sexta-feira, 30 de novembro de 2012

3044) Fuleco é de lascar (30.11.2012)




Estou puxando pela memória para tentar lembrar alguns exemplos de casos assim, em que pessoas, por falta de familiaridade com um idioma que estão estudando ou utilizando, produzem verdadeiras aberrações linguísticas ou termos sem sentido. Foi o caso da escolha do nome para o mascote da Copa do Mundo. (Pensando bem, o próprio conceito de mascote da Copa do Mundo já é uma idiotice.) (Pensando melhor ainda, Copa do Mundo também.)

A Fifa encarregou pessoas de sugerir nomes pro boneco a partir de palavras-símbolo referentes ao Brasil, à ecologia, etc.  “Zuzeco”, por exemplo, foi uma solução proposta por eles – uma mistura de “azul” (o nosso céu) e “ecologia”. Chinfrim, mas vamos em frente. Fiquei muito perplexo com outra escolha: “amijubi”. O mascote se chamaria Amijubi. Por que? Amizade e júbilo.  Pense numa palavra-naftalina do nosso idioma, é esta última. Ao longo de toda minha vida só a vi por escrito, e mesmo assim na imprensa de jornal pré-1960 e em discursos de inauguração de alguma coisa. Nunca vi um único brasileiro usar a palavra “júbilo” numa conversa.

Vai ver que eles pensaram o mesmo, e a terceira solução – e que parece já estar definitivamente aceita – foi “Fuleco”. Por que? Futebol e ecologia. Nada contra os dois, mas fuleco é de lascar.  Lembra fuleiro, fulo, furreca. Uma mistura de Fu-Manchu com Cacareco. Lembrei-me daquele livro “English as she is spoke”, um guia de idiomas, aparentemente autêntico, onde o autor pretende ensinar inglês ao leitor mas vê-se que não tem a menor idéia do que está fazendo. O título, que queria ter dito “O inglês como ele é falado”, é uma amostra das distorções e desinformações do autor.

Não custava nada chamarem o mascote de Tatu-Bola. Primeiro porque ele é um tatu-bola mesmo, e por isto foi escolhido. Segundo porque é um nome oferecido de bandeja pelo povo (incluindo-se aí os zoólogos e os dicionaristas) do país que sedia a Copa. Custava nada ser tatu-bola?  Este episódio, por mais que seja inspirador de galhofas, pode dar também uma dose de melancolia. O mundo globalizado está virando um grande mal entendido entre culturas, entre idiomas, entre hábitos e crenças. Daqui a pouco não se acha no planeta um par de pessoas que interpretem os mesmos fatos da mesma maneira.

Eu nada tenho contra palavras inventadas, mas eu gosto de snark e não gosto de Zuzeco, e gosto de supercalifragilisticspiralidocious e não gosto de Amijubi.  Gosto de nonada, parangolé, zazueira, crisbeles, riverão, alfômega, panamérica, solaris, ciberespaço, grokkar, robot, grifinória, ludopédio, convescote, monstruário, baurets, in-a-gadda-da-vida... mas não gosto de Fuleco.


quinta-feira, 29 de novembro de 2012

3043) F de Foguete (29.11.2012)



(Elon Musk)


A espaçonave tem sido um símbolo da ficção científica desde o seu começo. O primeiro livro sobre a ida de um artefato mecânico à Lua foi Da Terra à Lua de Julio Verne (1865), mas não se tratava de um foguete, e sim de uma bala de canhão. Balões e veículos de formatos improváveis (e meios de propulsão mais improváveis ainda) foram numerosos no século 19, pela imaginação de H. G. Wells, Garrett P. Serviss e outros. A Encyclopedia of Science Fiction de John Clute menciona como duas das mais convincentes espaçonaves do início da pulp fiction as que aparecem em The Shot into Infinity”de Otto Willi Gail (1925) e The Voyage of the Asteroid de Laurence Manning (1932). Cito estas datas porque aqui no Brasil já tínhamos em 1923 pelo menos duas obras: A Liga dos Planetas de Albino Coutinho, com seu “aeroplano”, além do cordel História do Homem que Subiu Em Aeroplano até a Lua atribuído a João Martins de Athayde, mas cujo verdadeiro autor talvez seja Leandro Gomes de Barros.  Espaçonaves cientificamente canhestras, mas em todo caso são provas de que a FC no Brasil surgiu par-a-par com a dos EUA e Europa.

Elon Musk é um jovem (nasceu em 1971) empresário dos EUA que está tentando reaquecer sozinho a corrida espacial. Segundo ele, a astronáutica dos foguetes está mais do que defasada, tanto no aspecto técnico quanto no econômico. Parece delírio? Bem, ele é o criador do PayPal, uma das coisas que deram mais certo até hoje no mundo da web. Diz Musk (http://bit.ly/Rc9t45) que a tecnologia aeroespacial não experimentou melhorias materiais desde os anos 1960, e na verdade pode até ter regredido. Para ele, “as empresas aeroespaciais têm uma incrível aversão ao risco”, e seu excesso de cuidado chega até o ponto em que, num engraçado paradoxo, “um componente que nunca foi ao espaço não pode ir ao espaço”.

Além disso, diz ele, a febre de terceirização faz essas empresas delegarem tarefas a subcontratantes que por sua vez chamam outros, a um ponto em que “é preciso cruzar quatro ou cinco camadas de poder até chegar a alguém que esteja de fato fazendo alguma coisa”. Por isso, diz ele, o voo espacial é tão caro. Isso, e os custos de produção dos foguetes (que ele afirma ser capaz de reduzir a 10% dos custos atuais). “Imagine”, diz ele, “se cada avião durasse apenas uma viagem. Não haveria transporte aéreo”.  O projeto de Musk é enviar um foguete tripulado a Marte em 10 ou 20 anos, a um custo muitíssimo inferior ao que vem sendo praticado pela NASA. A antiga inequação “Estado paquidérmico x Empresariado ágil” parece estar emergindo de novo, após meio século de corrida espacial financiada pelos governos.



quarta-feira, 28 de novembro de 2012

3042) Droga e liberdade (28.11.2012)






No filme The Corporation, a certa altura os realizadores questionam o uso maciço de propaganda dirigido às crianças nos EUA para que comprem (ou peçam aos pais) brinquedos, doces, etc.  Os entrevistadores perguntam se não é eticamente errado manipular com publicidade as mentes despreparadas dos pirralhos, fabricando desejos, num momento em que elas não têm uma visão crítica sobre o que estão assistindo. Uma executiva responde, rindo: “But it’s just a game!”. É só um jogo! Para a mentalidade dos executivos, é um jogo de números entre as empresas, como o Banco Imobiliário. Eles precisam melhorar a relação dos números da própria empresa (vendas, lucro, etc.), e a relação entre os números da empresa e os dos concorrentes.

Todos nós somos assim, não é mesmo? Todos somos politicamente corretos, religiosos, bons cidadãos, mas no momento em que alguém bota um putufú de dinheiro em cima da mesa e diz: “Será seu, se você fizer tal e tal coisa”, argumentos brotam dos lugares mais inesperados da nossa mente, convencendo-nos de que não estamos fazendo aquilo pelo dinheiro, mas por uma lista de motivos nobres que daria duas voltas-à-esquina. Se uma fábrica de pipoca me oferecesse um salário mensal de 100 mil reais para dirigir seu setor de publicidade, forçando todas as crianças da Paraíba a comerem pipoca desenfreadamente, eu pensaria: “Ora... Pipoca é milho!  É cultura indígena! O milho faz parte de nossa dieta desde tempos imemoriais. Contém amido!  Melhor vê-los comendo pipoca do que mascando chicletes”. E assim por diante.

Não é impossível que alguns fabricantes e vendedores de crack, metanfetamina, heroína, etc., sejam cidadãos corretos em sua vida doméstica: bons pais, bons maridos... Podem ser honestos, incapazes de desviar para si um só centavo que não seja seu.  E se lhes perguntarem pela destruição causada pela droga que vendem, eles responderão, como o químico nerd de Breaking Bad: “Compra droga quem quer, usa quem gosta. São adultos, e são livres para escolher”.  Ora, ninguém é livre para escolher. Nossas escolhas aparentemente livres são sempre influenciadas por alguém de fora. Nossa liberdade de escolha se dá sempre num corredor de pressões e proibições. O fantasma da liberdade (como dizia Buñuel) nos faz imaginar que somos sempre donos das nossas opções, mas agimos dentro de limitações estabelecidas por quem nos explora. Uma criança é livre para escalar um parapeito e pular de um vigésimo andar. Mas essa “livre” escolha a precipita numa situação em que fica impedida de escolher, para sempre. A droga é uma livre escolha que em alguns casos conduz ao cancelamento de todas as liberdades.



terça-feira, 27 de novembro de 2012

3041) "Laranja Mecânica" (27.11.2012)




Está saindo pela Editora Aleph (SP) uma edição comemorativa dos 50 anos de “Laranja Mecânica” de Anthony Burgess. É um clássico da ficção científica psicossocial.  O romance pressupõe três coisas: 1) a proliferação de gangs criminosas de jovens urbanos, num grau que a Londres de 1962 mal seria capaz de imaginar); 2) a utilização, pelo Estado, de técnicas de lavagem cerebral, ou condicionamento por aversão; 3) a contaminação da gíria dos jovens londrinos com termos vindos da língua russa.  É uma FC voltada para a sociologia e a psicologia. Não precisa de aliens, espaçonaves, pistolas de raios.

Burgess escreveu o livro numa Inglaterra cujas principais tribos de delinquentes juvenis eram os mods, os rockers e os teddy-boys. Eram a “juventude transviada” de uma época em que o rock começava a fazer soar seus primeiros acordes e as drogas eram consumidas em pequenos focos isolados. Ele tentou revestir sua extrapolação futurista de traços não-realistas, para ressaltar seu lado alegórico: roupas, hábitos, linguagem.  Queria que a violência do livro fosse “mais simbólica do que realista”. Não previu que seu livro e o filme resultante, de Stanley Kubrick, se transformariam em influência e (em alguns aspectos) em modelo.

A tradução de Fábio Fernandes enfrenta com criatividade o desafio de ter que inventar e adaptar palavras o tempo todo. O mais interessante desta edição comemorativa é a inserção de textos e entrevistas de Burgess, em que ele conta uma viagem sua a Leningrado, explica a origem do título, e faz uma avaliação de suas intenções ao escrever o livro. Ele quis fazer uma discussão sobre o livre-arbítrio – um criminoso tem tanto direito a fazer escolhas quanto nós?  “O homem ou a mulher que nunca fez o mal não pode saber o que é o bem”, diz Burgess. “Não sei a medida de livre-arbítrio que o homem possui de verdade, mas sei que o pouco que parece ter é precioso demais para ser usurpado, por melhores que sejam as intenções do usurpador”.

Burgess afirma que o editor norte-americano de “Laranja Mecânica” decidiu cortar o 21º. capítulo da edição inglesa. Achava esse capítulo (que mostra um Alex mais amaciado, menos radical, preparando-se para entrar na vida adulta) “britânico demais, ameno demais”.  (Este capítulo está incluído na edição brasileira.) Segundo Burgess, foi essa edição incompleta que Kubrick adaptou para o cinema. Por que Burgess não protestou, não interferiu, não os processou? Talvez porque tenha visto nesse corte um exercício do livre-arbítrio alheio. A possibilidade de dois finais diferentes para a história meio que simboliza a nossa liberdade (e paradoxalmente a nossa obrigação) de escolher.

domingo, 25 de novembro de 2012

3040) Os robôs zumbis (25.11.2012)


(Oscar N)

Os ferros-velhos de robôs são tão melancólicos quanto os cemitérios de automóveis. Elegias fúnebres celebrando à luz do sol a oxidação e o esboroamento dos seres de metal. O marrom da ferrugem roendo como um câncer as placas luzidias, os circuitos labirínticos. Himalaias do desperdício industrial, o estado-da-arte de ontem sendo hoje arrastado e solto no lixão dos descartáveis. Aqui e acolá um sacoleiro de chips faz sua coleta esperançosa, mas os tecno-monturos erguem colinas a perder de vista, pois a cornucópia eletrônica não para de vomitar silos e mais silos de placas-mães.

Nos lixões de robôs já filmei com celular a imensa vala comum onde sub-empregados esqueléticos seguravam os autômatos pelos braços e pernas, balançavam, atiravam lá de cima, fazendo-os cair no fundo e ir escorregando por cima dos corpos desconjuntados dos que os precederam. Andróides, ciborgues, robôs, servomecanismos; contrafações humanóides estruturadas em circuitos eletrônicos, esqueletos hidráulicos, microengrenagens, massa muscular sintética, sistemas nervosos em fibra ótica mais fina que um cabelo de bebê. Conseguimos reproduzi-los mais depressa do que nossa própria reprodução biológica/coital. Bilhões de espantalhos articulados, programáveis, obedientes ao controle remoto e à administração wireless dos governos. E que quando quebram são jogados fora. Pra que consertar? Quando um deles cai, dez outros se erguem de uma linha de montagem em Xangai, em Mumbai, em Dubai, em lugares onde nem chegou o Google Earth.
 
Aquilo que tomba hoje vem a se erguer amanhã. E de repente as ruas estão tomadas pelo clang-clang dos retirantes cibernéticos, cambaleando sob o sol, vagando sem destino, sem tarefa, sem missão. Quem os reergueu da tumba aberta? Quem trouxe de volta esses lázaros de titânio e categute? Talvez um vírus; um restinho de vida num pseudo-cadáver se transmitiu por wi-fi em círculos concêntricos na vala comum e despertou a todos, ferindo um nervo ainda vivo, desencadeando sub-rotinas mentais, e pronto, aqui estão eles invadindo as praças, atravancando avenidas, executando gestos sem sentido que lhes foram impostos ao ferro-em-brasa de um algoritmo – aparafusar peças não-existentes, colher soja no asfalto vazio, orientar trânsito no espelho dágua da pracinha. Mortos vivos, Doppelgangers insetóides, que não têm fome de nossos cérebros nem nos desejam mal, mas que estão a cada dia inviabilizando nossas cidades. Pela sua mera quantidade e surdez. Pela automatização compulsiva que os arrasta, e que não nos deixa outro remédio senão nosso último esporte radical, despedaçá-los a tiros e esperar que as balas sejam mais numerosas.

sábado, 24 de novembro de 2012

3039) O samba e o baião (24.11.2012)



(Donga)


A industrialização musical cria modelos e processos. Tudo que não for feito de acordo com o processo e que não fique parecido com o modelo soa como coisa falsa, e muitas vezes é uma coisa mais verdadeira, “the real thing”. 

Crianças que tomam água de coco em caixinhas longa-vida tomam susto ao ver um coco de verdade ser aberto. 

Espectadores veem um grupo numa praça fazendo teatro de rua, e perguntam “onde está o teatro”. 

Algo parecido acontece na música. O disco criou um formato padrão de canção popular, imposto a ferro e fogo durante um século; e pensamos que só é canção se for assim.

Nos anos 1940, Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira começaram a escrever baiões que eram gravados com grande sucesso. O sanfoneiro de Exu lembrou uma toada que ouvia desde a infância, um pedacinho melódico muito simples, com versinhos soltos e saudosos sobre uma ave que foge do sertão por causa da seca. Cantarolou esses farrapos de música para Humberto, e logo os dois deram uma formatada final na melodia, que o letrista cobriu com estrofes simétricas. 

“Asa Branca” é esse produto híbrido entre pedaços de cantiga anônima e elementos novos, eruditos. Um verso como “Quando o verde dos teus olhos se espalhar na plantação” não é verso da tradição oral, é verso feito de caneta por um leitor de José de Alencar.

Algo parecido ocorreu com “Pelo telefone”, o primeiro samba gravado em disco, em 1917, e assinado por Donga.  

Assinado é bem o termo, porque Donga fez um apanhado de refrões, chamadas e batuques que eram cantados nas festas da casa de Tia Ciata, na “Pequena África” do Rio de Janeiro. 

Em seu livro Feitiço Decente Carlos Sandroni analisa em detalhe essa colcha de retalhos de toadas, e o modo como ela foi alinhavada às pressas para se enquadrar nos limites de tempo de uma gravação fonográfica. “Pelo telefone” gerou numerosas polêmicas, não só de autoria, mas também quanto ao fato de ser ou não o primeiro samba gravado. (Esta discussão está no saite Cifrantiga: http://bit.ly/10dgwwO).

A criação musical popular é solta, mutante, indisciplinada. Na cultura oral, todo mundo mexe nas músicas, tira e põe versos, muda o que não gosta ou o que não lembra.  

Já a indústria cultural precisa de critérios nítidos: tamanho fixo e formato fixo para as obras, autoria inequívoca, registro, e depois do registro ninguém mexe mais. Voz no vinil, cifra na partitura, letra no livro: a indústria precisa disso para uniformizar seus produtos. 

Cultura oral e indústria sempre trabalharam com conceitos opostos. É curioso que agora a Cultura Digital começa a arrastar esses conceitos para longe da indústria e para perto da cultura oral antiga.







sexta-feira, 23 de novembro de 2012

3038) O Diário de Dilma (23.11.2012)



(ilustração: Caco Galhardo)


A revista Piauí tem uma página intitulada “O Diário de Dilma”, um pseudo-diário atribuído à presidenta Dilma Roussef. A gente tem o direito de achar que está numa democracia quando alguém ridiculariza o mandachuva do país e não é preso. O “Diário de Dilma” não ridiculariza a presidenta, até pelo irrealismo da proposta, mas faz uma engraçada justaposição entre o pessoa real e a personagem literária, uma perua sempre preocupada com o penteado, o vestido, a decoração; que reduz às mais terrificantes banalidades alguns episódios sérios do momento; que suspira de langor por um embaixador bonitão, ou por um ministro cujo charme a conduz a devaneios. A revista atribui o “Diário” ao jornalista Renato Terra, mas, como também o atribui, em primeiro lugar, à própria presidenta, uma coisa relativiza a outra, e talvez o texto não seja produto de nenhum dos dois.  Talvez o seu redator seja alguém insuspeito e improvável.

O “Diário” de outubro (na Piauí de novembro) vem sob o título “Malandro é o curupira, que só faz gol de calcanhar”.  É a reta final da campanha eleitoral, e “Dilma” comenta: “Tô cheia de usar vermelho por causa desses comícios! Encomendei uns blazers bacanas de verão, laranja, azul Klein, rosa-choque, mas o Lula insiste em me botar de vermelho.  Pareço um tomate”. No dia 4, após o primeiro debate entre Barack Obama e Mitt Romney, ela anota: “A Ideli não confessa, mas é louca pelo Romney. Cada vez que a tevê dá um close naquele queixo talhado a buril, ela dá uma tremelicada. É sutil mas eu percebo”.

Parece os diários das adolescentes que leem Thalita Rebouças. Em 5 de outubro ela se queixa: “Sabe onde me enfiaram agora? Na exposição de um tal de Caravaggio. Legal até, mas o povão está interessado nisso? Tive de fazer biquinho e cara de raciocínio, o que é péssimo para as comissuras. Vou mandar a conta do refil do botox para a União e não quero nem saber”.  No dia 17, ela fica matutando: “Tadinho do Zé Dirceu. Será que tem consulado do Equador aqui em São Paulo?”. Fica ansiosa para saber quem matou Max na novela Avenida Brasil, manda a Abin investigar, recebe a resposta e, na véspera de um comício na Bahia, diz que “dependendo do clima, incendeio a militância revelando o nome ali mesmo”.

O “Diário de Dilma” funciona um pouco como aquelas canções de Juca Chaves satirizando o governo Juscelino (eita, fui longe agora – talvez só eu e Dilma lembremos essa época!). É uma leitura galhofeira de fatos reais, e a verdade é que nada reafirma tanto a solidez de um regime quanto a magnanimidade com que tolera (quem sabe até financia) a atividade dos que o submetem à caricatura.


quinta-feira, 22 de novembro de 2012

3037) Dicas de escritores (22.11.2012)



Sou leitor desses decálogos e mandamentos de escritores sobre como escrever. Em geral são escritos no imperativo:  ”faça isso, não faça aquilo, procure fazer assim, jamais faça assado”.  Tudo isso deveria ser escrito na primeira pessoa: “eu faço isso, eu não faço aquilo, eu procuro fazer assim, eu jamais faço assado”.  Não importa se o autor é William Faulkner ou John Updike. Na grande maioria dos casos um bom autor só consegue ser ele mesmo. Ele sabe fazer, sabe como o consegue, e passa a informação adiante. Nada obriga essa descoberta dele a ser útil para mim, ou para Fulano. Mas é sempre lucrativo aprender como funcionam os processos criativos alheios.


Os grandes autores (profissionais, consagrados, com dezenas de títulos, milhões de livros vendidos, com prêmios e honrarias, poder, credibilidade) concentram todas as suas forças criativas na própria literatura, o que, em termos práticos, isso significa sua própria maneira idiossincrática de praticar a literatura.  Fazem isso a tal ponto que muitas vezes parece não haver espaço, neles, para admirar a literatura alheia, ou pelo menos a literatura alheia que é diferente da sua.

Decálogos sobre “como escrever” parecem decálogos de etiqueta sobre “como se comportar em público”.  É impossível universalizar tais instruções, porque o que funciona num local e num momento não funciona no outro. Mas cada conselho “faça isso, não faça aquilo” exprime verdades construídas na prática, e em grande parte dos casos eles nos ajudam a entender melhor nossos próprios defeitos, e construir nosso próprio método de trabalho.

Muitos autores acordam e escrevem durante duas horas, sem parar, antes do café da manhã. “É o melhor momento”, dizem; “a mente está a mil”. Agradeço sempre a informação, mas de nada me vale, como de nada valeria eu explicar a eles que estas linhas estão sendo redigidas às 04:19 da madrugada – e não estou pensando em ir dormir nem tão cedo. Há quem prefira escrever à mão num caderno, há quem prefira ditar, há quem escreva poesia com o polegar num tecladinho luminoso. Caneta Bic ou Mont Blanc, Parker 51 ou Futura? Máquina Olivetti ou máquina Remington (são tão diferentes quanto um PC e um Mac)? No calor ou no frio? Trancafiado a sós ou no alarido de um café?

O conselho é realmente útil quando vem de alguém com uma combinação de cacoetes, talentos ou inabilidades parecida com a nossa. Às vezes um conselho bobo (“não use a primeira pessoa, nunca”, “escreva no presente do indicativo, não no passado do verbo”, “prepare resumos do que vai fazer em seguida”) salva a carreira de um sujeito e de nada adianta para outro.



quarta-feira, 21 de novembro de 2012

3036) A Vida e os Tempos de Zeca Tattoo (21.11.2012)




(by Jim Burns)


Cap. 1 – De como José Ribamar Marinho foi criado num cortiço perto da Rua do Riachuelo, pai frentista, mãe doceira, irmãos eternamente gripados, cerveja no refrigerador, infiltração na cozinha, morcegos nas cumeeiras, dez rádios e dez TVs competindo em decibéis, odores orgânicos onipresentes, varal de roupas secando na sala, ladrilho solto no quarto onde ele guardava seus dinheirinhos até o dia em que a irmã pequena achou e rasgou sem saber o que era, e do portão para fora a Cidade se espalhando, campo de batalha, parque de diversões.

Cap. 2 – De como nas escolas públicas José Ribamar aprendeu a ler, escrever, fazer contas, colar na prova, dar dedadas, fumar no banheiro, quando brigar, quando correr, quando apelar para as autoridades. 

Cap. 3 – De como José Ribamar arrumou um bico numa oficina mecânica onde descobriu a importância de chegar na hora, a necessidade de ficar calado ao ouvir um esbregue, e a magia das máquinas e das mulheres só de calcinha.

Cap. 4 – De como José Ribamar num piscar de olhos tinha barba, pelo no peito, carteira assinada, uma coleção de HQs empilhada em cima do armário, e rachava com o pai o prejuízo da prole. 

Cap. 5 – De como José Ribamar, no consertar de motos alheias, deixou-se cooptar por metaleiros que agiam perto da Praça da Cruz Vermelha e desse dia em diante não tirou mais dos ouvidos o iPod que ganhou por um conserto de emergência em tempo recorde, e por onde recebia injeções maciças de trash metal, zombie metal, hellfire metal, meth metal e outras persuasões ritualísticas que tímpanos incréus seriam incapazes de distinguir umas das outras.

Cap. 6 – De como o mundo renasceu por inteiro aos olhos de José Ribamar quando dois amigos o levaram a um tatuador que lhe aplicou no bíceps, num demorado orgasmo sustentado a fumo, a imagem de um urso barbudo de punhal nos dentes pilotando um jet-pack flamejante em volta da Torre Eiffel.

Cap. 7 -  De como a partir desse dia Zeca Tattoo (pois este passou a ser o seu nome) transformou sua pele em seu diário, e gravou para sempre ali os fatos cruciais de sua vida e de suas circunstâncias, a briga de faca no bar de Berg, a primeira noite fazendo Baby Jean gemer, a colisão que explodiu três membros da tribo, a morte do pai, o título do Mengão, o apendicite que quase o leva, o primeiro filho, a eleição de Obama, o dia em que zerou Call of Duty, o incêndio do cortiço e as onze vidas que salvou, a noite em que tomou um ácido pra ver um eclipse da Lua e viu montanhas parindo, arranha-céus mastigando estrelas com as janelas, nuvens gotejando uma vodka pegajosa e açucarada, e em volta da Lua a boca de Baby Jean dizendo vem com tudo, vem.



terça-feira, 20 de novembro de 2012

3035) Prisão perpétua (20.11.2012)



(foto: Tim Gruber)


Ser condenado à prisão perpétua soa como um final feliz, ou pelo menos como um mal menor, um alívio, para um sujeito que, num país como os EUA, esteve perto de ser condenado à morte. Só que prisão perpétua não existe, visto que não existe vida perpétua. Os que recebem esta pena são condenados, na verdade, a um envelhecimento vagaroso, a perder de vista, dentro das paredes de uma prisão. Imagine um sujeito de 35 anos que cometeu um crime e foi condenado à prisão perpétua. Se tem a sorte de ir para uma prisão mediana, há uma boa possibilidade de que ele chegue aos 85 anos. O que acontece, então?

Falei em prisão mediana porque esse problema é mais presente nos EUA do que no Brasil.  Aqui, depois de 30 anos o cara é solto, mesmo que tenha sido condenado a 458 anos, como acontece às vezes pela soma das penas. Se no Brasil houvesse prisão perpétua, não duvido que a maioria seria jogada dentro de um porão, fechavam a porta do alçapão e botavam um arquivo morto em cima.  A próxima pessoa a ver aqueles detentos seriam os arqueólogos de 2300.

Há aqui (http://bit.ly/QRw575) uma matéria arrepiante de James Ridgeway sobre prisioneiros senis em cadeias norte-americanas. O próprio jornalista tem 75 anos e diz que isto facilitou seu acesso aos presos. A reportagem traz histórias de presos com Parkinson ou Alzheimer, sendo cuidados pelos companheiros de cela (banho, asseio, alimentação, etc.) porque ninguém lhes dá atenção. Outros presos idosos, ainda capazes de se locomover sozinhos, sofrem na hora do bandejão ou do banho de sol, porque são escorraçados pelos jovens e nunca conseguem o que precisam.

Em 1981, havia 8 mil prisioneiros com mais de 55 anos nas cadeias dos EUA. Em 2010 eram 125 mil, e em 2030 a projeção é de 400 mil. Isto se deve a uma combinação de sentenças mais pesadas e expectativa de vida (remédios, etc.) maior. Ridgeway argumenta que prisioneiros liberados após os 50 anos só voltam a ser presos em 2% dos casos. Um estudo acompanhou 469 presos por crimes violentos que foram libertados depois de ficarem velhos; nos 13 anos seguintes, apenas 18 voltaram à cadeia, e somente 1 por crime violento. Aliás, o custo de um prisioneiro idoso é de US$ 68 mil por ano, o dobro do que custa um preso jovem.

Estabelecer um limite máximo de encarceramento, como no Brasil, talvez seja simplesmente estar mudando o problema de lugar, mas se existe uma chance razoável de um sujeito, depois de 30 anos de cadeia, voltar a se integrar à sociedade civil, essa chance deve pesar nas escolhas.  Mas isto são problemas de país civilizado. Aqui no Brasil, a Lei joga os criminosos num porão e deixa que a Natureza se encarregue do resto.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

3034) Emmanuelle (18.11.2012)





Faleceu aos 60 anos, em outubro, a atriz Sylvia Kristel, a Emmanuelle dos filmes eróticos mais famosos da década de 1970. Estava envelhecida e cansada após uma luta de dez anos contra o câncer.  A imagem que fica é a da mulher esguia, elegante, frágil, sensualmente passiva, que nos filmes de Just Jaeckin se submetia a lições de erotismo ministradas por um homem mais velho, as quais incluíam ser levada a um antro de ópio e oferecida aos homens de lá.  Emmanuelle fez sucesso reproduzindo a pornografia tradicional numa narrativa não limitada às cenas de sexo, e com um revestimento sofisticado e cosmopolita, para tentar reduzir a vulgaridade e a brutalidade associadas ao gênero, principalmente pelas mulheres.  O conceito de pornografia soft tentava somar dois públicos, o de pessoas ansiosas para ver sexo explícito na tela do cinema e o de pessoas que só admitia ver esses filmes se embalados num celofane chic de paisagens, ambientes ricos, diálogos vagamente existenciais, etc.

O obituário do The Economist lembra que as cenas de sexo de Kristel eram quase sempre em “flou”, diluídas visualmente por cortinados, vapor dágua, etc., e que a mãe da atriz, quando finalmente conseguiu ver o filme que fez a fama da filha, perguntou: “Mas era só isso?”.  O mesmo texto lembra que o filme foi proibido em alguns países: Brasil, Espanha, Japão e o mundo árabe. As várias continuações que o filme teve (inclusive na TV) foram, pelo que me lembro, diluindo em banalidade a proposta inicial.

Um dos grandes problemas da narrativa erótica (romance, cinema, etc.) sempre foi o modo de abordar e conquistar o público feminino. A pornografia tradicional tem por lei ir direto aos finalmentes, ao intercurso sexual nu e cru, sem preliminares, sem preparativos, sem fricotes.  Nos cinemas pornô, se um casal no filme passar um minuto conversando alguém protesta logo: “Bora, rapaz! Quero ver serviço!”  A lógica do espectador é que pagou para ver aquilo que não vê nos outros filmes.  Pra ver gente conversando ele não precisa ir naquele cinema.

Já as mulheres são capazes de aceitar até cenas bastante “hardcore”, desde que haja preliminares, e que o sexo pelo menos pareça associado a um tipo mais amplo de envolvimento, e não se limite à mecânica brutal das genitálias. O sucesso de 50 Tons de Cinza, escrito aliás por uma mulher, é um passo à frente na consolidação de um dos gêneros de mais futuro no mercado: pornografia explícita feita para mulheres, revestida dos álibis necessários e partindo daí para explorar fetichismo, sadomasoquismo e tudo o mais. Emmanuelle paira sobre todas essas alcovas literárias e cinematográficas.


sábado, 17 de novembro de 2012

3033) A família (17.11.2012)





Estou acompanhando, como já falei aqui, a série de TV Breaking Bad, da TV a cabo. Foi criada por Vince Gilligan, um dos responsáveis por Arquivo X, outra das poucas séries que cheguei a acompanhar. “BB” é a história de Walter White, um professor de química que aos 50 anos descobre que está com câncer e talvez tenha um ano de vida.  Walter se apavora, menos por si do que pela família.  A esposa, Skyler, trabalhou como contadora e pensa numa carreira literária; logo ela descobre que está grávida. O filho de 15 anos, Walt Jr., tem uma forma atenuada de paralisia cerebral, e anda com ajuda de muletas. É esperto, entende tudo, mas precisa de cuidados especiais.  O que será da família, quando Walter morrer e deixar de ser o seu provedor?  Walter decide fabricar metanfetamina, que ele (um nerd CDF até não poder mais) consegue fazer com 99% de pureza química. Ele dá um banho na concorrência e em pouco tempo açambarca o mercado do sudoeste dos EUA, perto da fronteira com o México.

Para salvar a família, Walter cria uma escalada de crimes, violência, tráfico, com uma tragédia pessoal se sucedendo a outra.  É uma dessas histórias onde as boas notícias são somente que alguém escapou de uma emboscada ou que um chefão do tráfico fez uma proposta milionária pelos serviços científicos do “químico nota 10”.  Walter e a mulher ficam num separa-volta-separa que não tem fim, e ele sempre dizendo que tudo que faz (ela vem a saber de parte da verdade, lá adiante) é para proteger a família.  E ela uma vez lhe diz: “Pois eu estou aqui para proteger a família desse homem que quer protegê-la”.

Obama, Romney, tantos. Toda campanha norte-americana tem que pedir a bênção no altar de Santa Família, aquilo que Stálin chamava “a célula-mater da sociedade”. Que neste sentido tanto faz ser comunista, capitalista, democrática ou mafiosa.  Brincando com a palavra MÁFIA encontrei o anagrama FAMIA, que só faz sentido no Nordeste. A família é um grupo a quem você deve uma fidelidade religiosa, robótica, inquestionável. Obama disse no discurso de vitória, referindo-se à população: “Nós somos uma família americana, e nos ergueremos juntos ou tombaremos juntos, como uma só nação ou uma só pessoa”. 

Para salvar sua família, Walter White é capaz de crimes arrepiantes, ainda mais quando, às vezes, se baseiam apenas numa omissão mais maquiavélica do que qualquer ação. Sua família é mantida sólida e aparentemente feliz às custas da destruição da família ou da pessoa física de quem quer que se atravesse na sua frente.  O rosto careca de Walter e seu cavanhaque mefistofélico parecem estar dizendo a quem se atravessa na sua frente: “This is America”.



sexta-feira, 16 de novembro de 2012

3032) Luiz Wanderley (16.11.2012)





Seguindo uma dica de Gerdal José de Paula, incansável pesquisador da MPB, relembrei as canções de Luiz Wanderley (1931-1993), um dos forrozeiros que fizeram sucesso na minha infância e adolescência, e depois foram esquecidos (inclusive por mim). Wanderley era alagoano, e quem não ligou o nome à pessoa deve lembrar de um dos maiores sucessos dele, principalmente na voz de Tim Maia: “Coroné Antonio Bento” (com João do Vale). O link fornecid0 por Gerdal (http://bit.ly/XBLGhF) é da gravação original da música, em que a noiva se chama Mariá (e não Juliana), e há mais uma estrofe, que Tim Maia não cantou: “Meia-noite o Bené se enfezou/e tocou um tal de rock and roll /os matutos caíram no salão/não quiseram mais xote nem baião/e que briga se falasse em xaxado/foi aí que eu vi que no sertão/também tem uns matutos transviados."

LW fazia parte da linha litorânea e coquista da música nordestina; era mais Jackson do que Gonzagão. Suas cantigas têm ritmo seguro e marcado, versos de embolada, breques bem quebrados, melodia ágil e variada que sua voz segura e melódica valoriza.  “Saudade de Leopoldina”, “Ai que vontade de comer goiaba”, “Bode cheiroso”, “Coco do Gogó da Ema”, “Baiano burro nasce morto” (“O pau que nasce torto, não tem jeito, morre torto / baiano burro garanto que nasce morto”. Esta última canção serviu de modelo para “Mineiro sabido” (1960); este clip de chanchada dá uma idéia do jeito mungangueiro de Wanderley (http://bit.ly/UEOrs7).

Os anos 1960 viram a pororoca gigantesca entre o baião, que predominava em nossas rádios, e a invasão do rock norte-americano. Uma canção como “Rock do Sedaka” (que atribui a invenção do rock a Neil Sedaka!) é uma sátira divertida dessa época (como já era “Coroné Antonio Bento”), inclusive com piadas para “Elvis Prego” (http://bit.ly/W5EkOj). Veja-se também “Carolina”, talvez uma resposta brasileira ao “Corrina, Corrina” que Ray Peterson tornou famosa em 1960 (http://bit.ly/QEcU55). 

Grande parte do parentesco melódico entre o rock e a música nordestina (coco, baião) veio dessa época em que as duas se misturaram no mercado fonográfico e radiofônico do Rio, atacado ao mesmo tempo, em dois flancos desguarnecidos, pelo Nordeste e pelos EUA. Raul Seixas, Alceu Valença, etc. insistem nessa identidade profunda entre as duas. Sinal de que os ritmos populares, rurais, do interior profundo, foram desviados rumo à partitura e ao acetato, pela guitarra, lá, e pela sanfona aqui. Transformados em música urbana, música cantada nas capitais e repercutida em tempo real para os sertões de lá e de cá, são agora a síntese entre a força milenar do interior e a energia moderníssima da cidade.


quinta-feira, 15 de novembro de 2012

3031) Vamos salvar a Grécia (15.11.2012)




(O Desprezo, de Godard)


Numa entrevista que deu este ano à imprensa, Jean-Luc Godard sugeriu uma solução pouco ortodoxa para a crise econômica da Grécia. Como se sabe, a Grécia entrou para a União Européia como aquelas enormes famílias suburbanas que mal arranjam um dinheirinho vão morar num condomínio de luxo. Eles descobrem que viver num condomínio de luxo é muito bom para os que desfrutam do luxo, mas nem tanto assim para os que pagam o condomínio. A Grécia tem certamente uma elitezinha, uns “aristos” que multiplicaram por dez suas posses e suas contas na Suíça, mas o povo grego está pagando caro pelo sonho de ser rico.

Godard tem uma solução. Ele nos lembra que os gregos nos deram a filosofia, a lógica, o encadeamento conseqüencial de raciocínios e argumentos, e que tudo isto está cristalizado na palavra “logo”, como a usamos em “penso, logo existo”. Esta palavrinha nos permite conectar conclusões do pensamento. E Godard sugere que comecemos a pagar direitos autorais por ela, já que é uma criação do pensamento grego. Vivemos numa sociedade em que é preciso pagar cada vez que utilizamos as palavras ou as idéias de alguém. Então, comecemos pelo começo de tudo – a Grécia Antiga!

Diz Godard: "Se formos obrigados a pagar dez euros à Grécia cada vez que usarmos a palavra 'logo', a crise acabará em um dia, e os gregos não precisarão vender o Partenon aos alemães. Temos no Google a tecnologia para rastrear todos esses 'logos'. Podemos até cobrar das pessoas pelo iPhone. A cada vez que Angela Merkel disser aos gregos 'nós emprestamos todo esse dinheiro a vocês, logo vocês precisam nos pagar de volta com juros', ela será obrigada, logo, a pagar primeiro aos gregos pelos royalties."

Godard é cruel com os algozes e com as vítimas. Ou melhor: ele mostra o quanto este mundo fraturado pelo dinheiro é cruel com ambos. A Alemanha se julga um Monte Olimpo de estabilidade e conforto, e se irrita com a presença física dos migrantes ou com a presença econômica das nações amigas, de pires na mão, pedindo ajuda. Pois é... Por que tanta coisa na nossa civilização é compartilhada gratuitamente, mas em alguns domínios é preciso pagar, pagar, pagar?  E nós, que cultivamos uma coisa metade profissão metade paixão, temos que dizer a toda hora, a todo mundo: Você vai ter que pagar pelos meus livros, meus filmes, minhas canções. Vai ter que pagar pelas minhas idéias, opiniões, críticas, conselhos. Vai pagar pelas minhas perguntas e pelas minhas respostas. Vai pagar pela minha conversa, pela minha companhia, pela minha presença. Vai ter que pagar pelo abraço, pelo beijo, pelo sexo, pelo olhar. Vai pagar assim tão caro, somente pra me ouvir e ver?



quarta-feira, 14 de novembro de 2012

3030) O verso indelével (14.11.2012)





A religião diz que a alma é uma essência capaz de se anexar a um corpo material e manifestar-se através dele. Isto pode não ser verdade no campo metafísico, mas é mais ou menos o que acontece no campo literário, em níveis sucessivos de complexidade. Veja-se por exemplo o caso de uma obra literária. Ela consiste em um texto, que é a alma, e que pode se traduzir nos “corpos” mais diferentes: um livrinho de bolso, uma edição de luxo, um arquivo PDF guardado num pendraive, um arquivo “.doc” gravado num CD, um folheto de cordel, um disco de vinil com o texto lido em voz alta.  Cada uma destas instâncias físicas é radicalmente diferente das outras, mas todas são capazes de reproduzir, por meios distintos, o objeto linguístico a que chamamos de texto literário (e que pode ser um poema, um conto, um romance, etc.).

Isso não se deve à arte literária em si, e si a algo muito mais básico, a própria estrutura da linguagem. A linguagem consiste em alma e corpo, ou seja, espírito e matéria, ou seja, idéia e palavra.  Nós usamos a palavra “livro”, os ingleses “book”, os franceses “livre”, e assim por diante; e todos esses conjuntos de fonemas falados ou de sinais escritos remetem à mesma idéia abstrata. É incrível que esses sinais consigam evocar em cada pessoa uma idéia equivalente. Acho que só ocorre porque há poucas coisas que a gente pratique tanto quanto a linguagem. Mas... todos concordamos sobre o significado de livro, mesa, garfo, TV, parede; mas quando começamos a discutir palavras mais abstratas (democracia, liberdade, amor, etc.) é que vemos o quanto esses termos são meras convenções, e como às vezes usamos a mesma palavra mas estamos pensando em coisas muito diferentes.

Dias atrás escrevi aqui sobre a permanência da enunciação poética num verso escrito por Drummond, por exemplo. Dias depois, no tablóide literário curitibano Cândido, vi um poema de Alexei Bueno também dedicado ao poeta de Boitempo, onde ele diz: “Mas não, quanta mentira... O que houve um dia / nada o pode anular, nada esvazia / a fôrma do poema, quando o poeta / deixa-a, médium de si, clara e repleta”. 

É a descrição exata do fenômeno linguístico, e do poético, por extensão. O verso escrito é “médium de si” no sentido kardecista do termo. Ele recebe uma alma, e a alma que recebe é a dele mesmo. Enquanto não são lidos, aqueles sinais de tinta na página são um verso morto, sem sentido. O sentido só acontece quando ele é lido. O texto escrito é médium de si mesmo, é mídia de si mesmo, é código de si mesmo, sempre pronto para mais uma reiteração do pequeno milagre eletroquímico que se dá no cérebro quando a gente lê um verso.


terça-feira, 13 de novembro de 2012

3029) "Operação Skyfall" (13.11.2012)





O novo filme de James Bond, dirigido por Sam Mendes, lembra aqueles sanduíches do Subway, que a gente ajuda a preparar.  Há milhões de combinações possíveis, mas todo sanduíche que eu como é parecido com os anteriores, não importa o quanto eu faça variar os ingredientes. Franquias pop são feitas para funcionar desse jeito, e se algum espectador criticar James Bond por ser assim é o mesmo que criticar um baile de carnaval porque tem muita gente pulando.

Daniel Craig trouxe ao personagem de 007 um realismo rude que estava ausente de espiões charmosos como Sean Connery e Pierce Brosnan. Craig tem físico de estivador, cara de caminhoneiro e fôlego de volante do Chelsea.  É um ator com quem (penso eu) muitos ingleses de origem popular se identificam mais do que com os playboys dos filmes anteriores.  Com ele Bond fica mais realista e menos HQ, e neste filme temos (acho que pela primeira vez na série) revelações sobre sua infância, seus pais, a casa em que foi criado (e onde acontece o clímax devastador do filme).  Como em outros filmes recentes sobre heróis pop (Batman, X-Men, etc.) o mito está se perpetuando através de camadas de realismo psicológico e verossimilhança social. 

O roteiro tem as previsíveis perseguições, infiltrações, etc.  Javier Bardem faz um excelente vilão: blasé, traumatizado, melífluo, insensível, meio infantil... Cada cena sua, cada plano, traz uma expressão facial ou uma inflexão de voz que soma outra característica ao personagem.  O bom vilão é aquele de quem podemos esperar qualquer coisa.  Há duas Bond-girls apenas (a morena Naomie Harris, a asiática Bérénice Lim Marlohe) previsivelmente lindas e perigosas. (Não sei se é minha memória que está alterando as coisas, mas este é um dos filmes mais castos de 007, com uma única, breve e elíptica cena de sexo.) Uma novidade interessante é que Q, o tecno-gênio responsável pelos gadgets de Bond, agora é Ben Wishaw, um geniozinho informático.

O filme é repleto de detalhes que já não sei mais se são citações, homenagens, ou simplesmente o sintoma de “pega aquele troço ali naquela prateleira”. A perseguição de carros numa feira livre é igual a todas as perseguições de carros numa feira livre. O vilão é encerrado numa campânula igualzinha à de Hannibal Lecter.  A descida-aos-infernos inicial é puro Batman. O atentado durante a sessão ministerial é puro “Sherlock Holmes” (a versão Robert Downey). A melhor sequência talvez seja a da ilha abandonada, cheia de prédios em ruínas, onde o vilão instala seu quartel-general, uma metáfora visual rica e não-forçada do que é viver num mundo onde quem manda é um vilão de filme de espionagem.


domingo, 11 de novembro de 2012

3028) Os direitos de Faulkner (11.11.2012)



(William Faulkner)


A Sony Pictures está sofrendo um processo por parte dos herdeiros de William Faulkner por causa de uma frase do autor que aparece no filme “Meia Noite em Paris” de Woody Allen.  A frase é a famosa “The past is not dead. It’s not even past” (“O passado não morreu. Na verdade, ele nem sequer passou”.) Quando vi essa notícia, gelei, porque eu mesmo já devo ter citado essa frase mais vezes do que Woody Allen. Toda vez que o porteiro me entrega a correspondência, o primeiro envelope que procuro é o da intimação judicial. 

O texto enviado à Sony reclama que a produtora não pediu autorização para citar esta frase, e diz: “O uso desta citação irregular e do nome de William Faulkner nesse filme tende a causar confusões, a causar equívocos, e/ou enganar os espectadores do filme infrator levando-os a supor uma afiliação, conexão ou associação entre William Faulkner e sua obra, de um lado, e a Sony, do outro”. Isto equivale, grosso modo, àquelas cenas em que um pirralho pega o trenzinho do outro para brincar, e o outro imediatamente arrebata de volta o trenzinho e o desce com força na testa do provocador.

Fiquei mais tranquilo quando vi que o filme arrecadou 94 milhões de dólares. O que recebo no Jornal da Paraíba não chega nem à metade disso, de modo que eles provavelmente irão concentrar seus esforços em cima do pobre Woody.  Isto me lembra o episódio de um álbum de fotografias que foi embargado aqui no Brasil pelos herdeiros de Manuel Bandeira, que se queixavam de não ter recebido nem um tostão pelo fato do poeta aparecer em uma das centenas de fotos que havia no álbum.

Se isso é “direito autoral”, amigos, a minha vontade, a cada ano que passa, é arranjar um emprego burocrático (sou bom datilógrafo!) e liberar tudo que escrevi até hoje, desde que seja para uso não-comercial. Qualquer um pode gravar minhas músicas ou imprimir meus textos, desde que ninguém ganhe dinheiro com isso. Direitos autorais são uma coisa muito justa quando exprimem a remuneração de um autor pelo seu trabalho intelectual e físico (sim, escrever envolve esforço físico), e ajudam a pagar suas despesas. Faulkner ganhou o bastante, em vida, para beber tudo a que tinha direito. As frases que escreveu se impregnaram na nossa linguagem diária (até na minha, imagine só, eu que nunca li um só livro dele). A presença da frase de Faulkner não influiu na bilheteria do filme de Allen, que com frase ou sem frase seria exatamente a mesma. Agora... 94 milhões são 94 milhões, né? Acho que vou ver o filme de novo, e vou entrar com um processo se Owen Wilson disser “eu vi o céu à meia noite se avermelhando num clarão”.

sábado, 10 de novembro de 2012

3027) Escrita em grupo (10.11.2012)






Nosso conceito de arte literária é muito impregnado de individualismo. Um livro é a visão pessoal, intransferível, única, daquele autor sobre o mundo.  Se a premissa é esta, qualquer terceirização de esforços pode distorcer, contaminar ou diluir essa visão, introduzindo um ruído indesejável. 

É como ir ver uma conferência de um cientista e vê-lo delegar a seus alunos e monitores uma boa parte dela.

Na literatura de massas, contudo, o Livro é o centro, não o Autor. 

O livro tem que corresponder a uma fórmula ou série de fórmulas (policial, terror, romântico, aventura, espionagem, etc.), e se a fórmula é criativamente revivida pouco importa se o foi por um único autor  ou por uma equipe. 

Um autor dedicado, intenso, pode formar colaboradores sintonizados com suas idéias e seu modo de escrever, e pode supervisionar seu trabalho, sem dúvida, gerando livros não muito diferentes dos que ele teria escrito sozinho se tivesse tempo para tanto.

Quando falamos em obras de arte criadas em equipe, sempre é citado o caso das pinturas de Michelangelo, que ele criava com o auxílio de seus aprendizes. Ele concebia a obra, fazia o esboço geral das figuras (estou especulando – nunca li sobre seu método de trabalho), escolhia as cores, etc. E, o mais importante: se ele via algo que não gostava, ia lá pessoalmente e pintava por cima. 

A pintura possibilita isso. Há quadros famosos por aí com incontáveis camadas de tintas superpostas. Na pintura, o que é cortado não é propriamente cortado, é recoberto.

Mas não me consta (se estou errado, me corrijam) que Michelangelo fizesse esculturas trabalhando coletivamente. As esculturas eram produto dele mesmo. Por que? Porque (acho) se numa escultura um aprendiz desajeitado tira mais pedra do que devia não há como colocar a pedra de volta. Numa escultura, cada pancada do cinzel é definitiva. Escultura (ao contrário da pintura e do livro) não tem Ctrl+Z.

No caso da literatura (e, mais recentemente, do roteiro de cinema, da telenovela ou da série de TV), todo trabalho delegado a alguém tem dois VV, vai e volta.  

O autor diz: “Agora você escreve a cena do assalto ao banco. Eles entram, fazem o roubo, trocam tiros, Fulano é morto, Sicrano é ferido e os outros fogem com a grana”. 

O redator  cria a mecânica da ação, os diálogos, os pequenos detalhes, a amarração toda. 

E o autor corrige: “Essa troca de frases é desnecessária... esse tiro em Sicrano é melhor que pegue na perna, não no ombro... não gostei de matarem o segurança, basta desacordar...” e assim por diante. 

Anotem: qualquer criação coletiva pode ser autoral desde que tudo comece e termine pelas mãos do autor.







sexta-feira, 9 de novembro de 2012

3026) Obama (9.11.2012)




Fiquei acordado até as 5 da manhã (o que para mim, admito, não custa muito esforço) até assistir o discurso da vitória de Barack Obama na eleição dos EUA.  E fiquei lembrando de quando fiz a mesma coisa, em 2008. Quatro anos atrás. Era outro mundo. Mudou o mundo, mudei eu, mudou o Natal, mudou Machado de Assis, mudou o rio de Heráclito, mudou Barack Obama, que havia prometido aos norte-americanos “esperança e mudança”. A mudança que houve talvez não tenha sido a desejada, mas as urnas mostraram que a esperança continua. Foi uma escolha entre a insatisfação e a catástrofe. Romney é o representante de uma geração que não liga para o risco de destruir o mundo, contanto que eles continuem bilionários (talvez a última geração de bilionários a existir no planeta).

O destino do mundo depende em grande parte dos EUA e das suas decisões internas, principalmente sobre economia e sobre a questão ambiental. Se Obama não está correspondendo, Romney seria muito pior. Nem falo de outras questões, também importantes para qualquer país: migração, direitos civis, projetos de saúde, desemprego, drogas, violência, aborto, recessão econômica... O mundo tem dois problemas de vida-ou-morte hoje em dia.  O primeiro: nas próximas décadas, pode haver uma crise econômica capaz de zerar a fantasia financeira em que vivemos todos nós. O segundo: pode haver alguma catástrofe ambiental gigantesca, específica, dentro da destruição geral que já está em marcha. Estas duas questões são as mais importantes para o mundo. Obama não nos garante a salvação, mas o partido de Romney iria trabalhar (cegamente, egoisticamente) para piorar ainda mais as coisas.

Thomas Friedman, do NY Times, escreveu que o Partido Republicano estava visivelmente fazendo de tudo para que o governo Obama fracassasse, “para, então, dar o bote e catar os cacos”.  É a atitude que se pode esperar de uma elite de bilionários, milionários (e aspirantes a ambos), para a qual não importa se centenas de milhões de pessoas vão despencar na miséria, desde que eles continuem onde estão. Os problemas dos EUA (ou do Brasil, ou do mundo) não se resumem a isto, mas isto está na raiz de no mínimo metade dos demais problemas. Friedman disse que a vitória de Obama foi devastadora para os republicanos: “um país com quase 8% de desemprego preferiu dar ao presidente uma segunda chance do que dar a Mitt Romney a primeira”. Este resultado de Obama (uma vantagem de menos de 3 milhões de votos) pode significar uma pequena mas decisiva vitória da esperança, um sinal de que os EUA estão se tornando menos elitistas, menos racistas, menos suicidas.


quinta-feira, 8 de novembro de 2012

3025) Tradução: Paulo Bezerra (8.11.2012)






O paraibano Paulo Bezerra tem sido há bastante tempo um dos melhores tradutores do russo no Brasil, juntamente com o veterano Boris Schnaiderman e jovens como Rubens Figueiredo (“jovem” pra mim é quem é um pouquinho mais novo do que eu). Dias atrás ele recebeu a Medalha Púchkin, condecoração conferida a quem difunde a cultura russa em outros países, e que o próprio Schnaiderman já recebera. Bezerra, que mora hoje no Rio de Janeiro, não pôde ir a Moscou, por motivos de saúde.

Aos 72 anos, ele é um desses paraibanos de trajetória improvável. Nascido em Pedra Lavrada, aos 18 anos foi para São Paulo, tornou-se operário metalúrgico, entrou para o Partido Comunista, foi estudar em Moscou e estava por lá quando houve o golpe de 1964. Achou melhor demorar-se na URSS e esperar um momento mais tranquilo para retornar.  Enquanto isto, formou-se em História e Filologia, e voltou ao Brasil apenas em 1971. Em Moscou, já realizara suas primeiras traduções (como se sabe, os soviéticos traduziam e editavam em seu próprio país, em tudo quanto era língua, os clássicos do marxismo e da literatura local.)

Numa matéria de Joselia Aguiar da Gazeta Russa (http://bit.ly/Sh2eFb), Bezerra afirma que “aprendeu que o sentido muitas vezes está no ritmo”, e que ao traduzir busca “o ritmo das falas, da oralidade”. Suas traduções de Dostoiévski (para a Editora 34) surpreendem às vezes os leitores antigos, acostumados às traduções brasileiras feitas a partir de traduções francesas. Para esses leitores, a prosa elegante a que estavam acostumados é substituída pelo que Bezerra considera o verdadeiro Dostoiévski, de linguagem “dura e tosca”, e com momentos “de quase intradutibilidade”.

É mais ou menos como se alguém pegasse uma tradução de Graciliano Ramos para o inglês e a usasse para fazer uma versão para outro idioma, sem ter experimentado a prosa “dura e tosca” do original, e sem perceber, portanto, o quando essa dureza gerava dentro de si um novo sentido de elegância verbal, baseada num jeito cru de dizer as coisas sem floreios, em justaposições inesperadas, em sínteses brutais. A façanha de Paulo Bezerra nos traz um novo Dostoiévski, assim como as três versões que temos agora do Ulisses de Joyce nos permitem entrever melhor, nessa prosa triplamente refratada, algo da sonoridade e das significações do original.

Sobre o ato de traduzir, Paulo Bezerra diz: “É maravilhoso e exaustivo, entra-se numa espécie de estado encantatório, hipnose que o faz perder a noção do tempo. Quanto mais trabalha, mais se entrega ao trabalho. O texto arrasta você para dentro, surge uma segunda alma.” Acho que Dostoiévski não descreveria melhor.


quarta-feira, 7 de novembro de 2012

3024) O PCC (7.11.2012)



("Salve Geral")


O PCC, ou Primeiro Comando da Capital, nunca é chamado pelo nome nos telejornais da Globo. É sempre citado como “a facção criminosa que controla os presídios paulistas”, ou algo assim. (Por uma questão de coerência, a TV deveria também referir-se à CBF, por exemplo, como “a organização-com-finalidades-de-lucro que finge administrar o futebol brasileiro”.) Dizem que usar o nome de algo ou alguém significa reconhecer sua existência. Isto é um resíduo curioso do pensamento mágico/supersticioso, das pessoas que dizem “CA” para não atrair o câncer e que em noites de trovoadas não usam a palavra “raio”, usam “faísca”. É o vocabulário do avestruz: se eu não pronuncio o nome, a Coisa não existe.

Não tenho simpatia pelo PCC (nem pela CBF), mas ambos são fenômenos da nossa sociedade, tanto quanto as seitas evangélicas, os partidos políticos e a música tecno-brega. Mesmo sem simpatizar com eles, não podemos fazer de conta que não existem. O blog “Crimes no Brasil” reuniu em 2010 quatro pesquisadores acadêmicos que estudam o PCC e as prisões paulistas, e fez-lhes 16 perguntas, cujas extensas e desconcertantes repostas podem ser lidas aqui: http://bit.ly/9cVtf4. Abaixo, transcrevo alguns trechos.

Camila Nunes Dias (USP): “Antes (do PCC) as regras eram impostas – e quebradas – por líderes individualizados que alcançam essa posição a partir da imposição da violência física, do medo e da ameaça, além da formação de pequenos grupos que se utilizavam dessa superioridade física para dominar os mais fracos. (...) O PCC se constituiu como instância reguladora, de imposição e controle do cumprimento das regras, assim como de punição aos transgressores”.

Karina Biondi (UFSCar): “São muitas as mudanças que ocorreram nas prisões após o nascimento do PCC: diminuição no número de homicídios e das agressões entre prisioneiros, fim do consumo de crack e dos abusos sexuais, não se vende mais espaço na cela, não se troca favor com agentes penitenciários em benefício próprio em detrimento de outros, não se fala palavrões. Mas é importante lembrar que essas mudanças não são frutos de leis, decretos ou imposições. Suas propostas nascem de amplos debates e são expandidas e adotadas paulatina e assistematicamente, não sem resistências e diferenciações na condução dessas políticas”.

O PCC é o surgimento de um novo Contrato Social para extinguir, ou amenizar, a selvageria na prisão. Quando você serra uma barra de ferro imantada, o campo magnético se reorganiza em cada um daqueles pedaços. Onde você isolar uma comunidade humana, ela tenderá a se organizar em novas estruturas de poder, convivência, diálogo, repressão, controle de conflitos.


terça-feira, 6 de novembro de 2012

3023) "Gonzaga de pai pra filho" (6.11.2012)





O filme de Breno Silveira deve ter surpreendido quem esperava uma biografia linear de Luiz Gonzaga, sua vida de A a Z. O roteiro traça uma cronologia razoável da vida de Luiz, mas se concentra em sua relação com o filho Gonzaguinha. Pais ausentes, filhos carentes; um drama antigo, que ganha empatia ao envolver dois grandes artistas. Pai e filho foram o avesso um do outro: o migrante sertanejo que conviveu com políticos e coronéis, e o universitário de esquerda criado no morro. A sanfona e o violão, o forró e a MPB, e o fato de que a ascensão do filho coincidiu com o declínio do pai. Essa inversão das posições de poder deve ter ajudado (o filme sugere isso) esse reencontro (não sem aspereza de parte a parte) entre dois homens adultos, cada qual se julgando injustiçado pelo outro.

O filme funciona na razão direta da credibilidade dos atores. Chambinho do Acordeom talvez não reconstitua certos traços psicológicos de Gonzaga (ele parece ingênuo e juvenil demais, e tenho pra mim que Gonzaga era mais esperto, mais macaco-velho do que o que aparece no filme), mas sua simpatia, seu sorriso e seu carisma evocam sem esforço o Gonzaga desse período. Já Adélio Lima, que faz o Gonzaga idoso, tem uma composição mais profunda e mais complexa. É um homem amargo, irônico, vivido, castigado pela fama e pela incessante batalha. Julio Andrade, por sua vez, é um impressionante clone de Gonzaguinha, reconstituindo seu jeito desengonçado, tenso, nervoso, como uma corda de cavaquinho prestes a saltar.

O filme é um melodrama redondo e firme, comparável ao Dois filhos de Francisco do diretor. É a história da luta pelo sucesso e do valor cobrado pelo imposto do sucesso, que não é menor que o do fracasso.  A narrativa se torna meio confusa no aspecto fonográfico quando acompanha os primeiros anos do estouro nacional do baião, mas acho que só os cronologistas profissionais percebem. O enfoque adotado, de deixar a obra em segundo plano, faz os parceiros de Gonzaga terem uma passagem relâmpago pela tela, mas em compensação o casal Henrique e Dina (os pais adotivos de Gonzaguinha) tem sua importância reconhecida.

O problema de todo melodrama é a busca forçada da emoção. O filme poderia ser mais seco e mais calmo em vários momentos, mas há muitos outros em que o diretor parece achar o tom certo, que sugere uma emoção real. Não é fácil recriar em uma dúzia de cenas a complexidade de uma relação afetiva que se deu durante décadas. Exigir isto de um filme é um pouco como Gonzaguinha tentar trazer para uma fita cassete C-60 a história inteira dos seus pais. O resultado é honesto, simpático, apesar da tarefa impossível que se propõe.