(livro de F. Fraser Bond)
Stanislaw Lem observou que no conto “A Loteria de Babilônia” de Jorge Luís Borges, tudo obedece simultaneamente ao Acaso e ao Determinismo. Um universo tão contraditório quanto o das gravuras de M. C. Escher, onde há elementos espaciais e visuais que se excluem mutuamente. Se um deles existir, o outro é impossível.
Algo dessa relação existe na maneira como tratamos a imprensa e o jornalismo. Porque todo mundo que fala ou escreve sobre este assunto recorre o tempo todo a dois conceitos que para mim não podem coexistir no mesmo Universo. São os conceitos de “liberdade de imprensa” e de “jornalismo imparcial”.
O conceito de liberdade de imprensa sofreu uma distorção benigna, mas ainda assim uma distorção, durante os longos 20 anos da ditadura militar. A imprensa queria denunciar tudo que havia no Brasil daquela época: as prisões, as torturas, as arbitrariedades, a corrupção, as pequenas máfias que foram se formando à sombra dos abusos de poder. Pedia-se liberdade de imprensa o tempo inteiro, e esta expressão ficou sendo encarada como um Absoluto, um dogma inatacável.
Liberdade tinha que ser ampla, geral e irrestrita. Quem sugerisse qualquer limitação à liberdade de imprensa (ou a qualquer outra) era chamado de nazista ou coisa pior.
Ao mesmo tempo, as faculdades de jornalismo procuram advertir os estudantes de que o jornalismo deve ser imparcial, não deve tomar partido, tem que ficar eqüidistante, “parecendo a imagem da Justiça”. O jornalista não deve se envolver ideologicamente ou emocionalmente com os fatos reportados.
Ora, esta é uma situação ideal, própria dos manuais e dos decálogos de mandamentos, mas difícil de alcançar na vida prática. Todo mundo se envolve, mais cedo ou mais tarde. Não se envolve em tudo, claro. Mas acaba se envolvendo em algo, ainda que movido pela “indignação cívica” ou outro conjunto equivalente de boas intenções. Envolve-se, e torna-se parcial, quando defende o que acha Certo contra o que acha que é Errado.
Liberdade e imparcialidade são dois extremos de uma escala. Quando pedimos liberdade de imprensa, não é para publicar receitas de bolo, é para publicar coisas que vão incomodar alguém. Liberdade para dizer coisas que gente importante preferia que não fossem ditas. Liberdade para botar a boca no trombone, dizer que o rei está nu, e que existe algo de podre no reino da Dinamarca.
Liberdade, num mundo cheio de conflitos de interesses, cedo ou tarde vai incomodar alguém, cedo ou tarde vai tomar partido, vai dizer ao público: “Está acontecendo tal e tal coisa, e isto está errado”. Ou seja, quando pedimos liberdade de imprensa, estamos pedindo justamente que a imprensa tenha o direito de não ser imparcial, de tomar partido, de ficar do lado de A ou de B quando A e B estão travando algum tipo de combate.
Um jornalista (ou um juiz, etc.) não pode ser totalmente imparcial e ao mesmo tempo defender o Certo contra o Errado, conceitos escorregadios como o mercúrio.
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