terça-feira, 22 de dezembro de 2009

1443) As sete maravilhas de Campina (28.10.2007)




A cultura de massas é um efeito-cascata de modismos. Aconteceu este ano a escolha das “Sete Maravilhas do Mundo”, entre as quais ficou o nosso Cristo Redentor. Depois, o Rio de Janeiro promoveu a eleição das sete maravilhas do Estado. Agora, é Pernambuco que está escolhendo suas sete maravilhas, numa lista onde aparecem a praia de Porto de Galinhas, o Alto da Sé de Olinda, as pontes do Capibaribe, etc e tal. 

Antes que a coisa comece a degenerar em farsa e paródia, que tal fazermos um concurso para as Sete Maravilhas de Campina? Não apenas os nossos monumentos históricos, nossas belezas arquitetônicas, mas aqueles lugares que parecem encerrar em si a essência local. Sendo assim, aqui vão meus votos.

Para começar: o Açude Velho. Nada mais parecido com Campina, principalmente o Açude Velho ao anoitecer, refletindo as luzes dos prédios por entre o violeta sangüíneo do crepúsculo. Espelho maior das nossas histórias, e ainda por cima guardando a virtude mágica de enfeitiçar para sempre o estrangeiro desavisado que beber da sua água. 



Depois, o conjunto formado pela Praça da Bandeira e o prédio dos Correios, pelo seu valor arquitetônico e também por me recordar sempre os momentos emocionantes pré-Internet em que subi aqueles degraus para comprar livros vindos pelo Reembolso Postal, fossem aventuras de Sherlock Holmes em 1960 ou contos de Borges em espanhol em 1974. 



Em termos de arquitetura, tomo outra decisão salomônica: tombar por conta própria toda a Rua Maciel Pinheiro com seus sobrados e sacadas “art-déco”, aos quais nunca dei muito valor porque sempre achei que todos os prédios do mundo se pareciam aos nossos. Depois fiquei sabendo que somos raros e preciosos – vejam só o que é a vida.



Em quarto lugar permitam-me a inclusão do Estádio Presidente Vargas, por motivos históricos, poéticos e freudianos, porque ali tive as mais intensas alegrias e os mais abismais desesperos de minha ainda curta vida. 



Em quinto, o Seminário do Alto Branco. Não estranhem, mas passei 20 anos da minha vida vendo-o erguer-se à esquerda da paisagem divisada do terraço de minha casa paterna, e para mim ele sempre foi uma entidade misteriosa e medieval, guardadora de sabedoria e transcendência. 



Em sexto, eu destacaria o Colégio Estadual da Prata, o inesquecível “Gigantão” que me ensinou a vida dos 13 aos 19 anos, e cuja organização arquitetônica trago nítida e intacta na memória, sala por sala.



E para fechar eu elejo a Rodoviária velha, na Praça Lauritzen, hoje transformada em mercado popular. É um símbolo da vocação de Campina para o varejão, o mercadinho, o vuco-vuco; e foi durante décadas o lugar dos abraços, das despedidas e dos reencontros dos milhares de “paraíbas” que partiam para o Sul cheios de esperança ou dele voltavam cheios de experiência. 



Pois é. Nada de jardins suspensos, nada de obras faraônicas... Mas cada povo tem as maravilhas que lhe cabem, e eu me orgulho das minhas.





segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

1442) Referências literárias (27.10.2007)




“Quais as referências literárias da sua escrita?” A resposta que damos a esta pergunta revela mais sobre nossas fantasias do que sobre nossa prática. 

Vejo muitos poetas jovens sendo entrevistados, mercê da publicação de seu primeiro livro, e quando lhes perguntam suas referências literárias, ou os autores que os influenciaram, abrem um leque impressionante: “Fui muito influenciado por Dante, Homero, Camões, Garcia Lorca, Pablo Neruda, Rimbaud, Baudelaire, Manuel Bandeira, Carlos Drummond, João Cabral e Mário Quintana”. Eu tenho vontade de cair ajoelhado no chão e gritar: “Caramuru! Caramuru!”

Será possível que um único poeta consiga ter influência simultânea de tanta gente, e de gente tão diferente entre si? Duvido muito. 

Quando o jovem poeta confessa que leu esse pessoal está afirmando que sentiu-se emocionado e transformado pelo que leu, e que ao escrever tem a ambição íntima de causar nos seus futuros leitores o mesmo tipo de emoção e de transformação. 

É a isto que ele chama “influência” – o fato de que a leitura daqueles autores o modificou pra sempre.

A palavra influência nos induz a pensar em ascendência, poder. É a pressão de uma personalidade mais forte sobre uma mais fraca, dizendo-lhe o que dizer, e como. Mesmo ausente, mesmo manifestando-se apenas através da obra, a personalidade mais forte encontra pouca resistência naquele espírito geralmente jovem, ávido de experiências, ansioso para dizer algo mas sem saber o quê e como. 

O jovem leitor de Baudelaire torna-se um psicógrafo de Baudelaire, mesmo que o que há de Baudelaire em seus escritos seja imperceptível, ou redundante. O jovem cineasta defende-se das críticas com veemência: “Claro que a câmara está tremendo, e com a luz estourada! É Glauber!”

Não é Baudelaire e não é Glauber, mas não é esse o problema. O problema é que na obra também não se percebe o Fulano que fez aquilo. As influências estilísticas são as mais difíceis de domesticar, porque nos autores de origem aqueles recursos exprimiam uma visão das coisas, e na obra dos influenciados exprimem apenas a ausência de uma visão qualquer.

Quando admiramos algum aspecto técnico da obra de um artista, deveríamos nos dedicar a copiá-lo, a reproduzi-lo, até sermos capazes de dominá-lo. 

Mozart era capaz de imitar e parodiar qualquer compositor de sua época. Hunter Thompson decorava e datilografava textos inteiros de Hemingway, para absorver seu ritmo. A obra dos Beatles é um vasto panorama de técnicas alheias copiadas tintim por tintim. 

Uma influência é como um cavalo selvagem, que joga você no chão cada vez que você tentar obrigá-lo a ir para onde você quer. Mas ela pode ser domesticada, pode ser transformada em técnica, recurso, instrumento que utilizamos quando precisamos de uma voz narrativa específica, de um timbre sonoro, de um colorido, um tema. Deveríamos poder dizer algo como: “Dez por cento do que faço eu peço emprestado a Baudelaire, a Fellini, a Portinari”.






1441) O jogo de 722 gols (26.10.2007)



Eu vou ter mais cuidado com o que escrevo, porque toda fantasia que ponho no papel tende a degenerar em fato real. O leitor talvez recorde o meu artigo “O Maior Espetáculo da Serra” (15.1.2006), no qual imaginei uma partida eterna entre Treze x Campinense, 24 horas por dia. Pois os jornais noticiam que os argentinos estão se preparando aos poucos para realizar esta minha profecia, assim como o conhecido Pierre Menard tentou reescrever o Dom Quixote. Noticiam os jornais que no aniversário de fundação de Nocochea, cidadezinha a 520km de Buenos Aires, decidiu-se comemorar o evento com um jogo entre duas equipes que foram batizados com os nomes dos fundadores da cidade, “Victorio de la Canal” e “Angel Murga”. O jogo durou 46 horas e terminou com a vitória de Victorio de la Canal pelo elástico placar de 387 x 335. A notícia também informa que tomaram parte na disputa um total de 1.320 jogadores.

Minha primeira visualização do evento foi um campo de futebol gigantesco, com quilômetros e mais quilômetros, e duas equipes, cada uma com 660 jogadores, perseguindo uma bola cujo paradeiro eles só conseguiriam descobrir ligando para o celular dos colegas. Depois me toquei que não. Desse jeito o mais provável é que o jogo terminasse 0x0, mesmo depois de 46 horas. Cada um dos times deve ter utilizado, num campo normal, 60 equipes normais de 11 jogadores, que foram se substituindo umas às outras nos intervalos da disputa.

Esse gigantismo dá uma idéia do fascínio que o futebol exerce sobre a nossa capacidade de fantasiar. Recordo que nos primeiro anos do Pasquim alguém (não lembro o autor) publicou um texto chamado (acho) “O Grande Jogo”, em que duas barras eram colocadas em extremos opostos do Brasil (tipo Oiapoque e Chuí), e num ponto intermediário (digamos, a Bahia) era dado o pontapé inicial para esta partida que iria teoricamente envolver toda a população brasileira. A tarefa seria levar a bola, de acordo com as regras, até o local da “baliza” e marcar o gol. (Imagino que depois que alguém fizesse 1x0 seria permitido dar uma nova saída sem a necessidade de transportar a mesma bola, de avião, para o “círculo central”).

Na época eu considerei este conto uma espécie de ficção científica ou ficção especulativa tipicamente brasileira. O gigantismo (e o absurdo inevitável, kafkeano, desse projeto) era algo que só poderia ocorrer a uma mente brasileira. Que os argentinos sejam capazes não apenas de imaginar, mas realizar um jogo nas dimensões referidas neste artigo prova que podemos até ser os melhores, mas não somos os únicos. Um jogo de 722 gols, 46 horas e 1.320 jogadores é algo de uma intensidade poética que me comove quase até as lágrimas. Se no ano que vem acontecer de novo, eu compro uma passagem aérea para Buenos Aires e de lá vou assistir e cumprimentar os organizadores. É um delírio à altura do país de Borges e de Maradona, o país de Cortázar e de Riquelme.

1440) O Prêmio Nobel alternativo (25.10.2007)




(Ted Gioia)

O escritor Ted Gioia criou uma página em seu saite propondo uma questão que muita gente já se propôs: e se os vencedores do Prêmio Nobel, em vez de terem sido aqueles sujeitos obscuros que contemplamos nas estantes, tivessem sido os autores que hoje qualquer leitor mediano conhece e admira? Gosto não se discute, claro, mas a lista feita por Gioia de 1901 até 2007 nos propõe mudanças tão óbvias que chegamos a nos perguntar: “Ora, e não foi assim não?...” Começa pelo começo: em vez de Sully Prudhomme, o primeiro ganhador, teríamos Leon Tolstoi. Em 1902, em vez de Theodor Mommsen ele sugere George Meredith (pra mim, confesso, é trocar seis por meia dúzia). Mas em 1903, em vez do impronunciável Bjornstjerne Bjornson o vencedor seria Anton Tchecov; depois, em vez de Frederic Mistral e José Echegaray, venceria Julio Verne; e em 1905, em vez do Henryk Sienckewicz de Quo Vadis, o premiado teria sido Henrik Ibsen, o dramaturgo de Casa de Bonecas.

Gioia leva em conta os regulamentos do Prêmio (o autor tem que estar vivo), e os premiados que ele sugere são autores que no ano em questão já tinham uma obra consolidada e conhecida, e seriam candidatos legítimos. Não vou comentar todos os nomes (que podem ser vistos em: http://www.greatbooksguide.com/NobelPrize.html). Mas me parece que seria mesmo mais justo ter premiado Mark Twain em vez de Giosuè Carducci (1906), Henry James em vez de Maurice Maenterlinck (1911), Sigmund Freud em vez de Verner von Heidenstam (1916), Franz Kafka em vez de Jacinto Benavente (1922), Conan Doyle em vez de Grazzia Deledda (1926), G. K. Chesterton em vez de Erik Axel Karlfeldt (1931)... Não parece óbvio?

Gioia não é totalmente crítico da Academia Sueca. Muitos premiados reais são endossados por ele, como Rudyard Kipling (1907), W. B. Yeats (1923), George Bernard Shaw (1925), T. S. Eliot (1948), William Fulkner (1949)... E aqui para nós tem umas sugestões dele que eu não concordo: eu não tiraria o Nobel de Herman Hesse (1946) para premiar Hermann Broch, nem o de Bertrand Russel (1950) para dá-lo a Wittgenstein, como ele sugere.

O mais divertido é quando a lista vem se avizinhando da época atual, porque as sugestões de Gioia ficam menos convencionais. Ele sugere que em vez do poeta Derek Walcott (1992) a Academia deveria ter premiado Bob Dylan, e que em vez de Odysseus Elytis (1979) o prêmio deveria ter ido para Philip K. Dick. Premiar Hunter S. Thompson em vez de Dario Fo (1997) é uma sugestão divertida, porque o próprio Dario Fo já parece uma idéia de Gioia.

Perda de tempo, ficar discutindo isto? Não acho. Um Nobel, além do milhão e meio de dólares que concede ao premiado, premia também uma cultura, um gênero literário, um país, um mercado editorial. Ajuda a moldar e direcionar o rumo da literatura, mesmo quando o premiado se dissolve em anonimato poucos anos depois. (Alguém sabe quem foi Halldor Laxness? Foi o cara que ganhou em 1955, em vez de Bertolt Brecht).





1439) Uma essência narrativa (24.10.2007)


(a 1a. edição de O Guarani)

Um entrevistador me pergunta: “Em sua opinião podemos afirmar que há uma temática central ou uma essência narrativa na atual literatura Brasileira?” Para comodidade própria, decido considerar “atual” a literatura brasileira que consumi nas últimas quatro décadas, até porque a maioria esmagadora dos títulos que li continua em catálogo e disponível para os leitores de 2007. Como já comentei aqui, “atual” para mim é o livro que está disponível para leitura hoje. O Guarani de José de Alencar é de 1857 mas é atual – porque pode ser encontrado em qualquer livraria ou biblioteca, volta e meia está sendo analisado em nossas escolas, serve como ponto de referência e de comparação para numerosas análises e, portanto, faz parte do corpo literário vivo do Brasil. O que não ocorre com outros livros, muito mais recentes, mas que só foram lidos pelos parentes próximos do autor e por meia dúzia de resignados amigos.

Falemos, então, da literatura brasileira em prosa. Mesmo não lendo tudo que sai por aí costumo ler resenhas, críticas, etc., em revistas, jornais, fanzines e suplementos literários de todo tipo. Dá para ter uma idéia aproximada do que se publica. Eu diria que a tendência que predomina na prosa brasileira atual, tanto em termos de freqüência estatística quanto em termos do impacto relativo de cada obra, é o que chamo de Realismo Social e Psicológico. O Realismo Social reproduz, dentro dos quadros da ficção mimética (a ficção que imita a realidade), aquilo que os resenhadores costumam chamar de “amplos painéis históricos e sociais”, ambientes urbanos ou rurais reconstituídos com intenções de verossimilhança dramática e fidelidade documental. São obras que, bem ou mal, retratam o Brasil. Os mestres dessa corrente ainda são Jorge Amado, Érico Veríssimo, Graciliano, Rubem Fonseca, etc.

O Realismo Psicológico nos dá, em vez desses amplos painéis, retratos em close-up de um indivíduo ou um grupo de indivíduos. Um casal, uma família, um vilarejo, um ambiente de trabalho... Embora tais histórias também lidem com ambientes verossímeis, este fica em segundo plano, descrito em traços rápidos, porque serve apenas de fundo para o que os autores de fato pretendem: descrevem a mente, as emoções, as metamorfoses íntimas dos seus personagens. São obras que retratam os brasileiros. Os pontos de referência são Clarice Lispector, Machado de Assis, etc.

Claro que há obras em que estas duas visões se fundem. Claro que há exceções: temos livros absurdistas, romances fantásticos ou oníricos, alegorias e sátiras, prosa surrealista ou de nonsense, prosa do tipo palavra-puxa-palavra... Mas do meu ponto de vista o que predomina são as duas tendências acima. A maioria da prosa brasileira atual, pelo que sei, trabalha firmemente dentro dos caminhos abertos pelo romance ocidental (Europa e EUA) dos últimos 100 anos, inclusive em seus extremos mais experimentais e “pós-modernos”.

1438) “O fim do sem fim” (23.10.2007)


Revi algumas semanas atrás, no Rio, este documentário dirigido a seis mãos por Lucas Bambozzi, Beto Magalhães e Cao Guimarães. No “Almanakito” distribuído pela jornalista Maria do Rosário fico sabendo que este era o filme brasileiro menos visto entre todos que estavam em cartaz no mês de outubro. O líder de público era O primo Basílio com 753 mil espectadores, em números redondos. Em segundo lugar vinha Turma da Mônica, com 513 mil. Em terceiro Ó-paí-ó, com 383 mil. Pois O fim do sem fim segurava a lanterna, tendo sido visto por apenas 970 pessoas.

É engraçado que tão poucos queiram assisti-lo, porque é um dos melhores filmes que vi nos últimos anos. Vi-o duas vezes, uma no seu lançamento, em 2001, e outra agora, quando ele entrou para valer no circuito comercial; e pretendo revê-lo outras, se possível comprando o DVD. O tema do filme são as profissões que estão desaparecendo, e a sorte dos indivíduos que viviam em função delas. Algumas estão ligadas à religiosidade e à medicina popular, como o benzedor, a parteira, etc. Outras são profissões raras por sua própria natureza, como a do faroleiro. Outras são quase surrealistas: recarregador de isqueiros?! Outras parecem estar se mantendo vivas sabe Deus como: lanterninha de cinema, calígrafo, engraxate, fotógrafo lambe-lambe... E por aí vai.

Claro que tem cordelistas no meio, os cultores desta Grande Arte cuja morte já foi anunciada tantas vezes. Há cenas impagáveis, como a de um poeta cujo celular toca no meio da entrevista, ele atende e diz: “Tô por aqui... mentindo um tiquinho pros jornalistas”. E outro que é uma mistura de poeta, profeta apocalíptico, astrólogo e logomante, e que dispara sem cessar uma enxurrada de visões, raciocínios abstrusos e vocabulário surrealista.

Existem pelo mundo entidades chamadas (não exatamente assim) o Museu da Tecnologia Obsoleta, o Mostruário das Ciências Desaparecidas, o Memorial de Usos e Costumes Extintos. Eles preservam o lado murcho, o lado ressequido e atrofiado do avanço da Ciência. O fim do sem fim é como um filme que ao mostrar um edifício não mostrasse sua fachada, seus jardins, seus amplos salões, suas paredes ornamentadas, e corresse sua câmara pelos desvãos, pela parte de trás dos móveis, pela parte de baixo das escadas, por baixo das mesas e das camas, em todos os lugares para onde são varridos os detritos ou empurrados os objetos velhos, quebrados, com os quais ninguém sabe mais o que fazer. É um filme sobre o anacrônico, o obsoleto, sobre atividades humanas que têm existência meramente residual, se confrontadas com o mundo da cultura de massas que molda nossa concepção de realidade. Profissões que, ainda assim, sobrevivem, teimosamente, porque exprimem algo que fez sentido e continua a fazê-lo, mesmo que não tenha a mesma importância social que um dia teve. É um filme medularmente brasileiro, e que também poderia ter sido feito na Bulgária, na Índia, no Japão.

1437) Chão de giz (21.10.2007)


(o gigante de Cerne Abbas)

O título desta canção de Zé Ramalho sempre me lembrou as figuras misteriosas cujas fotografias vi pela primeira vez num livro intitulado O Mundo Misterioso de Arthur C. Clarke, em que o escritor inglês comenta fatos misteriosos e extraordinários como as aparições de OVNIs, do Monstro do Lago Ness, do Abominável Homem das Neves e assim por diante. Misturados a estas lendas estão alguns fatos curiosos mas sem mistério algum, a não ser o mistério histórico de quem os fez, como, e por quê. São aquelas inscrições vastas feitas no chão, às vezes com centenas de metros de comprimento, e que só podem ser vistas por inteiro por alguém que sobrevoe a região. Este detalhe levou especuladores como Erich von Daniken e outros a sugerir que tais figuras na paisagem seriam uma tentativa de comunicação com extraterrestres. Acho mais simples supor que os caras que fizeram as inscrições acreditavam que seu Deus ou seus deuses estavam no céu, e era a eles que os desenhos se dirigiam. Para imaginar que as divindades habitam o céu não é preciso ter feito contato com alienígenas, basta ter visto um céu estrelado à noite.

Algumas dessas imagens podem ser vistas em: http://www.youtube.com/watch?v=-7pJeHY-fLI. É um passeio virtual por imagens de satélite que mostram desde as Linhas de Nazca, no Peru, até um logotipo da Coca-Cola gravado no chão de um deserto chileno. No meio delas, aparecem as imagens do “chão de giz”, todas na Inglaterra. Dou-lhes este nome porque elas foram feitas em regiões onde o solo, a certa profundidade, é feito de material calcáreo e muito branco. Basta escavar e deixar à mostra uma certa extensão daquela camada, e é possível fazer desenhos de grande extensão em que as linhas brancas se destacam vividamente de encontro ao verde da vegetação rasteira. Por outro lado, requerem manutenção. Depois de prontas, é preciso que todo ano alguém fique limpando o local e evitando que o mato recubra a área exposta. Muitas figuras semelhantes já devem ter se perdido porque ninguém cuidou delas.

As figuras mais famosas são o Cavalo Branco de Uffington, o Homem Grande de Wilmington, e o Gigante de Cerne Abbas, o qual deve ter causado certo desconforto aos extraterrestres mais puritanos, por ser a imagem de um guerreiro nu com, digamos, a arma em riste. Há um saite com fotos de figuras assim, preservadas ou parcialmente desaparecidas, em: http://www.hows.org.uk/personal/hillfigs/. Obras assim nos comovem por terem sido feitas por indivíduos que nunca as viram por inteiro. Como os pedreiros das igrejas medievais, que nunca as viram prontas, eles trabalhavam tendo em mente uma imagem ideal, que era sua única inspiração e sua única fruição. Por incrível que pareça, o ser humano gosta disto. Gosta de trabalhar por algo que não desfrutará no futuro, seja porque a execução da obra ultrapassa seu tempo de vida, seja porque o formato final dela será inacessível à sua visão.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

1436) A invenção do silêncio (20.10.2007)




O grande Robert Bresson dizia que o cinema sonoro inventou o silêncio. Este aparente paradoxo tem a ver com o seu oposto simétrico: o fato de que o cinema mudo era obrigado a inventar (pelo uso criativo da imagem) algo de que não dispunha: o som. 

Vemos um homem aproximar-se da porta de uma casa e bater. Corta para uma sala onde uma mulher está costurando, de cabeça baixa, e de repente se vira, olhando para a porta. O som ouvido por ela e não ouvido por nós brota da simples justaposição dessas imagens. 

Um homem armado persegue outro numa floresta. O fugitivo tropeça e cai. O perseguidor leva o fuzil ao ombro e aponta. Corta para uma árvore cheia de pássaros pousados: de repente, os pássaros levantam vôo, todos ao mesmo tempo.

O cinema mudo era cheio desses truquezinhos charmosos para sugerir sons que tinham função na narrativa mas era impossível mostrar, pela limitação técnica do período. Notem este detalhe: “tinham função”. Os sons banais, sem função narrativa ou dramática, não precisavam ser sugeridos. 

Há um teórico do cinema, o grande Rudolf Arnheim, para quem o Cinema é uma grande arte devido justamente às suas limitações. A imagem é retangular, não pode mostrar tudo; é em preto-e-branco, não pode mostrar as cores; vê apenas o que a lente capta, não pode ver além ou aquém. 

Não podendo mostrar certas coisas, o filme é forçado a sugeri-las, o que estimulou a imaginação tanto dos diretores quanto da platéia, e gerou uma nova linguagem.

Quando Bresson diz que o cinema sonoro inventou o silêncio é porque o silêncio, que até 1928-1930 era uma fatalidade técnica, passou a ser uma opção criativa. 

O surgimento do cinema sonoro trouxe uma barulheira insuportável para dentro dos filmes, contra a qual grandes cineastas (como Chaplin) se revoltaram. Algo parecido ocorre hoje, com a sofisticação do Dolby Stereo, das técnicas de gravação e de edição sonora. As possibilidades de elaboração do som são tantas que os diretores se esquecem de elaborar o silêncio. 

Luís Buñuel queixava-se que na maioria dos filmes ninguém podia pedir uma xícara de café sem que uma orquestra ressoasse: “tchan-tchan-tchan-tchaaaan!...” Surdo, foi um dos cineastas que melhor usaram o som como linguagem.

Nos anos 1970, em Salvador, vi no bairro do Canela um muro branco, onde alguém acabou pichando com spray: “Branco pra mim, silêncio pro músico”. O silêncio deve ser o fundo branco contra o qual, num filme, os sons necessários podem ser ouvidos. 

Existe uma concepção arrevesada de realismo que nos obriga a ver uma cena de rua em que o diretor se esmerou em amontoar todos os sons ouvidos naquela rua real. Na vida, filtramos esses sons automaticamente. Num filme não podemos fazer a mesma coisa, e o resultado é uma balbúrdia que nos atordoa e nos impede de ver direito a imagem. 

O cinema de hoje precisa reinventar o silêncio, para poder dizer alguma coisa.






1435) Títulos (19.10.2007)


Na literatura de gênero, as obras de um autor valem mais pelo seu conjunto do que por cada uma, isoladamente. O autor erudito (chamemos assim) procura fazer de cada obra uma entidade autônoma; o autor popular vincula suas obras umas às outras, obrigando o leitor a ver nelas um “continuum”. Uma das maneiras de conseguir isto é através dos títulos. Vendo o título de um livro sabemos imediatamente quem o escreveu e a que série pertence, mesmo antes de conferir o nome do autor.

O modo mais óbvio é repetir no título o nome do protagonista da série. Truque dos antigos folhetins: Os Pardaillans... Pardaillan e Fausta... O filho de Pardaillan... O fim de Pardaillan...” Vejam o caso da bem-sucedida J. K. Rowling, cujos livros sempre se intitulam Harry Potter e...”, ferrando em brasa a memória, não dos leitores, porque a destes não é preciso, mas a dos descuidados livreiros, distribuidores e balconistas.

Essa padronização dá ao leitor aquela agradável expectativa de estar adquirindo “more of the same”, “um pouco mais daquilo mesmo”. A literatura de gênero promete a repetição de uma experiência estética, com um mínimo de variação e uma larga base de familiaridade. Os livros de Edward S. Aarons sobre Sam Durell, um agente da CIA, têm todos este formato de título: Missão Budapeste, Missão Stella Marni, Missão Lili Lamaris, Missão Ankara... Não vou enumerar todos, são mais de 40 livros.

Em vez da repetição de nomes, mais sutil é a repetição de estrutura. Vários romances policiais de Ellery Queen têm um esquema de títulos que sempre achei perfeito: O mistério da laranja chinesa, O mistério do sapato holandês, O mistério da cruz egípcia, O mistério do xale espanhol... Já as aventuras tribunalícias de Perry Mason, escritas por Erle Stanley Gardner, têm um esquema semelhante, mas com uma repetição de iniciais que se perde na tradução: The case of the black-eyed blonde, The case of the spurious spinster, The case of the grinning gorilla...

Carter Brown é autor de uma série de livros com o detetive Al Wheeler, histórias divertidas e com uma dosezinha de sacanagem inesquecível para quem tem quinze anos. Seus títulos são inconfundíveis: The Temptress, The Brazen, The Stripper, The Tigress... Era algo tão marcante que quando eu vi uma edição de The Tempest, de Shakespeare, estendi a mão para pegar na estante, equivocado.

Continuidade, seqüência, mera expansão de um universo já conhecido: é isto que o título do romance popular promete ao leitor. Não é tão diferente assim do que ocorre no “romance literário”. Quando um escritor como Campos de Carvalho intitula seus livros, existe uma continuidade subterrânea, de espírito, entre seus títulos. Mas é preciso muita sutileza ao leitor para perceber que A Lua vem da Ásia, Vaca de Nariz Sutil, A Chuva Imóvel e O Púcaro Búlgaro não apenas são do mesmo autor, mas são como que um único grande romance em quatro capítulos.

1434) A ponta do iceberg (18.10.2007)


Eu estava batendo papo com a turma no apartamento de um amigo. Já era de madrugada, a cerveja tinha acabado, e resolvi tomar um uísque de saideira. Fui à mesinha, botei no copo três dedos daquilo que alguns romancistas policiais chamam de “líquido ambarino”, pincei do baldinho uma pedra de gelo e voltei para minha poltrona. Comecei a girar o gelo com o dedo, para derretê-lo.

O gelo emergia parcialmente do uísque, sempre o mesmo tanto, qualquer que fosse a posição em que eu o colocasse com o dedo. Lembrei de ter lido em alguma revista popular de ciência que uma pedra de gelo emerge do líquido sempre 8% de seu volume total; isto se aplica desde o gelo na bebida até um iceberg no oceano. Portanto, é um erro dizer coisas como “...são apenas dez por cento, é a ponta do iceberg...” Não são dez: são oito, porque (parece) é esta a diferença de densidade entre a água líquida e a água congelada.

Sim, pensei, dando um gole, mas qual é a diferença de densidade entre o uísque e a água congelada? O uísque tem partículas de cevada, sei lá do que mais, e isso deve alterar a proporção. Além do mais, nem toda água transformada em cubos de gelo é igual. Pode ser água da torneira, água mineral com ou sem gás... Seria necessário preparar uma experiência para cruzar vários tipos de líquido (A, B, C, D...) e vários tipos de água congelada (1, 2, 3, 4...). Cruzaríamos o primeiro líquido com os diversos tipos de gelo (A1, A2, A3, A4...); depois faríamos o mesmo com B, e assim por diante.

Dei outro gole e fiquei pensando: e como será que tentaríamos calcular esses 8 por cento? No olhômetro? Não é possível. Teríamos primeiro que fabricar caçambas que produzissem pedras de gelo de tamanho exato (digamos 3 centímetros cúbicos) e padronizado. Colocada cada pedrinha no líquido (recipientes idênticos, preenchidos sempre até uma linhazinha horizontal milimétrica) fotografaríamos, talvez, o trecho que emerge do líquido e então talvez fosse possível ter um programa de computador que fizesse uma medição tridimensional daquilo, para nos dizer se de fato corresponde a 8 por cento dos 3 centímetros cúbicos. Também poderíamos fabricar pedras de gelo de diferentes formatos, em diferentes caçambas (desde que todas tivessem 3 centímetros cúbicos), para demonstrar que o formato não influi, é somente o volume que conta.

E todo este processo poderia ser transposto para a “escala macro”, como dizem os estatísticos, avaliando o tamanho de um iceberg no oceano. O que sugere um novo problema: qual a diferença de proporção exposta de um iceberg na água salgada e de um iceberg na água doce (um lago, digamos)? E me veio à mente uma escultura conceitual, em gelo: um sujeito gordo como Buda, com o rosto voltado para cima, como que tentando respirar. Seria este rosto a parte que emergiria, quando a escultura fosse colocada na água.

Então, meus amigos perguntaram em que eu estava pensando, e eu disse: “Nada de mais. Ciência, arte... o de sempre”.