quinta-feira, 22 de outubro de 2020

4633) O inventor é uma barata tonta (22.10.2020)




Quando eu tinha uns dez anos, era exibido às visitas que iam lá em casa como um pequenino prodígio, porque meus pais se orgulhavam de qualquer besteira que eu dissesse. Houve um tempo em que eu vivia mergulhado em livros como História das Invenções de Hendrik Van Loon e As Grandes Invenções e Descobertas, cujo autor não lembro, mas o Google acaba de me trazer numa bandeja de reluzentes pixels.




Uns amigos de meu pai foram beber lá em casa. Um deles perguntou: “O que é que você vai ser quando crescer?”. Respondi: “Vou ser inventor.” Ele: “Ah, é mesmo? Que bacana. E o que é que você vai inventar?” E eu, dialético avant la lettre: “Não sei, porque não existe ainda.”
 
Vou me reportar ao título desse livro citado, porque existe sempre uma zona-cinza, imprecisa, mal definida, entre o que é invenção e o que é descoberta. Em princípio, inventar é produzir algo que nunca existiu, e descobrir é perceber algo que sempre esteve ali e ninguém soube. O telescópio é uma invenção; o cálculo da velocidade da luz (e a percepção de sua invariabilidade) é uma descoberta.
 
Um fator comum às duas, porém, é o fato de a gente geralmente ainda não saber o que vai inventar ou o que vai descobrir.
 
Claro que às vezes sabe: “quero saber que bactéria causa a doença tal”, ou “quero inventar algo capaz de ampliar um sinal elétrico transmitido no aparelho tal”. Existe um fim em vista, embora ainda não se saiba o que vai ser exatamente.
 
Outras vezes, o inventor (ou descobridor) está apenas fazendo experiências variadas, em muitas direções. Ele pega uma coisa (um composto químico, um conjunto de lentes ópticas, um tipo de motor, um programa de software) e fica vendo mil maneiras diferentes de fazê-lo funcionar, em condições diversas. E aí descobre, “do Nada”, uma utilização que nunca imaginou.
 
Essa é a ciência experimental – aquela que muita gente chama de “perda de tempo”, “gasto desnecessário”, “vagabundagem”, “balbúrdia”. E o fato de que muitos cientistas têm prazer nessa atividade pesa muitas vezes contra ela. O burocrata de plantão fala: “Olha só, ele está se divertindo, ele tem prazer em fazer isto! Pois não vou dar um tostão para ele ter prazer às custas do erário.”



(Bob Brown) 
 
Bob Brown (1886-1959) foi um inventor e escritor a quem se atribui uma das primeiras idéias sobre a criação do e-book, ou livro eletrônico. Ele publicou em 1930 um manifesto, hoje modestamente famoso, intitulado “The Readies”. Assistindo uma das primeiras sessões dos filmes falados, que na época eram chamado de “the talkies” (“os falantes”), ele se entusiasmou com o futuro e fez este manifesto.
 
“The Readies” é mais difícil de traduzir. Poderia ser “os Lentes” (do verbo “ler”, mas fica uma palavra fora de foco), “os Leiturantes”, (meio desconchavado), “os Legíveis” (meio legislativo)...
 
Enfim: mais importante é a idéia que animou Bob Brown, e que transcrevo da Wikipedia:
 
“Uma máquina de leitura bastante simples, que eu possa conduzir comigo, levar para toda parte, plugar em qualquer tomada elétrica comum e ler romances de 100 mil palavras em dez minutos se eu quiser – e eu quero.”
 
A idéia de Brown, contudo, estava muito mais focalizada numa reforma da ortografia e do vocabulário do que no seu suporte físico. “Está na hora,” dizia ele, “de liberar o gargalo e deixar passar uma verdadeira revolução da palavra”. Ele propunha a introdução de uma grande quantidade de símbolos “portemanteau” (combinando 2 idéias numa só) para substituir palavras comuns, e pontuação para simular ação ou movimento; de modo que não fica muito claro se a sua idéia se encaixa ou não na história dos e-books.
(Wikipedia)
 
É uma coisa muito comum na história das invenções que as primeiras idéias a respeito de uma engenhoca qualquer venham cobertas de idéias secundárias que depois não deram em nada, pelo menos naquele caso. Brown pensava naquilo que hoje temos em forma de smartphone, kindle ou tablet, um livrinho eletrônico que pode arquivar bibliotecas inteiras e ser lido em qualquer canto. Mas o impulso imaginativo dele já o levava a, no mesmo fôlego, sugerir a “leitura dinâmica” (um romance inteiro em dez minutos, mania universal dos tecnófilos impacientes) e a “pontuação expressiva” (mania universal dos vanguardistas dos anos 1910-1920).
 
Num momento assim, o inventor não está preocupado com o lado pragmático (“Como o texto será codificado? Que tipo de mini-baterias será usado”, etc.) e sim com as possibilidades que se abrem em todas as direções.




(Edison e o fonógrafo cilíndrico)
 
É famoso o caso de Thomas Edison ao inventar o Fonógrafo. Ele fez uma lista de todas as utilidades possíveis para o uso da voz humana gravada em ranhuras na superfície de cilindros (depois, discos) giratórios e uma agulha reproduzindo o som original via alto-falantes. Para Edison, a utilização mais importante disso era “aprendizado de idiomas estrangeiros”. A comercialização de canções populares, uma indústria que movimentou trilhões de dólares nos últimos cem anos, não foi o primeiro uso que lhe ocorreu.
 
Voltando ao nosso amigo Robert Carlton “Bob” Brown: ele chegou a produzir uma “máquina de leitura” para a qual adaptou textos de Gertrude Stein (de quem foi amigo, quando morou na Europa), Ezra Pound, Marinetti e outros. Brown conviveu com esses vanguardistas em Paris no período entre-guerras, tentou unir a sua invenção mecânica às invenções linguísticas dos companheiros. Para isso, ele criou uma mini-editora, a Roving Eye Press. Esses esforços, que na época passaram muitíssimo despercebidos, foram pesquisados e publicados depois pelo Prof. Craig J. Saper, considerado o grande conhecedor desse movimento.

 
Quem se interessar por um mergulho mais profundo nas inquietudes criativas desse pessoal e puder desembolsar 95 libras esterlinas por um arquivo PDF, corra sem perda de tempo ao link abaixo:
 
https://edinburghuniversitypress.com/book-readies-for-bob-brown-s-machine.html
 
Os menos abastados podem se contentar, como eu me contentaria, se precisasse levar mais longe minha pesquisa atual (que é sobre outra coisa – Bob Brown é uma simples nota de pé de página) com o livro abaixo:

 
Deixo aqui esta dica, principalmente, para as pessoas interessadas em descobrir, em termos brasileiros, alguma coisa desse norte-americano que viveu e atuou no Brasil por pelo menos duas vezes. A primeira delas foi na década de 1920, quando ele criou no Rio de Janeiro a revista Brazilian American:


https://www.davidanthembookseller.com/pages/books/02107/robert-carlton-and-rose-brown/brazilian-american-the-business-builder-of-brazil-vol-9-no-222-january-26-1924
 
A segunda foi nos anos 1940, quando ele morava na Califórnia e produtores de Hollywood o mandaram para a Amazônia, a fim de pesquisar algum material para filmes com temática brasileira, na linha do It’s All True que Orson Welles estava rodando no Brasil. Fico só imaginando as dissertações de mestrado, os roteiros de documentário e as matérias jornalísticas que uma história como a de Bob Brown pode produzir em 2021.
 
Outro aspecto interessante, e que ainda não vejo com muita clareza, é que os Brown são sempre mencionados como um trio: eram Bob, sua esposa Rose e sua mãe Cora, que viajavam juntos e, aparentemente, compartilhavam o trabalho criativo.
 
Se você mora nos EUA, saiba que os papéis e todos os documentos da carreira literária e inventorial de Bob Brown estão depositados (e acessíveis ao público) na Universidade de Maryland, em College Park, a poucos quilômetros de Washington D.C.  O saite com informações mais detalhados pode ser acessado aqui:
 
https://archives.lib.umd.edu/repositories/2/resources/101
 
E aqui pode-se acessar o PDF de um livro onde a obra de Brown é analisada, inclusive com a transcrição de uma “Story To Be Read On The Reading Machine”:
 
https://monoskop.org/images/e/e8/Brown_Bob_The_Readies.pdf
 





segunda-feira, 19 de outubro de 2020

4632) Primeiras Estórias: "A terceira margem do rio" (19.10.2020)

 

 
Em 12 de abril de 1961, o cosmonauta soviético Yuri Gagárin tornou-se o primeiro homem a viajar no espaço, no famoso voo orbital da nave Vostok 1.
 
Em 5 de maio de 1961, Alan Shepard tornou-se o primeiro norte-americano a igualar esse feito, na cápsula Freedom 7; seu voo foi suborbital, mas foi o primeiro em que o piloto foi capaz de controlar manualmente o próprio voo.
 
Entre estas duas datas, em 15 de abril de 1961, João Guimarães Rosa publicou em O Globo o conto “A Terceira Margem do Rio”, a ser incluído, depois, no livro Primeiras Estórias (1962).
 
Este conto é de vez em quando citado como exemplo da temática da ficção científica na obra de Rosa. No derradeiro prefácio de Tutaméia (1967), “Sobre a Escova e a Dúvida”, ele comenta a origem de várias “idéias” para seus contos e diz:
 
“A Terceira Margem do Rio” (Primeiras Estórias) veio-me, na rua, em inspiração pronta e brusca, tão “de fora”, que instintivamente levantei as mãos para “pegá-la”, como se fosse uma bola vindo ao gol e eu o goleiro. (p. 157)
 
Fausto Cunha, uma das figuras emblemáticas da ficção científica brasileira, conta em seu prefácio “A Ficção Científica no Brasil: um Planeta quase Desabitado”, no livro No Mundo da Ficção Científica de L. David Allen (São Paulo: Summus, 1977 ?):
 
Guimarães Rosa considerava “A Terceira Margem do Rio” um conto na linha do fantástico e certa vez, em conversa comigo, estranhou que eu, um cultor da science fiction, não tivesse reagido com mais entusiasmo a essa história, que conheci de primeira mão (Rosa às vezes me telefonava para eu ir ouvir a leitura de seus contos no Itamarati, ali na Rua Larga). Chegou a insinuar que a escrevera pensando em mim como leitor, o que evidentemente não tomei ao pé da letra. (pág. 10)
 
Existem mil leituras e interpretações do conto de Rosa, todas legítimas, dado o grau de nitidez factual da história, e de abstração subjetiva. Sabemos tudo que aconteceu, mas, por quê? Para quê?
 
Uma interpretação curiosa que li há pouco tempo é a de Astrid Masetti Lobo Costa, em Veredas de Rosa II (Belo Horizonte: PUC-Minas, 2003), onde ela compara o texto de Rosa ao Bartleby (1853) de Herman Melville, ambos sobre “o inexplicável e inquietante afastamento de um personagem do convívio com outras pessoas”.
 
Na mesma coletânea de ensaios da PUC-Minas, Rosa Maria Graciotto Silva cita uma carta de Guimarães Rosa para seu tradutor francês J. J. Villard, onde ele diz do livro Primeiras Estórias:
 
Só aparente e enganosamente é que ele se finge de simples, de livrinho singelo. Muito mais que uma coleção de estórias rústicas, o Primeiras Estórias é, ou pretende ser, um manual de metafísica, e uma série de poemas modernos. Quase cada palavra, nele, assume pluralidade de direções e sentidos, tem uma dinâmica espiritual, filosófica, disfarçada. Tem de ser tomado de um ângulo poético, anti-racionalista e anti-realista.
 
A carta é transcrita de João Guimarães Rosa: Homem Plural, Escritor Singular (Rio: Ágora da Ilha, 2001), de Edna Nascimento e Lenira Covvizzi.
 
O conto pode ter se inspirado parcialmente nessa grande aventura da humanidade que Rosa estava presenciando. Um clima de excitação internacional que não parava de ser alimentado desde que os soviéticos puseram o Sputnik I em órbita em 1957, e que agora se ampliava com a possibilidade de mandar um ser humano na viagem mais arriscada de todas.
 
Temos em nossa mente a imagem das espaçonaves como coisas gigantescas do tamanho de um transatlântico. Nos EUA vi num museu uma réplica da cápsula em que Alan Shepard fez o seu voo sub-orbital. É uma coisa do tamanho de um fusca. Posso imaginar o que era estar sanduichado lá dentro (o cara mal tem espaço para esticar as pernas), ser jogado solto no espaço a 180 km de altura e voando feito uma pedra-de-balieira quase 500 km de extensão total antes de cair de volta no Oceano Atlântico.

 
O fato de que era um piloto experimentado torna a situação ainda mais arrepiante, porque ele sabia de todos os riscos envolvidos – eu, por exemplo, não sei.
 
Guimarães Rosa criou um conto em que um indivíduo constrói uma canoa especial para si mesmo e parte na direção do rio e nunca mais volta. Por quê? Para quê? Ele desaparece para sempre nesse rio “largo, de não se poder ver a forma da outra beira”. Não conheço melhor descrição do espaço sideral.
 
Ele não perde contato com a terra, no entanto. O filho (que narra a estória) é vigilante e fica fiel ao sonho do pai, mesmo quando todo mundo critica o velho, diz que ficou doido, etc. O filho mantém a retaguarda e a certa altura passa a alimentar o pai, levar-lhe mantimentos, aceitando que ele permaneça nesse espaço, mas alguém da terra precisa lhe enviar abastecimento.
 
O pai não volta, e este é mais um dos contos de Guimarães Rosa em que se começa com uma pergunta mas não se termina com uma resposta, se propõe um mistério e deixa-se o mistério pairando no ar após o fim do conto. O conto abre uma porta que não volta a se fechar.
 
Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais.

 
("2001, uma Odisséia no Espaço", 1968)

É como aquelas viagens das naves-geração da ficção científica, uma viagem sem volta, numa espaçonave-cidade onde as pessoas morrem e nascem durante séculos, sabendo que não voltarão para a Terra; e quando eventualmente alcançam o seu destino, quem chega lá são os bisnetos ou tetranetos dos tripulantes que partiram.



 
O pai parte, o filho fica na margem, tocaiando, pastorando. O vínculo entre os dois me lembrou O Tempo das Estrelas (“Time for the Stars”, 1956) de Robert Heinlein. Uma nave sai para colonizar o espaço, e o contato com a Terra é feito através de dois irmãos gêmeos telepatas (o livro propõe que a telepatia é mais rápida que a luz). Devido à dilatação do tempo nas viagens espaciais, o gêmeo que está no espaço envelhece muito lentamente e o que fica na Terra envelhece, morre, e é com seus descendentes que o outro passa a se comunicar.
 
Não é exatamente o caso do conto de Rosa, em que a canoa do pai acaba se parecendo mais com uma Estação Orbital, que nem vai embora para os confins do Universo nem desce para a Terra – fica só ali, boiando.
 
Outro aspecto importante é o título do conto. A “terceira margem do rio” é uma idéia que sugere a existência de uma dimensão a mais. Um rio é como uma linha reta traçada num papel branco, dividindo aquele espaço em margem de lá e margem de cá. Muitos analistas do conto chamam a atenção para esse curioso adjetivo: “terceira”. Lembram que um rio não tem primeira e segunda margens; não há ordem entre elas; são duas, apenas. Podemos pensar apenas que a “primeira” é aquela em que estamos, a que é subjetivamente mais importante, ponto de referência.
 
O que não deixa de lembrar a velha piada do bêbado, mais uma vez registrada por Rosa noutro prefácio de Tutaméia, “Nós, os Temulentos”:
 
E atravessou a rua, zupicando, foi indagar de alguém: – Faz favor, onde é que é o outro lado?  – Lá... – apontou o sujeito. – Ora! Lá eu perguntei, e me disseram que era cá...
 
Se o rio divide a terra em duas margens, a terceira margem fica acima da Terra, fica no espaço. É uma dimensão a mais que o homem conquista, quando entra nesse veículozinho apertado, individual, e se deixa disparar rumo ao desconhecido.



("The Time Machine", de George Pal, 1960)
 
E pelas avenidas e becos fractais da ficção científica chegamos ao Viajante do Tempo de H. G. Wells e The Time Machine (1895), em cujo clássico capítulo de abertura ele lembra a existência de três dimensões e propõe-se a viajar numa quarta. Também uma jornada numa máquina individual, minúscula, onde o viajante se impulsiona rumo ao desconhecido, numa viagem talvez sem volta.

 
No índice sugerido ao ilustrador Luís Jardim para a edição original de Primeiras Estórias, aparece um homem numa canoa, uma flecha (=indicação do voo espacial), o símbolo do infinito (frequente nas ilustrações de Rosa) e o símbolo da balança, signo astrológico. Este símbolo, porém, consta de duas linhas horizontais superpostas sendo que a de cima se arredonda para o alto.
 
É como se tivéssemos a indicação de um mundo onde tudo é bidimensional, tudo é horizontal, tudo é plano como na “Planolândia”, a Flatland do clássico ensaio de Edwin Abbott, de 1884, sobre as dimensões do espaço – e esse arredondamento para o alto sugerisse a existência de uma terceira dimensão, uma terceira margem do rio.



 
 
 
 
 
 




sexta-feira, 16 de outubro de 2020

4631) O soldado e o fanático religioso (16.10.2020)




Lendo sobre o arraial de Canudos e a guerra civil descrita em Os Sertões, acabei intercalando essa leitura, sem querer, com a das memórias de Conan Doyle, Memories and Adventures (1924).
 
O criador de Sherlock Holmes é talvez minha primeira grande descoberta literária. Nos anos 1950, a Editora Melhoramentos lançou uma coleção de suas obras em 26 volumes. Graças à boa vontade de minha Tia Adiza, que assinou a coleção (recebia 2 volumes por mês), li toda, e tenho ainda hoje todos os livros. Pelo menos um deles, Contos do Ringue e de Guerra, é o mesmo exemplar que li quando menino.
 
Conan Doyle teve uma vida movimentada. Como todo inglês, procura rastrear origens nobres de sua linhagem, e afirma descender da casa dos Plantagenetas. Curiosamente, era de família irlandesa mas seu pai, por questões de emprego, mudou-se ainda jovem para a Escócia, e o menino Arthur nasceu ali, em Edinburgh. (Jorge Luís Borges, num soneto, o chama de “irlandês”, e vejo agora que não estava tão equivocado assim.)
 
Gostava do mar e sua primeira grande aventura foram meses num navio baleeiro, com vinte e poucos anos. Depois de se formar, foi médico de bordo de outros navios. Era grande observador de ambientes e de tipos humanos, uma característica da literatura de seu idioma e de sua época. Seu primeiro livro foi o hoje famoso Um Estudo em Vermelho (1887), a primeira aventura de Sherlock Holmes, que nessa primeira edição passou despercebido. Em seguida, ele produziu uma obra um pouco mais ambiciosa: um livro sobre guerra civil e fanatismo religioso.
 
Micah Clarke (1888) foi publicado no Brasil como A Narrativa de Miquéias Clarke, numa saborosa tradução de Agenor Soares de Moura. Conta a revolta protestante de 1685 liderada pelo Duque de Monmouth contra o rei James, católico, que não era simpático a uma parte considerável da população. Monmouth, que vivia na Holanda, desembarcou na Inglaterra proclamando-se rei, passou alguns meses arregimentando um exército composto em sua maioria por fanáticos mal-treinados mas decididos (um pouco como os jagunços de Canudos), e acabou derrotado na Batalha de Sedgemoor pelas forças mais bem equipadas, e mais experientes, do exército Real.
 
O livro de Doyle conta essa aventura, por meio do jovem Miquéias Clarke. O pai dele é protestante, e ajuda o rapaz a se engajar na batalha através do veterano Decimus Saxon, um mercenário a serviço de Monmouth. Miquéias é aquele rapagão de vinte anos e com dois metros de altura, cheio de vigor físico e boas intenções. Saxon é um dos grandes personagens da obra de Doyle: grisalho, calejado, malicioso, estrategista, com um olho infalível para entender situações bélicas e para detectar as espertezas alheias.



(Conan Doyle)

Falando desse romance, escrito aos 28 anos de idade, Conan Doyle recorda:
 
Esperando ainda a publicação do meu primeiro livro, e sentindo-me invadido por idéias de grande porte, decidi testar minhas forças e escolhi um romance histórico para este fim, porque me parecia a melhor maneira de combinar uma certa dignidade literária com aquelas cenas de ação e aventura que brotavam naturalmente de minha mente ardente e jovem. Sempre experimentei simpatia pelos Puritanos, que, apesar de suas peculiaridades, representaram a liberdade política e a sinceridade religiosa. Geralmente têm sido objeto de caricaturas, na ficção e na arte. Mesmo [Walter] Scott não os retratou como eram. Macaulay, sempre uma das minhas inspirações, foi o único que os tornou compreensíveis: aqueles lutadores soturnos, com suas Bíblias e seus espadagões. Há uma passagem sua (não posso citá-la literalmente) em que ele afirma que após a Restauração se alguém visse um peão mais inteligente que os demais, ou um camponês que lavrasse melhor a terra, podia ter a certeza de tratar-se de um ex-guerreiro de Cromwell. Esta foi minha inspiração para Micah Clarke, onde me deixei galopar à solta pela estrada larga da aventura. Eu estava impregnado de História, mas mesmo assim passei alguns meses pesquisando detalhes, e depois escrevi o livro com certa rapidez. Há passagens nele, como a descrição dos lares dos Puritanos, ou o retrato do Juiz Jeffreys, que não creio haver superado.
(p. 76, trad. BT)
 
Doyle é um excelente narrador de cenas de ação, de perseguição, de batalha. Isto transparece nos romances históricos ainda mais do que nas aventuras de Sherlock Holmes. São romances que trazem pesquisa livresca (Miquéias Clarke tem doze apêndices com informações históricas e transcrições de documentos) mas têm aventuras, suspense, reviravoltas, tensão.


Quando Monmouth reúne suas precárias tropas na cidade de Taunton, começamos a sentir o “tom” dessa insurreição desunida nas palavras do personagem (real) do pastor John Ferguson, exortando o “rei Monmouth” à batalha:
 
– Vou tornar bem claro o meu pensamento, Majestade. Não chegou ao nosso conhecimento que Argyle está perdido? E por que é que ele se perdeu? Porque não teve fé firme nas obras do Onipotente e teve forçosamente de rejeitar o auxílio dos filhos da luz trocando-o pelo da raça miserável dos fautores do prelatismo, que são meio pagãos, meio papistas. Se ele tivesse andado no caminho do Senhor, não estaria agora na prisão de Edimburgo com a corda ou a machadinha diante dos olhos. Por que não cingiu ele os rins e não marchou diretamente para a frente com a bandeira da luz, em vez de deter-se aqui e parar como um Dídimo poltrão? O mesmo ou pior nos sucederá se não marcharmos pelo país dentro e não fincarmos os nossos estandartes diante da perversa cidade de Londres – a cidade onde tem de ser feita a obra do Senhor, e o joio tem de ser separado do trigo e amontoado para arder no fogo.
(pág. 258-259, trad. A. S. M.)


Treinamento militar e armamento capaz, para soldados assim, não substituem a fé a o apoio divino. É um insurreição armada na base do “Deus proverá!”. Narra Miquéias:
 
Na cidade inteira ressoavam pregações. Cada tropa ou companhia tinha o seu orador escolhido, e às vezes mais de um, que discursava e expunha. De barris, carroças, janelas, e até mesmo do alto das casas, eles falavam às multidões embaixo; e nem se diga que sua eloquência não produzia efeito. Ouviam-se pelas ruas gritos roucos e ferozes, de mistura com orações entrecortadas e jaculatórias. Os homens andavam ébrios de religião como se fosse de vinho. Tinham o rosto afogueado, a voz pastosa, os gestos desordenados. Sir Stephen e Saxon sorriam um para o outro ao observarem aquela gente, pois sabiam, como soldados veteranos, que de todas as coisas que tornam um homem valente nos seus atos e indiferente à vida, o ímpeto religioso é o mais forte e o mais duradouro.
(pág. 412, trad. A. S. M.)
 
Admiramos os fanáticos de Canudos (e admirei, ao reler estas 500 páginas, os fanáticos ingleses) não por serem fanáticos, mas por serem o lado mais fraco e mais sincero. O único armamento que têm para defender seu fanatismo são chuços, foices e trabucos. Estão enfrentando lutadores muito mais preparados do que eles: mesmo o Exército patético e semi-maltrapilho que devastou Canudos tinha por trás de si forças e logísticas muito superiores às dos jagunços.
 
Fiquei pensando em escrever um romance sobre um confronto armado onde algum Poder conseguisse reunir – por meio de uma tecnologia de comunicação instantânea com milhões de pessoas pavlovianamente pré-condicionadas – o fanatismo religioso dos que acreditam estar conquistando uma vida-eterna melhor que esta, o treinamento e equipamento militar dos tempos modernos, e a impiedade fria de quem se julga moralmente superior ao inimigo.


 
("The Morning of Sedgemoor", de Edgar Bundy)
 
 







terça-feira, 13 de outubro de 2020

4630) Fatos sobre a história da guilhotina (13.10.2020)



Um dos mitos mais persistentes com relação a essa nobre geringonça de execução penal é que ela foi inventada por um tal “Dr. Guillotin”, na época da Revolução Francesa, e que o tal teria sido morto através da própria máquina que criou.
 
Vi algumas discussões a respeito e preferi tirar as dúvidas lendo o educativo A History of the Guillotine (London: John Calder, 1958) de Alister Kershaw, com boas ilustrações de época e copiosas notas bibliográficas. Estas últimas me deixam pensando na quantidade de documentos de 200 anos atrás que existe pelo mundo afora, principalmente em assuntos que envolvem a burocracia governamental européia, onde tudo fica registrado.
 
Primeiro os fatos básicos: o dr. Joseph-Ignace Guillotin não inventou esse instrumento, que aliás já existia em diferentes versões em outros países. Ele era apenas um deputado que desejava atenuar a brutalidade das decapitações em praça pública. Um contemporâneo o descreve desdenhosamente como “um político insignificante, mas incômodo, que costumava meter o bedelho em todos os assuntos”.
 
E não foi ele quem morreu na guilhotina, e sim um homônimo. Ele morreu em casa, de morte natural, em 1814.
 
Outro mito é o de que a guilhotina serviu para a França se livrar dos seus aristocratas. Não foi tão simples. Durante a época do Terror, bastava muitas vezes a denúncia de um vizinho para que uma pessoa fosse jogada na masmorra sem julgamento e depois fosse levada à fila da guilhotina. Diz Kershaw: “Das 2.567 mulheres executadas pelo entusiasmo libertário, 1.447 pertenciam às classes mais baixas.” (p. 6)
 
A guilhotina foi um capítulo high-tech na história brutal da crueldade humana. No reinado de Luís XVI havia uma hierarquia de castigos para diferentes crimes: a fogueira era o castigo dos magos, feiticeiros e heréticos; o suplício da roda ficava para os assassinos e os salteadores de estrada;  esquartejamento era para os crimes de lesa-majestade; e para outros 115 delitos punidos com a pena capital, a gente do povo ia para a forca, e os nobres eram decapitados com um machado, ou com aquele espadagão que se empunha com as duas mãos.
 
Um jornal francês de 1792 observava:
 
[Este novo instrumento, a guilhotina] não mancha de sangue as mãos  de quem quer que seja, ao executar um semelhante, e a velocidade com que funciona está mais de acordo com o espírito da lei, que muitas vezes é severa mas nunca deve ser cruel.” (pág. 65, trad. BT)
 
Antes da guilhotina, as execuções com espada eram cheias de problemas técnicos. Kershaw refere a “épica decapitação” do Conde de Chalais, em 1626, cuja cabeça só foi separada do corpo após vinte e nove golpes de espada, e ainda vivia mesmo após o vigésimo. Ele se apressa a registrar, contudo, que o autor da façanha não foi um carrasco oficial, “mas apenas um miserável amador que salvou o próprio pescoço ao consentir cortar o do Conde.” (pág. 65)
 
Um dos mais célebres carrascos franceses, Charles-Henri Sanson, “o Senhor das Altas Obras”, afirma numa carta às autoridades:
 
“Depois de cada execução, a espada fica inútil para outra; é absolutamente essencial que a espada, que é sujeita a perder estilhaços, seja afiada novamente, caso haja vários condenados a serem executados na mesma sessão; é necessário portanto haver um número suficiente de espadas prontas. Deve-se observar também que é frequente uma espada se quebrar no ato da execução.” (pag. 30-31)
 
Tinha ele motivos para se preocupar. Em 1537, um carrasco chamado Florant teve uma performance tão incompetente, ao tentar uma execução, que foi perseguido pela multidão, escondeu-se numa casa e ali foi queimado vivo.
 
Sanson foi uma figura histórica à altura da época em que viveu. Kershaw comenta:
 
O Rei e a Rainha e a amante do Rei; Robespierre e Danton; aristocratas e gente do povo; santos e criminosos; Sanson decapitou a todos mantendo, em geral, uma esplêndida imparcialidade, tal como coube a Desfourneaux, em nossa época, fazer o mesmo sem problemas – antes, durante e depois da ocupação nazista.”  (p. 100)


(O Halifax Gibbet)

Entre os muitos precursores do instrumento, o escocês “Halifax Gibbet” era um protótipo já com as características básicas (estrutura vertical, lâmina descendo através de ranhuras, condenado deitado com o pescoço preso a uma peça de madeira), em uso desde o reinado de Edward III, no século 14. Um historiador registra o hábito curioso: “todos os homens presentes deviam tocar na corda [que acionava o mecanismo] ou estender o braço em sua direção, o mais que pudessem, confirmando seu desejo de que a justiça fosse assim administrada” (pág. 22). Isso foi muito antes do Dr. Guillotin: Walter Scott, em sua History of Scotland (1830) descreve uma dessas execuções, ocorrida no ano de 1581.
 
Não devemos esquecer que o século 18, ironicamente chamado O Século da Razão, praticou com altivez a tirania do interesse científico sobre o sentimento humano. As primeiras provas da guilhotina definitiva se deram nos arredores de Paris, em Bicêtre, uma mistura de hospital, manicômio e asilo para velhos, onde a mortandade natural era alta. Cadáveres não faltaram para os primeiros testes do protótipo cuja fabricação (por Tobias Schmidt) foi supervisionada pelo Dr. Antoine Louis (1738-1814), secretário da Academia Cirúrgica e, ele sim, mais responsável pelo instrumento do que o pobre Guillotin.
 
Os testes foram realizados em abril de 1792. Foram precisos vários, para se chegar aos índices ideais de peso da lâmina, ângulo de corte, altura da armação, etc. Diz Kershaw: “Com um belo senso de precedência, o carrasco iniciou os testes através das mulheres e crianças” (pág. 47). No intervalo, o Dr. Colletier, diretor da instituição, ofereceu às autoridades presentes um passeio pelos jardins e um almoço, no qual “fez-se ampla justiça ao capão e aos vinhos da excelente adega” (pág. 48).
 
A alucinação coletiva que cercava os guilhotinamentos gerou cenas em que “aristocratas não identificados recebiam com desdém os insultos da turba. Davam gargalhadas entre si enquanto aguardavam a vez, já no cadafalso, e despediam-se cerimoniosamente uns dos outros”. Muitas lendas “folclóricas” sem corroboração histórica, contudo, se perpetuaram, algumas delas através do entusiasmo folhetinesco de Honoré de Balzac (“Um Episódio sob o Terror”, em Cenas da Vida Política).
 
Alister Kershaw dedica um capítulo inteiro (cap. 9) às pesquisas dos médicos sobre quantos segundos restam de consciência a uma cabeça decapitada, uma experiência que se eternizou no conto de Villiers de l’Isle Adam, “O Segredo da Guilhotina” (1886).
 
Mais interessantes são os capítulos finais, que ele dedica ao “bourreau”, ou carrasco. Era uma guilda de homens vistos com desconfiança e uma certa repulsa. Já na época pré-Revolução Francesa, um carrasco, ao se servir nos mercados públicos, recebia uma comprida colher de madeira para recolher suas mercadorias, a fim de que suas mãos não tocassem os produtos destinados a outras pessoas (pag. 97). Henry Sanson (um dos muitos Sanson a exercer o ofício) tinha o cuidado de não mergulhar os dedos na caixa de rapé que um amigo lhe oferecesse (pág. 117).
 
O filho de um carrasco devia tornar-se carrasco também; suas filhas só se casariam com carrascos da mesma geração. Essa “tradição dinástica” se afirmava não apenas pelo lado negativo, de um certo isolamento social, mas pelo fato do carrasco ter sido durante alguns séculos, na França, um funcionário bem pago, e com direito a mordomias que em linguagem do século 21 se traduziriam por Auxílio Açougue, Auxílio Hortifruti, Auxílio Peixaria e assim por diante. O livro transcreve (pág. 134-136) um longo documento de Luís XIV descrevendo em detalhes esses privilégios, que foram sendo cortados por sucessivos governos republicanos nos séculos 19 e 20.
 
Esse isolamento criou o costume dos casamentos entre famílias. Diz Kershaw:
 
“Para uma mulher jovem, casar-se com um carrasco era automaticamente condenar suas irmãs e sobrinhas e primas a continuarem solteiras ou a aceitar como maridos apenas homens que exercessem a mesma profissão” (pág. 105).
 
E comenta:
 
Se pelo menos soubéssemos um pouco mais sobre essas damas tenebrosas, se pelo menos tivesse chegado até nós algum registro das conversas travadas quando seus maridos voltavam para casa após uma manhã de trabalho! (pág. 106)




 





sábado, 10 de outubro de 2020

4629) Seis surpresas (10.10.2020)



1

Mikhail Ismailovitch Petrov, 48 anos, tradutor e professor universitário, viajou para duas semanas de férias na dacha de sua família, a 30 km de São Petersburgo. Custava-lhe muito separar-se de sua biblioteca de 2 mil volumes, porque não conseguia parar de trabalhar, e afora isso a leitura era seu passatempo favorito. Quando voltou, abriu a porta e deparou-se com estantes vazias, papéis espalhados pelo chão, nem uma só lombada à vista, e em cima da mesinha de centro um bilhete rabiscado às pressas: “O senhor deixou uma janela aberta. Fechei ao sair. Parabéns pelo bom gosto. Obrigado por tudo. Desculpe qualquer coisa.”
 
2
Eram cinco rapazes bebendo num bar ao lado da Estação Ferroviária, madrugada adentro, quando um deles, enchendo a cara e debulhando-se em lágrimas por ter levado um chifre da namorada Josivânia com um playboy da capital, anunciou que a vida não valia a pena, levantou-se, entrou no Fusca e rodou vinte metros até estacionar o carro em cima dos trilhos e desligar o motor, disposto a despedir-se do mundo durante os nove minutos que faltavam para a passagem do pontualíssimo trem de carga; o que fez os amigos reunirem-se apavorados, correrem para lá, procurarem a chave na ignição, depois nos bolsos do bêbado, e ele dizendo: “vão embora, fiquem vivos, vocês são felizes”, e os minutos galopando, e o jeito foi subjugar o desesperado, soltar o freio de mão e empurrar o carro para fora da via férrea, bem a tempo, pois o expresso passou com gosto de gás, teria pulverizado até um caminhão de trio elétrico; a chave do carro nunca mais foi encontrada, o rapaz no dia seguinte deu adeus ao mundo e virou hippie, e a prova da história é que o fusca permanece lá até hoje, coberto de mato e ferrugem, pra quem duvidar.
 
3
Jurandir Nestor da Mota, 48 anos, escriturário de profissão, pastor em carreira ascendente na Igreja Apostólica Cordeiro de Deus, no Tatuapé, viajou a Paris para um congresso e nos últimos dias permitiu-se uma viagem ao que ele chamava “o bas-fond”, para assegurar-se de que a humanidade estava mesmo decadente e precisava de providências espirituais imediatas, e por outro lado para saber se aquilo que os outros pastores e pastoras contavam aos sussurros era mesmo verdade; tanto era que ao longo de uma tarde e uma noite ricocheteando de bar em bar e de strip em strip Jurandir conheceu um brasileiro saradão e simpático que lhe serviu não apenas de cicerone, e no encerramento da noite fizeram selfies de peruca, selfies junto ao pôster de Milo Manara no motel, e ao se despedirem o rapaz confessou: “mau pai é dessa mesma congregação, Pastor Dioclécio, vai adorar ver essas fotos do concorrente dele”.
 
 
4
Em agosto de 1993, em São Paulo, a banda recifense Trovão das Alfaias gravou seu primeiro álbum, intitulado “Linha do Tiro”. Ao entrar na fase de produção gráfica, foi escolhida para ilustrar a contracapa do álbum uma foto de estúdio, no último dia de gravação, reunindo na mesma imagem todos os integrantes, a equipe técnica, roadies, os músicos de estúdio, alguns convidados, um bloco de mais de vinte pessoas eufóricas e sorridentes, todas abraçadas, umas sentadas no chão, outras de pé, etc. Lançado o disco, os músicos da banda começaram a ser interrogados sobre quem era o homem meio calvo, de bigode escuro, camisa branca e jeans, sentado no meio da turma, sorrindo e acenando. “Não sei, era um amigo de alguém que estava lá,” diziam eles; um jornalista do Recife dedicou mais de quatro anos a uma pesquisa infrutífera, entrevistando todos os demais presentes na foto, o fotógrafo, os donos do estúdio, os funcionários da gravadora. Vinte e sete anos passados, ninguém identificou ainda o homem que aparece na foto.
 
5
Raymond Deverreaux, 55 anos, decorador, parisiense, tocou às 15:30 de uma tarde outonal à porta do apartamento de sua cliente Mme. Charbonnier, 74 anos, fez-se anunciar pela criada, olhou pela janela do décimo andar que dava para um pátio interno o chuvisco melancólico daquele outubro, foi até o sofá e deixou-se cair com todo alívio dos seus 120 quilos sobre as almofadas, xales, e lenços estampados que o cobriam, e mal o fez sentiu sob os glúteos o estalo inconfundível de uma delgada coluna vertebral se partindo, arredou-se dali com um prenúncio de horror que apenas se confirmou ao ver sob as sedas e drapeados o corpo agora para sempre imóvel de Pierrot, o lulu de estimação da madame, alegria dos seus olhos, luz dos seus dias. A idéia lhe veio em dois segundos, e em mais três o gesto de levar o falecido até a janela e entregá-lo aos desígnios da lei da gravidade; e dez segundos depois estava a porta do apartamento silenciosamente se fechando às suas costas, e ele se retirava com o coração num tumulto de perplexidade, rancor, remorso e novamente alívio.
 
6
Domenico Mastratti, 65 anos, de Milão, colecionador de arte impressionista, precisou vender o apartamento vizinho ao que ocupava, e que estava vazio há alguns anos. Candidatou-se à compra um individuozinho insuportável, Cesare Puntibasta, 40 anos, animador de TV, efeminado, melífluo, vulgar, invasivo, cheio de falsas intimidades, rodeado de companhias constrangedoras, que em apenas dois encontros conquistou a antipatia eterna do signore Domenico, o qual jurou para si (e para a governanta que cuidava de sua vida de solteirão empedernido) que jamais se tornaria vizinho daquele desclassificado; que felizmente sumiu quando viu que de nada adiantavam suas insistentes visitas e ligações. O signore Domenico teve um ou dois dias de trégua até que lhe apareceu uma segunda candidata, a signora Marchesi, 60 anos, psicóloga aposentada, uma mulher viúva, culta, séria, que teceu elogios ao silêncio do edifício, à faixa etária dos serviçais, aos conceitos pétreos da privacidade e da cidadania. Uma semana de tratativas entre os respectivos advogados bastaram para que o signore Domenico assinasse o contrato de venda, em nome de um sobrinho e futuro herdeiro, pois (explicou-lhe a psicóloga) empecilhos jurídicos a impediam de comprar em seu próprio nome. Chancelada a venda, tomaram os dois um discreto vinho tinto e a signora Marchesi sumiu para sempre, pois a mudança que chegou no dia seguinte foi a do sorridente Puntibasta, cujo verdadeiro nome estava no contrato conseguido por ela: Elsa Cormorante, atriz de filmes B em Cinecittà, que aliás o encarregara de deixar “dois beijos bem estalados na cara de Domenico, um fofo!”, o que Puntibasta se apressou a executar, para gáudio dos carregadores e consternação da governanta.
 
 
 
 

quarta-feira, 7 de outubro de 2020

4628) Os que voltaram da Morte (7.10.2020)



Há um filme francês chamado Les Revenants (2004; em inglês, They Came Back) com uma premissa fantástica desenvolvida de maneira curiosa.
 
A premissa é que um belo dia os mortos voltam à vida.  Na cena inicial do filme eles saem do cemitério, caminhando devagar, mas não são como os zumbis. Voltam intactos, vivos mesmo, aparentemente saudáveis, trajando roupas limpas e normais. Seriam as mesmas pessoas que foram um dia, se não fosse o fato de algumas semanas, ou meses, ou anos atrás terem falecido e sido sepultados por suas famílias.
 
A cena inicial do filme, arrepiante, mostra esse êxodo vagaroso de pessoas bem vestidas, de cabelos brancos, saindo do cemitério numa procissão silenciosa e introvertida.
 
Voltam, inteiros, mas meio amnésicos. Parecem não saber que tinham morrido. Alguns se dirigem de volta a suas casas, outros ficam vagando. As autoridades providenciam espaços para recolhê-los, em galpões, em ginásios, porque são milhares que ressuscitam do dia para a noite. É como se fosse uma invasão de refugiados; ou de desabrigados por um furacão, algo assim.
 
Um dado comum a todos é essa amnésia, essa relativa ausência, esse descolamento da realidade. Falam pouquíssimo, e quando falam é para dizer banalidades, frases cotidianas, como se a vida fosse a vida normal de sempre mas eles estivessem meio tontos, meio convalescentes, meio maldormidos.
 
Lembrei do que acontece no livro Aniquilação (2014) de Jeff VanderMeer. Nessa história, algumas expedições militares são enviadas à misteriosa “Área X”, que parece ter sido bloqueada por uma força alienígena. As pessoas que entram ali não voltam mais, mas há algumas exceções. A Bióloga (um dos personagens principais) conta assim como o seu marido, um dos expedicionários, reapareceu inesperadamente em casa:
 
Uma noite, cerca de um ano depois que ele tinha partido para a fronteira, eu estava deitada sozinha na cama, e ouvi alguém na cozinha.  Armei-me com um bastão de beisebol, saí do quarto e acendi todas as luzes da casa.  Encontrei meu marido junto do refrigerador, ainda vestindo seu uniforme da expedição, bebendo leite e derramando-o pelo queixo e pelo rosto, e devorando furiosamente restos de comida.
 
Fiquei sem fala.  Só conseguia olhar para ele como se ele fosse uma miragem e se eu me mexesse ou dissesse qualquer coisa ele iria se dissipar no nada, ou em menos do que nada.
 
Sentamos os dois na sala, ele no sofá e eu numa poltrona em frente.  Eu precisava de alguma distância em relação àquela aparição repentina.  Ele não sabia dizer como tinha deixado a Área X, não lembrava absolutamente de como tinha chegado ali em casa.  Tinha apenas uma vaga lembrança da expedição propriamente dita.  Demonstrava uma calma estranha, rompida apenas por alguns breves momentos de um remoto pânico, quando eu lhe perguntei o que acontecera e ele reconheceu que sua amnésia não era natural. (...)
 
Depois de algum tempo, não aguentei mais aquilo.  Tirei a roupa dele, obriguei-o a um banho de chuveiro, depois levei-o para o quarto e fiz amor com ele, eu por cima.  (...) O tempo inteiro em que esteve dentro de mim ele ergueu os olhos para o meu rosto com uma expressão que me disse que ele lembrava, sim, de mim, mas somente através de uma névoa.  (...) O que quer que tivesse acontecido na Área X, ele não tinha voltado.  Não mesmo.
(trad. BT)
 
É mais ou menos assim que reagem as pessoas “retornadas” do filme escrito e dirigido por Robin Campillo. Algumas são idosas, e seu alheamento nos dá uma arrepiante impressão de Alzheimer. Casais jovens, sem filhos, sentam numa sala de visitas olhando um para o outro, e em certos momentos a gente não sabe se quem retornou da morte foi ele ou foi ela.



Alguns erguem-se no meio da noite, vestem a roupa e saem caminhando devagar de volta à repartição onde trabalhavam, aparentemente sem perceber que são três horas da madrugada. Reúnem-se. Manuseiam mapas, falam em voz baixa, como se tentassem se lembrar coletivamente; são rituais ominosos e patéticos. Parecem com a Ilha do Dr. Moreau de Wells: os conciliábulos dos bichos-homens repetindo ladainhas e tentando convencer-se de que são pessoas normais.
 
E ao que parece ninguém toca no assunto. Os familiares procuram poupá-los (e a si próprios) de perguntas terríveis tipo “como é estar morto?”. Tratam-nos como em tantos lugares se tratam os soldados que voltam da guerra traumatizados. Procuram facilitar tudo para eles, e ninguém toca jamais naquele assunto.
 
As matérias sobre o filme lembram de Invasion of the Body Snatchers, filmado em 1956 por Don Siegel e em 1978 por Philip Kaufman. A única semelhança é a atitude meio sonâmbula que nestes dois filmes acomete as pessoas que foram “invadidas” pelos alienígenas; no mais, semelhança nenhuma.
 
O saite IMDB cita o nosso Incidente em Antares de Érico Verissimo, por esse retorno dos mortos; mas, mais uma vez, a semelhança se esgota no ponto inicial. No filme francês, os mortos estão limpos e intactos, mas têm um comportamento passivo e ausente; no livro de Érico, apresentam uma leve decomposição, mas falam, riem, discutem, têm muito mais iniciativa, estão até mais “vivos” do que muitos outros personagens.
 
O filme tem alguns desdobramentos meio inexplicados, e me passa impressão de um sintoma muito comum nas narrativas da literatura e do cinema. São as histórias de Começo e as histórias de Fim. Às vezes a gente tem uma idéia sensacional para o começo de uma história, mas não sabe onde aquilo vai dar. Outras vezes, a gente imagina um desfecho arrasador, mas precisa inventar um começo que conduza até aquele ponto.
 
Les Revenantes é claramente uma História de Começo; “E se os mortos voltassem?...”, etc etc.  O final do filme sugere dois ou três desenvolvimentos, nenhum deles conclusivo – não é um filme com desfecho, é um filme que se esvai aos poucos. (Li por aí que foi adaptado para uma série de TV que já vai com duas temporadas; não creio que uma idéia tão tênue possa render muito, esticada a esse ponto).
 
O mais interessante do filme é esse clima de indecisão, de imprecisão, de perguntas não respondidas. Que lembra as palavras de Arthur Rimbaud em Uma Estadia no Inferno:
 
“Fraqueza ou força: repara bem, é a força. Não sabes aonde vai nem por que vais, mas entra em toda parte, aberto a tudo. Não te matarão mais do que se já fosses cadáver.”  Pela manhã, meu olhar era tão vago e minha aparência tão morta, que as pessoas que encontrei talvez nem me tenham visto.
(trad. Ivo Barroso)
 
 
 
 
 







domingo, 4 de outubro de 2020

4627) Falando paraibês (4.10.2020)

 


Digo paraibês por comodidade, mas muitas das falas listadas aqui são patrimônio vocabular de todo o Nordeste, e se brincar de outros Estados do Brasil. (Este “se brincar”, por exemplo, me parece paraibês puro, mas certamente não nos é exclusivo.)
 
Gosto de anotar essas frases, que me trazem o sabor de uma linguagem regional com muito mais força do que palavras isoladas.
 
AÍ É QUE O CANCÃO PIA -- Equivale aproximadamente a “aí é que a porca torce o rabo”.
 
NA LAPA DO MUNDO – De mundo afora; pela vastidão do mundo.  “Pois é, cantador de viola é como caminhoneiro, tem que viver na lapa do mundo”.
 
No mundo das mudernage
Não parava de sonhá
Só sonhava com fartura
Riqueza, luxo e gozá
Foi premêro sem segundo
Ganhou a lapa dos mundo
E nós fiquemo pro cá.

(Jessier Quirino, “Cumpadre Zé de Cirila foi morrê em Boi nos Are”, em Paisagem de Interior, pag. 49)
 
E BOTE FORÇA --  Um aditivo de quantidade, em expressões como: “Ela já é meio coroa... deve ter uns 40 e bote força”.   “Fulano ficou de passar lá em casa onze horas, mas quando apareceu já era meio-dia e bote força”. 
 
PARADA FEDERAL -- Expressão elogiosa: “Fulano é parada federal!  Entrou faltando dez minutos, fez dois gols e virou o placar!”  Frequentemente se abrevia para “Fulano é parada!”.  Também se usa: “Não provoque Fulano não, que a parada ali é federal”. “Parada”, curiosamente, se usa no mesmo sentido de agora, de qualquer situação ou circunstância com que a gente se envolve; os jovens dizem: “Vou numa parada ali e volto já”.
 
EMENDAR OS BIGODES -- Brigar; ir às vias de fato.  “Eles nunca tinham simpatizado um com o outro, mas ontem no bar emendaram os bigodes de verdade.”
 
BOTA POR CIMA! – Desafio furioso que se grita quando um motorista "tira um fino" na gente.  Subentende-se o sentido de « Passa por cima de mim ! »  "Eita, fila da puta!   Bota por cima!  Se é pra matar a gente, mata logo!" 
 
UMAS-E-OUTRAS -- A acepção principal (esta generalizada em todo o Brasil) é de “uns tragos de bebida”: “Vamos tomar umas-e-outras ali no bar da esquina”.  Esta acepção tem também uma forma intensificada, quando se fala de bêbados inveterados: “Fulano não toma mais umas-e-outras: toma algumas-e-muitas.”
 
O segundo uso deste termo é um tratamento meio distraído, meio desdenhoso, que se dá a uma pessoa pouco importante (um criado, um moleque, um estranho ao grupo), por desinteresse de perguntar-lhe o nome: “Ô umas-e-outras, pega esse dinheiro aqui e me compra uma carteira de cigarros”.  “Mas Fulano, isso é hora de chegar!   Só não lhe dou um esporro porque você trouxe o umas-e-outras aí com você e eu não quero dar má impressão.”   É omo se dissesse: “esse Fulano aí”.
 
SE EU CAIR POR CIMA DE TU, SÓ FICA O PROJETO -- Ameaça brincalhona que se faz a alguém, geralmente para destacar a diferença de estatura física entre os dois.
 
GARÇONETE NA CEIA LARGA -- Usa-se para dizer ironicamente que uma mulher é muito mais velha do que aparenta, ou do que afirma ser.  “Quem?  Fulana,  tem 25 anos?  Rapaz, aquela ali foi garçonete na Ceia Larga!”  A Ceia Larga é a “Última Ceia” de Cristo com os apóstolos.
 
MAIS DIFÍCIL DO QUE TANGER UMA CORDA DE CARANGUEJOS -- Comparação brincalhona, usada geralmente num contexto semelhante: "Andar com cinco meninos por dentro dum Parque de Diversões é mais difícil do que tanger uma corda de caranguejos."   Uma "corda" é o modo como os caranguejos são comercializados, amarrados em conjunto num arranjo circular com um "pegador" vertical por onde se segura (não se compram caranguejos isolados, e sim “cordas”). 
 
No caso, subentende-se que a "corda" foi desfeita e alguém está tentando fazer com que os caranguejos soltos corram todos numa só direção.
 
"POEIRA EM ALTO MAR" -- Quando alguém pergunta: "Qual é o filme de hoje?", recebe como resposta um título imaginário e cheio de nonsense.  “Poeira em alto mar” é o mais frequente; outros são: “As Tranças Louras do Rei Careca”, “Judas Cagando no Deserto e Limpando o Cu com Areia”, e “A Volta dos que Não Foram”.  Uma versão mais sacana é o filme “Centelha Vermelha no Escuro” (=sentei-lhe a vermelha no escuro).
 
CAPAR O GATO -- Sair de fininho; ir embora de um lugar sem maiores delongas.  “A festa estava boa, mas quando deu meia noite, a gente capou o gato e foi beber no bar.”   Mudar de planos: “Ele disse que ia pra aula, mas quando chegou na rua capou o gato e foi pro cinema.”
 
TIRA O DEDO! -- Frase brincalhona que se grita, à distância ou às escondidas, quando se vê um casal de namorados trocando carícias muito íntimas em público.  Há uma piada antiga onde, ao ouvir o grito, o namorado, que é um sujeito musculoso, se dirige a um cara magrinho que estava meio distante, e o agarra pela gola: “Foi você que mandou tirar o dedo, cabra safado?”, e o magrinho responde: “Eu mesmo não!  Por mim o senhor pode ficar com o dedo lá o tempo que quiser!”
 
QUEM DISSO USA, DISSO CUIDA -- Pessoas acostumadas a certas práticas desonestas são as primeiras a se prevenirem contra elas.  “--Disseram que o Campinense vai pedir exame anti-doping pro jogo de domingo que vem.  -- Só pode!  Quem disso usa disso cuida!”   R. Magalhães Jr. registra: “Gato ruivo, do que usa, disso cuida”, e cita os últimos versos da estância IX do Canto II de Os Lusíadas: “Que onde reina a malícia, está o receio / Que a faz imaginar no peito alheio.”
 
COSTURO VOCÊ MAS NÃO COSTURO SUA SORTE -- Frase que se pronuncia enquanto, por uma razão qualquer, se costura a roupa de alguém sobre o próprio corpo (para fazer um remendo, ou para experimentar uma roupa nova ainda em acabamento, etc.).  Com isto, afasta-se a possibilidade de trazer azar para a pessoa.
 
COÇANDO A ORELHA DO VALETE -- Diz-se de alguém viciado em baralho.  “O pai dela é muito metido a moralista, mas no fim-de-semana ele vai pro clube e passa a noite coçando a orelha do valete”.  É uma alusão visual ao cacoete repetitivo do jogador que fica puxando a pontinha da última carta que tem na mão.  Uma variante: “Puxando a orelha do valete”.
 
MIL NOVECENTOS E COCADA --  Expressão para designar uma data remota no passado, da qual não se quer nem tentar lembrar com exatidão.  “Esse vestido deve ter estado na moda um dia, mas foi em mil novecentos e cocada”.  Também se diz: “Mil novecentos e lá-vai-fumaça”.
 
DAR UMA GUARIBADA – 1) Examinar superficialmente; fazer uma avaliação rápida de um objeto ou uma situação.  “Eu nem entrei na festa: dei uma guaribada de longe, mas achei que estava muito cheia, e resolvi não entrar”.  “A revista está ótima, eu dei uma guaribada na banca, e comprei na mesma hora”.  2) Fazer uma revisão geral em algo, consertando os defeitos e aproveitando para fazer pequenos melhoramentos. "Vou dar uma guaribada no carro, porque estou pensando em viajar neste fim de semana".  Neste sentido, equivale a "dar uma geral".