quarta-feira, 17 de setembro de 2008

0552) O apóstrofo americano (25.12.2004)




Já falei aqui sobre os memes, os grãos de idéia ou de discurso que se instalam em nossa memória e passam a contaminar nosso pensamento, propagando-se para mentes alheias através da nossa fala, como se fossem vírus de computador (“Os memes”, 23.5.2003). 

Um subgrupo perigoso dessa categoria são os erros lingüísticos, que por alguma razão misteriosa parecem proliferar com muito mais facilidade do que os acertos. E dentre eles, o uso americanizado (e errôneo) do apóstrofo é um dos mais constrangedores. 

Peguem o carro e dêem uma volta. Em qualquer subúrbio de cidade brasileira existirá uma lanchonete chamada “Sanduíche´s”, ou um boteco simpático com o nome de “Mariângela Drink´s”, ou um motel chamado “Love Night´s”.

Meus amigos gramáticos explicariam isto melhor do que eu, mas posso resumir a questão dizendo que em inglês essa letra “S” precedida de um apóstrofo indica o caso genitivo ou possessivo. Assim, “Fred´s” significa “ de Fred” (incluindo as variantes possíveis: “algo que pertence a Fred”, “algo que se refere a Fred”, “algo que provém de Fred”, etc.). 

Também se usa para indicar a supressão de uma ou mais letras (como também ocorre no português), mas em geral é isto. 

O que ocorre é que o uso do apóstrofo em português é muitíssimo mais raro do que em inglês, e chega a ser mesmo um recurso sofisticado, coisa de literatos como Castro Alves que já começava um poema botando pra quebrar: “ ´Stamos em pleno mar...”

O brasileiro médio não é exposto às sofisticações da língua portuguesa, mas é expostíssimo às banalidades da língua inglesa, e nasce daí essa propensão a usar o apóstrofo simplesmente para adornar uma palavra no plural, para torná-la americanizada e mais chique. 

No exemplo inventado acima, “Mariângela Drink´s” leva a crer que aquele bar pertence a uma pessoa chamada Mariângela Drink. Para exprimir a provável intenção da proprietária, o certo seria dizer “Mariângela´s Drinks”.

O uso errôneo do apóstrofo é engraçado, mas mesmo certo ele se torna cômico quando aparece num contexto muito incongruente: “Mandacaru´s Artesanato” é uma coisa meio grotesca, parece um silicone fora do lugar, um enxerto de algo que não combina com o que tinha antes. 

O apóstrofo americano é patético quando revela a nossa fascinação abobalhada por tudo que nos venha dos EUA, por tudo que pareça conferir, pelos poderes mágicos do mero uso, um pouco de civilização, sofisticação, status social. 

Ele exprime também, por outro lado, a nossa adoração infantil pelas coisinhas bonitinhas cuja utilidade nos escapa, mas que nos seduzem pelo que têm de exótico e de “cheguei!”. Gostamos de apóstrofos do mesmo modo que gostamos de ípsilons e agás supérfluos, de piercings, de batoques enfiados no lábio ou na orelha, de dentes de ouro, de cílios postiços, de pega-rapaz na testa, de chaveiros com berloques, de fitas coloridas nas platinelas do pandeiro ou nas cravelhas da viola, de fazer rosca na ponta do bigode.




terça-feira, 16 de setembro de 2008

0551) O Natal de Raymond Chandler (24.12.2004)




O Natal se aproxima, com seu problemático coquetel de confraternizações e melancolias. Depois de uma certa idade, é o Natal que se transforma em nosso verdadeiro Dia de Finados. Por mais que a gente passe assobiando pelo tumular 2 de novembro, quando chega o Natal não tem remédio, a casa (ou pelo menos a memória) se enche de fantasmas. Estavam dormindo em paz nos oceanos do oblívio e lá vai a nossa saudade masoquista a despertá-los, trazê-los de volta à sala de visitas, para o milésimo flash-back dos tempos-felizes-que-não-voltam-mais.

Certa vez comentei aqui (“Uísque: cimento”, 31.7.2003) uma frase de Raymond Chandler que é talvez uma das mais cruéis que já se escreveram sobre esta data: “O Natal se aproxima, trazendo consigo todos os seus horrores ancestrais.” Chandler bem que tinha seus motivos para se arrepiar à simples audição de “Jingle Bells”. Viveu seus últimos dias na Califórnia, aquela mistura de shopping-center e zoológico humano, que provocava náuseas em seu lado aristocrático. Dizia ele: “As lojas estão cheias de um lixo inacreditável, e tudo que você procura já se esgotou. Pessoas com expressões tensas e agoniadas no rosto ficam examinando peças em vidro ou cerâmica, e sendo atendidas, se esta é a expressão correta, por débeis mentais que foram recrutados quando estavam em liberdade condicional do hospício, e que, se fizerem um enorme esforço, serão capazes de distinguir entre uma picareta e um bule de chá.”

Chandler tinha seus problemas. Sua mulher, Cissy, bem mais velha do que ele, teve uma longa e dolorosa doença pulmonar que acabou por matá-la em 1954. No final de 1951, Chandler escrevia ao seu agente literário Carl Brandt: “Tivemos um péssimo Natal. A cozinheira adoeceu, não fizemos peru, e minha mulher ou está de cama ou repousando a maior parte do tempo, tentando combater uma bronquite renitente. Swanie me mandou uma gravata de presente. É toda estampada com pequenos sherlock-holmes e pegadas sangrentas. Gostaria que os agentes de Hollywood não se sentissem obrigados a presentear seus clientes, até porque esses presentes são um termômetro muito fiel do status desses clientes. Um sujeito que chegou ao ponto de receber relógios de pulso e de repente volta a ganhar gravatas sabe exatamente qual está sendo sua cotação no mercado.”

Não, a culpa não é do Natal, é do que acontece no resto do ano. Em 1952, Chandler escreveria, desta vez para o crítico inglês Leonard Russell: “Minha mulher está muito doente. Ela já voltou do hospital, mas ainda está muito fraca e continua acamada. Por causa disto resolvemos esquecer o Natal este ano, inclusive os cartões. Então, deixe-me desejar a você e a Dilly Powell o que quer que ainda exista de paz e felicidade neste mundo triste: coisas como crepúsculos vermelhos, o cheiro de rosas após uma chuva de verão, tapetes macios em aposentos tranqüilos, a luz de uma lareira, a presença de velhos amigos.”

Feliz Natal para todos.

0550) Outro doido na porta (23.12.2004)





(pt.inmagine.com)

O escritor Tim Powers conta de um tio seu que trabalhava numa repartição pública onde de vez em quando, por algum motivo, aparecia gente doida atrás de emprego. 

Uma vez um desses malucos baixou por lá e começou uma conversa que não acabava mais. Lá pelas tantas, começou a se queixar de que estava sofrendo interferências telepáticas de gente desconhecida. “Ficam invadindo minha mente, mandando energia negativa,” queixou-se ele. 

O tio de Powers teve uma idéia brilhante. Pegou uma correntinha de clips que alguém estivera fazendo, pendurou mais uma dúzia de clips na ponta e estendeu para o cara. 

“Ponha isso em volta do tornozelo,” explicou, “prenda, dando um nó, e aí deixe a ponta mais comprida arrastar pelo chão.” 

O doido pegou a correntinha, ainda meio na dúvida: “Mas para que?” 

Ele respondeu: “Ora, já ouviu falar em fio-terra? Com isso, as emissões telepáticas vão passar direto para o chão, sem lhe afetar.” 

O doido só faltou beijar-lhe as mãos, amarrou a correntinha no tornozelo e foi-se embora feliz da vida.

O remédio pra um doido é outro na porta, diz a sabedoria popular. Isto é apenas o reconhecimento de que para dialogar com uma pessoa é preciso entender o pensamento dela, ou, como dizem os filósofos de verdade, “trabalhar com as mesmas categorias conceituais”. 

Cada doido funciona de um modo diferente. Um amigo meu, quando era estudante de Medicina, estava dando plantão num hospital psiquiátrico, e de madrugada um paciente que sofria de “delirium tremens” começou a gritar. Ele foi ver o que era, e o cara estava encolhido no canto do quarto, dando tapas nos próprios braços: “As aranhas, doutor... Eu estou coberto de aranhas!” Ele explicou: “Calma, Fulano, vou lhe dar um remédio, mas não tenha medo. Elas não existem.” O paciente retrucou: “Eu sei que não existem, doutor, mas são muitas!”

Há numerosos episódios na história da Psicologia e da Psicanálise de médicos que, para melhor adquirir a confiança e a empatia de seus pacientes, procuram identificar-se com seus delírios e, a partir de certa altura, começam a ter dificuldade para tocar no chão com os próprios pés. 

Existe uma lógica perversa e sedutora no modo como a mente dos loucos encaixa idéias umas nas outras, principalmente nas articulações lógicas dos delírios paranóicos. Um paranóico é um cara que apela para o que temos de mais perigoso em nossa mente, que é o sentido de causa e efeito, de concatenação lógica. 

Tudo que um paranóico diz faz sentido, porque todas as suas deduções ou induções são rigorosamente lógicas. A única maneira de invalidá-las é descobrir, no emaranhado de premissas com que ele nos desorienta, quais são as que não correspondem à realidade.

Raciocinar junto com um louco é como mergulhar no mar revolto para salvar uma pessoa que está se afogando. No momento em que os dois se abraçam e se debatem juntos, alguém vai levar alguém em alguma direção, e é um sujeito muito corajoso o que paga pra ver.







0549) De Fellini a Almodóvar (22.12.2004)


(Má Educação)

A obra de Federico Fellini, como a de Pedro Almodóvar, está cheia de prostitutas barrocas, homossexuais patéticos, padres enrustidamente libidinosos. Personagens que de início são vistos com zombaria infantil e depois com um espécie de cumplicidade madura. Parece que o autor, ao ficar mais velho, entende melhor as motivações daqueles personagens, cujo ridículo e tragédia vai se diluindo. Fellini foi substituindo a perplexidade excitada de um garoto, presente em Oito e Meio, A Doce Vida, Satyricon, pelo carinho paternal com que tais personagens grotescos são vistos entre Amarcord e E la Nave Va.

O espanhol Pedro Almodóvar tem uma predileção semelhante por este elenco de figuras excêntricas, e quando falamos de repressão católica, sexualidade latina e imaginação delirante, faz muita diferença ser espanhol ou italiano? Muito pouca. Em Almodóvar, no entanto, essas personagens mostram um lado mais dark, mais cruel. São capazes de praticar ações ou de arquitetar planos que nos fazem recuar com um calafrio. Soltar os travestis e os gays de Almodóvar num filme de Fellini seria o mesmo que soltar um tigre faminto num orfanato.

Vendo o recente Má educação, a idéia que me vem é que Almodóvar, mesmo com sua fascinação pelo bizarro e pelo grotesco, é menos um herdeiro de Fellini do que da secura emocional de Pasolini, de sua visão do sexo como um jogo de poder e fantasia onde o mais forte sempre desfruta o mais fraco e depois o descarta. E é mérito da riqueza psicológica da obra de ambos o fato de que muitas vezes são os personagens “do Bem” que fazem isto aos personagens “do Mal”.

Faço esta comparação porque a maioria da crítica cinematográfica insiste em tentar aproximar Almodóvar de Buñuel e de Carlos Saura, pelo fato de serem todos espanhóis, quando me parece mais relevante a afinidade de espíritos do que a coincidência de passaportes. Se existe algo de buñuelesco em Almodóvar isto se deve à semelhança que apontei no parágrafo anterior entre a trajetória repressiva e ambígua da Igreja Católica tanto na Espanha quanto na Itália (para não falar em outros países). Ao que parece, nenhum desses garotos que estudou em colégio de padres escapou incólume, quando mais não seja em seu imaginário. Mas o perfil emocional de Almodóvar, que tende sempre para a auto-confissão, o desnudamento, o exibicionismo, não se parece nem um pouco com o de Buñuel, um homem fechado em copas, rigidamente moralista.

Os filmes de Buñuel são lutas íntimas, sempre empatadas, entre um anarquista e um conservador. Os de Almodóvar são a celebração pública do triunfo de um sujeito reprimido que “soltou a franga” e não conhece mais limites. Má educação é um bom filme, mas em muitos momentos está mais próximo da superficialidade do “teatro de simulacros” de Brian de Palma. Talvez as melhores obras do cineasta, as de mais riqueza estilística e temática, continuem sendo Tudo sobre minha mãe e Carne trêmula.

domingo, 14 de setembro de 2008

0548) O Partido Fantasma (21.12.2004)



Alguns dias atrás (“O protagonista invisível”, 18 de novembro) comentei um curioso personagem de Hitchcock no filme Intriga Internacional: o agente secreto Kaplan, com o qual Cary Grant é confundido durante grande parte da trama, sofrendo seqüestros e tentativas de assassinato por parte de outros espiões. Só lá pela metade do filme Grant, que está no encalço do tal Kaplan, para saber por que motivo o confundem com ele, começa a interrogar os empregados do hotel onde ele se hospeda e descobre que na verdade nenhum deles o vira. A reserva é feita pelo telefone, a bagagem é remetida por alguém, as roupas são deixadas para lavar em cima da cama... mas ninguém jamais viu Mr. Kaplan em carne e osso. Pela simples razão de que ele não existe, é um personagem fictício criado pelo Serviço Secreto para... bom, vão ver o filme que vocês entendem.

Parece mirabolante? Não é tanto quanto a vida real. No começo de dezembro, um professor holandês confessou à imprensa que durante anos serviu de espião para o Ocidente junto à China comunista, fazendo-se passar pelo presidente de um Partido Comunista que simplesmente não existia. Pieter Boevé foi recrutado pelo serviço secreto holandês ainda muito jovem, após uma viagem à China para um desses encontros nacionais da juventude. O serviço secreto criou um fictício Partido Marxista-Leninista Holandês (MLPN) e Boeve durante doze anos atuou como presidente deste partido fantasma, fazendo repetidas visitas à China, onde era tratado com honrarias.

A farsa incluía a publicação de um jornal, De Kommunist, totalmente redigido pelo Serviço Secreto. Boevé, hoje com 76 anos, comenta que o MPLN foi o único partido radical totalmente forjado da História, e certamente o único que funcionou de fato. Boeve usava o nome-de-guerra de Chris Petersen, e o suposto partido gabava-se de ter 600 membros, mas o número real nunca passou de doze. Alguns eram comunistas sinceros que, como Paul Wartena, hoje professor da Universidade de Utrecht, doavam 20% de seus salários para a entidade. Wartena, após o desmascaramento público do MPLN, está exigindo que o Serviço Secreto holandês o reembolse.

Nada disto é estranho para quem leu 1984 de George Orwell (1949), onde uma célula comunista é criada pela polícia para atrair comunistas, ou O Homem que Era Quinta-Feira de G. K. Chesterton (1908) onde um policial infiltrado num grupo subversivos acaba descobrindo que todos os outros membros também pertencem à polícia. A história da espionagem é, para além do mero jogo político-ideológico e das atividades criminosas, uma das melhores alegorias para o caráter ilusório das atividades humanas. Como saber que alguém é o que diz ser? Como provar a alguém que somos o que dizemos ser? Como saber, dentro de nós mesmos, se somos de fato o que pensamos ser? A história da espionagem é talvez, reduzida aos seus termos mais simples, a mais metafísica das tramas policiais.

0547) O Silêncio do Delator (19.12.2004)



José Nêumannne acaba de lançar seu segundo romance, O Silêncio do Delator, pela editora A Girafa (São Paulo). É um livro caudaloso (540 páginas), mas que se lê num só fluxo: no começo o leitor custa a pegar o tom e o ritmo, mas depois que consegue passar terceira, vai em terceira até o fim. Nêumanne comenta a certa altura do livro que fez uma opção por um “texto zero”, ou “grau zero do texto”: uma prosa sem enfeites (ou com poucos enfeites), seu complexidades lingüísticas, aquilo que Isaac Asimov chamava de “prosa vidraça”, transparente, discreta, servindo de veículo submisso e silencioso para a passagem das idéias com um mínimo de refração.

Sou meio suspeito para falar do livro porque é a história da minha geração, que é a mesma do autor, ele mesmo ligeiramente mais jovem que eu. O livro é uma autópsia impiedosa (como aliás tudo que se faça a um cadáver) dos ideais cultivados pela chamada “geração anos 60”, a geração que foi adolescente nessa turbulenta década e que foi a única, até hoje, que acreditou serem possíveis os sonhos sonhados então.

A técnica utilizada é um coral entrecruzado de vozes (amigos da adolescência se reencontram na meia-idade, no velório de um deles) e de temas (sexo, drogas, rock-and-roll, revolução política, misticismo oriental, o Brasil). São monólogos interiores entre os quais se incluem o do defunto e o do autor, e ao pularmos de um para outro vamos percebendo as contradições, os desmentidos, os equívocos, os mal-entendidos entre aquelas pessoas que perderam a virgindade, experimentaram drogas e tiveram a idéia de derrubar o governo numa época em que se ia à loja da esquina para comprar o disco mais recente dos Beatles ou de Bob Dylan. As canções dos dois servem como roteiro, cada uma intitulando um capítulo do livro, e definindo o tema que os monólogos silenciosos se encarregarão de retomar e improvisar em cima.

A necessidade destes improvisos temáticos já é uma notável “constraint” (restrição auto-imposta), mas o autor se obriga a outra, ainda mais acrobática: evitar qualquer menção geográfica que possa situar a história num lugar específico. Somente um leitor campinense, e daquela geração, será capaz de reconhecer a precisão com que o espírito-do-tempo é captado, porque o livro prescinde totalmente dos adereços externos do realismo: nomes de ruas, lojas, bares, colégios... Sabemos que se trata do Brasil, e mais nada. O que talvez desaponte alguns leitores que, sabendo tratar-se de um “romance de geração”, irão procurar em vão a cor local, a “tranche de vie”, a “horta da Luzia”, as miudezas memorialistas a que a gente se apega tanto após certa idade.

O romance de Nêumanne não ocorre num vácuo, pelo contrário, ocorre no turbilhão de catástrofes políticas que lembramos tão bem. Mas seu passado é tão estilizado e impessoal quanto certos futuros da ficção científica, como o de Godard em Alphaville. É Campina Grande, mas poderia ser qualquer lugar.

0546) Cem milhões de origamis (18.12.2004)



Thaksin Shinawatra, o primeiro-ministro da Tailândia, está se defrontando com uma situação problemática em seu país. As províncias tailandesas do Sul são habitadas por muçulmanos, num país de maioria budista, e isto provoca freqüentes choques armados que só este ano já causaram mais de 500 mortes. O “premier” precisava de uma campanha de marketing para amainar o ímpeto separatista daquela região, para fazê-los sentirem-se amados e respeitados pelo restante da população, e aí teve uma brilhante idéia.

Todo mundo sabe o que é o “origami”, a antiga arte oriental de fazer figuras com papeizinhos dobrados. A garça de papel é considerada um símbolo de paz no Japão e em todo o Oriente. Shinawatra propôs à população que todos se unissem num mutirão cívico para fazer 62 milhões de garças de papel (uma para cada habitante do país), que no dia do aniversário do rei Bhumibol Adulyadej, 5 de dezembro, seriam atiradas do céu sobre as províncias do Sul. Instruções sobre como fazer a dobradura foram afixadas em edifícios públicos e divulgadas pela imprensa; postos de coleta para receber os origamis prontos foram espalhados por todo o país.

No último dia 5, mais de 50 aviões militares, cada um carregado com uma média de 50 mil origamis, fizeram repetidos vôos rasantes sobre a região do Sul, despejando sua carga de passarinhos de papel. Multidões se aglomeraram ao ar livre para recolhê-los, porque o Governo também baixou instruções sobre a coleta do lixo resultante do evento. E havia um prêmio especial para quem achasse um origami dobrado e assinado pelo próprio “premier”.

O número de origamis caídos do céu oscilou entre 60 e 100 milhões, de acordo com diferentes jornais. Algumas pessoas adoraram, outras torceram o nariz. Um muçulmano protestou: “Ninguém vai ligar para esses pássaros aqui, mesmo que eles fossem feito de dinheiro dobrado. Será que eles não entendem que um muçulmano não adora símbolos, adora somente a Alá?”

A primeira leitura que isto me sugere é pensar que não existem limites para o que se chama hoje “o Estado espetáculo”, os governos que transformam o ato de governar numa mistura de reveion, quermesse e parada de 7 de setembro. A segunda é que também não existe limite para o delírio dos poderosos. Eu bem gostaria de saber o que é que esse premier anda fumando. Mas a terceira leitura que me ocorre é ver o lado onírico, o lado poético dessa chuva de milhões de avezinhas brancas caindo sobre as cabeças de todo mundo. Existe poesia nisso, mesmo tendo sido idéia de um Governo para enganar os bestas. Existe uma beleza meio infantil nessa cena, que parece um quadro de Chagall, parece um conto dos cronópios de Julio Cortázar, parece um filme de Hayao Miyazaki (o que fez A Viagem de Chihiro), parece uma história em quadrinhos de Moebius. Ah, se toda bobagem inútil e megalomaníaca dos governos tivesse um resultado assim.

sábado, 13 de setembro de 2008

0545) Ratinho, a isca e a ratoeira (17.12.2004)


(Brian White)

Dias atrás estive participando de um ciclo de palestras promovido pela ONG “Leia Brasil”, numa mesa onde se discutiam assuntos ligados à indústria cultural. O mais interessante dessas discussões é que geralmente toma-se algum exemplo-símbolo de uma situação qualquer. Neste caso, as pessoas começaram a citar o programa de Ratinho como exemplo do que havia de pior na indústria cultural. De dez em dez minutos, lá vinha ele no meio de uma argumentação qualquer: “O problema de país é a baixa instrução, o pouco acesso à cultura, porque se as pessoas tivessem acesso à boa literatura elas não iriam assistir o programa do Ratinho”.

Coitado do programa do Ratinho, do qual não gosto nem um pouco, mas que acaba concentrando em si bordoadas que poderiam ser mais bem distribuídas. Em primeiro lugar, eu não acho que se toda a população brasileira de repente ficasse alfabetizada e culta esse tipo de programa iria desaparecer. O programa de Ratinho (pelo que me lembro dele, das 10 ou 12 vezes que o vi até hoje) se baseia num tipo de sensacionalismo que já vem desde a imprensa escrita, desde Gutenberg. É a exploração dos crimes, das tragédias familiares, dos episódios mundo-cão, de personagens grotescos ou ridículos, tudo isto misturado com uma atitude veemente de defesa da moral e dos bons costumes, e da “proteção às camadas populares”. A própria literatura de cordel, que tanto exaltamos, tem ciclos inteiros dedicados a explorar esse filão.

A TV americana faz a mesma coisa. Não é a escolaridade-média que resolve. Programas desse tipo sempre vão existir. Eles satisfazem algum tipo de fascinação mórbida que todos nós temos na direção do que é grotesco. Proibir esses programas (como alguns mais exaltados sugerem) não iria resolver nada. O problema não são os programas ruins, é o fato de que, sendo impostos de cima para baixo, a população se acostuma com eles e passa a tê-los como uma espécie de ritual diário. E o que leva a isto é a enorme concentração de poder nas mãos de uma meia-dúzia de grupos que controlam as telecomunicações.

Ratinho é apenas a isca da ratoeira. Ele serve como o chamariz para atrair a curiosidade meio doentia do público e fazer os níveis de audiência (e o preço do minuto de publicidade naquele horário) subirem à estratosfera. Se em vez de 3 ou 4 grandes redes de TV tivéssemos 30 ou 40, talvez tivéssemos dez vezes mais Ratinhos, mas nenhum teria esse mesmo peso, e as probabilidades de que surgissem programas de boa qualidade (do nossos ponto de vista) seriam muito maiores. Quebrar o monopólio das grandes redes, regionalizar a produção, é o único caminho para melhorar a TV. Muita besteira nova ia aparecer, decerto. Mas eu preferiria correr o risco de ter dez ratinhos em cada Estado, desde que as coisas boas que certamente existem em cada Estado, e que não têm vez nas redes centralizadas no Rio e em São Paulo, pudessem também aparecer.

0544) Ser gordo e ser magro (16.12.2004)


(Laurel & Hardy, 1956)

Não sei o que é mais triste: ser gordo ou ser magro. Digo isto, a bem da verdade, com o confuso sentimento de culpa daqueles que têm braços e pernas finos, e uma ligeira protuberância no equador-ventral, devida ao consumo indiscriminado de cerveja e sanduíches. O culto ao corpo (dietas, academias, malhação incessante) acaba se tornando uma escravidão. As pessoas consomem anos inteiros de suas vidas em busca de um ideal inatingível de perfeição. Por mais que se esfalfem, por mais que martirizem suas articulações e músculos, por mais que se encham de traumas e condicionamentos para evitar comer as coisas que mais gostam, jamais terão os corpos torneados e estonteantes dos rapazes e moças que aparecem nas capas das revistas.

Olho-me no espelho, e de perfil a minha silhueta lembra a do saudoso Marlon Brando em O Poderoso Chefão. Eu decidi me conformar com o que sou, mas não permitir que nenhuma característica minha se acentue mais do que as outras. Pretendo manter este peso, este formato e esta silhueta até o apito final, aumentando ou diminuindo as doses de alimentação e exercício conforme necessário. Já tive (não tenho mais) inveja de sujeitos bonitões como Brad Pitt ou Keanu Reeves. Quero ver esses caras quando tiverem a minha idade e meu saldo médio.

Passo pelas academias e vejo aquele monte de masoquistas se auto-destruindo (ver “Precisa-se de chapeados”, 19 de setembro). Levam uma vida de privações, de torturas auto-infligidas. São como a Pequena Sereia do conto infantil, que sonha em ter pernas como as moças de verdade, e quando as adquire descobre que o preço a pagar por isto é sentir, a cada passo, as solas dos pés sendo picadas por milhares de agulhas. As academias abrem aquelas vidraças amplamente devassáveis para nos lembrar esta lição metafísica: não há beleza sem sofrimento.

A contrapartida seria, então, abrir mão da Beleza e abraçar esta outra divindade sedutora, o Prazer. Cervejas e salsichas consumidas sem culpa na poltrona, assistindo futebol, corujão e talk-show. Doces e mais doces. Queijos, iogurtes, batatas fritas, xistudos, Big Macs, nuggets de frango empanados, todos eles acompanhados por niágaras de Coca-Cola. E uma pilha de livros junto do sofá, ao alcance da mão.

O Prazer, contudo, é uma divindade tão traiçoeira quanto a Beleza. Esta quer escravizar a nossa auto-estima, mas o Prazer vai igualmente longe, escraviza nossa força de vontade, transforma cada um de nós num títere, num fantoche dos próprios instintos. Tenho algo de puritano em minha formação que me faz ver com certo desprezo as pessoas que se entregam a um prazer sem limites. Não creio em pecado e não faço uma crítica moral: mas prefiro mil vezes a disciplina masoquista dos atletas à auto-indulgência dos que se empanturram de guloseimas (concretas e abstratas), dos idólatras que veneram o bezerro-de-chocolate, e que não conseguem dizer um “não” a si próprios.

0543) O cachorro sagrado (15.12.2004)


(Imagem: William Wegman)

Ouvi uma história interessante sobre um acadêmico que se dedicou durante anos a uma pesquisa sobre as possibilidades de consumo da carne de cachorro. Levando em conta que a população dos EUA (onde ele vivia) cresce a cada ano, ele achou que seria interessante considerar a carne de cachorro como uma possível alternativa de consumo. Fez todos os tipos de exames, em busca de possíveis toxinas ou outros elementos que desaconselhassem a ingestão de carne de cachorro. Não encontrou nada. É uma carne tão saudável e tão aceitavelmente saborosa quanto a de vaca ou a de porco. Então, ele fez a pergunta: Por que os americanos não comem carne de cachorro?

Chegou à conclusão de que eles não a comem por motivos espirituais. Assim como os hindus morrem de fome mas não sacrificam uma vaca, por razões culturais e simbólicas, os norte-americanos, tão pragmáticos, agem da mesma maneira com os cachorros, por motivos igualmente culturais e simbólicos. E o pesquisador, com uma certa ironia, disse que do mesmo modo que os hindus cultuam a Vaca Sagrada, os americanos cultuam o Cachorro Sagrado.

As razões neste caso não são religiosas, são sentimentais. Americano adora cachorro. Segundo um velho princípio na publicidade americana, qualquer coisa que mostre uma criança e um cachorro atrai a atenção e a simpatia do público. O cachorro não é propriamente um animal sagrado, porque não há motivação religiosa no seu culto. Mas pode-se dizer que é, nos EUA, um animal semi-humanizado. Posso estar enganado, mas creio que nenhum outro povo refinou tanto o conceito de “animal de estimação” (“pet”) quando o americano. É como se o poderoso empuxo da ascensão social das classes altas arrastasse para cima, na direção de “ser quase humano”, até mesmo os lulus e os totós que fazem a alegria daquelas famílias.

Ninguém comeria um bife de Lassie ou um filé de Rin-Tin-Tin. São criaturas parecidas conosco, às quais atribuímos, graças a uma dramaturgia que chega quase a ter algo de liturgia, emoções e desejos semelhantes aos nossos. Nos EUA existe um imenso folclore de episódios pitorescos ou bizarros envolvendo cachorros e seus donos, dos quais o mais reiterado é o do milionário que ao morrer deixa uma fortuna para o cachorro, traduzida em criados, moradia, alimentação de primeira, etc. e tal.

O cachorro dos americanos não passa de um tamagochi orgânico (ver “Gatos e Cachorros”, 8 de abril), beneficiário dessa imensa ternura represada que têm as pessoas ricas para com alguém que lhes dá carinho e aconchego e dos quais eles não precisam temer que estejam botando olho-grande na herança. O cachorro só quer uma comidinha quente, uma festinha atrás da orelha, e nossa presença. Ele nos adora: aquele arquejo não é cansaço, é a excitação dos apaixonados. Matá-lo, temperá-lo, cozinhá-lo, e servi-lo à mesa para saciar nossa fome nos transformaria em alguém pior do que o canibal Hannibal Lecter, que por alguma razão fascina os americanos.