domingo, 21 de junho de 2009

1105) Nonada (30.9.2006)



O doutor de óculos chega de visita no sitiozinho do velho jagunço. Senta no alpendre, alguém lhe oferece água, diz que o dono da casa chega já. Durante o copo dágua, o visitante ouve tiros e mais tiros nas proximidades: pá, pá, pá... Daí a pouco chega o jagunço velho, cumprimenta-o, deixa-se cair na rede da varanda. O doutor exprime sua preocupação: está havendo briga, tiroteio com inimigos?... O velho dá uma risada e diz: “Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvore, no quintal, no baixo do córrego...”

Guimarães Rosa pegou uma das palavras mais esquecidas da língua e trouxe-a para o proscênio, desnudando-a para sempre à luz dos holofotes da posteridade. Quem se disponha a entrar nas seiscentas e tantas páginas de “Grande Sertão: Veredas” vai ter que fazê-lo pela mão dessa palavrinha meninota, novinha em folha. E que significa “quase nada”. Um nadinha de nada. Coisa sem importância, coisinha ínfima, bagatela.

Minha definição pessoal de “nonada” se baseia nessa forma, que me parece óbvia: “não-nada”. Parece uma fórmula minimizadora: “ah, não foi nada não...” Mas não-nada é para mim aquilo que em Matemática chamamos “diferente de zero”, usando como notação diante do zero o sinal-de-igual cortado por uma barra oblíqua. Diferente de zero pode ser algo como 0,001. Quase nada. Um nadica de nenhuma coisa, mas uma lasquinha de coisa que para se representar na página gasta mais tinta do que um 1.

Por que essa preocupação, essa minúcia oftalmológica de enxergar tamanhinhos ciscos, tamanhinhos grãos? Porque tudo tem importância. O doutor precisa saber que aqueles tiros não foram para matar gente. Foram tiros virtuais, tiros estéreis, descarga de projéteis sem alvo humano envolvido. Não foram uma coisa, mas foram outra. Nada no mundo é o zero total, tudo tem uma vírgula e um colar de zeros com um 1 lá na ponta. Tudo que existe é um não-nada, é negação do vazio.

Por que lembro disto logo agora? Porque hoje no espelho vi um jagunço velho que nunca deu um tiro, nunca se travou de faca com seu-ninguém, nunca foi chamado a descobrir se é ele mesmo ou não, e ficou achando que nada do que faça tem tutano e matéria. Acha, por exemplo, que nada do que faça pode sacudir este País de cima a baixo, como ele sonhou um dia que era sua predestinação. Esse tempo, se veio, passou sem ser notado, e ele hoje se acha um zé-às-dúzias, um joão-grosa, um desses milhões de doutores de óculos que não sabem nem pra que lado se aponta um parabelo. Mas ele se consola em saber que, em dia de eleição, ele é um dos cem milhões de eleitores que vão às urnas. É um não-nada: aproximadamente 0,00000001. Ele é um voto somente, mas um voto é um tiro virtual, um tiro com que a gente derruba todos e deixa de pé apenas um. Abram alas, por favor. Amanhã o velho jagunço troca de roupa, empunha o título e sai de casa, sabendo que se errar vai fazer uma diferença danada.

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