Falei ontem sobre o conceito que batizei de “O fantasma da liberdade”, pedindo emprestado o título do filme de Luís Buñuel. O século 20 foi chamado “o século das vanguardas”. Criou-se uma ideologia de romper com as tradições, libertar-se das fórmulas, fazer o que desse na veneta dos artistas. “Vanguarda” e “experimentalismo” foram as expressões mais usadas para descrever essa atitude de procurar novas formas de expressão. O problema é que, quando prestamos atenção em muita coisa que se apresenta como Vanguarda ou Experimentalismo, percebemos que o que acontece ali não é propriamente a busca de novas formas, e sim a mera rejeição das formas antigas. O artista faz um esforço tão grande para ser livre que acaba ficando livre até de si mesmo.
Esse quebra-quebra de fórmulas antigas acabou redundando numa fórmula nova: “tudo é Arte”. O leitor certamente já terá ouvido alguma variante desta fórmula. “Quê que tem? Tudo é poesia”, diz o poeta que amontoa palavras sem sentido. “Tudo é cinema”, afirma o cineasta que liga a câmara, vai para casa dormir, e volta no dia seguinte para ver o que a câmara filmou. “Tudo é música”, diz o pretendente a músico cuja única habilidade sonora consiste em bater-numa-lata-véia. Artistas assim são os maiores defensores da liberdade artística total, porque no momento em que se criar um mínimo filtro de qualidade, uma mínima peneira para distinguir o que presta e o que não presta, a primeira coisa que vai para o espaço são as obras deles.
Não sou contra o experimentalismo. Aliás, gosto mais de maluco do que de quem é certinho demais. Bater numa lata véia não é problema, desde que a lata véia seja uma maluquice criativa, funcione dentro de uma maluquice maior. Quando o sujeito é músico de fato (pense Hermeto Paschoal, pense Jaguaribe Carne, pense Tom Zé) ele pode bater em lata véia, soltar porco e galinha no estúdio, ligar rádio de pilha durante o show. A doidice vem num contexto de criação, de trabalho. O que me desanima é ver gente que, em nome de uma suposta liberdade total, abre mão daquilo que os gregos chamam “poiesis”, e que podemos chamar de técnica, destreza, artesanato, feitura, “craft”, habilidade, perícia.
Os artistas que querem “romper com todas as regras”, “abolir as fórmulas”, etc. são movidos pelo impulso (tão bonito, tão elogiável) de querer criar alguma coisa que os exprima, que seja um reflexo de sua relação direta com o material que estão usando. Tentam afastar-se das regras porque temem que, ficando presos a elas, seu trabalho não passe de um papel carbono ou uma simples derivação do que já foi feito dezenas de vezes por gente mais experimentada e mais competente. Mas uma obra de arte é justamente o resultado de uma tensão entre uma força que quer ir em todas as direções e um conjunto de regras que a comprimem, a concentram, a direcionam, e lhe dizem para onde ela deve ir. Sem essa força e sem essas regras, não existe Arte.
2 comentários:
Olá, Bráulio.
Soube de seu blog por um amigo comum, Lula Pereira, e gostei muito.
Dito isto, gostaria de fazer observações, apesar de concordar com este post - realmente muitos "artistas" esqueceram da máxima de 'dominar antes de destruir', e usam uma pretensa independência de estilo e técnica pra esconder a própria incapacidade. Dori Caymmi já observava como as pessoas tentam substituir o talento pela "atitude".
No entanto, não me parece esta a grande ameaça atual, e sim o conformismo, que faz com que a maioria das pessoas não ouse arriscar uma novidadezinha de nada, nem mesmo como pretexto pra falta de formalismo, preferindo a repetição morna e miúda de mais do mesmo.
E arrisco dizer que a vanguarda musical de verdade que existe hoje é Siba cantando com Barachinha.
Grande abraço e parabéns.
Oi, Arnaldo. Você tem razão quanto à mesmice. Melhor o erro de quem tenta do que o medo de tentar. (Veja o artigo 0341) Muitos destes meus textos, no entanto, são escritos em função de algo que li ou vi naquele dia. E quanto a Siba, escrevi sobre ele semana passada. (Vou logo avisando que falei bem!)
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