(Elino e o jumento)
Nos meus estudos autodidatas de Filosofia, me deparo com uma questão insolúvel: como definir o que é Grande Arte e o que não é? Precisamos de critérios universais, como em qualquer definição filosófica que se preze. Mas é possível encontrar critérios estéticos universais para justificar por que razão considero “O rabo do jumento”, do recém-falecido Elino Julião, uma boa música?
Reza a lenda que Elino tinha um jumento que um dia, por descuido seu, invadiu o roçado do vizinho, um tal de Nascimento. Era um sujeito metido a brabo, que em represália puxou a peixeira e cortou o rabo do bicho. Quando Elino protestou, o cara ameaçou: “Cala a boca, senão faço a mesma coisa com você”. Mesmo não tendo rabo, Elino achou mais prudente se calar. Todo mundo nas redondezas ficou chocado ao ver o jumento naquelas condições, perguntou quem foi o autor da maldade, e Elino calado. O vizinho começou a ter remorsos. Um dia foi lá, e propôs a Elino pagar-lhe uma indenização. Aí o compositor saiu-se com a frase memorável: “Eu não quero pagamento, Nascimento. Eu quero é outro rabo pro jumento”.
Um episódio exemplar, até pelo grau de absurdo envolvido na ameaça (“Eu faço o mesmo com você!”) e no pedido final (“Eu quero é outro rabo pro jumento”). Platão e Aristóteles certamente elogiariam sua economia de meios. Tem uma função educativa e revelatória, equivalente à das fábulas animais de Esopo, aqueles episódios alegóricos típicos das pequenas comunidades rurais e pastoris. A canção tem poder de síntese (uma história complexa narrada em poucas linhas). Parece ter brotado espontaneamente (que letrista resiste a esta rima dada de graça pelo Acaso, “jumento/Nascimento”?). Como em toda boa canção, a melodia potencializa a letra. É triste, lamentosa. Em alguns momentos, ergue-se para acompanhar o protesto do autor: “Veja pessoal, que mau elemento! Não sei se o animal é ele ou o jumento!”), mas cada estrofe se conclui retornando ao mesmo refrão, monótono, teimoso, inflexível, mesma letra, mesma melodia: “Eu quero é outro rabo pro jumento”. São três acordes sucessivos, implacáveis (no tom de lá menor, os acordes de fá maior, mi maior com sétima, e lá menor).
Grande Arte? Não sei, mas, por que não? Talvez não seja uma obra-prima da MPB, talvez não seja um dos 50 maiores xotes de todos os tempos, periga não ser nem uma das 10 melhores canções de Elino Julião. Mas, julgada pelos critérios de sua forma e de sua matéria, é uma canção que surpreende pela originalidade (alguém conhece outra sobre o mesmo tema?), agrada pela concisão, faz rir pelo absurdo da situação narrada. Tem verdade social, tem verossimilhança psicológica. O personagem-narrador é um “caba” teimoso, tipo Seu Lunguinha ou Seu Mandury, muito familiar ao público que ouve canções assim. Acham que estou tirando leite de pedra, companheiros? Oxente, faz mais de 50 anos que a crítica tira leite daquela pedra de Carlos Drummond, e ela ainda não secou.
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