sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

1674) Antropologia do celular (24.7.2008)



Jan Chipchase é um londrino de 38 anos, formado em Economia, que mora atualmente no Japão e trabalha para a Nokia, fazendo um trabalho que a imprensa chama de “antropologia das corporações”, mas que ele, por não ser propriamente um antropólogo, prefere chamar de “pesquisa de design”. Basicamente, o que ele faz é viajar pelo mundo estudando as novas maneiras de utilizar os telefones celulares.

Já falei aqui que a tal “Revolução do Microcomputador” é coisa do passado. Sou da geração que quando viu um computador (CPU + monitor + teclado + impressora) em cima de uma mesa, para ser usado apenas por mim, me ajoelhei no chão erguendo e abaixando os braços, e salmodiando: “Caramuru!... Caramuru!...” Não parecia haver milagre maior. O milagre maior veio logo depois, quando vi o primeiro notebook – um computador inteiro (OK, menos a impressora!) do tamanho de um livro. OK, não qualquer livro – do tamanho do meu exemplar da Beatles Anthology. Mas era outro deslumbramento.

Mal sabia eu que a próxima virada de esquina nos traria o Grande Milagre atual: o celular. Concebido para ser apenas um telefone portátil, virou uma maquininha multiuso que inclui telefone, câmera fotográfica, filmadora, agenda eletrônica, calculadora, processador de texto, acessador de Internet... Onde iremos parar?

Jan Chipchase diz que o público usuário de celular se expande em todas as direções. Há populações analfabetas aprendendo a usá-lo, e a Nokia está desenvolvendo modelos que facilitam o uso a quem não sabe ler, embora tais modelos não sejam “marquetados” dessa forma, para não criar um estigma e afastar os usuários. Na África é comum um único aparelho servir para uma família inteira, e foi desenvolvido um sistema que permite esse aparelho guardar várias identidades, cada qual com sua agenda telefônica, mantendo a privacidade de cada usuário.

Em Uganda, diz Jan, o celular serve à população pobre como um meio de transferência de dinheiro. Digamos que Fulano está na capital e precisa transferir 50 dólares para sua irmã, que mora num vilarejo onde não há bancos. Ele vai no shopping, compra 50 dólares em crédito num cartão pré-pago, e liga para o cara que mantém no vilarejo um quiosque de celulares pré-pagos para uso da população. Ele informa ao cara o número do cartão pré-pago, o cara carrega o valor num dos seus celulares, e entrega 50 dólares à irmã do outro.

Em comunidades pobres onde não existem luxos como nome de rua e número de casa, diz ele, é comum as pessoas escreverem sobre a porta de entrada o número de seus celulares, o qual passa a ser o segundo meio mais importante de identificação, depois do nome próprio. Diz Jan (cujo blog, aliás, fica em: http://www.janchipchase.com/): “Qualquer interferência pirata para melhorar o uso prático de um celular, criada em qualquer parte do mundo na segunda-feira, na sexta-feira já estará sendo aplicada nas ruas de Gana”. Ou de Campina.

1673) A palavra Eu (23.7.2008)




As palavras e as frases que usamos determinam nosso modo de pensar. Não é uma relação mecânica de causa-e-efeito, mas ninguém pode negar que acontece. 

Tanto é verdade que as livrarias estão cheias de livros de auto-ajuda ensinando a gente a dizer “estou com um desafio criativo” em vez de “problema sério”, porque o modo como a gente verbaliza uma situação mobiliza de maneira diferente nossa energia psíquica. 

Toda sintaxe é uma forma de poder.

William S. Burroughs, autor de Almoço Nu e Junkie (ambos traduzidos em 2005 pela Ediouro), foi um escritor obcecado com os processos de dominação mental e de exercício do poder que existem por trás de nosso discurso verbal. 

Burroughs é conhecido por livros onde há um tratamento franco e direto do homossexualismo e do uso de drogas, o que já lhe valeu processos, livros proibidos pela censura, etc. 

Também é um dos principais expoentes da Geração Beat (juntamente com Jack Kerouac e Allen Ginsberg) e é considerado por muitos (por mim, principalmente) como um dos grandes escritores de ficção científica situados fora do “ambiente” da FC.

Diz Burroughs, em seu livro The Job

“O verbo TO BE poderia muito bem ser eliminado de todas as línguas. A identidade que afirma “é” sempre traz consigo a implicação disto e de nada mais, traz consigo o sinal de uma condição permanente. Do mesmo modo, o artigo “THE” contém a implicação de algo único: o Deus, o Universo, o caminho, o certo, o errado. Esse artigo deveria ser eliminado e substituído sempre pelo artigo “A”: um universo, um caminho, etc. (...) O conceito de “OR” também deveria ser eliminado e substituído pelo conceito de “AND”.

Isto me lembra umas teorias de viés anarquista nos anos 1970, em que éramos aconselhados a não dizer “o Governo” e sim “a Administração”, porque “governo” passa uma idéia de controle, de comando, e “administração” revela o que os governantes de fato são: pessoas encarregadas de administrar bens alheios (no caso, do Povo). 

Era o mesmo pessoal que, em Salvador, nessa época, completava com “ss” sutis as pichações de muro que diziam “Abaixo a Ditadura!”, fazendo: “Abaixo as Ditaduras!”, para nos lembrar que nosso problema não era apenas a ditadura de direita que vigorava no Brasil, mas todas as ditaduras do mundo.

Burroughs também dizia: 

“Seja lá o que você for, você não é a palavra EU, assim como não é aquele conjunto de informações que estão impressas no seu passaporte”. 

Esta é uma afirmação muito próxima do que dizia Fernando Pessoa sobre a multiplicidade e divisibilidade do Eu, que é heterogêneo, contraditório. 

Burroughs e Pessoa são dois escritores que foram muito fundo na investigação deste mais elusivo dos conceitos, o da identidade pessoal, identidade psicológica. A vida e obra dos dois são sintomas da fragmentação e do estranhamento que são características essenciais da arte do século 20. É um momento da História em que o Eu se estilhaçou.




quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

1672) Dercy Beaucoup (22.7.2008)



Dercy Gonçalves fez parte da história do cinema, teatro e TV no Brasil por tantos anos, e retornou tantas vezes à fama, que não me admiro se voltar a fazê-lo daqui dez ou vinte anos, e se vier um dia a comemorar o próprio sesquicentenário. Dercy foi uma dessas velhotas renitentes, carne-de-pescoço, sem papas na língua, que nunca dão o braço a torcer. Os jornalistas adoram chamá-las de “uma força da Natureza” e de ver na sua história pessoal “uma lição de vida”. Termos que, visto sua morte na semana passada, devem estar “dessa finura” de tanto uso. Eu mesmo não resisti.

Os obituários sobre Dercy falam da origem humilde, da carreira sofrida, dos vários e efêmeros “picos” de dinheiro e fama, das desilusões amorosas. Talvez o episódio mais cruel e mais definidor de seu temperamento seja o calote que sofreu de um empresário que administrava suas economias. Ao que parece, o sujeito passou a mão grande no dinheiro da artista, e Dercy, aos 80 anos, teve que voltar às luzes da ribalta e aos estúdios de TV para recomeçar tudo do zero. E o fez com a mesma energia e desbocamento de quando era apenas um brotinho de 40.

Sua voz esganiçada tinha um ritmo próprio que lhe realçava a comicidade. Ela costumava disparar uma saraivada de impropérios no meio das falas decoradas. Quando se punha a recordar o texto escrito ou a improvisar uma intervenção própria dava uma reduzida no ritmo revirando os olhos para o teto, torcendo a boca, fazendo gestos melodramáticos com as mãos, e escandindo as sílabas de um jeito muito engraçado, terminando sempre a frase com os olhos arregaladíssimos voltados para o público ou a câmara. Ficou famosa como a rainha do palavrão, que era seu trunfo maior e seu coringa mais recorrente. Mas sua comicidade ia além disso. Era uma improvisadora contumaz. Parecia sentir-se mais à vontade dizendo as doidices que lhe vinham à cabeça do que ligando um piloto automático e seguindo comodamente o script.

Busquei na Wikipédia o ano do programa de TV “Dercy Beaucoup”; não achei. Foi um programa marcante quando eu era pequeno, a tal ponto que seu título, um trocadilho irresistível, virou o nome informal da atriz. As pessoas diziam: “Ontem eu vi na TV uma entrevista muito engraçada com Dercy Beaucoup”.

Quando jovem, no tempo da chanchada, sua voz parecia ainda mais estridente, devido às precárias aparelhagens de som dos cinemas da época. Não era bonita; na melhor das hipóteses tinha um rosto engraçado que inspirava simpatia, seria uma versão brasileira de Shirley MacLaine, com verve, irreverência, lampejos de graça feminina. Era uma “comediante semântica”, cuja graça estava nela própria, e não nas situações em que se envolvia. Pertencia à camada popular, histriônica, do humor brasileiro, junto com Renato Aragão, Ronald Golias, Oscarito. Era às vezes ranzinza, azeda, mal-humorada. Tinha uma cara de quem nunca vai se deixar dobrar ou abater por coisíssima alguma. Parecia imortal, e talvez o seja.

1671) A Comilança (20.7.2008)



Do meu tempo de faculdade, lembro de aulas sobre “stakhanovismo”. Stakhanov era um operário-padrão na ditadura estalinista na União Soviética. A URSS vivia se esfalfando para sair de uma economia feudalista e competir com o capitalismo norte-americano. Era preciso industrializar o país da noite para o dia, era preciso bater recordes de produção, era preciso criar uma mitologia da produtividade.

Alexei Stakhanov (1906-1977) era um desses caras resolutos e obstinados que um belo dia decidem entrar para a História. Trabalhava numa mina de carvão, e era bombardeado pelas mensagens de incentivo do Partido Comunista: “Trabalhe! Produza! Vamos mostrar a esses porcos capitalistas que somos melhores do que eles!” Em agosto de 1935, Stakhanov extraiu sozinho 102 toneladas de carvão em pouco mais de cinco horas de trabalho. Era um recorde extraordinário, cerca de 14 vezes a quota que se esperava de um operário comum. Em setembro, ele foi mais adiante: extraiu 227 toneladas num único turno de trabalho. Virou herói nacional na URSS e, de certa forma, também nos EUA, pois apareceu na capa da revista “Time” em dezembro daquele ano.

O que é isto? A ilusão comunista? Não, amigos, apenas a doença mais característica de nossa época, o Delírio Quantitativo, que, por pertencer à época, não liga para sutilezas como regime político ou econômico. É algo que vai mais longe e mais fundo. Num século de explosão populacional, de intenso apelo à produtividade/consumo, e de comunicações instantâneas, sempre importa saber quem é o Mais, o Melhor, o Maior. São os parâmetros instintivos do Espírito do Tempo, da religião do Número.

Stakhanov é o herói típico da economia comunista, e não duvido que na China de hoje haja praças e estátuas em sua homenagem. Já no hemisfério capitalista, o Delírio Quantitativo se manifesta de formas mais heterogêneas. O Livro Guiness dos Recordes, por exemplo, não passa de um catálogo, atualizado anualmente, dos stakhanovs do entretenimento, do lazer, da banalidade. A produtividade soviética sempre teve o perfil ascético dos que trabalham por um abstrato Bem Coletivo, enquanto a produtividade norte-americana parece endeusar o concretíssimo Bem Individual. Os soviéticos se orgulham dos seus recordes de trabalho e produção; os americanos, dos seus recordes de lazer e consumo.

Vai daí que dias atrás um tal de Joey Chestnut recebeu um prêmio de 10 mil dólares por ter comido 59 hot-dogs em dez minutos. A prova existe desde 1946. Chestnut empatou com o recorde do japonês Takeru Kobayashi, mas conseguiu comer cinco salsichas a mais, e venceu no desempate. Os norte-americanos adoram concursos de comilança. Assim como os soviéticos se julgavam na obrigação de produzir mais do que a média da humanidade, para provar a superioridade do regime comunista, os EUA se julgam na obrigação de consumir mais do que a média mundial, para provar a superioridade do seu sistema. Quem duvidar, vá aqui: http://eatfeats.com/.

1670) Filmes de época (19.7.2008)





Andei revendo na TV um antigo filme de FC, Colossus 1980 – The Forbin Project, de Joseph Sargent. Nele, um cientista cria um supercomputador para cuidar da defesa anti-mísseis dos EUA, e este acaba tomando conta do mundo através do sistema de telecomunicações. 

O filme é de 1970 e, é claro, sua visão da computação é típica dessa época. Colossus é o típico “Leviatã Cibernético” que aparece em tantos filmes: computadores gigantescos escondidos no interior de um montanha, eles próprios do tamanho de uma montanha feita de fios, transistores, etc.

Consultando alguns comentários on-line sobre o filme, percebi que vários críticos ironizavam esse aspecto. “O filme é muito datado”, diz um deles, “e mostra computadores que trabalham com fitas perfuradas!”. Ora, este é justamente um dos aspectos mais interessantes do filme: mostram o que era a imagem dos computadores em 1970. 

E uma imagem bastante ancorada na realidade, porque li no Internet Movie Data Base que os computadores mostrados no filme são de verdade. Foram cedidos à produção pela Control Data Corporation, desejosa de amealhar um “merchandising” gratuito. Durante as filmagens foi preciso instalar uma enorme parafernália de ar condicionado para que os computadores trabalhassem de fato, sob a vigilância severa de técnicos e de guardas armados.

Os computadores evoluíram numa direção inesperada – miniaturização, multiplicação, acessibilidade, ligação em rede, etc. O mundo informático de hoje é muito diferente do de “Colossus”. Ainda assim, há semelhanças surpreendentes. 

A certa altura, Colossus adquire consciência própria e decide retirar das mãos dos políticos todo o poder, para cuidar da humanidade segundo seus próprios critérios. O Dr. Forbin, seu criador, é mantido sob vigilância total, e há uma cena (extremamente 2008!) em que Forbin caminha pelos corredores do centro científico acompanhado por câmeras de segurança idênticas aos dos nossos atuais condomínios, e através delas e de seus microfones ele conversa com o computador.

Ver um filme de 30 anos atrás e reclamar que ele não parece com nossa época é uma bobagem. É como viajar para o Sri Lanka e reclamar que lá não tem comida brasileira. Se vamos tão longe é porque estamos em busca do diferente, e mesmo se encontrarmos o que nos é familiar devemos reconhecer a raridade desse encontro. 

Um filme de 1950 nos revela, involuntariamente, inúmeras coisas sobre o ano em que foi feito, desde coisas mais superficiais (moda, roupas, carros, cabelo, etc.) até regras de comportamento hoje em desuso, preconceitos, ingenuidades, etc. 

Todo filme é involuntariamente realista, sempre que lança mão do que parece consensual e concentra suas atenções naquilo que se propõe a inventar. É justamente no que não se propõe a inventar, no que copia para não perder tempo, que filmes assim nos dão o retrato de sua época. São filmes datados, sim. Por isso vale a pena vê-los. 





1669) Puritanismo ou depravação (18.7.2008)



Tenho feito muitas críticas às letras escrachadas dos falsos forrós que tocam por aí, o que tem me merecido respostas no tom de: “Que moralismo é esse? O tempo da ditadura acabou”.

Essa resposta coloca uma questão interessante, porque, como se sabe, os anos da ditadura militar não tiveram apenas Censura política, mas também uma rígida censura de costumes. Nudez, palavrão, gandaia, referências a sexo, tudo isso era perseguido, proibido, cortado.

É um milagre que um jornal como “O Pasquim”, para citar apenas um exemplo, tenha conseguido publicar tudo que publicou. E que autores como Henry Miller tenham sido traduzidos e editados no Brasil durante esse período.

O que há é que com o fim da ditadura houve um “liberou geral” na imprensa, nas artes, na TV, na música. Foi uma melhora? Sem dúvida. Mas a melhora está ficando tão histérica que está acarretando uma piora na direção oposta.

E isto se deve ao fato, repetidamente afirmado nesta coluna, de que saímos da Ditadura Militar para a Ditadura do Mercado, que em alguns aspectos é mais confortável de viver do que a outra, mas a longo prazo é igualmente prejudicial.

Na ditadura militar, tudo era proibido. Na Ditadura do Mercado, tudo é mercadoria, tudo pode ser comprado com dinheiro, porque este é o valor que as pessoas mais prezam.

Na ditadura militar, as mulheres eram proibidas de mostrar o corpo. Na ditadura do mercado, as mulheres mostram o corpo, não porque se liberaram do moralismo, mas porque são encorajadas a se oferecer como mercadoria.

O Discurso Puritano interessava à ditadura militar, comandada por generais tradicionalistas e conservadores. Defendiam uma moralidade ascética, reprimida e repressora, inspirada na religião.

Já o Discurso Depravado interessa à ditadura do mercado. Sua estratégia é ditada por empresários cujo objetivo é o acúmulo rápido de dinheiro, pregando o consumo em alta escala e o cultivo de um estilo de vida hedonista, voltado para o desfrute de todos os prazeres oferecidos aos que são ricos e jovens.

Esta segunda ditadura, que a cada ano manda mais na indústria cultural brasileira, precisa ser tão questionada e combatida quanto a anterior. As duas são o extremo oposto uma da outra, mas as duas têm o mesmo efeito nocivo: amputar a totalidade da experiência humana, sabotar a liberdade, pegar populações de jovens e prepará-las cuidadosamente para obedecer aos seus comandos como um rato de laboratório.

Há trinta anos, a ditadura militar oferecia segurança e exigia repressão sexual. Hoje em dia, a ditadura do mercado oferece desfrute sexual ilimitado e está impondo um jogo cuja regra é: “Tudo tem preço. Quanto é o seu?”

Quanto é que você cobra para fazer algo que você é contra?

Quanto cobra pelo seu filho, pela sua filha, pela sua mãe?

Quanto é a aposta que eu vou lhe fazer uma proposta irrecusável?

Quanto é a aposta que meu dinheiro vale mais, para você, do que você mesmo?





1668) Cordel e arranha-céu (17.7.2008)



Há cerca de 30 anos fiz parte da comissão de seleção de temas do Congresso Nacional de Violeiros, em Campina Grande. Criávamos os motes a serem glosados de improviso pelos poetas. Para se ter certeza de que os cantadores não estavam cantando versos decorados, todos os assuntos e motes eram criados pela comissão e mantidos sob segredo até o momento do sorteio, com a dupla já no palco. Tenho a tentação de dizer que esses motes eram guardados a sete chaves, mas seria faltar com a verdade. Depois de criados, datilografados e fechados, de um em um, em pequenos envelopes brancos, opacos, eles iam todos para um envelope de papel pardo que ficava embaixo do meu braço durante os três dias que durava o Congresso. Da minha mão só saía para a mão de Gilson Souto Maior, apresentador oficial do evento naquela época. Feito o sorteio, o envelope maior voltava às minhas mãos. Quando eu dormia, ele ficava embaixo do meu travesseiro.

Um mote que causou uma certa polêmica foi: “Se não fosse o valor do nordestino / em São Paulo não tinha arranha-céu”. Não pelo conteúdo, mas porque os violeiros criticaram a dificuldade da rima. Diziam: “Tem poucas rimas: chapéu, tabaréu, escarcéu...” Eu replicava: “Que nada! Veja só: cordel, papel, coronel, Babel...” E eles diziam: “Mas isso não rima com céu. Porque um se escreve com U, e o outro com L. Não rima”.

Para mim este é um exemplo típico do rigor da poética dos cantadores, algo que as pessoas de fora não entendem muito bem. Na poesia de livro, na poesia moderna, as noções de rima são muito mais flexíveis, mais liberais. Aceita-se com naturalidade a rima toante, aquela em que os sons são apenas vagamente parecidos. Já a poética dos cantadores exige uma correspondência total de sons – a tal ponto que não aceita rimar “céu” com “cordel”, simplesmente porque os dois se escrevem de maneira diferente.

Neste ponto eu discordo dos cantadores (inclusive escrevi, e canto há anos, várias glosas ao mote em questão). Na minha regra, a rima se dirige ao ouvido. Se os sons são iguais, pouco importa como as palavras são escritas, se com U ou com L. Os próprios violeiros aceitam que a palavra “passo” rima com a palavra “espaço”, mesmo que as duas sejam escritas de forma diferente.

Para mim, esse preciosismo no impasse entre “arranha-céu” e “cordel” decorre de um momento histórico em que começou a predominar, no universo da Cantoria de Viola, uma geração de cantadores alfabetizados, instruídos, diferenciados dos cantadores do século 19, em que a maioria dos praticantes da Grande Arte tinha escolaridade precária (embora também houvesse, é claro, um núcleo de violeiros letrados e cultos). A distinção entre “ÉU” e “EL” é sintoma da vitória do Escrito sobre o Oral, típica dos seguidores de Romano do Teixeira, dos cantadores letrados que querem se afastar do universo de Inácio da Catingueira, o ex-escravo que era só talento e pouca instrução.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

1667) Jogadores e marias-chuteiras (16.7.2008)


Certas coisas no futebol me chamam a atenção. Dias atrás alguns jogadores do Flamengo, após um jogo em Belo Horizonte, envolveram-se numa confusão com garotas de programa. Fizeram uma festinha num sítio, trouxeram mulheres, bebidas. A certa altura, um dos jogadores queria transar sem usar camisinha, a prostituta (que tinha mais juízo do que ele) protestou, houve um bate-boca, uma agressão sem maior gravidade, e foram parar na delegacia. Ao que parece, as garotas tinham sido contratadas por R$ 350,00 reais por cabeça para animar a festa.

Isto ocorre poucas semanas depois do episódio em que Ronaldo Fenômeno se envolveu numa confusão semelhante, desta vez ele sozinho com três travestis. Mais uma vez foram parar na delegacia, saiu nos jornais, etc. e tal. E não pude deixar de lembrar outra famosa farra que jogadores do Flamengo (na época era o time que tinha Romário, Iranildo, Beto, etc.) fizeram em Porto Alegre após um jogo. O bundalelê foi descoberto pela diretoria, e a crise precipitou a saída de Romário do time rubronegro. As trêfegas moçoilas gaúchas deram até entrevista no “Jornal Nacional”, protegendo as identidades (e as fisionomias) com meias-máscaras cobertas de purpurina colorida. Como disse um irreverente amigo meu, “era cada jaburu de trincar espelho”.

O que os torcedores se perguntam nas mesas de bar, após episódios assim, é, basicamente: “Por que diabo esses jogadores, que ganham verdadeiras fortunas, preferem sair com esse tipo de mulheres, em vez de ficarem namorando as modelos-e-atrizes que provavelmente conseguiriam, se tentassem?” O cara pode pegar uma misse, uma apresentadora de TV, uma socialaite... Por que fica correndo atrás das dolores-sierras do Distrito da Luz Vermelha?

Acho que por um lado é uma questão de conforto íntimo. Muitos jogadores são rapazes do povo, cuja vida sexual se deu com esse tipo de mulheres, desde a adolescência. Mesmo depois de ricos e famosos, jogando na Europa ou nas Arábias, eles gostam de retornar àquele ambiente. Em parte por nostalgia. E em parte porque se sentem mais à vontade com essas garotas do que com torcedoras dinamarquesas ou alemãs.

E há outra coisa. A relação cliente-prostituta é, muitas vezes, uma das mais francas e honestas que ocorrem entre homem e mulher. Os dois combinam um preço e um cardápio de serviços. Finda a transação, vai cada um para seu lado. E os jogadores de futebol, por mais malandros que sejam, sentem eternamente pesando sobre seus pescoços a ameaça das marias-chuteiras. Elas vivem de tocaia, armando o bote, prontas para engravidar na primeira transadinha às pressas. Depois de grávidas, depois de mães, lançam mão da parafernália jurídica à sua disposição para sugar os salários e contratos do inadvertido pai, até que ele encerre a carreira aos 40 anos como reserva de algum time de série C. Pra que correr esse risco? Melhor pagar trezentos-e-cinquentinha, abrir uma cerveja e relaxar.

1666) A Lei Seca (15.7.2008)



Está aí um dos raros lampejos de sensatez que já brotaram neste Brasil velho de guerra: punir as pessoas que dirigem sob o efeito do álcool. Sou suspeito para falar, porque não sei dirigir e nunca tive carro. Para mim, portanto, não muda nada, porque sempre que tomei umas e outras voltei para casa de táxi, ou a pé, ou trazido por alguém. As únicas vezes em que cometi alguma imprudência automobilística foi quando voltei para casa pegando carona com amigos (e já foram centenas) que tinham bebido tanto quanto eu, e o fato de estar aqui vivo e batucando nas teclas deve-se simplesmente à Deusa Sorte.

A Lei Seca que está vigorando nas últimas semanas tem reduzido a quantidade de acidentes de trânsito e de vítimas. Em algumas capitais, como Niterói, essa redução chegou a mais de 40%. Qualquer um de nós, se indagado de surpresa, consegue lembrar dois ou três casos concretos de amigos ou conhecidos que foram vitimados por bêbados ao volante: atropelados na rua ou na calçada, ou esmagados em colisões absurdas. Porque no trânsito não basta você ser correto, eficiente e prudente para ter certeza de que está seguro. Quando menos espera, um bêbado estúpido corta um sinal a 150 km por hora e espatifa um carro com uma família dentro.

Ouço na TV a previsível lenga-lenga de que isto é uma interferência nas “liberdades individuais”, é “a volta da ditadura” e outras idiotices. Meu amigo, se for assim, o simples fato de existirem regras de trânsito, sinais semafóricos e faixas para pedestres também é uma interferência gigantesca nas liberdades individuais. A Liberdade é, teoricamente, um ponto ótimo de equilíbrio entre Ordem e Caos. Os que protestam contra a Lei Seca não querem a Liberdade. São como garotos mimados que não deixam ninguém ver TV em paz, que jogam no chão o prato do almoço, que se recusam a tomar banho ou a estudar. Isso não é liberdade, é falta de um corretivo.

O brasileiro já demonstrou fartamente que os corretivos mais eficazes em nosso país são os do bolso. Temos mais medo de perder dinheiro do que de ir para a cadeia. Se as multas forem aplicadas pra valer, as mortes no trânsito cairão de forma espantosa. Claro que nem tudo é perfeito, e as piadas se multiplicam. Já se diz que hoje em dia só os guardas de trânsito estão “tomando uma cervejinha”, ou que os acidentes aumentaram porque os bebuns passaram o volante do carro para as mulheres.

O brasileiro tem bom humor, e nunca esse bom humor (e criatividade) foi tão necessário como agora. Bares se oferecem para deixar os clientes em casa; amigos alugam vans para trazê-los do boteco; pessoas que não bebem são dispensadas de colaborar na conta desde que deixem os amigos em casa; casais se revezam no copo e no volante... Soluções não faltam. Educação não é ditadura. Nunca se bebeu tanto neste país, e nunca se matou tanta gente no trânsito. Não custa nada bebermos todos um pouco menos e vivermos todos um pouco mais, inclusive para continuar bebendo.

1665) Parabéns, Vasco da Gama (13.7.2008)



Uma das melhores notícias recentes no futebol brasileiro foi a eleição de Roberto Dinamite para presidente do Vasco. Dinamite impôs uma derrota substancial ao grupo chefiado por Eurico Miranda, que há vinte e tantos anos se apossou do clube de São Januário com a mesma cara-de-pau com que Saddam Hussein havia se apossado do Iraque, e com a mesma “legitimidade” com que o presidente Mugabe vem se perpetuando no Zimbábue. Eu vejo os problemas vascaínos à distância, sem esquentar a cabeça. Já que eu torço pelo Flamengo, eles que são vascaínos que se entendam. Mas acima de Flamengo sou um esportista, e não gosto de ver um clube tradicional brasileiro, adversário ou não, sendo seqüestrado por uma quadrilha de aproveitadores.

O Vasco é um clube diferente de todos os outros do Rio. É o mais popular dos clubes cariocas. Bem sei que a torcida do Flamengo é a mais numerosa, mas o Vasco é popular pela sua origem e sua história, mesmo tendo surgido, paradoxalmente, como um clube que representava a colônia portuguesa. Dos quatro grandes clubes do Rio, o Vasco é o único sediado na Zona Norte (seu estádio é em São Januário, a pouca distância da nossa nordestiníssima Feira de São Cristóvão). Flamengo, Fluminense e Botafogo são clubes enraizados e estabelecidos na Zona Sul. Por outro lado, o Vasco foi o primeiro clube do Rio a permitir que negros jogassem em suas equipes, numa época em que o Fluminense, por exemplo, fazia com que os jogadores mulatos passassem pó de arroz no rosto para poderem entrar em campo, o que deu origem ao apelido tradicional.

Do ponto de vista sociológico, o Vasco é um clube parecido com o Treze, e os demais são, por suas origens, “clubes cartolas” muito semelhantes ao Campinense. (Algum engraçadinho virá me perguntar por que então eu não torço pelo Vasco. A resposta é que a gente não escolhe essas coisas sociologicamente. São afinidades eletivas, paixões sem arrazoado ou justificação.) Por isso festejo a saída de Eurico Miranda e sua quadrilha, embora saiba que isso provavelmente irá fortalecer o Vasco como clube e como time adversário.

Por que motivo sujeitos como Eurico Miranda se instalam e se perpetuam num clube? Resposta: porque a massa anônima gosta de caudilhos. Eurico brigava com todo mundo em nome do Vasco, e isso é tudo que a massa queria ver. Eurico é o protótipo do caudilho nacionalista, a meio caminho do fascismo, que beija chorando a bandeira, grita que dará a vida por ela, e faz a multidão delirar. A multidão não quer bons administradores, quer um torcedor no poder. Não importa se ele é ladrão ou criminoso, desde que seu amor pela bandeira seja visivelmente sincero, pois é esse amor que o une à multidão. “É um dos nossos,” suspira aliviado o torcedor, e vai dormir em paz. Pois bem, amigos vascaínos, Roberto Dinamite também é um de vocês, sobre isso não há dúvidas. Ele que arrume a casa, equilibre as contas, reforme o time... e pode vir quente que eu estou fervendo.