quinta-feira, 27 de março de 2008

0309) As flores do semi-árido (17.3.2004)




Quando a gente anda pelo agreste, pelo cariri, por todas essas variantes do semi-árido nordestino, uma das imagens mais tocantes é a da florezinhas que brotam aqui e ali. No meio dos xique-xiques e dos facheiros, por entre aqueles espinhos eriçados, por entre pedras vergastadas pelo sol, surgem arbustos rasteiros. As folhas têm o verde fosco, desbotado, da farda de um soldado que acabou de chegar da guerra; mas por entre essas folhas a ponto de se acinzentar de sede, surgem flores quase sempre minúsculas. Umas são azuis, com petalazinhas arredondadas que parecem boca pedindo beijo; outras são de um amarelo vivo, que rebate alegremente o sol, sem nem um pingo de medo; outras são de um vermelho misterioso e elusivo, do tipo que atrai os olhares enquanto finge prestar atenção noutra coisa.

São as flores do semi-árido, umas coisinhas tão delicadas que parecem não ter brotado ali. Parecem ter sido trazidas por um sujeito brincalhão que resolveu dar um susto nos passantes, pregando nos galhos dos arbustos aquelas florações tão improváveis no meio de tanta aspereza, tanta vegetação crestada pelas brutalidades do tempo.

É dessa florezinhas que eu me lembro quando escuto certas letras de canções populares nordestinas, de certas cirandas praieiras, de certos arrasta-pés matutos. Nunca deixou de me comover a visão daqueles homens de rosto crestado pelo sol, mãos cobertas de calos e cicatrizes, costas encurvadas por décadas de enxada e de sacos nas costas, dançando e cantando: “Triste vida de quem ama, e não é correspondido, a melhor coisa do mundo, é um namoro escondido...” Os refrões falam de “Sabiá da Mata”, e os versos entoam sentimentos amorosos quase infantis. As mulheres a quem esse amor parece ser jurado são rudes, braços musculosos, pés maltratados; têm trinta anos e parecem ter cinquenta, mas erguem os braços no ar como se tivessem onze, e cantam: “Aquela rosa, foi uma jura que eu fiz... aquela rosa, quando eu vinha do jardim... aquela rosa, jurei muito em te querer, eu espero por você e você também por mim...”

Quando eu tinha vinte anos achava isso um contra-senso: pessoas tão rudes deveriam ter sentimentos amorosos beirando a tragédia grega ou as paixões eslavas. Me custou muito tempo para perceber que as letrinhas ingênuas de Jacinto Silva, do Trio Nordestino, de Marinês, não tinham nada a ver com as letras “sem-meu-amor-não-sei-viver” com que a indústria fonográfica carimba sem dó nem piedade nossos ouvidos. Quando Jackson do Pandeiro canta: “A coisa pior da vida é querer bem a mulher... A gente deita na rede maginando por que é... Com tantas no mei do mundo só uma é que a gente quer...”, isso não é imagem retórica, não é jogada radiofônica. É a mesma verdade das rosas mudas de Cartola ou do espinho e da flor de Nelson Cavaquinho. Não existe semi-árido na alma humana onde alguma coisa pequena, delicada e quase impossível não consiga brotar.

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