humor, principalmente no que se refere ao nosso lazer e à nossa diversão. O nosso folclore urbano de mesa de bar é cheio de histórias divertidas sobre bêbados ao volante, como aquela do carro que se espatifa num poste, os bombeiros retiram dois bêbados das “ferragens retorcidas”, perguntam qual dos dois vinha dirigindo e um deles responde: “Não sei, vínhamos ambos no banco de trás”.

Parece brincadeira? Não é assim que pensam os leitores dos jornais da cidadezinha canadense de Abbotsford, onde recentemente dois homens foram presos porque dirigiam embriagados. O problema é que vinham os dois dirigindo o mesmo carro. Harvey Miller, de 43 anos, não tem as pernas, e vinha manobrando o volante, enquanto seu amigo Edwin Marzinske, de 56 anos, pisava nos pedais. O comportamento errático do veículo atraiu os guardas de trânsito, que constataram o estado de embriaguez dos dois motoristas. Ambos recusaram-se a receber a multa. “Eu não vinha dirigindo, pois não posso frear nem acelerar,” dizia Miller, e seu colega afirmava: “Eu não vinha dirigindo, nem toquei no volante!” O jornal não explica qual a punição salomônica que os dois devem ter sofrido.

O que não deixa de me lembrar outra história, provavelmente apócrifa, sobre os tremendos pileques que Chico Buarque e Tom Jobim costumavam tomar juntos. Num certo amanhecer, encerrando uma carraspana homérica, os dois voltavam de carro para Ipanema quando Chico advertiu: “Tom, vai mais devagar, a gente bebeu bastante”. E Tom respondeu: “Quem está dirigindo é você”.

1676) A elite invisível (26.7.2008)



(Ladder of Heaven de John Klimakos)

Quando a vida social é vista como uma escada, procuramos escalar os degraus de cima, e fugir aos de baixo. Ao percebermos as diferenças sociais, muda o uso de verbos como “subir” ou “descer”. Subir é bom, descer é uma catástrofe, porque desde cedo nos acostumam a ver a sociedade como uma pirâmide: um Topo onde está uma elite que tem tudo, uma Zona Média em que estamos nós, e uma Base onde estão aqueles que, na melhor das hipóteses, conseguem arranjar um emprego que lhes suga 12 a 14 horas por dia, mas evita que morram de fome. Quando nos ensinam a ver o mundo dessa forma, não há dúvida de que somos tomados de um desejo incoercível de subir. Talvez nem mesmo pela sedução dos paraísos de consumo e de hedonismo que possam nos aguardar lá em cima, mas pelo mero terror de ficarmos presos a um “aí em baixo” que para nós, da classe média, é ameaçadoramente próximo.

“Subir” tem dois objetivos: reconhecimento social e recursos financeiros, os populares “Fama e Fortuna”. São diferentes mas interligados, quanto mais a gente consegue de um mais fácil fica conseguir do outro. Algumas pessoas se contentam com um. Muitos artistas, por exemplo, passam a vida inteira numa pindaíba de dar dó, mas são felizes porque concedem entrevistas diárias, são chamados para animar bailes de formatura ou desfiles de modas, dão autógrafos no supermercado... E outras pessoas se contentam com a fortuna, como é o caso dos grandes banqueiros e investidores cujo nome sempre aparece nas listas dos “Cem Mais Ricos” e cuja foto nunca sai no jornal, que eles não são bestas.

Eu reconheço a existência e o peso dessa concepção verticalista da sociedade, mas questiono frontalmente seus critérios. Nunca tive como objetivo a escalada social. Nunca tive vontade de sair da classe média onde nasci. Não só nunca procurei ficar rico, como sempre evitei, cuidadosamente, qualquer atividade que pudesse me levar nessa direção. Nunca quis ser publicitário, por exemplo, para desconsolo de vários amigos que me profetizavam um futuro brilhante, tostando-me em Ibiza ou Aruba, tomando daiquiris, rodeado de havaianas dançando hula-hula. Não quis. Não combino.

Acho que o nosso objetivo (se não de todos, pelo menos dos sensatos) deveria ser uma ascensão, mas não uma ascensão rumo ao topo da pirâmide social, mas rumo a uma Elite. Nos seus textos em prosa, Fernando Pessoa se refere à existência de uma elite de seres humanos superiores, que possuem saber mas não o ostentam, que possuem poder mas só o exercem submetendo-o ao equilíbrio. Essa elite não consta de gênios, reis ou banqueiros. É formada por pessoas de ocupações modestas: escriturários, alfaiates, donas de casa, mestre-escolas, tipógrafos. Não são intelectuais: são sábios. Não são aristocratas: sua nobreza é a do espírito. São essas pessoas invisíveis o esteio de sabedoria e ética que mantém a humanidade a salvo de si própria. É a essa Elite que espero um dia pertencer.

1675) Cinema de animação (25.7.2008)



Tenho ido ao Anima Mundi, o festival internacional de filmes de animação que é uma das melhores coisas do Rio. E me ponho a pensar sobre questões de estilo. Digamos uma história assim: um homem vive sozinho num quarto de pensão. Todo dia, ao ir para o trabalho, ele joga uma moeda no chapéu de um mendigo na calçada. À noite, debruça-se na janela e fica olhando o apartamento no prédio em frente, onde, em salas e varandas iluminadas, uma família feliz se diverte. Ele fica cheio de inveja. Um dia puxa o revólver e, à distância, mata com um tiro o dono do apartamento. No dia seguinte, ao ir para o trabalho, não vê o mendigo no lugar habitual. Outro mendigo, ao lado, diz: “Morreu ontem de uma bala perdida”.

Uma historinha talvez boba; um fiapo de história, na verdade. Mas suponhamos que minha historinha fosse filmada por alguns animadores fictícios. O diretor “A” talvez optasse por mostrar personagens e ambientes através de silhuetas, traços rápidos sobre fundo branco, fazendo a transição entre uma forma e outra com os traços se libertando e se recombinando: a casa se desmonta e faz a rua, as linhas da calçada se arredondam e formam o chapéu do mendigo, tudo fluindo. Haveria fusões entre o homem solitário à janela e a janela oposta, cheia de movimento e música... Um solo de violino, ininterrupto, seria a trilha sonora.

O mesmo argumento seria usado pelo diretor “B” para um filme com bonecos de massinha. Ruas e casas pintadas em corres berrantes. Bonecos atarracados, hiperrealistas. O quarto da pensão um cubo com 30 cm de altura. Na hora do tiro, ele faria (como? não sei) a pequena bola de massinha se deslocar cruzando a rua até se espatifar em fragmentos no peito do boneco...

O diretor “C” poderia optar por animação em aquarelas, carregando no contraste entre o quarto sombrio do protagonista, a rua em tons mais abertos, com pastéis suaves, e o apartamento em festa usando técnicas mistas com pururinas ou lantejoulas misturadas à tinta. O homem atingido pela bala teria suas cores diluídas em água, até ficar totalmente preto-e-branco e imóvel.

O diretor “D” escolheria uma abordagem kafkeana, sombria, “noir”, cenários pintados a carvão e sobre eles fotografias de atores, recortadas e animadas com saltos bruscos e descontinuidades, uma trilha sonora com ruídos ásperos, guinchos eletrônicos, “charlestons” dos anos 1920...

Em nenhuma arte se vê a diferença entre “história” e “estilo” com tanta nitidez como na animação. O estilo é indizível. Não se pode escrever um roteiro dizendo coisas como “...nesse momento as cores se misturam, os traços revoluteiam uns sobre os outros, a imagem adquire uma textura de pergaminho antigo sobre o qual deslizam tatuagens marrons..” Isso tudo é estilo, a beleza visual das superfícies, é música para os olhos. Na literatura, estilo é criar com palavras algo que produza um efeito parecido, e que tem muito pouco a ver com a história contada.

1674) Antropologia do celular (24.7.2008)



Jan Chipchase é um londrino de 38 anos, formado em Economia, que mora atualmente no Japão e trabalha para a Nokia, fazendo um trabalho que a imprensa chama de “antropologia das corporações”, mas que ele, por não ser propriamente um antropólogo, prefere chamar de “pesquisa de design”. Basicamente, o que ele faz é viajar pelo mundo estudando as novas maneiras de utilizar os telefones celulares.

Já falei aqui que a tal “Revolução do Microcomputador” é coisa do passado. Sou da geração que quando viu um computador (CPU + monitor + teclado + impressora) em cima de uma mesa, para ser usado apenas por mim, me ajoelhei no chão erguendo e abaixando os braços, e salmodiando: “Caramuru!... Caramuru!...” Não parecia haver milagre maior. O milagre maior veio logo depois, quando vi o primeiro notebook – um computador inteiro (OK, menos a impressora!) do tamanho de um livro. OK, não qualquer livro – do tamanho do meu exemplar da Beatles Anthology. Mas era outro deslumbramento.

Mal sabia eu que a próxima virada de esquina nos traria o Grande Milagre atual: o celular. Concebido para ser apenas um telefone portátil, virou uma maquininha multiuso que inclui telefone, câmera fotográfica, filmadora, agenda eletrônica, calculadora, processador de texto, acessador de Internet... Onde iremos parar?

Jan Chipchase diz que o público usuário de celular se expande em todas as direções. Há populações analfabetas aprendendo a usá-lo, e a Nokia está desenvolvendo modelos que facilitam o uso a quem não sabe ler, embora tais modelos não sejam “marquetados” dessa forma, para não criar um estigma e afastar os usuários. Na África é comum um único aparelho servir para uma família inteira, e foi desenvolvido um sistema que permite esse aparelho guardar várias identidades, cada qual com sua agenda telefônica, mantendo a privacidade de cada usuário.

Em Uganda, diz Jan, o celular serve à população pobre como um meio de transferência de dinheiro. Digamos que Fulano está na capital e precisa transferir 50 dólares para sua irmã, que mora num vilarejo onde não há bancos. Ele vai no shopping, compra 50 dólares em crédito num cartão pré-pago, e liga para o cara que mantém no vilarejo um quiosque de celulares pré-pagos para uso da população. Ele informa ao cara o número do cartão pré-pago, o cara carrega o valor num dos seus celulares, e entrega 50 dólares à irmã do outro.

Em comunidades pobres onde não existem luxos como nome de rua e número de casa, diz ele, é comum as pessoas escreverem sobre a porta de entrada o número de seus celulares, o qual passa a ser o segundo meio mais importante de identificação, depois do nome próprio. Diz Jan (cujo blog, aliás, fica em: http://www.janchipchase.com/): “Qualquer interferência pirata para melhorar o uso prático de um celular, criada em qualquer parte do mundo na segunda-feira, na sexta-feira já estará sendo aplicada nas ruas de Gana”. Ou de Campina.

1673) A palavra Eu (23.7.2008)




As palavras e as frases que usamos determinam nosso modo de pensar. Não é uma relação mecânica de causa-e-efeito, mas ninguém pode negar que acontece. 

Tanto é verdade que as livrarias estão cheias de livros de auto-ajuda ensinando a gente a dizer “estou com um desafio criativo” em vez de “problema sério”, porque o modo como a gente verbaliza uma situação mobiliza de maneira diferente nossa energia psíquica. 

Toda sintaxe é uma forma de poder.

William S. Burroughs, autor de Almoço Nu e Junkie (ambos traduzidos em 2005 pela Ediouro), foi um escritor obcecado com os processos de dominação mental e de exercício do poder que existem por trás de nosso discurso verbal. 

Burroughs é conhecido por livros onde há um tratamento franco e direto do homossexualismo e do uso de drogas, o que já lhe valeu processos, livros proibidos pela censura, etc. 

Também é um dos principais expoentes da Geração Beat (juntamente com Jack Kerouac e Allen Ginsberg) e é considerado por muitos (por mim, principalmente) como um dos grandes escritores de ficção científica situados fora do “ambiente” da FC.

Diz Burroughs, em seu livro The Job

“O verbo TO BE poderia muito bem ser eliminado de todas as línguas. A identidade que afirma “é” sempre traz consigo a implicação disto e de nada mais, traz consigo o sinal de uma condição permanente. Do mesmo modo, o artigo “THE” contém a implicação de algo único: o Deus, o Universo, o caminho, o certo, o errado. Esse artigo deveria ser eliminado e substituído sempre pelo artigo “A”: um universo, um caminho, etc. (...) O conceito de “OR” também deveria ser eliminado e substituído pelo conceito de “AND”.

Isto me lembra umas teorias de viés anarquista nos anos 1970, em que éramos aconselhados a não dizer “o Governo” e sim “a Administração”, porque “governo” passa uma idéia de controle, de comando, e “administração” revela o que os governantes de fato são: pessoas encarregadas de administrar bens alheios (no caso, do Povo). 

Era o mesmo pessoal que, em Salvador, nessa época, completava com “ss” sutis as pichações de muro que diziam “Abaixo a Ditadura!”, fazendo: “Abaixo as Ditaduras!”, para nos lembrar que nosso problema não era apenas a ditadura de direita que vigorava no Brasil, mas todas as ditaduras do mundo.

Burroughs também dizia: 

“Seja lá o que você for, você não é a palavra EU, assim como não é aquele conjunto de informações que estão impressas no seu passaporte”. 

Esta é uma afirmação muito próxima do que dizia Fernando Pessoa sobre a multiplicidade e divisibilidade do Eu, que é heterogêneo, contraditório. 

Burroughs e Pessoa são dois escritores que foram muito fundo na investigação deste mais elusivo dos conceitos, o da identidade pessoal, identidade psicológica. A vida e obra dos dois são sintomas da fragmentação e do estranhamento que são características essenciais da arte do século 20. É um momento da História em que o Eu se estilhaçou.




quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

1672) Dercy Beaucoup (22.7.2008)



Dercy Gonçalves fez parte da história do cinema, teatro e TV no Brasil por tantos anos, e retornou tantas vezes à fama, que não me admiro se voltar a fazê-lo daqui dez ou vinte anos, e se vier um dia a comemorar o próprio sesquicentenário. Dercy foi uma dessas velhotas renitentes, carne-de-pescoço, sem papas na língua, que nunca dão o braço a torcer. Os jornalistas adoram chamá-las de “uma força da Natureza” e de ver na sua história pessoal “uma lição de vida”. Termos que, visto sua morte na semana passada, devem estar “dessa finura” de tanto uso. Eu mesmo não resisti.

Os obituários sobre Dercy falam da origem humilde, da carreira sofrida, dos vários e efêmeros “picos” de dinheiro e fama, das desilusões amorosas. Talvez o episódio mais cruel e mais definidor de seu temperamento seja o calote que sofreu de um empresário que administrava suas economias. Ao que parece, o sujeito passou a mão grande no dinheiro da artista, e Dercy, aos 80 anos, teve que voltar às luzes da ribalta e aos estúdios de TV para recomeçar tudo do zero. E o fez com a mesma energia e desbocamento de quando era apenas um brotinho de 40.

Sua voz esganiçada tinha um ritmo próprio que lhe realçava a comicidade. Ela costumava disparar uma saraivada de impropérios no meio das falas decoradas. Quando se punha a recordar o texto escrito ou a improvisar uma intervenção própria dava uma reduzida no ritmo revirando os olhos para o teto, torcendo a boca, fazendo gestos melodramáticos com as mãos, e escandindo as sílabas de um jeito muito engraçado, terminando sempre a frase com os olhos arregaladíssimos voltados para o público ou a câmara. Ficou famosa como a rainha do palavrão, que era seu trunfo maior e seu coringa mais recorrente. Mas sua comicidade ia além disso. Era uma improvisadora contumaz. Parecia sentir-se mais à vontade dizendo as doidices que lhe vinham à cabeça do que ligando um piloto automático e seguindo comodamente o script.

Busquei na Wikipédia o ano do programa de TV “Dercy Beaucoup”; não achei. Foi um programa marcante quando eu era pequeno, a tal ponto que seu título, um trocadilho irresistível, virou o nome informal da atriz. As pessoas diziam: “Ontem eu vi na TV uma entrevista muito engraçada com Dercy Beaucoup”.

Quando jovem, no tempo da chanchada, sua voz parecia ainda mais estridente, devido às precárias aparelhagens de som dos cinemas da época. Não era bonita; na melhor das hipóteses tinha um rosto engraçado que inspirava simpatia, seria uma versão brasileira de Shirley MacLaine, com verve, irreverência, lampejos de graça feminina. Era uma “comediante semântica”, cuja graça estava nela própria, e não nas situações em que se envolvia. Pertencia à camada popular, histriônica, do humor brasileiro, junto com Renato Aragão, Ronald Golias, Oscarito. Era às vezes ranzinza, azeda, mal-humorada. Tinha uma cara de quem nunca vai se deixar dobrar ou abater por coisíssima alguma. Parecia imortal, e talvez o seja.

1671) A Comilança (20.7.2008)



Do meu tempo de faculdade, lembro de aulas sobre “stakhanovismo”. Stakhanov era um operário-padrão na ditadura estalinista na União Soviética. A URSS vivia se esfalfando para sair de uma economia feudalista e competir com o capitalismo norte-americano. Era preciso industrializar o país da noite para o dia, era preciso bater recordes de produção, era preciso criar uma mitologia da produtividade.

Alexei Stakhanov (1906-1977) era um desses caras resolutos e obstinados que um belo dia decidem entrar para a História. Trabalhava numa mina de carvão, e era bombardeado pelas mensagens de incentivo do Partido Comunista: “Trabalhe! Produza! Vamos mostrar a esses porcos capitalistas que somos melhores do que eles!” Em agosto de 1935, Stakhanov extraiu sozinho 102 toneladas de carvão em pouco mais de cinco horas de trabalho. Era um recorde extraordinário, cerca de 14 vezes a quota que se esperava de um operário comum. Em setembro, ele foi mais adiante: extraiu 227 toneladas num único turno de trabalho. Virou herói nacional na URSS e, de certa forma, também nos EUA, pois apareceu na capa da revista “Time” em dezembro daquele ano.

O que é isto? A ilusão comunista? Não, amigos, apenas a doença mais característica de nossa época, o Delírio Quantitativo, que, por pertencer à época, não liga para sutilezas como regime político ou econômico. É algo que vai mais longe e mais fundo. Num século de explosão populacional, de intenso apelo à produtividade/consumo, e de comunicações instantâneas, sempre importa saber quem é o Mais, o Melhor, o Maior. São os parâmetros instintivos do Espírito do Tempo, da religião do Número.

Stakhanov é o herói típico da economia comunista, e não duvido que na China de hoje haja praças e estátuas em sua homenagem. Já no hemisfério capitalista, o Delírio Quantitativo se manifesta de formas mais heterogêneas. O Livro Guiness dos Recordes, por exemplo, não passa de um catálogo, atualizado anualmente, dos stakhanovs do entretenimento, do lazer, da banalidade. A produtividade soviética sempre teve o perfil ascético dos que trabalham por um abstrato Bem Coletivo, enquanto a produtividade norte-americana parece endeusar o concretíssimo Bem Individual. Os soviéticos se orgulham dos seus recordes de trabalho e produção; os americanos, dos seus recordes de lazer e consumo.

Vai daí que dias atrás um tal de Joey Chestnut recebeu um prêmio de 10 mil dólares por ter comido 59 hot-dogs em dez minutos. A prova existe desde 1946. Chestnut empatou com o recorde do japonês Takeru Kobayashi, mas conseguiu comer cinco salsichas a mais, e venceu no desempate. Os norte-americanos adoram concursos de comilança. Assim como os soviéticos se julgavam na obrigação de produzir mais do que a média da humanidade, para provar a superioridade do regime comunista, os EUA se julgam na obrigação de consumir mais do que a média mundial, para provar a superioridade do seu sistema. Quem duvidar, vá aqui: http://eatfeats.com/.

1670) Filmes de época (19.7.2008)





Andei revendo na TV um antigo filme de FC, Colossus 1980 – The Forbin Project, de Joseph Sargent. Nele, um cientista cria um supercomputador para cuidar da defesa anti-mísseis dos EUA, e este acaba tomando conta do mundo através do sistema de telecomunicações. 

O filme é de 1970 e, é claro, sua visão da computação é típica dessa época. Colossus é o típico “Leviatã Cibernético” que aparece em tantos filmes: computadores gigantescos escondidos no interior de um montanha, eles próprios do tamanho de uma montanha feita de fios, transistores, etc.

Consultando alguns comentários on-line sobre o filme, percebi que vários críticos ironizavam esse aspecto. “O filme é muito datado”, diz um deles, “e mostra computadores que trabalham com fitas perfuradas!”. Ora, este é justamente um dos aspectos mais interessantes do filme: mostram o que era a imagem dos computadores em 1970. 

E uma imagem bastante ancorada na realidade, porque li no Internet Movie Data Base que os computadores mostrados no filme são de verdade. Foram cedidos à produção pela Control Data Corporation, desejosa de amealhar um “merchandising” gratuito. Durante as filmagens foi preciso instalar uma enorme parafernália de ar condicionado para que os computadores trabalhassem de fato, sob a vigilância severa de técnicos e de guardas armados.

Os computadores evoluíram numa direção inesperada – miniaturização, multiplicação, acessibilidade, ligação em rede, etc. O mundo informático de hoje é muito diferente do de “Colossus”. Ainda assim, há semelhanças surpreendentes. 

A certa altura, Colossus adquire consciência própria e decide retirar das mãos dos políticos todo o poder, para cuidar da humanidade segundo seus próprios critérios. O Dr. Forbin, seu criador, é mantido sob vigilância total, e há uma cena (extremamente 2008!) em que Forbin caminha pelos corredores do centro científico acompanhado por câmeras de segurança idênticas aos dos nossos atuais condomínios, e através delas e de seus microfones ele conversa com o computador.

Ver um filme de 30 anos atrás e reclamar que ele não parece com nossa época é uma bobagem. É como viajar para o Sri Lanka e reclamar que lá não tem comida brasileira. Se vamos tão longe é porque estamos em busca do diferente, e mesmo se encontrarmos o que nos é familiar devemos reconhecer a raridade desse encontro. 

Um filme de 1950 nos revela, involuntariamente, inúmeras coisas sobre o ano em que foi feito, desde coisas mais superficiais (moda, roupas, carros, cabelo, etc.) até regras de comportamento hoje em desuso, preconceitos, ingenuidades, etc. 

Todo filme é involuntariamente realista, sempre que lança mão do que parece consensual e concentra suas atenções naquilo que se propõe a inventar. É justamente no que não se propõe a inventar, no que copia para não perder tempo, que filmes assim nos dão o retrato de sua época. São filmes datados, sim. Por isso vale a pena vê-los. 





1669) Puritanismo ou depravação (18.7.2008)



Tenho feito muitas críticas às letras escrachadas dos falsos forrós que tocam por aí, o que tem me merecido respostas no tom de: “Que moralismo é esse? O tempo da ditadura acabou”.

Essa resposta coloca uma questão interessante, porque, como se sabe, os anos da ditadura militar não tiveram apenas Censura política, mas também uma rígida censura de costumes. Nudez, palavrão, gandaia, referências a sexo, tudo isso era perseguido, proibido, cortado.

É um milagre que um jornal como “O Pasquim”, para citar apenas um exemplo, tenha conseguido publicar tudo que publicou. E que autores como Henry Miller tenham sido traduzidos e editados no Brasil durante esse período.

O que há é que com o fim da ditadura houve um “liberou geral” na imprensa, nas artes, na TV, na música. Foi uma melhora? Sem dúvida. Mas a melhora está ficando tão histérica que está acarretando uma piora na direção oposta.

E isto se deve ao fato, repetidamente afirmado nesta coluna, de que saímos da Ditadura Militar para a Ditadura do Mercado, que em alguns aspectos é mais confortável de viver do que a outra, mas a longo prazo é igualmente prejudicial.

Na ditadura militar, tudo era proibido. Na Ditadura do Mercado, tudo é mercadoria, tudo pode ser comprado com dinheiro, porque este é o valor que as pessoas mais prezam.

Na ditadura militar, as mulheres eram proibidas de mostrar o corpo. Na ditadura do mercado, as mulheres mostram o corpo, não porque se liberaram do moralismo, mas porque são encorajadas a se oferecer como mercadoria.

O Discurso Puritano interessava à ditadura militar, comandada por generais tradicionalistas e conservadores. Defendiam uma moralidade ascética, reprimida e repressora, inspirada na religião.

Já o Discurso Depravado interessa à ditadura do mercado. Sua estratégia é ditada por empresários cujo objetivo é o acúmulo rápido de dinheiro, pregando o consumo em alta escala e o cultivo de um estilo de vida hedonista, voltado para o desfrute de todos os prazeres oferecidos aos que são ricos e jovens.

Esta segunda ditadura, que a cada ano manda mais na indústria cultural brasileira, precisa ser tão questionada e combatida quanto a anterior. As duas são o extremo oposto uma da outra, mas as duas têm o mesmo efeito nocivo: amputar a totalidade da experiência humana, sabotar a liberdade, pegar populações de jovens e prepará-las cuidadosamente para obedecer aos seus comandos como um rato de laboratório.

Há trinta anos, a ditadura militar oferecia segurança e exigia repressão sexual. Hoje em dia, a ditadura do mercado oferece desfrute sexual ilimitado e está impondo um jogo cuja regra é: “Tudo tem preço. Quanto é o seu?”

Quanto é que você cobra para fazer algo que você é contra?

Quanto cobra pelo seu filho, pela sua filha, pela sua mãe?

Quanto é a aposta que eu vou lhe fazer uma proposta irrecusável?

Quanto é a aposta que meu dinheiro vale mais, para você, do que você mesmo?





1668) Cordel e arranha-céu (17.7.2008)



Há cerca de 30 anos fiz parte da comissão de seleção de temas do Congresso Nacional de Violeiros, em Campina Grande. Criávamos os motes a serem glosados de improviso pelos poetas. Para se ter certeza de que os cantadores não estavam cantando versos decorados, todos os assuntos e motes eram criados pela comissão e mantidos sob segredo até o momento do sorteio, com a dupla já no palco. Tenho a tentação de dizer que esses motes eram guardados a sete chaves, mas seria faltar com a verdade. Depois de criados, datilografados e fechados, de um em um, em pequenos envelopes brancos, opacos, eles iam todos para um envelope de papel pardo que ficava embaixo do meu braço durante os três dias que durava o Congresso. Da minha mão só saía para a mão de Gilson Souto Maior, apresentador oficial do evento naquela época. Feito o sorteio, o envelope maior voltava às minhas mãos. Quando eu dormia, ele ficava embaixo do meu travesseiro.

Um mote que causou uma certa polêmica foi: “Se não fosse o valor do nordestino / em São Paulo não tinha arranha-céu”. Não pelo conteúdo, mas porque os violeiros criticaram a dificuldade da rima. Diziam: “Tem poucas rimas: chapéu, tabaréu, escarcéu...” Eu replicava: “Que nada! Veja só: cordel, papel, coronel, Babel...” E eles diziam: “Mas isso não rima com céu. Porque um se escreve com U, e o outro com L. Não rima”.

Para mim este é um exemplo típico do rigor da poética dos cantadores, algo que as pessoas de fora não entendem muito bem. Na poesia de livro, na poesia moderna, as noções de rima são muito mais flexíveis, mais liberais. Aceita-se com naturalidade a rima toante, aquela em que os sons são apenas vagamente parecidos. Já a poética dos cantadores exige uma correspondência total de sons – a tal ponto que não aceita rimar “céu” com “cordel”, simplesmente porque os dois se escrevem de maneira diferente.

Neste ponto eu discordo dos cantadores (inclusive escrevi, e canto há anos, várias glosas ao mote em questão). Na minha regra, a rima se dirige ao ouvido. Se os sons são iguais, pouco importa como as palavras são escritas, se com U ou com L. Os próprios violeiros aceitam que a palavra “passo” rima com a palavra “espaço”, mesmo que as duas sejam escritas de forma diferente.

Para mim, esse preciosismo no impasse entre “arranha-céu” e “cordel” decorre de um momento histórico em que começou a predominar, no universo da Cantoria de Viola, uma geração de cantadores alfabetizados, instruídos, diferenciados dos cantadores do século 19, em que a maioria dos praticantes da Grande Arte tinha escolaridade precária (embora também houvesse, é claro, um núcleo de violeiros letrados e cultos). A distinção entre “ÉU” e “EL” é sintoma da vitória do Escrito sobre o Oral, típica dos seguidores de Romano do Teixeira, dos cantadores letrados que querem se afastar do universo de Inácio da Catingueira, o ex-escravo que era só talento e pouca instrução.