Revi na TV a cabo este belo filme de François Truffaut, seu primeiro longa, lançado em 1959 (no Brasil, Os Incompreendidos). Um adolescente vive com problemas na escola (a qual, aqui pra nós, é um pé no saco), e também em casa, com a mãe indiferente e um padrasto que é boa-praça, mas até um certo ponto. Truffaut ficaria durante décadas contando a vida deste personagem, Antoine Doinel, sempre interpretado pelo ótimo Jean-Pierre Léaud, numa experiência rara de cine-biografia à qual os críticos não parecem dar a devida importância, por estarem sempre preocupados em discutir como Godard posicionou a câmera.
A câmera de Truffaut segue Antoine como um cão fiel, por uma Paris em preto-e-branco que perde muitíssimo na TV, mas que na tela larga era tão rica de formas e tons que ninguém conceberia aquela cidade filmada em cores. Truffaut é um cineasta narrativo, acima de tudo. Seus enquadramentos e movimentos de câmara são feitos em função do modo como os atores se deslocam, naquele balé discreto que nos afasta, nos aproxima, nos faz pular de um campo para um contracampo, de um plano de detalhe para um plano geral, de uma maneira tão fluida que não percebemos os cortes. A fotografia, aliás, é de Henri Decae, e me trouxe uma grande saudade daquele tempo em que a enorme tela do cinema era toda preenchida com uma imagem P&B.
Bons filmes nunca param de trazer surpresas. A seqüência final mostra Doinel fugindo do reformatório, correndo na estrada, pernas-pra-que-te-quero, acompanhado pela câmara num interminável carrinho lateral que mantém em quadro o menino, até que este chega na praia, corre até a água, molha os pés na espuma, vira-se para a câmara e tem sua imagem congelada, com um olhar desafiador, perdido, insondável. Pela primeira vez me toquei o quanto esta seqüência lembra os planos finais de Deus e o Diabo na Terra do Sol, a corrida desabalada de Manuel e Rosa, e no fim o Mar invadindo tudo.
Quando vi o filme pela primeira vez, era pouco mais velho que o protagonista, e nem prestei atenção nos adultos. Revendo-o trinta anos depois percebo o quanto ele narra a coexistência de dois mundos, o dos adultos e o dos garotos, que se misturam, se relacionam, são interdependentes, mas parecem não registrar a existência um do outro. Os adultos só se preocupam com seus próprios assuntos, e tudo que Doinel faz, de certo ou de errado, passa batido: furtar dinheiro, cuidar da casa... O título mais adequado em português seria “Os Despercebidos”.
Os garotos do filme (e de sempre) são espertos, sagazes, cheios de recursos, solidários, fazem as maiores burradas, metem-se em enrascadas infantis, mas sempre com a seriedade de quem joga a vida em cada lance. Hoje nos comovemos com a ingenuidade do crime que leva Doinel à cadeia e ao reformatório, entregue pelos próprios pais. Vai ver que naquele tempo, furtar (e depois tentar devolver) uma máquina de escrever era o pior que podia acontecer com um garoto de família.
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