quarta-feira, 5 de agosto de 2009

1170) A morte quântica de James Kim (13.12.2006)


(James Kim)

Suponhamos, leitor, que você está viajando de carro, com sua esposa e duas filhas pequenas. A certa altura, você pega uma entrada errada, sem perceber, e segue em frente, certo de que chegará em algumas horas à cidade para onde vai. Mas você agora está na verdade penetrando num Parque Nacional, uma reserva ecológica pouco habitada. Quando percebe que se perdeu, seus celulares já estão fora de área. Você faz meia-volta para procurar a rodovia principal, mas (“Ih, devia ter abastecido naquele posto!”) sua gasolina está acabando. E começa a nevar. No carro não há comida alguma além de papinhas de bebê, biscoitos e água mineral. Nenhuma comunicação com o mundo. Você estaciona num local aberto de onde possa ser visto por um possível helicóptero de busca; mas como dar o alarme? Passa-se um dia; passam-se dois, três. O frio é intenso, mesmo dentro do carro. Sua mulher e suas filhas olham para você, esperando uma decisão. Você continua esperando, ou deixa-as ali e parte em busca de socorro?

Este é, cientificamente, um ponto de decisão, de mutação, de inflexão. Um momento em que qualquer decisão tomada conduzirá a um desfecho diferente. É um momento quântico no sentido de que algo já começou a acontecer, mas você não sabe o quê. Os dados de que dispõe são insuficientes. Quanto durará a nevasca? Alguém já deu o alarme? Queimar os pneus, de um em um, lhes dará calor pelo tempo necessário? Em que direção, e a que distância, fica o socorro mais próximo? Em suma: é mais certo esperar, ou ir à luta?

Foi isto que aconteceu semanas atrás com o jornalista James Kim, que se perdeu num parque do Oregon. Kim deixou a família no carro e foi em busca de socorro. Pouco tempo depois, o carro foi encontrado pelas equipes de busca e a família foi salva. O corpo de Kim foi encontrado dias mais tarde, junto ao riacho cujo curso ele estava acompanhando, esperando achar alguém. Kim morreu de hipotermia a cerca de uma milha de distância de um abrigo onde teria podido encontrar calor e comida. É fácil agora, depois que se sabe o que aconteceu (depois que a função colapsou) dizer que a escolha de Kim foi errada. Talvez ele tenha cedido àquele impulso (ao qual imagino que eu talvez cedesse também) de pensar: “Ora que diabo, estamos parados aqui há dias e nada acontece! Preciso fazer alguma coisa!” É uma decisão sensata, emocionalmente justificada e racionalmente aceitável. Mas sabemos agora que foi a decisão errada, e que o certo seria ter paciência e esperar mais um pouco.

Até mesmo aqui, no universo macro, tão distante do mundo subatômico, vemo-nos às vezes no interior de uma função dinâmica, complexa, que está se encaminhando para um resultado que não podemos prever mas na qual devemos interferir com a observação A ou B. E o modo como escolhemos conferir o resultado final sempre influencia, de um modo ou de outro, o que acontecerá (e que, de certa maneira, já tinha começado a acontecer).

quarta-feira, 22 de julho de 2009

1169) Leia Fulano (12.12.2006)





(biblioteca da Universidade de Coimbra)

Esta é uma das frases mais úteis e mais perigosas que a gente escuta na vida, principalmente quando é jovem. 

A gente está discutindo um assunto qualquer e aí um sujeito mais velho e mais bem informado diz: “Ah, você nunca leu Fulano de Tal? Precisa ler. Tem tudo a ver com isso que você está dizendo”. 

Aluno relapso no colégio, sempre fui bom estudante fora dele, e quando ouvia algo assim corria para a biblioteca mais próxima. Claro que esse procedimento me trouxe revelações e decepções em igual medida. Recomendar autores é sempre um tiro no escuro. A gente nunca pode garantir que a reação química necessária vai acontecer – mas afinal, não custa nada.

Recomendações ao contrário (“Não leia!”) também têm peso, e às vezes podem nos trazer prejuízos. Quando eu tinha 21 anos, conversando sobre psicologia com meu guru João Bigode, ele se saiu com esta pérola: “Politicamente, Freud é o centro na psicologia, sendo que Reich é a esquerda e Jung a direita”. 

Não sei se João ainda assinaria embaixo desta fórmula tão audaciosa, mas ela despertou meu interesse por Wilhelm Reich, que aliás nunca consegui ler, devido ao seu estilo invulnerável. Foram precisos quase dez anos para que eu aceitasse abrir um livro de Jung, e depois que comecei não parei mais. Será que sou de direita?

O problema das recomendações é que elas são feitas na direção errada. Devemos recomendar aos amigos o extremo oposto do que eles são, para injetar um pouco de equilíbrio em suas vidas. 

Se você tem um amigo que é tímido e moralista, não lhe deve aconselhar Jacques Maritain, e sim Henry Miller. Se você conhece uma moça pragmática, dedicada aos aspectos políticos-ideológicos da vida, nada de Simone de Beauvoir; dê-lhe as contemplativas como Cecília Meireles ou Emily Dickinson. Ajuda a ampliar-nos os horizontes, a não afundar na mesmice.

“Leia Fulano de Tal!” Nunca vamos saber se aquilo vai ser útil ao nosso interlocutor. 

Tenho amigos que leram Charles Bukowski e levaram uma década para recompor o fígado e retomar uma vida normal. O contato precoce com os estruturalistas franceses é decerto responsável pela epidemia de opacidade que se alastrou na vida acadêmica brasileira nas últimas décadas. 

Alguns autores de estilo marcante grudam-se a nossa mente e é quase impossível livrar-nos deles: Fernando Pessoa e Clarice Lispector são dois exemplos notórios, que retornam para malassombrar as novas gerações, de dez em dez anos. Quando vejo alguém invadido por estes espíritos, recomendo doses maciças de Brecht e Hemingway.

Temos que escolher autores e livros baseados na confiança no poder terapêutico do Acaso, nos relâmpagos instintivos que nos sussurram palpites, e nas cadeias de associações de idéias que são a química profunda da Cultura. Portanto, não me peçam recomendações. O remédio que cura meus achaques pode lhes provocar crise alérgica. O acepipe que me deleita o paladar pode ser-lhes um bate-entope intragável.


1168) A arte de ler nuvens (10.12.2006)




A natureza da imagem cinematográfica é uma coisa engraçada. O que é aquilo? Uma superfície branca, boa de reflexo, chamada tela. Imagens semi-transparentes são projetadas ali para que as vejamos de uma certa distância. E essas imagens conseguem criar, assim como as camadas de tinta de uma pintura convencional, a ilusão de profundidade, de espaço, da presença de coisas. E da passagem do tempo.

O crítico Andrew Sarris resume assim o cinema: “A grande arte do cinema consiste em relacionar o que é mostrado com o que não é mostrado, e em definir essências a partir de superfícies”. 

Neste aspecto, o estudo do cinema não se distingue muito do estudo da fotografia. Ensaios de pessoas como Roland Barthes (A Câmara Clara) e Susan Sontag (Sobre Fotografia) mostram o quanto é possível a mente do sujeito viajar pelos quatro cantos do mundo e pelos labirintos da psicologia e da cultura tendo como ponto de partida apenas algumas manchas pretas e brancas sobre um pedaço de papel. Superfícies.

Ver cinema ou fotografia exige algo da argúcia de Sherlock Holmes. Holmes olha para um cliente desconhecido que acabou de entrar em seu apartamento e diz: “Boa tarde, Sr. Smith, o que o traz aqui? Nada sei sobre o sr., a não ser que é maçom, canhoto, ex-oficial da Marinha, viúvo, tem um casal de filhos, e que a janela do seu quarto dá para o nascente”. 

A meia página seguinte é dedicada a justificar estas observações a partir dos indícios de vestuário, aparência, pacotes que o Sr. Smith carrega, etc. Este espírito dedutivo está presente em parte no espectador de cinema, com o qual o diretor estabelece um diálogo de pistas e indicações.

Percebemos melhor esses processo quando o vemos diluído em clichê. Um sujeito apressado fala ao telefone. Sai, bate a porta. Zoom da câmara sobre um chaveiro esquecido sobre a mesa. O espectador entende que o cara bateu a porta por fora e não vai conseguir entrar. 

Recados narrativos são dados o tempo inteiro pelo filme, e o espectador, desde criança, vai aprendendo a somar dois mais dois.

Mas o que dizer dos recados não-narrativos, das imagens que o diretor filma porque o impressionam sem que ele saiba por quê? No cinemão industrial isso não é muito freqüente, porque os roteiros passam por uma bateria de gente que dá palpite, faz perguntas... Imagens duvidosas são sumariamente cortadas: “Se você não sabe por que ela está ali, como espera que o público adivinhe?” 

E no entanto filmar cinema devia ser algo como filmar nuvens em movimento, acompanhando o modo como elas de transformam , e tentar influir nessas transformações. Ver cinema seria uma arte parecida com a arte de ver nuvens, achá-las parecidas com uma letra, com um castelo, com uma barba. 

Como acontece com certos filmes de Raul Ruiz ou de David Lynch, que parecem uma coleção de imagens que o diretor trouxe para nos mostrar: “Eu achei isto aqui mas não sei o que é. O que você acha?”






1167) O poeta de cinco anos (9.12.2006)



Um garoto carioca entrou em 2003 para o “Livro Guiness dos Recordes” como o mais jovem escritor editado em todo o mundo. Seu nome é Matheus de Souza Barra Teixeira, mora no Rio de Janeiro, e sua façanha foi publicar o livro “A Ilha dos Dragões” aos cinco anos de idade, quando ainda não sabia ler nem escrever. O esperto Matheus contou a história em voz alta enquanto tomava banho. Sua mãe gravou tudo, pôs no papel e mandou para a editora.

Ah, ia me esquecendo: Matheus é bisneto da poetisa Cecília Meireles, e sua mãe, Vânia Barra, trabalha como agente literária. O que talvez explique tanto o talento quanto a publicação. No caso de Matheus, existe a consciência de uma linhagem familiar, a compreensível expectativa de que algo das habilidades da bisavó se manifestem na criança. E existe a convicção de que, no momento em que isto aconteça, a imprensa terá um ótimo “gancho” para noticiar o fato.

Não li o livro do menino e não estou aqui para botar defeito, até porque já vi histórias ótimas criadas de improviso por garotos dessa idade. O que não vejo com bons olhos é essa besteira de “entrar para o Guiness”. Pelo menos o menino o fez através de uma atividade interessante, e não com uma idiotice como “o cara que comeu mais repolhos pendurado de cabeça para baixo” ou “a mulher que repetiu a mesma palavra 100 mil vezes sem parar para dormir ou para comer”. O Guiness era de início um divertido registro de coisas fora do comum. Hoje em dia virou um manual de estímulo à insensatez quantitativa.

O caso de Matheus lembra a francesa Minou Drouet, que aos sete anos publicou um livro de versos. Os críticos se dividiram. Uns anunciavam que havia surgido “um Mozart da poesia”. Outros diziam que os poemas não eram escritos pela garota, e sim por sua mãe. Outros, por fim, diziam apenas que os poemas não eram bons. Jean Cocteau, com sua ironia peculiar, afirmou que “todas as crianças são gênios, menos Minou Drouet”.

Temos crianças-prodígio na música, como Mozart e tantos outros; também na matemática, como Gauss e tantos outros. E nenhum na literatura. Fiquei agora uns quinze minutos remexendo nas poeiras da memória em busca de uma criança que publicou um livro notável com menos de dez anos, e só me veio à cabeça Minou Drouet. Será que escrever um romance é mais difícil do que redescobrir sozinho as proposições geométricas de Euclides, como fez Pascal na infância? Talvez a matemática seja um sistema ordenado e infalível no qual basta aplicar as regras e ousar imaginar variações. Músicos e matemáticos têm, ao fim e ao cabo, o mesmo tipo de talento, que uns manifestam em forma de combinações sonoras e os outros em forma de cálculos abstratos. Mas um romance requer algo mais. Requer conhecimento em-360-graus da vida e do mundo, requer estrada, requer experiência, requer conhecimento de como as pessoas são e pensam – e isso uma criança não tem como compreender.

1166) As doenças do espírito (8.12.2006)


(Dogville)

Li em algum lugar que a Arte é um remédio contra os males do espírito, um bálsamo que corrige nossa visão do mundo e nos reconcilia com a harmonia do Universo. Talvez esta visão um tanto idealista, dos tempos da Antiguidade, tenha dado origem à idéia moderna de que cabe à obra de arte “mudar o mundo”, corrigir problemas sociais, etc. Praticamente todo o cinema engajado tem esta ansiedade: a de ser um remédio, propor uma solução, deflagrar um processo de cura. Os clássicos do cinema político partem todos desta intenção: La hora de los hornos de Solanas (1968), A batalha da Argélia de Gillo Pontecorvo (1966), La vie est à nous de Jean Renoir (1936), Deus e o diabo de Glauber (1964), Z de Costa-Gavras (1969), A chinesa de Godard (1967), The Day After de Nicholas Meyer (1983), Fahrenheit 9/11 de Michael Moore...

Na verdade, por mais que alguns destes filmes tentem ser uma resposta clara e nítida às questões políticas da época, existe neles muito mais um teor de diagnóstico do que propriamente de remédio. Por mais que o cinema político tente oferecer soluções, predomina nele aquela atitude de “não sei o que quero, mas sei o que não quero”. E na verdade é muito mais fácil mostrar os erros e as barbaridades do capitalismo selvagem e das ditaduras militares do que fazer uma proposta nítida, viável, de uma sociedade que substitua este sistema e que resolva de maneira satisfatória os problemas que ele não resolveu.

O filme político funciona muito mais como diagnóstico do que como remédio, e na verdade funciona mais como sintoma do que como diagnóstico. Claro que numa situação de crise todas as manifestações externas, sem exceção, valem como sintoma, mas temos de reconhecer que algumas obras, mais do que outras, fazem aflorar o espírito do tempo, no que este tem de melhor ou pior, de mais urgente e irreprimível, de mais característico daquele instante. Para a leitura sagaz e sherlockiana de um crítico marxista-estruturalista francês, um filme de Xuxa ou de Walt Disney é um sintoma político tão revelador quanto um filme de Godard; mas mesmo sem ir a este extremo de clarividência, vamos admitir que filmes marcantes são aqueles em que as questões cruciais de um momento vêem-se refletidas pela primeira vez, ou de uma maneira inédita, reveladora.

O filme político, aquele que tem uma agenda ideológica clara, pode ser um sintoma assim, mas não necessariamente, porque é um filme que já nasce numa atitude de defesa, de prever questionamentos e antecipar-se a eles com argumentos. Grande filmes políticos como sintomas de uma época geralmente são feitos por cineastas que estão mergulhados nas contradições dessa época, que agem como cúmplices dela, e ao mesmo tempo a denunciam. Não são uma cirurgia a laser, invasiva, curadora; são uma chapa de Raios-X. Um notável filme político atual é Dogville de Lars von Trier, em cartaz no Cine Banguê.

1165) O Mostrador de Sombras (7.12.2006)





Existe algo de inesgotavelmente fascinante no cinema fantástico em preto-e-branco feito entre as décadas de 1910 e 1920. Os teóricos do cinema antigo estavam certos quando diziam que o cinema em preto-e-branco era mais verdadeiro do que o cinema a cores. 

“Como?!”, perguntarão os Observacionistas, aquele que se limitam a constatar o imediato; “o mundo é colorido!” Para estes, o cinema preto-e-branco é menos realista porque é um Aquém, é algo que não conseguiu chegar a um ponto qualquer; ficou faltando. Eu poderia inventar um grupo oposto, os Megafísicos, para os quais o cinema mudo era um Mais Além, uma forma de ir direto à Essência das Coisas, desprezando (por uma bendita limitação técnica) características secundárias como o Som e a Cor.

O P&B é mais realista porque é mais completo: além de mostrar “o mundo de fora” transmite melhor o caráter meio onírico, meio alucinatório da experiência cinematográfica. 

Vi há pouco uma citação de D. G. Winston onde ele se refere a esta experiência como equivalente a pensamentos “que não surgem desde logo em nossa mente em forma de palavras, e que elas, portanto, não podem expressar adequadamente; pensamentos que é mais fácil para nós associar à cor, à composição e ao sentimento do que à sintaxe e à lógica”. Claro que onde ele diz “cor” podemos entender também as infinitas nuances de cinza do filme em P&B. 

Em todo caso, o crítico aponta para algo que acho importante: o caráter não-verbal da lógica cinematográfica, que muitas vezes deixamos de perceber porque a imensa maioria dos filmes que vemos é de natureza narrativa, e portanto atrelados à lógica verbal narrativa. Isso nos faz esquecer que as imagens podem se associar não pela lógica, mas pela combinação meio aleatória de tonalidades, de formas luminosas ou de movimentos. Uma narrativa abstrata feita com imagens figurativas, por assim dizer.

Já em 1916, o teórico Hugo Münsterberg dizia algo parecido: 

“O drama cinematográfico nos conta uma história humana suplantando as formas do mundo exterior, ou seja, espaço, tempo e causalidade, e ajustando os acontecimentos às formas do mundo interior, ou seja, atenção, memória, imaginação e emoção”. 

O diretor sente-se à vontade para romper com a lógica de espaço, tempo e causalidade, se isto servir à sua imaginação, ou para estabelecer uma relação de memória, e assim por diante.

A imagem cinematográfica fascinou estes teóricos dos primórdios do cinema pela fluidez com que se deixava manipular, seja no interior do quadro (pela luz, enquadramento, movimento dos atores ou da câmara, etc.) seja no próprio transcurso da sucessão de planos, através da montagem. 

Talvez somente hoje, com a extrema maleabilidade que a informação digital nos proporciona, estejamos vivendo um momento tão rico de possibilidades para a manipulação de imagens quanto o momento que foi vivido nos anos 1910-1920 por Griffith, Eisenstein, Dreyer, Fritz Lang e outros mestres do Primeiro Cinema.






sábado, 18 de julho de 2009

1164) Vende-se o Iraque (6.12.2006)




Em 2003, os EUA tiveram uma vitória militar surpreendentemente rápida sobre o Iraque. Ninguém, inclusive eu, achava que fosse ser fácil. Depois vi na TV a cabo uma entrevista feita antes da guerra com um ex-oficial iraquiano, adversário de Saddam Hussein, que aconselhava: “Façam uma operação rápida, vão direto até Bagdá. Se vocês entrarem em Bagdá, o regime cai, porque ninguém faz questão de sustentar Saddam”. O recém-defenestrado Donald Rumsfeld ouviu este conselho e o seguiu à risca. Deu certo, do ponto de vista militar. O problema dos EUA é que eles sabem como derrubar um regime, mas não como pacificar um país, assim como os nossos partidos políticos são ótimos para ganhar eleições mas não há um só que saiba governar.

A situação se deteriora cada vez mais, e todos os dias vaza para a imprensa americana mais um documento secreto mostrando a enormidade dos erros cometidos. Os EUA são como aqueles PMs que são chamados pelos vizinhos para apartar uma briga de casal, aí entram na casa, dão uma surra na esposa, outra surra no marido, arrebentam a mobília, roubam todo o dinheiro, jogam no lixo o que tinha na geladeira, e vão embora disparando tiros pra todo lado.

A culpa é tos soldados? Um artigo recente de Elizabeth Palmer, da Rede CBS, diz: “É impressionante o quanto os soldados norte-americanos são humanos, com um forte senso do que é certo e do que é errado, e como estão mal preparados para aplicar estes conceitos em situações como a do Iraque, porque lhes falta o conhecimento histórico, geográfico e cultural. A imensa maioria deles é de homens decentes presos numa armadilha, e que ainda não entenderam o que está acontecendo historicamente, culturalmente e até fisicamente. Eles também são reféns de uma situação terrível.”

Um documentário recente de Robert Greenwald, Iraque à venda (http://iraqforsale.org/) explora o mundo nebuloso e sórdido das companhias a quem são terceirizados serviços para os soldados no Iraque. Serviços caríssimos e de péssima qualidade, chegando a colocar em risco a saúde e a vida dos militares, como se já não bastasse a guerra civil que eles têm de policiar. Na seção “Facts and Research” do saite é possível consultar documentos e reportagens sobre esse comércio escuso. São companhias como a famosa Halliburton, à qual o vice-presidente Dick Cheney é ligado, além da Blackwater (que o saite define como “um exército privado, de aluguel”), além da L3 Titan e da CACI (que forneceram tradutores e interrogadores para a prisão de Abu Ghraib).

Acho que o leitor se lembra daquele velho provérbio sertanejo de que “do boi só se perde o grito”, porque todo o resto (carne, couro, chifre, o escambau) dá lucro. O Iraque é hoje o principal boi sendo esquartejado e vendido ainda vivo pelas companhias norte-americanas. E enquanto tiver uma “peínha” de couro para arrancar, os urubus não vão largar esse esqueleto.

1163) Leopoldo Lima (5.12.2006)



Conheci este livro na Bahia, nos anos 1970. Leopoldo Lima, de Ribeirão Preto (SP), é o que eu chamo de “artista fora-de-esquadro”, ou seja, um sujeito que não se encaixa em definições ou escolas. O pessoal que o admirava dizia ser um “maluco beleza” que fazia uns desenhos e xilogravuras estranhas, meio surrealistas. Diziam que o filho mais novo dele se chamava Ôi, ou melhor, esse era o nome provisório que lhe tinha sido dado até que ele crescesse e escolhesse um nome para si próprio. O livro tem como título: 729 o varal biográfico embananado, ou pelo menos é isto que está escrito na capa, junto ao nome do autor, tudo em caixa-baixa (letras minúsculas). O exemplar que tenho hoje (comprado no Sebo Cultural de Heriberto) tem uma dedicatória do autor, para um tal de “Célio”, com um desenho e a data de 1970. 729 é o número da casa onde o artista morava (ou mora) em Ribeirão Preto, como se percebe pelas numerosas fotos no início e no fim do livro.

Leopoldo Lima faz um tipo de xilogravura cheia de traços retos ou sinuosos onde nenhum trecho da imagem é deixado em branco; lembra muito o estilo de cortar do cordelista e gravador Abraão Batista. Algumas imagens são recorrentes: crianças escuras, magras, fantasmagóricas; casas labirínticas; árvores retorcidas. Algumas fotos do interior de sua casa dão a idéia de uma mente atormentada e criativa, mas ao mesmo tempo pensamos: “como é que uma família com crianças mora num lugar doido como este?”. Um quadro intitulado “eu e voce” mostra um infinito corredor de tábuas, e em primeiro plano um sapato de homem sobre um sapato de mulher.

O texto em si são 60 páginas de linhas corridas, sem pontuação, numa fonte em negrito e itálico (mas legível), sem dar muita atenção à presença do til e de outros acentos. É um monólogo interior mas sem pretensões literárias, e neste aspecto lembra um pouco outro livro excêntrico de outro autor fora-de-esquadro, o lendário José Américo II, ou Zé Américo da Camionete, que em 1976 publicou em Campina suas memórias sob o espantoso título de Uma vitória dentro de uma derrota que não tive. Esta derrota foi a vitória do meu livro. Leopoldo Lima enfileira memórias, divagações, comentários sobre seus quadros, filosofias de vida, tudo isto sem recorrer sequer a um misericordioso ponto-parágrafo. Lembra as Galáxias de Haroldo de Campos ou o Catatau de Leminski, com a diferença que estes dois tentavam fazer Literatura, e Leopoldo faz um jorro de lava fumegante brotando pelas comissuras da mente.

Diz ele à página 42: “com este negocio do pessoal passar as maos nos quadros fiz um de um homem bebado caiu sentado com os pes para a frente descalço e no lugar havia uma garrafa de bebida quebrada sangravalhe o pe entao coloquei um caco de vidro cortante onde machucou as pessoas passavam a mao para ver se era caco de vidro pois parecia muito e de fato era cortavam a mao e coloriam mais o quadro”. Cuidado com a Arte, ela morde.

1162) Quem nos ensinou a ler? (3.12.2006)




Perguntam-me com freqüência por que motivo a Paraíba tem uma tradição literária desproporcional ao seu tamanho ou à sua economia. Tudo que posso fazer são suposições em voz alta.

Penso que o Nordeste teve duas frentes de colonização: a do litoral e a do interior. A do litoral era a colonização oficial, feita de navio, de porto em porto, trazendo as autoridades do Brasil Colônia, do Brasil Reino, do Brasil Império, do Brasil República. A do interior se deu ao longo do Rio São Francisco, com bandeirantes, caçadores de índios, criadores de gado.

Beirando os numerosos rios dos sertões, os desbravadores criaram uma civilização rude, aguerrida, ascética, onde a presença do Estado (fosse em que século fosse) era nula.

Atrás deles, vinha a Igreja Católica, trazendo a alfabetização e a instrução. Esses pioneiros desconheciam a existência das Capitais. Nunca pediram nada a governo. Não vieram de navio, vieram por dentro, chupando imbu.

No Nordeste surgiram estas duas civilizações cujos primeiros choques políticos, econômicos e militares ocorreram no século 19, e cuja crise mais grave foi a Revolta de Princesa – e a Revolução de 30. Cearenses, baianos e pernambucanos talvez discordem, mas, paciência, esta coluna só tem 3 mil toques.

Canudos, Padre Cícero, Guerra de Doze, tudo isto são os grandes épicos do nosso faroeste da vida real, que não deve nada a John Ford ou Howard Hawks.

E por baixo disto tudo, silenciosamente, vinha o Livro.

Pensem, por exemplo, no que foi a explosão da Poesia Barroca em pleno sertão, com os poetas que criaram o Romanceiro Popular Nordestino a partir de 1850: Silvino Pirauá, Ugolino e Nicandro Nunes, Germano da Lagoa. Cantadores como Romano do Teixeira, capazes de compor décimas barrocas de improviso.

E os padres que fundavam colégios em lugares que só vieram ter prefeituras décadas depois. Colégios de onde meninos sertanejos saíam compondo sonetos e declinando em latim.

No livro Editora Globo, sobre esta casa editorial gaúcha, Elizabeth Torresini transcreve um documento de 1927 que diz:

“Há Estados também para os quais essa taxa de analphabetismo fica abaixo de 75,5%. É principal destes o Rio Grande do Sul, onde esse coeficiente é de 64,2% vindo depois Parahyba do Norte com 68,8%, e, depois, sucessivamente: Território do Acre e São Paulo com 70,2% cada um, Santa Catharina com 70,5, Pará 70,7, Mato Grosso 70,9, Paraná 71,8, Amazonas 73,4, Rio de Janeiro 75,3”. 

Foi neste Brasil desigual que surgiu o Romance Regionalista dos anos 1930.

Quando entramos em Campina, há uma placa orgulhosa da Pitu: “Esta é a terra de Clementino Procópio”. Outras cidades celebram seus filhos famosos, que saem na TV e figuram nas enciclopédias. Eu me orgulho do fato de minha cidade se orgulhar desse professor anônimo, que do Cajá em diante ninguém sabe quem foi. Campina deve a ele (e a todos que ele aqui simboliza) a grandeza que já teve um dia e que pode voltar a ter.






1161) Universos Comunicantes (2.12.2006)




Certamente há precursores mais remotos, mas ao que eu me lembre foi Balzac o primeiro romancista a tentar unificar todos os seus ciclos de romances como partes de uma única e gigantesca história. Li muito pouco da sua “Comédia Humana”, mas os livros do tradutor Paulo Rónai são ricos em referências a respeito desse trabalho incessante do autor, revisando livros antigos, substituindo e unificando nomes de personagens, para que um sujeito que é protagonista numa história tenha uma aparição breve como coadjuvante noutro livro de dez anos antes ou dez anos depois.

Todo autor gosta de, a certa altura, voltar atrás e dar uma mexidinha num livro antigo, para criar um portal, uma conexão entre ele e outro livro. Na reedição recente do Romance da Pedra do Reino, Ariano Suassuna resolveu assumir que dois figurantes de rápida aparição, os picarescos “Piolho” e “gordo Adauto” (que surgem no final do Folheto LXXVIII), são na verdade João Grilo e Chicó, a dupla do “Auto da Compadecida” – unificando, assim, as suas duas Taperoás.

Isaac Asimov também não resistiu. Nos anos 1980, ele já havia marcado sua presença no mundo da ficção científica com dois ciclos de histórias: o ciclo dos robôs, em que postulava a criação de robôs inteligentes e obedientes, e o ciclo da Fundação, onde ele contava a criação de duas Fundações científicas destinadas a preservar a ciência e salvar a galáxia de um ciclo de obscurantismo. Eram dois universos estanques, distantes no Tempo, sem relação entre si, mas Asimov, depois dos 60 anos, decidiu unificá-los. A dificuldade principal era o fato de que nas histórias da Fundação não existiam robôs, mas ele contornou o fato postulando a evolução dos robôs metálicos para andróides com aparência humana, de modo que muitos dos personagens “humanos” do futuro eram na realidade andróides.

Existe um movimento instintivo de nossa mente em busca dessa unidade, em busca da crença de que todas as histórias acontecem num universo só. Eu estava lendo uma crítica do filme House of Frankenstein de Erle C. Kenton (1944), onde se dá o famoso encontro entre o monstro de Frankenstein, o Conde Drácula e o Lobisomem. Estas tentativas de misturar vários universos são fascinantes pelas suas implicações de ordem psicanalítica e mitológica, embora em geral resultem em filmes grotescos. Mas o resenhador do filme observa a certa altura que a ressurreição de Drácula é contraditória, pois em Dracula’s Daughter de Lambert Hillyer (1936) o corpo do Conde havia sido cremado por sua filha.

Buscar continuidade entre esses produtos híbridos da cultura-de-massas é tão absurdo que deve corresponder a um instinto profundo de nossa mente, alguma coisa num nível neuronial. Para mim, o mais interessante é que essas histórias sejam estanques, e recomecem do zero a cada vez. Como os desenhos animados de South Park, em que o personagem Kenny morre em cada episódio e recomeça vivinho da silva no próximo, para morrer de novo.