domingo, 19 de novembro de 2017

4288) "Sgt. Pepper's", 50 anos (19.11.2017)



Pois é, rapaz. Tenho trabalhado tanto que passei batido na comemoração dos 50 anos do disco Sgt. Pepper’s dos Beatles. Parece-que-foi-ontem que eu entrei na velha casa de Seu Armando e D. Djanira, em frente à Rodoviária velha de Campina, e Jakson Agra, com a compunção de um Papa lavando os pés de um mendigo na Semana Santa, me estendeu aquela preciosidade, deixando-me perplexo pro resto da vida.

Que povo todo era aquele? E os Beatles, de bigode? Vestidos de filarmônica antiquada? As letras impressas no verso do elepê?!

Esse capítulo das letras é histórico, porque até então a gente dependia, para cantar as músicas dos Beatles, de revistinhas como Só Sucessos ou Vamos Cantar, nas quais confiávamos como um democrata confia na Constituição Federal. 

Ainda hoje canto músicas de um jeito errado porque decorei, por falta de opção, os monstrengos dadaístas que aquelas revistinhas tiradas-de-ouvido atribuíam aos rapazes, letras que deixariam três deles mortificados e Lennon, possivelmente, cofiando o bigode e pensando em mais um livrinho de poemas nonsense.

Enfim – o Netflix está oferecendo o documentário It Was Fifty Years Ago Today, dirigido por Alan Parker, cheio de entrevistas em que contemporâneos e amigos dos Beatles falam sobre a efeméride.

São figuras com conhecimento dos fatos em primeira mão, como o biógrafo Philip Norman (autor da excelente biografia Shout!), Bill Harry (autor da indispensável Beatles Encyclopedia), Julia Baird (irmã de Lennon) e vários outros.

Eles falam, sem muita informação nova, sobre os assuntos da época: a celeuma do “somos mais famosos do que Jesus Cristo”, a homossexualidade e as depressões de Brian Epstein, a encheção de saco da banda com as turnês, a breve filiação ao guru Maharishi (que nem os conhecia, sabia apenas que eram celebridades ricas).

Bem, são cinquenta anos, e eu não sou um fã dos Beatles, sou um mero admirador à distância. Anotei algumas coisas que eu não sabia, e peço aos verdadeiros fãs que me poupem cartas dizendo que TODO MUNDO já sabia esses detalhes.

Philip Norman é o autor de Shout!, o melhor relato das trapalhadas financeiras e contratuais em que Epstein e os Beatles se meteram por inexperiência, o que fez com que, mesmo milionários, eles tivessem ganho apenas uma fração do dinheiro que produziam.

Ele lembra que o pai de Paul, Jim McCartney, tinha uma banda de jazz chamada de “Jim Mac Jazz Band”, e mostra a foto de um grupo de pessoas em torno de um bombo de fanfarra, que pode ter sugerido ao filho, anos depois, o layout da capa do disco mais famoso.



Barbara O’Donnell, ex-secretária da Apple Records, lembra que durante a gravação do disco George lhe trazia as letras das canções assim que ficavam prontas, para que ela as datilografasse e as letras pudessem ser distribuídas para quem precisasse delas. “E os manuscritos originais,” diz ela, “foram todos para a lata de lixo, só ficaram as versões copiadas à máquina... ah, se eu soubesse!”.

O que é uma pena, e torna ainda mais meritório o trabalho do próprio George Harrison. A coisa mais interessante do seu volume de memórias I Me Mine (New York: Simon and Schuster, 1980) é a reprodução em fac-símile dos manuscritos de 83 letras de canções suas, nos mais variados tipos de papel. George era um “guardador” emérito: de “Within You, Without You”, sua única colaboração no disco, escapou apenas um pedaço, com fragmentos das duas primeiras estrofes.



O biógrafo Hunter Davies diz que estranhou não haver nenhum jogador de futebol na capa do disco, e só então constatou que nenhum dos Beatles era fã de futebol. Ele pressionou um pouquinho, e Lennon escolheu Albert Stubbins, um artilheiro do Liverpool durante a década de 1940. Mas não por isso, e sim porque achava o nome dele engraçado. (Ele é o cara sorridente por trás de Marlene Dietrich, na capa do disco.)


Bill Harry menciona que eles queriam ter posto na capa do disco um quadro de Magritte, de quem Lennon era fã, onde aparece uma maçã verde, mas por alguma razão não foi possível. (Não fica claro qual era o quadro, se era “La Chambre d’Écoute”, “Le Fils de l’Homme” ou outro.) A maçã verde de Magritte acabou sendo usada depois como o símbolo da Apple Records.


(La Chambre d'Écoute)


(Le Fils de l'Homme)

Outra entrevista interessante é a de Pete Best, o baterista que foi substituído por Ringo Starr. Esse músico teria todos os motivos para ser um cara amargurado, mas vi umas duas ou três entrevistas de TV que Geneton Moraes Neto fez com ele em diferentes décadas, e ele sempre me soou um cara tranquilo consigo mesmo. Ele assimilou o fato de não ter se tornado um Beatle.

No filme Best fala que seu avô serviu na Índia e tinha várias condecorações militares que a mãe dele mostrava a John, Paul e George, quando Pete tocava na banda. Quando a capa do disco estava sendo preparada, Lennon achou que as medalhas iriam combinar com as túnicas militares usadas pelos Beatles e mandou pedi-las emprestadas. A mãe de Best as enviou, mas disse (em tradução paraibana); “Tem dois V: vai e volta.” As medalhas estão lá, usadas pelos Beatles; e foram devolvidas à família. Pode ter sido um mero capricho figurinístico, mas também uma maneira delicada de dar um alô ao antigo companheiro.



É interessante a discussão entre McCartney e um jornalista de televisão sobre o LSD, que Paul afirma ter tomado pelo menos quatro vezes. O jornalista pergunta se ele não acha que, como figura pública, está incentivando outros a usarem a droga. E Paul responde:

– Olha, por mim eu nem falava nisso. É uma questão minha, pessoal. Quem está perguntando é você, e eu prefiro sempre falar a verdade. Se você acha que o que eu digo pode prejudicar a juventude, então não divulgue minha resposta. 

Não é de hoje, 2017, que a imprensa gosta de fazer perguntas indiscretas e depois punir os entrevistados por darem respostas sinceras.

Outro episódio pitoresco que mostra bem o temperamento comedido e racional de Harrison. Quando foram a Bangor seguindo o Maharishi, os Beatles, sem nenhum assessor, apenas com o biógrafo Davies, foram a um restaurante e no fim NINGUÉM tinha dinheiro nos bolsos para pagar a conta. Os Beatles não pegavam numa nota de libra há anos – havia sempre alguém com eles encarregado de saldar as despesas.

Houve um momento de tensão, e então George pôs o pé em cima da mesa do restaurante, pegou uma faca, abriu o solado da sandália oriental que estava usando... e produziu uma nota de 20 libras. E disse: “A gente nunca leva dinheiro, e eu sempre achei que algo assim ia acabar acontecendo”.

No final, Simon Napier-Bell dá um conselho interessante: ouçam o disco em mono, não em estéreo. Durante a mixagem final os Beatles não estavam em Londres, estavam na Índia, e todas as decisões finais que tomaram em conjunto sobre o som foi a partir de amostras em mono que eram enviadas para eles.

O último comentário relevante sobre o disco em si é de Ray Connolly: se os Beatles tivessem incluído “Penny Lane” e “Strawberry Fields Forever” no disco, ele seria o melhor de todos os tempos. Essas duas músicas foram gravadas entre novembro e dezembro de 1966, e lançadas em “compacto simples” em fevereiro de 1967, quatro meses antes do álbum. Em vez de treze faixas, o disco poderia ter quinze, com a adição de duas canções peso-pesado. E a história seria outra.









quarta-feira, 15 de novembro de 2017

4287) Sagarana: "Corpo fechado" (15.11.2017)




(ilustração: Poty)

É um dos contos de Rosa em que aparece com mais nitidez a figura do narrador urbano, “gente de cidade e gravata”, no meio dos capiaus. Esse narrador surge em alguns contos do livro Sagarana (1946) e depois vai se diluindo um pouco.

Em Grande Sertão: Veredas (1956), aparece sublimado, metalinguístico, distanciado, como o interlocutor invisível do verdadeiro narrador, Riobaldo.

Em “Corpo Fechado”, antepenúltimo conto de Sagarana, esse “Doutor” dialoga o tempo inteiro com o protagonista Manuel Fulô. Pergunta, estimula, provoca, pede detalhes. Talvez seja neste sentido o conto mais autobiográfico, o que melhor confirma o papel de perguntador de JGR quando na companhia dos seus vaqueiros e capiaus. Ele diz:

Pois foi nesse tempo calamitoso que eu vim para Laginha, de morada, e fui tomando de tudo a devida nota.

Assim como o Grande Sertão é a história de Riobaldo contada ao “autor”, “Corpo Fechado” é a história de Manuel Fulô, um tipo pitoresco e meio picaresco, metade ingênuo, metade esperto, que no clímax do conto tem que enfrentar um perigoso valentão local e para isso se submete a um ritual de feitiçaria protetora.

Neste conto, não enxerguei muito a recorrência do tema da “ida e volta”, que está presente na maioria dos contos de Sagarana. Existe, em vez disto, um aspecto estrutural dos mais divertidos: é uma história que começa mais de uma vez. Tem três “idas” sucessivas, a cada fato importante que sucede.

Na edição que tenho (a 10ª.), o conto tem 28 páginas de texto, e principia com Manuel Fulô fazendo para o Doutor (que narra na 1ª. pessoa) um censo dos valentões de Laginha.Vai, vai, vai, com comentários, e na décima página surge isto:

Ora, pois, um dia, um meio-dia de mormaço e modorra, gritaram “Ó de casa!” e eu gritei “Ó de fora!”, e aí foi que a história começou.

O leitor se diverte com tal informalidade narrativa. Esse trecho anuncia que as engrenagens do enredo se põem em movimento com o aparecimento de Das Dôr, a futura noiva de Manuel Fulô e futuro pivô da tragédia. Só que Manuel consome em seguida um longo trecho preparatório explicando ao Doutor de que modo maquilou e vendeu dois cavalos doentes a um grupo de ciganos, e outras peripécias.

E aí, na página 22 do conto, diz-se:

Até que assomou à porta da venda – feio como um defunto vivo, gasturento como faca em nervo, esfriante como um sapo – Sua Excelência o Valentão dos Valentões, Targino e Tal. E foi então que de fato a história começou.

Esse segundo começo é um degrau acima na trama, porque Targino, o terror da vila, vem comunicar a Manuel sua intenção de, antes do casamento, passar uma noite com Das Dôr, exercendo uma espécie de “direito à primeira noite” da tradição feudal. É a crise que desaba, raio em céu azul, infelicitando o pobre do Manuel.

O Doutor se comove com o pavor de Manuel Fulô, porque o Targino “é cobra que pisca olho”: manda e desmanda no lugar, e (diz o Doutor, com seu linguajar urbano-boxístico) “o challenger não aparecia”.

O impasse está feito, raia o dia prometido para o cumprimento da ameaça. O Doutor vai se consultar com o Coronel local, também medroso, que pilaticamente lava as mãos do caso. Vai se consultar com o Vigário:

Então, fui ao Vigário. O reverendo olhou para cima, com um jeito de virgem nua rojada à arena, e prometeu rezar; o que não recusei, porque: dinheiro, carinho e reza, nunca se despreza.

Eis senão quando, na página 26, o narrador diz:

Mas, de fato, cartas dadas, a história começa mesmo é aqui.

E esse decisivo “terceiro começo” se dá com a vinda de “Antonico das Pedras ou Antonico das Águas”, pedreiro local que “tinha alma de pajé” e propõe um acordo a Manuel Fulô: faria um ritual propiciatório destinado a “fechar o corpo” de Manuel, em troca da “Beija Fulô”, a besta ruana que era a menina dos olhos do capiau. Parece um preço barato, mas a besta e a noiva quase se equiparam aos olhos dele:

– Oh, Manuel! Você gosta mais é da Das Dôr ou da Beija Fulô?
– Me desculpe, seu doutor, mas isto é pergunta que se faça? Gosto das duas por igual, mas primeiro da Das Dôr!...

Não creio que esteja exagerando quando digo que a cena culminante lembra e prenuncia o filme Matar ou Morrer (“High Noon”, 1952, Fred Zinnemann), ou pelo menos qualquer outro dos faroestes que Rosa apreciava:

O Targino já aparecera lá adiante. Vinha lento, mas com passadas largas. E de certo se admirou de ver Manuel Fulô caminhar. Naquela hora, a rua, ancha e comprida, só estava cabendo os dois. E eu pensei no trem-de-ferro colhendo e triturando um bezerro, na passagem de um corte.

Não darei spoiler do final.

“Corpo Fechado” vem no livro logo depois de “São Marcos” e é, como esta, uma história de feitiçaria. Parece ter crescido de dentro da outra, processo criativo que não era estranho ao autor. “Meu Tio, o Iauaretê” (1961) cresceu (ao que se diz) de dentro do Grande Sertão: Veredas, que por sua vez parece ter sido pensado como uma das novelas de Corpo de Baile (1956) e foi se expandindo até ganhar casa própria.

Rosa faz um jogo de simetria entre o amor pela besta ruana e o amor pela noiva; faz outro entre a magia de fechar-corpo e o fato de que Manuel Fulô acredita ser filho natural de Nhô Peixoto, o maior negociante do arraial, e isto de certa forma é uma magia heroicizante de outra natureza.

Picaresca, divertida, verossimilmente improvável, a história repete os triângulos amorosos de outros contos do livro, perpassados de comicidade e tragédia. E, ao dar destaque ao tema dos valentões arruaceiros, prepara o terreno para o clímax de “Augusto Matraga”.

E é cheia dos achados verbais do autor. Imagino os leitores de 1946 ouvindo-o dizer que Manuel e a besta ruana “juntos, centaurizavam gloriosamente”, e que a noite silenciosa do arraial tinha “grilos finfininhos e bezerros fonfonando”. Ou esse diálogo-parlenda, muito semelhante aos que praticávamos na Paraíba:

– Não, porque...
– Porque-isquê!
– A minha...
– Que-inha?
– Cala a boca!
– Que oca?

Quando o valentão chega no arraial, “o povo se mexeu, como água em assoalho”. E ninguém deixa de sorrir como linguajar de Manuel Fulô, para quem “a cacunda do bobo é o poleiro do esperto”, ou “até hoje eu gosto mais de me alembrar disso do que de comer doce” ou o brabo Adejalma tem um “nome bobo, que nem é de santo...”








domingo, 12 de novembro de 2017

4286) O miniconto (12.11.2017)



Que tamanho deve ter um conto?   Os critérios editoriais definem a extensão de um texto pelo número de palavras. (Como ponto de referência, este artigo tem exatamente 979 palavras).

O mercado literário norte-americano, mais industrializado e preciso do que o nosso, define quatro faixas de extensão:

Conto (“short story”), até 7.500 palavras
Noveleta (“novelette”), entre 7.500 e 17.500 palavras
Novela (“novella”), entre 17.500 e 40 mil palavras
Romance (“novel”), de 40 mil palavras em diante

Dica: não tentem achar uma equivalência entre os termos ingleses e os termos cognatos em português (novela, romance). Usamos palavras parecidas para falar de coisas diferentes.

Edgar Allan Poe definiu o conto, de maneira pragmática e intuitiva, como uma "narrativa curta, cuja leitura atenta requer de meia-hora a uma ou duas horas." 

Poe tinha em vista o que ele chamava de unidade de efeito.  O conto deveria ser curto para não ser interrompido.  Deveria ser uma experiência mental única, contínua, do começo até o fim, para que não se diluíssem as tensões, e o desfecho tivesse toda a carga emocional preparada pelo autor. 

Curiosamente, a duração que ele preconizava para o conto é aproximadamente a que tem um filme de longa-metragem no cinema comercial.  E qualquer espectador de cinema mais exigente sabe que a experiência de ver um filme na TV “quebra o efeito”, por causa dos intervalos comerciais.  Tanto um conto quanto um filme devem ser, idealmente, uma experiência mental ininterrupta.

Isto se torna mais fácil quando praticamos o que chamamos de “miniconto” (“short-short story”).  Para este não há um limite específico, mas em geral podemos considerar como minicontos aqueles de duas páginas ou menos.  Algumas experiências vão mais além.  Revistas literárias de língua inglesa promovem de vez em quando concursos para contos com apenas seis palavras.  O modelo para isto é um texto famoso atribuído a Ernest Hemingway, que diz: "For sale: baby shoes, never worn" (“Vende-se: sapatos de bebê, sem uso”).  Há toda uma história de tragédia familiar por trás deste minitexto. 

O miniconto procura sugerir, já que não pode descrever ou narrar muita coisa.  Em oficinas literárias ou de roteiro, vez por outra os alunos recebem esta tarefa: “Conte sua história em uma frase. Depois, em dez linhas. Depois, em trinta linhas; depois em 200 linhas”. 

Quem for capaz de manter a precisão e a coerência ao longo destas etapas provavelmente será capaz de escrever um roteiro de 120 páginas.  

A concisão é uma virtude em declínio nesta época do mundo eletrônico e seu espaço aparentemente sem limites.  Antigamente, escrevíamos pensando no número de toques por linha (eram 70) e no número de linhas por lauda (eram 30).  Compactar qualquer história em seis palavras nos traz de volta um pouco dessa antiga disciplina.

A revista Wired promoveu certa vez um concurso de contos fantásticos e de ficção científica em seis palavras.  Uma tarefa difícil, uma vez que é preciso sugerir, além de uma história, uma ambientação com a qual o leitor, a princípio, não tem familiaridade.  Mesmo assim, houve tentativas bem sucedidas.  Como esta, de Eileen Gunn: “Computador?  Trouxemos baterias?  Alô!  Computador?  Computador?…”  Não precisa mais nada para imaginarmos uma nave silenciosamente à deriva no espaço, cheia de astronautas congelados. 

Gregory Maguire propôs: “Nos arranha-céus calcinados, homens criaram asas”.  É um cenário pós-catástrofe, que lembra os quadrinhos de super-heróis.  Viagens no tempo são um caminho interessante para estas narrativas super-rápidas.  Harry Harrison propõe esta hipótese: “MÁQUINA CHEGA AO FUTURO.  Ninguém lá...”  Um recurso mais operacional, meio clichê dentro do gênero, mas eficaz nas curtas dimensões do miniconto, é a historieta de Alan Moore: “Tempo. Sem querer, inventei máquina do.”  E tem a humorística hipótese de David Brin: “Dinossauros retornam.  Querem petróleo de volta”.

O interessante nestas experiências é o fato de que o autor conta com a imaginação do leitor, sua capacidade de recorrer a um banco-de-dados comum para preencher as lacunas, as partes não explicadas (não dá para explicar muito em seis palavras). 

As seis palavras funcionam como um cartum, criando uma unidade de sentido que se percebe de um só relance, sem precisar ficar esmiuçando “comos” e “por quês”.  São como um título de livro ou uma manchete de jornal: exigem que a gente seja capaz de “já saber” e também de imaginar.

Outra publicação, a revista online Smith, lançou para seus leitores um desafio parecido: contar em seis palavras a própria vida.  As respostas foram muitas e variadas.  O quesito verossimilhança ficou um pouco fora de questão, pois os editores não poderiam checar se o que cada colaborador afirmava de si próprio era verdade ou não – mas isto é o que menos importa.  Algumas sínteses foram cronológicas e bem-humoradas, como a de Dick Hadfield: “Feto, filho, irmão, marido, pai, vegetal”.  Outras foram visualmente eficazes: “Cabeça entre livros, pés sobre flores” (Heather Thomson).  Outras foram pessimistas até a medula, como a auto-avaliação de Patsy Wheatcroft: “Época errada.  Classe errada.  Sexo errado”.   Outras otimistas, como a de Peter Elvish: “Companheira fiel, amor, risadas... e agora?” 

Tem uma que dá um calafrio incômodo: “Quatro casamentos, três filhos, depois câncer” (Gillian Johnson).   E outra com um sabor de volta-por-cima: “Atropelada duas vezes, felizmente ainda viva” (Trudi Evans).  Steve MacMullen impressiona pela sobriedade e ausência de ambição: “Desposei namorada de infância.  Filhos. Contente”.

Na verdade não se trata de esperar dos colaboradores uma pequena façanha literária, apenas um poder de síntese satisfatório.  Um tal de Patric se resume: “Nasci londrino, vivi fora, morri dentro” (no original: “Born London, lived elsewhere, died inside”).  Jane Kirk demonstra bom humor: “Príncipe no cavalo branco nunca apareceu”.  

O desabusado C. North afirma: “Nenhuma nota dez, mas virei milionário”.   O esperançoso Sunny Tailor pergunta: “Alguma chance de começar de novo?”  E John Ball confessa com resignação: “Trabalhei toda vida, ainda pago impostos”.    E Alexandra Lackey diz: “Nada de romance tipo Jane Austen”

Mas há um grande romance latente em cada meia-dúzia de palavras, desde que bem escolhidas.




(Uma versão diferente deste artigo foi publicada na revista Língua Portuguesa, da Editora Segmento, São Paulo, em julho de 2009)





quinta-feira, 9 de novembro de 2017

4285) "Incrível! Fantástico! Extraordinário!" (9.11.2017)





Falei algum tempo atrás neste blog sobre a figura de Almirante (Henrique Foreis Domingues), radialista, cantor, compositor, um desses personagens fundamentais na história da música popular e do rádio no Brasil.


Almirante criou programas de variedades escutados pelo Brasil todo. Colecionava informações sobre cultura popular, cultura oral, folclore, histórias, crendices, costumes, superstições. Seu arquivo pessoal acabou se transformando no Museu da Imagem e do Som, no Rio.

Incrível! Fantástico! Extraordinário! era um programa radiofônico com histórias verdadeiras de assombração. Quando eu era pequeno, meus pais tinham esse livro das Edições O Cruzeiro, com um longo prefácio falando da importância dos contos de fantasmas, e uma série de “relatos autênticos” que foram dramatizados no programa.


No começo eu tinha medo até de tocar nesse livro. Quando estava em cima de um móvel e eu precisava mexer nele por alguma razão, eu pegava qualquer objeto comprido (uma régua, um cabo de espanador) e o empurrava. Pra não tocar.

Depois cresci, perdi o medo e li o livro todo. Minha história preferida era “A Companheira Macabra”, história de um cara (talvez um estudante de Medicina) que pega uma caveira humana de verdade e a leva de bar em bar, bebendo e dando bebida à caveira. Depois ele encontra uma mulher linda e misteriosa que começa a fazer-lhe companhia. E por aí vai.

Quando vim morar no Rio, encontrei essa primeira edição na Biblioteca Nacional.

E depois, em 1989, a Editora Francisco Alves compilou um segundo volume dos casos relatados por Almirante, com prefácio de Sérgio Cabral. É este exemplar o que tenho comigo hoje.



Os casos eram enviados pelos ouvintes, no Brasil inteiro. Histórias no perfil tradicional do conto de fantasma brasileiro. Uma pessoa que é vista depois de morta, ou no instante em que está morrendo bem longe dali. Pessoas que prometem “fazer uma visita”, morrem, mas vêm cumprir a promessa. E assim por diante.

Como escritor, essas histórias não me interessam, porque a mecânica é sempre a mesma: alguém vê a “alma” de uma pessoa que já morreu, e geralmente isso acontece para “dar uma lição de moral” aos vivos.

Alguns contos, no entanto, têm leves variantes que poderiam servir como ponto de partida para um argumento de ficção.

Como em “Fenômeno de Levitação”, ocorrido em 1949 na estrada Rio-Petrópolis. Um casal se hospeda com a filha pequena, Fanny, para pernoitar à beira da estrada. De noite, dão por falta da menina. Dão o alarma. Vem polícia, vem bombeiro, mais de 100 pessoas buscando a criança sumida. E o autor conclui:

A verdade é que minha querida Fanny, às quatro e meia da manhã do dia 27 de julho daquele ano de 1949, foi encontrada lá embaixo no fundo de um despenhadeiro de uns 80 metros, a mais de 200 metros da casa! Lá estava ela, num ponto dificílimo de ser alcançado, calmamente, sentada, sem um arranhão, sem um ferimento, tão sossegada como se estivesse em sua caminha...

Gosto quando a “vingança” do defunto se dá por outros meios. Em “O Retrato” (caso de 1944), duas irmãs, Elvira e Leonor, eram brigadas; odiavam-se, e não se falavam mais. Leonor morre e anos depois Elvira encontra o ex-cunhado, que lhe pede uma foto da falecida. Elvira vai buscar e percebe que a foto está intacta, mas Leonor não aparece mais nela. Foi apagada.  E conclui:

Seu ódio é tão forte que nem quis deixar com a irmã uma lembrança do que fora em vida.

Dramaturgicamente, o clichê do “fantasma que aparece” poderia ser substituído com vantagem pelo “fantasma que faz desaparecer as coisas relacionadas com a sua vida na Terra”.

Gente morta que aparece a gente viva me parece pouco interessante. Mais intrigantes são mistérios que ocorrem sem nenhuma morte envolvida, como em “A Irmã Ausente”, um caso de 1914 na Bahia.

Um casal tem cinco filhas e, por problemas de saúde, precisa deixar três delas passando um tempo em casa de parentes distantes. Um dia, “M.”, uma das duas crianças que ficaram, afirma que uma das irmãs ausentes, “Si”, apesar de distante apareceu de repente na casa, e ao vê-la assustou-se.

Dias depois a mãe fala com a família onde “Si” estava hospedada e ouve o relato assustado:

Então foi um caso de telepatia, de transmissão de pensamento, pois ontem à noite a Si deitou-se naquele sofá e adormeceu. De repente, ela deu um pulo e acordou toda espantada. Perguntei o que houve, se ela estava com alguma dor e ela respondeu que não, que estava sonhando com a M. E que, quando a irmã chegou perto dela, assustou-se e acordou...

Pode ser telepatia mas pode ser também uma dessas dobras do espaço-tempo em que por uma fração de segundo dois pontos distantes se tocam (como quando vamos dobrar um lençol, pegamos duas quinas distantes e as juntamos uma com ao outra).

As histórias de assombração mais interessantes são as que não têm lição moral, nem exemplo humano, nem valor afetivo, nem catarse emocional. São simplesmente inexplicáveis, como o caminhão carregado de latões (que balançam sem fazer barulho) e sem ninguém ao volante, que repetidamente ultrapassa outro veículo numa estrada deserta à noite (“O Caminhão Fantasma”, 1952) ou o caminhoneiro que ao chegar perto de uma ponte resolve parar no acostamento para tirar um cochilo, desliga o motor, apaga os faróis... e acorda quatro horas depois, mais de 20 km à frente, com o carro ainda desligado (“A Ponte Sinistra”, 1949).

A história de terror tem geralmente o viés, o cacoete, a mania de ser um conto moral, quando poderia ser uma investigação dos bugs, dos “glitches”, dos maus-funcionamentos das leis do Universo; dos erros da Matrix.










segunda-feira, 6 de novembro de 2017

4284) O autor e a palavra (6.11.2017)




O saite Literary Hub fez um teste com seus leitores, via Twitter. A idéia lançada era: Existe alguma palavra do idioma inglês que, assim que a vemos, lembra de imediato um autor?

O autor da matéria, Kaveh Akbar, argumenta que não pode ouvir a palavra “purple” (=roxo) sem lembrar de Prince, por causa da canção “Purple Rain”.

A questão lançada tem uma certa sutileza, porque ele não está perguntando palavras inventadas por autores, o que seria muito mais fácil. “Jabberwocky” é uma palavra inventada por Lewis Carroll, “cyberspace” foi inventada por William Gibson, “riverrun” por James Joyce e assim por diante.

O que ele pergunta é o caso de palavras que já eram termos comuns da língia inglesa, mas que foram usadas de forma tão marcante por um autor que acabaram se associando a ele.

Os leitores trouxeram twitters com muitas sugestões, a maioria de autores que desconheço, mas tem alguns que não há como negar.

Quem pode negar, por exemplo, que “Howl” ficou para sempre associada ao famoso poema de Allen Ginsberg? O substantivo uivo e o verbo uivar continuam aparecendo normalmente em um milhão de textos, mas é como se grudado a eles viessem sempre, como um balão de gás amarrado no parachoque de um carro, a barba e os óculos do poeta beat do Greenwich Village.

Ele dá exemplos recentes: “handmaid” (=aia, criada) ficou associado a Margaret Atwood depois do romance/série de TV The Handmaid’s Tale.

Alguém lembrou que mesmo uma coisa de uso prático como a escala Fahrenheit passou a lembrar Ray Bradbury por causa do romance Fahrenheit 451 – a tal ponto que Michael Moore intitulou um documentário seu Fahrenheit 11/9, em alusão ao mundo de Bradbury, não ao da medição térmica.

O saite lembra que a palavra “tyger” ficou associada a William Blake pelo seu famoso poema “Tyger, tyger, burning bright / in the forest of the night...” Com o detalhe de que isso só ocorre na forma arcaica da grafia, com “Y”.

Também na lista aparecem “flâneur” (a cara de Charles Baudelaire), “inferno” (a cara de Dante – note-se que o uso corriqueiro em inglês é de “hell”, sendo “inferno” uma palavra de cunho latino usada em casos excepcionais), “solitude” (a cara de Garcia Márquez, e o tradutor Gregory Rabassa já explicou por que preferiu este termo a “loneliness”).

De minha parte, nunca deixou de me espantar o título do famoso conto de Edgar Allan Poe sobre a carta furtada: “The Purloined Letter”. Em décadas de leituras em inglês não me lembro de ter visto esse verbo, “to purloin”, usado por quem quer que fosse. É como se Poe o tivesse inventado.

E em português?

A primeira palavra-pregada-a-um-autor que me ocorre é a inevitável “nonada”, que já era corrente no idioma mas Guimarães Rosa tornou inequivocamente sua.

Igualmente corrente era a palavra “armorial”, mas como substantivo (“livro ou códice onde se reúnem reproduções de brasões e armas heráldicas”). Neste sentido, existe até em inglês (vejo de vez em quando em livros por aí). Ariano Suassuna deu-lhe cunho de adjetivo e tornou-se indissociável dele.

A palavra “banguê” pode ser de uso corrente na zona canavieira, mas no caso de leitores de qualquer outra parte a sensação que temos é de que foi José Lins do Rego que a inventou no título de um livro famoso. O mesmo argumento pode valer para “bagaceira” e José Américo de Almeida.

São palavras meio raras, e essa raridade torna mais fácil a sua anexação a um uso famoso. Porque palavras mais comuns, como “pedra” poderiam ser associadas por leitores diferentes a Drummond, a João Cabral, ao próprio Ariano... Palavras a que diferentes autores deram usos marcantes em cada caso, e que acabaram não se fixando em nenhum deles.

Vale para nomes próprios, também, nomes de lugares que já existiam antes de um autor se apossar para sempre do seu topônimo. Eu, por exemplo, sempre pensei que “Pasárgada” fosse uma invenção de Manuel Bandeira, mesmo tendo visto repetidas declarações dele de que colheu o nome dos livros de História.


Fico imaginando se para outros leitores as palavras “veranico”, “amanuense”, “bugre”, “catavento”, “escarro”, “senzala”, têm para todos os leitores as mesmas referências literárias imediatas que têm para mim. 





quarta-feira, 1 de novembro de 2017

4283) O Halloween e o Saci-Pererê (1.11.2017)



Todo ano vai chegando essa época e recomeça a discussão. Chamo a essas coisas “o carrossel das discussões”, porque é um debate cíclico, que nunca se resolve, e que volta todo ano, de acordo com as rotações do calendário.

Uma vez publiquei alguma coisa nas redes sociais curtindo o Halloween e o pessoal me castigou um pouquinho. Como é que eu, um defensor da cultura popular brasileira, um estudioso do folclore, e paraibano ainda por cima, posso gostar de uma comemoração americanizada como essa?

Tem muita gente incomodada com isso, porque não se trata nem de decoração das lojas nos shoppings. São as nossas escolas, que estão promovendo festinhas de Halloween para as crianças, essas mesmas escolas que não se dão o trabalho de lhes ensinar o que são a mula-sem-cabeça, o saci-pererê, o boitatá.

De fato, estes nossos duendes deviam ser mais frequentados e discutidos. Não só eles – outros igualmente interessantes como o bradador, o pé de garrafa, o corpo seco, a mulher do chapéu grande, e outros que mesmo alguns defensores de nossas mais arraigadas tradições nunca ouviram falar.

O que irrita muitos adversários do Halloween é o fato de que ele (como outras coisas) denota aquele nosso complexo de inferioridade deslumbrada diante dos EUA, aquela nossa fascinação viralata diante de tudo que é moda em Manhattan e em Beverly Hills. Concordo. É uma demonstração de que nascemos para entregar de graça nosso ouro e pagar pela bijuteria alheia.

E se formos de fato para o vamos-ver, o Halloween que se comemora em nossas capitais está na mesma prateleira dos Pokemons e Digimons, das festas temáticas de Princesinhas Disney, dos Guardiões da Galáxia, das Tartarugas Ninjas e do Bob Esponja.

Varrer isso da cultura urbana brasileira de 2017? É mais fácil proibir o consumo de Coca-Cola e de uísque escocês no país.

Meu interesse pelo Halloween não tem nada a ver com Brasil ou com Estados Unidos, não tem a ver com as fronteiras políticas dos países ocidentais neste instável começo de século 21. Tem a ver com jazidas profundas, não com os loteamentos da superfície.

O Halloween me interessa justamente porque gosto de ler sobre essa área tão canhestramente classificada como folclore. É uma jazida, como já falei. É material icônico-narrativo com mil anos de idade. Uma cartografia de parte do nosso inconsciente coletivo que se revela através de monstros, duendes, bruxas, magos, demônios, vampiros.

Para mim, o Halloween (o meu Halloween) é vizinho-de-porta da Geografia dos Mitos Brasileiros de Câmara Cascudo, uma das minhas obras de cabeceira. Vizinho-de-porta das bruxas de Goya, do romance gótico europeu, das lendas judaicas do Golem e do Dybbuk, e das lendas árabes dos Djinns e dos Efrites.

É esta, para mim, a área semântica e simbólica dessa festa, e se ela virou uma comemoração pasteurizada e comercializada, sem nada de Brasil, reclamem de quem fez o mesmo com o Natal e o São João.

O Halloween me traz à mente o País de Outubro de Ray Bradbury e as histórias de assombrações de Almirante, e não estou nem aí para a decoração das vitrines do Shopping da Gávea. Halloween pode ser estrangeiro, mas para mim não é Walt Disney: é feito dos romances de Stephen King e dos quadrinhos de Neil Gaiman – os quais, neste sentido estrito, não são americanos nem ingleses, são afloramentos de uma correnteza subterrânea que vem desde a Babilônia e o Egito.

Deveríamos celebrar com o mesmo entusiasmo nosso monstruário luso-afro-tupiniquim?  Sem dúvida, e de vez em quando estou aqui dando uma assopradazinha nessas brasas para que não se apaguem.  Não vejo contradição entre o Halloween estrangeiro e os monstros do nosso “folclore”. São todos consanguíneos. Pertencem a uma cultura anterior ao Mayflower e a Pedro Álvares Cabral.










sábado, 28 de outubro de 2017

4282) "O Ovo da Serpente" (28.10.2017)




Numa cena deste filme, Manuela (Liv Ullmann) está em crise emocional após o suicídio do marido, e vai procurar um padre católico (James Whitmore) para se aconselhar. O padre está atrasado para um compromisso e, de início, a repele e a trata com alguma rudeza. Depois se arrepende. Pede a ela que se ajoelhe no chão, junto com ele. E diz:

– Nós vivemos tão longe de Deus que ele não ouve as nossas preces. Por isso, temos que pedir uns aos outros o perdão que esse Deus distante não pode nos conceder. – Ele pousa a mão na cabeça dela. – Eu perdoo qualquer culpa que você possa ter tido na morte de seu marido. – E depois de uma pausa: – E lhe peço perdão pela minha apatia, minha indiferença diante do seu problema. Você me perdoa?

Ela põe a mão sobre a cabeça dele e diz:

– Sim, eu o perdoo.

Ele fica de pé às pressas e diz:

– Agora vamos, estou atrasado, e meu superior vai me repreender se eu me atrasar ainda mais.

E os dois saem da sacristia, quase correndo.

No cinema de Ingmar Bergman, tão imbuído daquela religiosidade angustiada e indagativa, essa cena tem mais força ainda porque O Ovo da Serpente (1977) é ambientado na Berlim de 1923, com a espantosa crise econômica, o miserê social, e o terror que era a vida das pessoas comuns na Alemanha estraçalhada pela I Guerra Mundial e vampirizada pelo Pacto de Versalhes.

É uma das produções mais caras e mais internacionais da obra de Ingmar Bergman, e (dizem) um dos seus piores filmes. São os dois aspectos menos relevantes a se discutir sobre ele.

Berlim, 1923. Abel Rosenberg (David Carradine) mora com o irmão (os dois são acrobatas de circo) numa pensão barata. Chega em casa uma noite e vê que o irmão se suicidou. Acaba indo morar com a viúva dele, Manuela, e tendo um caso com ela. Os dois conhecem um médico alemão meio rico, Vergerus, meio metido a dono do mundo, que simpatiza com Abel e tem um trelelê clandestino com a moça.

Vergerus consegue para Abel um emprego burocrático onde ele começa a ter acesso a informações sobre experiências científicas secretas que usam seres humanos como cobaias. Arranja também um lugar para o casal morar, mas daí em diante eles brigam o tempo todo, no prédio há um motor que zune dia e noite, e Abel, que já é meio alcoólico, começa a ter acessos de fúria, que contagiam Manuela.

O filme é uma mistura de “Big Brother” com Auschwitz. É o filme mais dark de Bergman, onde a angústia existencial é substituída pela brutalidade nazista e pela fome pura e simples. Na Alemanha de 1923, as pessoas vivem bêbadas, porque a bebida é barata e a comida não existe.  Há uma cena em que pessoas carneiam um cavalo morto em plena rua, no centro da cidade.



Outra influência do filme é o Cabaret de Bob Fosse, ambientado no mesmo espaço e tempo: Bergman mostra nos cabarés pobretões cenas que lembram o de Fosse: um mestre-de-cerimônias que parece calcado no de Joel Grey, números de ménage à trois grotesco com travestis. No fim, os nazistas invadem o cabaré, espancam o dono e ateiam fogo a tudo.

Abel descobre que há câmeras ocultas no apartamento, e ele e Manuela estavam sendo filmados por ordens de Vergerus. Estavam também aspirando um gás que os fazia brigar o tempo todo. Uma espécie de Big Brother à revelia dos participantes. Um prelúdio das experiências que alguns anos depois cientistas nazistas como Mengele se sentiriam à vontade para realizar nos campos de extermínio.

As experiências do filme envolvem centenas de cobaias humanas, em recintos fechados e monitorados. São uma gota no oceano. Quase um século depois, elas podem ser realizadas numa escala inimaginavelmente maior, com centenas de milhões de cobaias. Ao invés de um gás desorientador dos sentidos, algoritmos e memes cuidadosamente concebidos e viralizados.

Um mero fato (um acidente, um crime, uma crise política, uma frase de celebridade) pode ser manipulado memeticamente e se espalhar  como uma febre instantânea, produzindo milhões de respostas em ondas sucessivas que se espalham por um país inteiro ao longo de poucos dias.

Essas respostas são monitoradas, tabuladas, reforçadas aqui, neutralizadas acolá, numa experimentação em que milhares de monitores humanos e de controles robóticos filtram e classificam as reações das cobaias, indicando cada elemento capaz de extrair respostas mais rápidas, ou mais intensas, ou mais duradouras. Assim se produz o ódio, a confusão conceitual, a paixão-ou-repulsa via reflexo condicionado.

Não é necessário para isto que as cobaias estejam trancadas em kafkeanos labirintos subterrâneos. O experimento é um processo cotidiano, sem começo nem fim, um bombardeio eletrônico permanente, permanentemente aferido e recebendo correções de rumo. Permitindo prever como reagirão dezenas de milhões de pessoas quando receberem os tipos de estímulo a que foram acostumadas.

Através da membrana translúcida e delicada, pulsa o corpo da serpente por nascer.












quarta-feira, 25 de outubro de 2017

4281) O big-brode da China (25.10.2017)



(ilustração: Kevin Hong)

Quando George Orwell imaginou em 1948 o seu conceito de “Big Brother”, de uma sociedde totalitária onde existe um controle e uma vigilância totais sobre o indivíduo, isso se dava no contexto de uma sociedade com uma tecnologia bastante precária, até mesmo para a sua época.

Em 1948 a ficção científica, que ele provavelmente não lia, ou lia pouco, ainda não tinha avançado muito em termos de tecnologia de controle. O precedente mais imediato era o romance Nós de Ievgeni Zamiátin, do qual Orwell pediu emprestados tantos conceitos que muita gente considera que 1984 é um plágio.

No tempo de Orwell, tudo se fazia à base de olheiros humanos e de câmeras de TV. Hoje, toda atividade humana tem que passar por uma barreira eletrônica qualquer. Tudo passa por celulares, computadores, cartões de crédito. Tudo fica registrado. E mesmo na China Comunista, com seus números espantosos, é relativamente fácil fazer isso.

Um artigo de Rachel Botsman na revista Wired com data de novembro próximo fala do megaprojeto chinês de instituir no país, a partir de 2020, o Sistema de Crédito Social, em que todas as atividades eletrônicas dos cidadãos serão computadas para gerar um número de ranking. Diz ela para imaginarmos um mundo em que todas a nossas transações comerciais, deslocamentos, relacionamentos nas redes sociais (likes, etc.), taxas e contas pagas, tempo passado em atividades onlines, tudo será computado e gerará um número.

Isso irá criar o seu Placar Cidadão (“Citizen Score”), e dirá a todo mundo se você merece confiança ou não. Mais que isto: sua cotação será incluída num ranking que abrange a população inteira e será usado para determinar sua elegibilidade para um empréstimo ou para um emprego, ou para escolher a escola que seus filhos poderão frequentar, ou até mesmo as suas chances de marcar um encontro com alguém.

Vimos isto (ou parte disto) recentemente no episódio “Nosedive” da série Black Mirror (episódio 1 da temporada 3), onde as pessoas são socialmente “ranqueadas” através de votos recíprocos, e quem estiver abaixo de tais e tais índices perde certos direitos.

O fato do registro eletrônico estar onipresente torna essa questão um mero problema de logística, de como fazer convergir todos esses “clics” eletrônicos, filtrá-los, classificá-los. E é claro que isso vai ter utilização policial e política. Que polícia e que governo deixariam de usar uma arma como essa?

Rachel Botsman diz que um desses megaprojetos chineses, Sesame Credit, se baseia em cinco fatores. O primeiro é o histórico de crédito pessoal do cidadão. O segundo é “a capacidade do usuário de comprir suas obrigações contratuais”. O terceiro é o seu conjunto de dados pessoais (endereço, telefone, etc.). O quarto e o quinto são “comportamento” e “preferências”. É possível deduzir informações sobre as pessoas (dizem os desenvolvedores do algoritmo) a partir das informações de que ela joga dez horas de videogame por dia, ou compras fraldas descartáveis constantemente.

O artigo completo está aqui:


É interessante notar esta confluência entre a paranóia de vigilância típica das ditaduras e a capacidade de tabular e quantificar comportamentos que se tem, por exemplo, num videogame.

Existe também, para a contagem de pontos no ranking, o critério de que se alguma pessoa está “se queimando” em algum aspecto – participando de atividades antigovernamentais ou deixando de pagar impostos, por exemplo – isso pode se refletir no ranking de seus parentes, o que inevitavelmente leva as pessoas a se vigiarem e se pressionarem umas às outras.

Isso vai nos levando aos poucos para aquelas histórias de humor absurdista da Philip K. Dick, em que o sujeito vai sair de casa pela manhã e a porta computadorizada se recusa a abrir, dizendo: “O senhor está com o condomínio atrasado, só pode sair quando saldar seu débito”. Ou aqueles contos de Asimov em que os computadores conseguem descobrir um único cidadão considerado “o mais representativo da população”, e analisando suas respostas a um questionário nomeiam (sem necessidade de eleição) o próximo Presidente da República, o presidente ideal para aquele “americano típico”.

Devagarinho, devagarinho, a gente vai chegando lá.







domingo, 22 de outubro de 2017

4280) Marcus Accioly 1943-2017 (22.10.2017)




Foi ele o primeiro poeta “erudito” que vi dominar com perfeição ritmos como o martelo agalopado, o galope beira-mar, o quadrão, o mourão, a embolada. Marcus Accioly, falecido neste sábado, dia 21, aos 74 anos, foi um dos grandes poetas brasileiros de uma geração acima da minha, poeta que comecei a ler aos 20 anos e não parei mais.

Pela sua dedicação pioneira aos esquemas de ritmos e de rimas da Cantoria de Viola, devo-lhe mais do que a muitos outros poetas tão grandes quanto ele, mas que escreviam noutro universo de formas. No universo das formas fixas da cantoria, “eruditizadas”, foi pela mão dele que entrei.

Seu livro mais conhecido talvez seja o infantil e premiado Guriatã: um cordel para menino (1980). Mas o livro fundador, o que o projetou como o principal poeta do Movimento Armorial de Ariano Suassuna, foi Nordestinados (1971), saído simultaneamente com o Romance da Pedra do Reino (1971) de Ariano. Foi nesse que encontrei pela primeira vez, no papel nobre do volume em brochura, os gêneros e estilos da poesia dos violeiros. Meu livro de cabeceira por muitos e muitos anos.

Logo depois veio Sísifo (1975), um poema épico em dez cantos, com formas variadas. Neste, Marcus fez um épico que era armorial por um lado e modernista por outro. Martelos agalopados celebrando Jack Kerouac ou Elvis Presley, numa afirmação ousada de repertório pessoal. Por mais que afirmasse a importância do movimento criado por Ariano, e se sentisse vinculado a ele, Marcus Accioly sempre escolheu seus próprios temas, que eram temas da sua geração de rapazes com a mesma idade dos Beatles, de Bob Dylan.

Sísifo introduziu também o peculiar uso dos parênteses dentro da estrofe metrificada, o qual que se tornou um dos traços estilísticos do poeta a partir de então. Linhas de martelo (ou de decassílabo genérico) metrificadas de forma impecável, mas incrustadas de trechos entre parênteses, criando assim duas vias simultâneas de fluxo poético.

Não tenho o Sísifo aqui comigo, mas ilustro com uma estrofe de Latinomérica (2001), seu último e gigantesco poema épico, com mais de 500 páginas:

cantei teu sol (América) na pele
do índio nu (chagacesa ou tatuagem)
esperando que o canto (em si) revele
o seu fogo despido de folhagem
(ou seu corpo movido pela hélice
dos músculos sem outra camuflagem
que a luz) cantei a carne em carne-viva
(o sangue em chama) a brasa sem a cinza

Latinomérica, onde ele insere a voz de um Homero na celebração épica do continente, é um poema-livro em 20 partes, cobrindo a história e a mitologia da América até os dias de hoje. Uma mistura (lá vou eu com minhas comparações esdrúxulas) do Canto Geral (1950) de Pablo Neruda com As Veias Abertas da América Latina (1971) de Eduardo Galeano e as Folhas de Relva (1855) de Whitman.

Mas sempre de acordo com as escolhas temáticas do autor: a Parte IX do poema, “O Ringue”, fala das guerras, guerrilhas e ditaduras latino-americanas sob a forma de uma luta de boxe. Há trechos na Parte XII, que o autor intitula “shadow boxing”, dedicados a autores norte-americanos como Edgar Allan Poe, Hemingway, Allen Ginsberg, Walt Whitman.

Os metros são variados, mas Latinomérica usa na maior parte do tempo o formato da oitava camoniana em decassílabos, com rimas toantes, como nesta estrofe do trecho dedicado ao poeta beat Lawrence Ferlinghetti:

(saímos a um café e nos servimos
no self-service) “ponha pouco açúcar
e (se adoçante) basta pôr dois pingos
feito colírio” (ergue um brinde à música
das colheres e eu fiz um brinde aos sinos
das xícaras) foi só (com sua túnica
vermelha e a minha azul como um contraste
tiramos uma foto aquela tarde)

Quando o conheci pessoalmente eu já não era mais apenas seu leitor, já era também um autor publicado, e nos encontrávamos nos eventos literários, hospedados no mesmo hotel, recitando no mesmo palco. Marcus era aquele tipo de rosto longo, muito corado, cabelos brancos curtos, barba branca sempre bem aparada, visual aristocrático, conversa descontraída e risonha. Um poeta beatnik com sotaque dos engenhos pernambucanos.

E eu não deixei de ser o garoto de vinte anos que o descobriu numa república de estudantes em Belo Horizonte, para onde meu pai me mandou um jornal do Recife com um artigo sobre um tal de movimento cultural que Ariano Suassuna estava inventando em Pernambuco, e um poema de Marcus Accioly intitulado “Os bichos (galope beira-mar)”, uma das viradas-de-esquina decisivas no meu modo de ver a literatura.

Poema que ajudou a me levar de volta à Paraíba e aos “Retalhos do Sertão”, e do qual ainda hoje, 46 anos depois, recito de cor esta estrofe inicial (são oito ao todo), nas minhas oficinas de poesia, para não esquecer como esse capítulo da minha história começou:

Rumor entre folhas, os sóis abrasados,
os pássaros mudos, confins do sertão;
garganta, vereda, covil, chapadão,
coivaras, lajedos, clareiras, cerrados;
a marca profunda dos rastros pesados
o andar sorrateiro com jeito de dança
a boca feroz sob a pele tão mansa
o salto e o rugido suspensos no espaço
os dentes de pedra e as garras de aço
pupilas de sangue nos olhos da onça.
(“Os bichos”, em Nordestinados)