quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

1485) O Burocrata Troglodita (16.12.2007)


Quando as tribos crescem, é preciso que alguém encare a espinhosa tarefa de dar-lhes Ordem, antes que o Caos tome conta. Ainda mais hoje, no tempo pré-histórico, quando não dispomos das facilidades de catalogação do mundo moderno: computador, Internet, livro de ponto, expediente, protocolo, e manifestações de apreço ao Sr. Diretor. Não obstante, a chama do pensamento criador já brilha em nossos cérebros hominídeos!

Por exemplo: um debate acirrado, que está pegando fogo aqui na caverna, é o que se trava entre duas correntes do pensamento organizatório. De um lado, temos os partidários da Ordem Alfabética, e do outro os defensores da Ordem Cronológica. Estes surgiram primeiro, em virtude da nossa percepção empírica do suceder dos dias e noites. Tivemos várias reuniões em volta à fogueira (nosso “locus” de debate por excelência, até porque fica mais fácil livrarmo-nos dos dissidentes). Eu havia nomeado um Grupo de Trabalho para preparar um cronograma das atividades da tribo. Um dos grandes problemas de nossa era paleolítica é a interminável discussão de todas as manhãs, que nos faz perder um tempo enorme antes de sairmos à procura de alimento. Existem duas correntes filosóficas principais: os Ineditistas, para os quais aquele dia é um dia que nunca aconteceu antes, e os Recursivistas, para os quais todo dia é uma repetição deteriorada do dia anterior. Ambos parecem ter carradas de razão – pelo menos, ambos têm carradas de argumentos. Quando chegamos a um impasse mais espinhoso, a tarde já descamba, e os jovens já estão de volta trazendo mel, frutos silvestres, e de vez em quando um javali abatido.

Ordenei ao Grupo de Trabalho que fizesse uma lista de todos os eventos da vida da tribo, para que tivéssemos certeza se determinado fato já tinha ocorrido ou não. O grupo pôs logo mãos à obra, e dentro de breve tempo tínhamos catalogado uma quantidade impressionante de informações, tais como “Chuva apaga fogueira”, “Aranhas invadem caverna”, “Mulher 17 tem bebê”, etc. Como ainda não dispomos da escrita, ficamos na dependência da memória dos membros do grupo, que a certa altura começaram a confundir-se, misturando “Raio carboniza árvore” com “Raio carboniza árvore”, dois fatos ocorridos em anos diferentes, mas que catalogados assim parecem uma repetição.

Surgiu então a teoria da Ordem Alfabética, cujo grupo sugeriu nomearmos membros da tribo para a memorização dos fatos começados por uma mesma letra. Esta foi uma evolução notável, porque tivemos que inventar o alfabeto, mesmo sem podermos imaginar os espantosos desdobramentos futuros de uma tão simples medida. O problema, agora, é que, por alguma razão que desconhecemos, os fatos enumerados em ordem alfabética estão numa tremenda desorganização cronológica; e vice-versa. O que parece sugerir a hipótese, muito perturbadora até para uma mente troglodita, de que quanto mais a gente busca ordem numa direção mais vulnerável fica ao caos, na direção oposta.

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