sábado, 19 de agosto de 2017

4262) Antonio Cândido e a Literatura Nacional (19.8.2017)





(Antonio Cândido)


Sempre que a gente tenta defender algum tipo de arte do Brasil (literatura, cinema, ficção científica, seja o que for), em diferentes contextos, ouve alguns argumentos recorrentes, que se repetem como se fossem mantras, estribilhos, memes.

Um deles: “Olha, não adianta, foram os gringos que inventaram isso. Eles são muito melhores nisso do que a gente, não adianta querer concorrer com eles, basta comparar o produto deles com o nosso, chega dá vergonha”.

Outro: “Eu não sou nacionalista, eu não tenho obrigação de gostar de uma coisa só porque ela é brasileira. Meu interesse é a grande arte, o melhor produto. A meritocracia artística. Não vou gostar de uma coisa ruim só porque é brasileira.”

Muita da energia mental da minha vida foi consumida em torno dessas duas frases, que aliás são minhas, porque durante muito tempo fui eu que as pronunciei (e de vez em quando ainda o faço), fui que eu defendi essas posições, coberto, se não de razão, pelo menos de sinceridade.

Passemos adiante. No meu tempo de cineclubista, Paulo Emílio Salles Gomes era um professor de cinema da USP, famoso por ter estudado cinema na França, onde escreveu um livro sobre Jean Vigo, o cineasta de L’Atalante. De volta ao Brasil, tornou-se um defensor de cineastas brasileiros que aos nossos olhos não amarravam as chuteiras de Jean Vigo. E fez sobre um deles um livro magnífico: Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte.



Era muito citada naquela época (mal citada, aliás), nos debates, uma frase de Paulo Emílio: “O pior filme brasileiro é melhor do que qualquer filme estrangeiro”. Essa frase me enchia de brios e de perplexidade. Como assim – a obra de Mazzaropi era melhor do que a de Antonioni?!

Muito se discutiu sobre essa frase; aqui (https://www.brasildefato.com.br/node/10496/) está o link para um artigo da infatigável Rô, Maria do Rosário Caetano, em que ela faz um balanço dessa lenda cineclubística. Mas pela parte que me toca o mundo mudou quando algum informante providencial me alertou que não era isso que Paulo Emílio tinha dito. Ele dissera, na verdade: “o pior filme brasileiro diz mais de nós mesmos que o melhor filme estrangeiro”.

Não se tratava de qualidade estética, e sim de revelação de uma identidade.

Se eu sou um mero consumidor, um cara que quer puxar a carteira e escolher o melhor produto, posso exigir Antonioni. Mas se eu sou um criador e preciso entender o sistema onde minha obra vai se instalar depois de pronta, preciso pensar um pouco sobre Mazzaropi.

Não é que Antonioni me seja alienígena e inacessível. É que meu DNA psíquico, para o bem e para o mal,  tem mais de Mazzaropi do que do cineasta de O Eclipse.

Não custava nada a Paulo Emílio, como estudioso do cinema, ter pulado de Jean Vigo para Jean Renoir, ou até para Alain Resnais, não é mesmo? Mas não, ele pulou para Humberto Mauro e todo um exército de paraíbas (somos todos paraíbas, aos olhos europeus) que queriam fazer cinema aqui nesta terra de sobrados e mocambos.


(Paulo Emílio Salles Gomes)

No artigo de Maria do Rosário, que vai muito mais fundo nesta questão, ela transcreve uma glosa da famosa frase, que Paulo Emílio teria pronunciado numa entrevista à revista Cinegrafia (junho de 1974), nestes termos:

“Nós tentamos seguir de perto toda a produção brasileira atual, sem exceção. (…) Isso é uma tarefa laboriosa, difícil, frequentemente ingrata, mas culturalmente muito satisfatória. A gente encontra tanto de nós num mau filme, ele pode ser revelador de tanta coisa da nossa problemática, da nossa cultura, do nosso subdesenvolvimento, da nossa boçalidade (…) Em última análise, é muito mais estimulante para o espírito e para a cultura cuidar dessas coisas ruins do que ficar consumindo no maior conforto intelectual e na maior satisfação estética os produtos estrangeiros”.

Nessa formulação a idéia pode parecer até meio injusta, como se o resultado final de tanto estudo fosse somente o conhecimento da nossa boçalidade. Mas descobrimos virtudes também. Descobrimos talentos nossos que não somente os gringos parecem não ter, como eles próprios admiram com sinceridade, quando tomam conhecimento do que fazemos.

O brasileiro é um bipolar, que vive saltando do ufanismo de Afonso Celso para o complexo de viralata diagnosticado por Nelson Rodrigues.

Uma das direções em que se pode ir para evitar esse desespero esquizoide é a direção seguida por Paulo Emílio. Conhecer o que o Brasil faz – não para amá-lo incondicionalmente por ser “a Pátria”, mas para entender esta imensa confusão de país que somos. Entender o Brasil (= produzir hipóteses plausíveis sobre o Brasil) não deve ser mais difícil do que entender Deus (como querem os teólogos) ou o Universo (como querem os astrofísicos).

E nos faria um certo bem ter a humildade intelectual não só de Paulo Emílio mas de seu contemporâneo da USP, Antonio Cândido, o crítico literário falecido pouco tempo atrás. Ele dizia de nossa literatura:

“Comparada às grandes, a nossa literatura é pobre e fraca. Mas é ela, não há outra, que nos exprime. Se não for amada, não revelará a sua mensagem; e se não a amarmos, ninguém o fará por nós. Se não lermos as obras que a compõem, ninguém as tomará do esquecimento, descaso ou incompreensão. Ninguém, além de nós, poderá dar vida a essas tentativas muitas vezes débeis, outras vezes fortes, sempre tocantes, em que os homens do passado, no fundo de uma terra inculta, em meio a uma aclimatação penosa da cultura europeia, procuravam externalizar para nós, seus descendentes, os sentimentos que experimentavam, as observações que faziam - dos quais se formaram os nossos”.



Não fazemos isto por simpatia paternal e piedosa para com um bando de coitadinhos que escreviam mal. A experiência humana deles não era inferior à nossa, por mais que nos julguemos civilizatórios e sofisticados porque compramos engenhocas eletrônicas em doze vezes no cartão. Queiramos ou não, o país se parece mais com esses escritores dos anos 1800 do que conosco.

Vi tempos atrás no Facebook uma citação de Gustavo Nagel a respeito de um comentário feito por um autor que não conheço, Jean Bottéro, sobre o “Canto de Débora” (poema do capítulo 5 de “Juízes”) em celebração a uma vitória dos invasores hebreus sobre os locais, e transcrevo:

"Tratava-se apenas de um punhado de homens, microscópicos, perdidos num momento qualquer da história, que lutavam sob a chuva por um lote de terra, sem que a ridícula agitação que faziam tivesse, na verdade, contribuição alguma para o homem e seu progresso, e que permaneceriam, eles e sua agitação, escondidos e esquecidos, como infinitos outros, sob a poeira do tempo, se esse canto imortal não os alçasse a um plano cósmico, universal e eterno, e os transformasse, aos olhos dos leitores, num momento crucial da história do mundo."

Essa experiência humana, anônima e coletiva, geradora de produtos literários, não difere muito da experiência sofisticada de um romancista novaiorquino ganhador do Prêmio Pulitzer ou de um francês ganhador do Nobel. Eles se acham talvez superiores ao que escrevem, mas não o são, porque ninguém o é. Se o que escrevem tem algum valor, ficará. E quem atribui esse valor não são eles, são os leitores, aos quais muitas vezes eles se julgam superiores.


(G. K. Chesterton)

E para encerrar chamo ao banco de testemunhas o volumoso, exuberante e desbocado G. K. Chesterton, que celebrava o Império Britânico com toda a ironia de quem sabia muito bem de que barro ambos eram feitos. Diz ele, num texto de 1908:

“Minha aceitação do universo não é otimismo; parece-se mais com o patriotismo.  É uma questão básica de lealdade.  O mundo não é uma pensão barata em Brighton, que devamos abandonar, de tão miserável que é.  É a fortaleza da nossa família, com a bandeira tremulando no torreão, e quanto mais miserável for, menos devemos abandoná-la.  A questão não é saber se este mundo é triste demais para ser amado ou alegre demais para não sê-lo: a questão é que quando amamos uma coisa, se ela é alegre é uma razão para que a amemos, e se é triste é razão para amá-la mais ainda.  (...) Foi assim que as cidades se tornaram grandes.  Se remontarmos às raízes mais obscuras de nossa civilização vamos encontrá-las enlaçadas em torno de alguma pedra sagrada ou mergulhadas num poço igualmente sagrado.  As pessoas primeiro prestam tributo a um lugar, e depois conquistam glórias em seu nome.  Os homens do passado não amaram Roma porque ela era grande.  Ela tornou-se grande porque eles a amaram.”
(G. K. Chesterton, Orthodoxy, pags. 66-67)








terça-feira, 15 de agosto de 2017

4261) "The Handmaid's Tale" (15.8.2017)



Esta série de TV, cuja primeira temporada de dez episódios foi exibida recentemente (abril/junho), tem uma premissa semelhante à do excelente filme de Alfonso Cuarón Filhos da Esperança  (Children of Men, 2006). 

Uma crise biológica deixou quase todas as mulheres inférteis. Em algumas cidades já não nasce uma criança há vários anos. Uma guerra civil quebra ao meio os EUA e instaura uma ditadura fundamentalista na região da Nova Inglaterra.

Nessa nova república, chamada Gilead, o exército patrulha as ruas a serviço de uma casta de executivos que impõe uma repressão violenta às mulheres: elas não podem trabalhar, ler, ter dinheiro, e devem se dedicar somente às tarefas domésticas.

Como as esposas são estéreis, as família usam “barrigas de aluguel” (as chamadas aias, ou handmaids) que moram na residência de um casal. Para procriar, elas se submetem a Cerimônias. No leito nupcial, o marido as possui diante da esposa, todo mundo muito pudicamente vestido, a não ser o mínimo necessário para o ato. Quando a criança nasce, a barriga de aluguel é transferida para outra família, e deixa o bebê com os agora ex-patrões.

Uma das muitas ironias desta distopia sexista, baseda no romance homônimo de Margaret Atwood, é que as criaturas mais importantes do mundo, as mulheres férteis, são por isto mesmo perseguidas, escravizadas, torturadas: o mundo depende da sua taxa de reprodução. Em outro cenário, outro argumento, poderiam ser politicamente organizadas e economicamente poderosas, poderiam ter o mundo aos seus pés, escolhendo parceiros, exigindo mordomias, etc.

O aspecto fundamentalista-religioso, pelo menos nesta primeira temporada, não é a parte principal do pesadelo descrito. A família Westford não parece tão piedosa assim. Suas preocupações maiores são a produção de um herdeiro e a manutenção das posições conquistadas no xadrez político e comercial do seu tempo.

A religião entre eles é uma questão quase que “da boca pra fora”, como nas cenas em que casais se acabando de tesão vão para a cama recitando versículos bíblicos. A Bíblia é um livro onde é possível encontrar um aval “entre aspas” para um monte de coisas, se se souber procurar.

Apesar da ambientação de futuro próximo, o caráter conservador de Gilead coloca nessa cenografia do século 21 um conjunto de personagens como as “Aias”, que parecem saídas de uma história ambientada entre os Amish, ou então uma transposição moderna de uma narrativa como A Letra Escarlate (1850) de Nathaniel Hawthorne. Um salto de volta aos anos 1800.

Ao mostrar a brutal repressão contra os que tentam enfrentar sua tomada do poder, a república de Gilead não tem muita vocação para o perdão. Há uma cena em que, para convencer um personagem da gravidade da situação, mostra-se a ele uma igreja cheia de corpos enforcados, numa imagem que lembra (a situação, não o enquadramento) uma das cenas mais brutais de El Topo (1970) de Alejandro Jodorowsky.

As cenas de bordel lembram filmes como Eyes Wide Shut (1999) de Kubrick ou Salò/Sodoma (1975) de Pasolini. Homens refinados, de terno e gravata, engalfinhados com mulheres disfarçadas e lindas, nuas em pelo ou (em alguns casos) vestidas como melindrosas dos anos 1920. Nessa sociedade, as garotas de programa são chamadas biblicamente “Jezebéis” e as criadas domésticas de “Marthas”, talvez obedecendo à tradicional separação entre a pessoa espiritualmente em êxtase (Maria) e a pessoa materialmente atarefada (Marta).

Na hierarquia de dominação de Gilead, as esposas têm uma posição curiosa. São exploradoras com relação às Aias, a quem alternadamente humilham e maltratam (porque no fim das contas são suas escravas) ou então bajulam e paparicam (porque são elas que gerarão seus futuros filhos). E são submissas com relação ao marido. Se as Aias usam uniforme vermelho, as Esposas usam uniformes verdes. Todas elas são também uma robozinhos domésticos, lembrando as androides do clássico The Stepford Wives.

Não sei quantas temporadas estão planejadas para a série. Ela se baseia num romance de 300 páginas de Margaret Atwood, de modo que há bastante campo para desenvolver subtramas que o romance apenas sugere ou resume.

A série é fortemente referencial, com citações e homenagens bem distribuídas. Uma dessas obras referidas á “A Loteria”, o famoso conto de linchamento de Shirley Jackson: as Aias participam de vez em quando de rituais em que são incentivadas a linchar pessoas que se comportaram de maneira “criminosa”.  Uma sociedade (tão antiga, e tão atual) em que linchamentos públicos ajudam a manter a coesão do grupo às custas do indivíduo transgressor.

A guerra é implacável, a ditadura resultante não bate uma pestana. Uma das cenas mais amedrontadoras não é nem a dos cadáveres pendurados em forcas se decompondo de encontro a uma muralha. É a cena, em flashback de alguns anos antes, em que num escritório um patrão convoca todos os funcionários para um pronunciamento e diz: “Sinto muito ter que fazer isto, mas as mulheres estão todas demitidas. Peguem seus objetos pessoais e deixem agora mesmo o edifício da empresa”. E ao saírem, sob a mira de fileiras de soldados empunhando metralhadoras, uma delas pergunta: “Por que o Exército está nos levando?”, e a amiga responde: “Isso não é o Exército”.

De certo modo, a parte mais aterrorizante de distopias como esta não é a descrição do pesadelo instalado, da autocracia orwelliana em pleno poder. É quando os personagens fazem flashback de uma vida anterior que era aparentemente normal mas já começava a ser invadida por sinais inquietantes daquilo que chamamos “o ovo da serpente”. Quando a serpente está adulta e em pleno domínio, não existe mais o terror, existe a apatia dos que sobreviveram. O terror é quando o ovo começa a se rachar.








sábado, 12 de agosto de 2017

4260) As ilhas fantásticas (12.8.2017)




(a Terra com a ilha de Robinson Crusoe no centro)



Às vezes uma idéia vai passando de escritor em escritor e sofrendo transformações que acabam se perdendo da memória. Às vezes conhecemos o primeiro e o último elo da corrente, mas não sabíamos da existência dos elos intermediários que ligam um ao outro. Ou então sabíamos da existência deles, mas não sabíamos que formavam uma corrente.

Foi o que aconteceu comigo ao ler o artigo de John Pielmeier sobre viagens marítimas e literárias, que pode ser lido na íntegra aqui:


Farei um resumo, porque a história é interessante.

Em 1704, houve uma discussão séria a bordo do navio inglês Cinque Ports, envolvido numa guerra com a Espanha. O navio estava circulando a América do Sul, e o capitão foi questionado pelo mestre de navegação, Alexander Selkirk, para quem o navio estava com a estrutura comprometida e naufragaria em breve. Selkirk recusou-se a continuar, e foi deixado numa ilha na costa do Chile, com apenas um mosquetão, um machado, uma faca, uma panela, uma Bíblia, alguns cobertores e roupas. (Ele tinha razão: o navio de fato afundou, pouco tempo depois.)

Nessa ilha ele ficou de 1704 a 1709, e depois de ser resgatado sua história ficou famosa na imprensa. Surgiu daí, em 1719, o romance Robinson Crusoe de Daniel Defoe, a história de um sujeito que sobrevive sozinho numa ilha deserta, considerado o primeiro romance realista inglês. O livro de Defoe se inspirou parcialmente na história de Selkirk, e incluiu um mapa da ilha, baseado numa descrição feita por Selkirk a um jornalista.


Muitos anos depois, Robert Louis Stevenson (1850-1894), contando para seu enteado histórias de piratas e batalhas, serviu-se do mapa de Selkirk como fonte inicial de inspiração para criar a sua própria ilha imaginária: A Ilha do Tesouro (1883), que é, tal como o Robinson Crusoe, uma das histórias de aventuras mais conhecidas do mundo.



Stevenson, que era um grande escrevedor de cartas, manteve uma correspondência com um jovem escritor, escocês como ele: J. M. Barrie, seu grande fã. E coube a Barrie, anos depois, criar uma outra ilha, modelada nas outras: a ilha de Neverland, que no Brasil conhecemos como Terra do Nunca, a ilha onde Peter Pan se esconde do Capitão Gancho e para onde leva Wendy e seus irmãos.

O  livro que no Brasil conhecemos como Peter Pan é Peter and Wendy (1911), romance inspirado na peça de teatro com que Barrie iniciou essa história de sucessos. É, como os livros anteriores, uma das histórias infanto-juvenis mais conhecidas do mundo.



O artigo de John Pielmeier descreve uma pequena epifania que ele experimentou em 2014, quando ao viajar de navio com a esposa fez uma parada na pequena ilha onde ficou Selkirk, hoje batizada de Ilha de Robinson Crusoe. Eles passearam pela ilha, que é bastante montanhosa, e subiram até um dos pontos mais altos. E ele diz:

Havia algo estranhamente familiar naquela visão. De repente, eu me dei conta de que: 1) Selkirk havia descrito a ilha para um jornal de Londres; 2) essa descrição inspirou o mapa de Defoe; 3) esse mapa serviu de base para o mapa da Ilha do Tesouro, de Stevenson; 4) o qual por sua vez foi imitado por Barrie.

Como eu sabia disso? A prova estava diante dos meus olhos. Lá, na abertura da baía, ficava o navio do Capitão Gancho, e logo depois, quando chegamos ao topo da montanha, avistei sem dificuldade a Lagoa das Sereias ao sul, e o promontório onde ficava a aldeia dos índios, a noroeste. Eu estava caminhando na Terra do Nunca.

Esse pequeno episódio ilustra muito bem o modo como as idéias literárias vão passando de mente em mente. E como uma das forças motoras principais da literatura é: A vontade de escrever algo parecido com o que a gente gostou de ler.

Esse rastreamento emocional feito por John Pielmeier me trouxe à mente um romance de FC de Philip K. Dick, Time Out of Joint (1959), onde de certa forma temos um indivíduo que vive numa “ilha” onde a civilização é recriada à sua imagem e semelhança.



Ragle Gumm vive numa típica cidadezinha norte-americana dos anos 1950. Mora “de favor” coma irmã e o cunhado, e sobrevive ganhando prêmios de um concurso do jornal local, onde ele precisa adivinhar, diante de um diagrama enorme, em que quadradinho vai aparecer o “homenzinho verde”. Todo dia ele acerta. E todo dia ganha uma merrequinha de grana que paga suas cervejas e ajuda na feira de casa.

Acontece que na realidade Ragle Gumm é O Homem Mais Importante do Mundo (título da edição portuguesa do livro).

Ele tem uma capacidade quase sobrenatural de perceber padrões, de enxergar regularidades em fenômenos aleatórios. O ano em que vive, na verdade, é 1998, a Terra está em guerra com a Lua, e ele é a única pessoa que consegue prever onde cairão os próximos mísseis disparados pela Lua (=o lugar onde aparecerá o homenzinho verde).

Acontece que o estresse dessa responsabilidade o projetou num surto psicótico onde ele sonha que está de volta a um passado paradisíaco da década de 1950. E para continuar contando com as “previsões” dele, o governo militar da Terra constrói uma cidadezinha artificial onde Gumm imagina que é apenas um tiozão desocupado resolvendo quebra-cabeças de jornal.

A certa altura do livro, Ragle Gumm está conversando com a irmã e o cunhado e tem o seguinte diálogo:

– Talvez o vendedor use alguma marca pessoal – disse Ragle. – Algo como: “Norman G. Selkirk, Vendedor de Tuckers”. Mas de qualquer maneira, eu lhe repasso para você ficar sabendo.
Margo disse:
– Por que usou o nome “Selkirk”?
– Não sei – disse ele. – Escolhi um nome ao acaso.
– Não existe acaso – disse Margo. – Freud demonstrou que existe sempre uma razão psicológica. Pense bem no nome “Selkirk”. Ele lhe lembra o quê?
Ragle pensou um pouco.
– Talvez eu tenha visto o nome quando folheei o guia telefônico. – Essas malditas associações de idéias, pensou ele. Como nas pistas do concurso. Não importava o quanto a pessoa se esforçasse, jamais ia conseguir ter tudo sob controle. Elas é que o controlavam. – Achei! – disse ele finalmente. – O homem em cuja história se baseou o livro “Robinson Crusoe” se chamava Alexander Selkirk.
– Não sabia que o livro se baseava em algo – disse Vic.
– É, sim – disse Ragle. – Houve um náufrago de verdade.
– Por que será que você pensou nele? – comentou Margo. – Um homem vivendo sozinho numa ilha minúscula, criando sua própria sociedade à sua volta, seu próprio mundo. Todos os seus utensílios, roupas...
– Porque – disse Ragle – eu passei dois anos numa ilha assim, durante a II Guerra.


Na verdade, Ragle está vivendo num mundo como o de Robinson Crusoe, um mundinho feito à medida dele, e ao mesmo tempo está vivendo numa Terra do Nunca, porque ele é o “menino que não quer crescer”, um homem que quer viver eternamente em 1959, tomando cerveja e paquerando a mulher do vizinho. Ele não quer admitir que é um adulto, que está em 1998, e é o homem de quem depende o resultado de uma guerra  interplanetária.

A referência a Selkirk mostra que Philip K. Dick tinha consciência da primeira influência (como Selkirk, Ragle pede para abandonar um projeto que sabe condenado ao fracasso); não dá para saber em que medida ele sabia que também estava contando em Time Out of Joint uma nova versão da história de Peter Pan.










terça-feira, 8 de agosto de 2017

4259) Os olhos culpados (8.8.2017)



As narrativas curtas que chamamos variadamente de fábula, apólogo, lenda, caso, etc., têm uma economia narrativa própria que não é a mesma do conto literário.

É como se fosse uma história mais longa que foi perdendo adornos e adereços ao longo do caminho através do tempo, e ficou reduzida somente ao essencial.

A narrativa abaixo está na Antologia da Literatura Fantástica (org. Jorge Luís Borges, Adolfo Bioy Casares e Silvina Ocampo, Cosac Naify, 2013, trad. Josely Vianna Baptista). Ela é atribuída a Ahmed Ech Chiruani, autor talvez inventado, porque o Google não parece saber sobre ele mais do que eu sei.


OS OLHOS CULPADOS
Ahmed Ech Chiruani

Contam que um homem comprou uma moça por quatro mil denários. Um dia olhou para ela e começou a chorar. A moça lhe perguntou por que estava chorando; ele respondeu:
– Tens olhos tão belos que me esqueci de adorar a Deus.
Quando ficou sozinha, a moça arrancou os próprios olhos. Ao vê-la nesse estado, o homem ficou aflito e disse:
– Por que te maltrataste assim? Diminuíste teu valor.
Ela respondeu:
– Não quero que haja nada em mim que te afaste de adorar a Deus.
De noite, o homem ouviu em sonho uma voz que dizia: “A moça diminuiu seu valor para ti, mas o aumentou para nós e a tiramos de ti.”  Ao acordar, encontrou quatro mil denários sob o travesseiro. A moça estava morta.


Primeiro que tudo, olha que maneira mais eficiente de começar uma história:


1.    Contam que um homem comprou uma moça por quatro mil denários.

“Contam”, abrindo uma narrativa, equivale, estruturalmente falando, a “era uma vez”. Joga os 100% da história para o território do mítico, do oral, do lendário, do ouvi-dizer.

Algo parecido ocorre com o uso da moeda “denário”: era uma moeda romana (o Google se redime informando-me que essa moeda valia um dia de salário de um trabalhador), portanto historicamente datada. Mas isso é a moeda, não a palavra: a palavra, como símbolo de valor monetário, deu o francês “denier”, o árabe “dinar” e o português “dinheiro”. Estamos, portanto, em pleno território do arquétipo.

E essa beleza de construção: “comprou uma moça”. O autor não diz que era uma escrava. Não precisa. Comprar escravos nesse mundo é como comprar um cavalo ou um passarinho. O homem comprou uma moça – e não era uma moça qualquer, porque ele pagou o equivalente a quatro mil dias de trabalho de um trabalhador comum.

Digamos que, com nosso salário mínimo em torno de 900,00 reais, um dia de trabalho valha em torno de 30 reais: a moça custou 120 mil reais. Não era uma moça qualquer. Se aparecesse numa revista não seria em Baratas, mas em Caras.


2.    Um dia olhou para ela e começou a chorar.

É típico dessas narrativas darem saltos bruscos de frase em frase, sem muitas explicações. Quem era o homem? Tinha esposa(s), filhos? Que papel a moça foi desempenhar junto a ele: empregada doméstica, serva sexual, o quê? Não sabemos. Nesta segunda frase o autor pula direto para o fato inusitado que desencadeia o desfecho. A frase 1 é introdução, da 2 em diante tudo é resultado.


3. A moça lhe perguntou por que estava chorando.

Existem trinta mil livros cuja história começa com alguém chorando e alguém perguntando por quê. É sempre uma boa maneira de começar, se não um livro inteiro, pelo menos um capítulo. “Certa tarde, ao descer a escadaria que levava ao salão, Fulana ouviu ruídos abafados. Aproximando-se, viu que Sicrano estava sentado numa saleta lateral, com o rosto entre as mãos, os ombros sacudidos por soluços...”  Sempre funciona.


4. Ele respondeu: – Tens olhos tão belos que me esqueci de adorar a Deus.

O amor, seja físico, seja platônico, nos distrai das paixões abstratas, entre as quais pensar em Deus não é uma de se jogar fora. Que o diga Nelson Gonçalves, neste bolero (de David Nasser e Herivelto Martins) que parece adaptado do conto de Ahmed Ech Chiruani:

“Eu amanheço pensando em ti
Eu anoiteço pensando em ti
Eu não te esqueço, é dia e noite pensando em ti...      
Eu vejo a vida pela luz dos olhos teus...
Me deixa ao menos, por favor, pensar em Deus.”

Parar de pensar em Deus parece uma tragédia, principalmente parar de pensar em Deus por causa de uma curvilínea comprada em moeda sonante. Isto nos prepara (mas não totalmente) para o próximo ziguezague da narrativa.


5. Quando ficou sozinha, a moça arrancou os próprios olhos.

Nesse passado milenar e machista, a mulher sente que está trazendo turbulência espiritual para a vida do seu amo e senhor, e decide punir a si própria. E deixa para fazê-lo quando fica sozinha, para que ninguém tente impedi-la. Em contos assim não há meio termo. As pessoas só tomam decisões radicais.


6. Ao vê-la nesse estado, o homem ficou aflito e disse:
– Por que te maltrataste assim? Diminuíste teu valor.

Esta fala é de um ambiguidade fascinante. Ele poderia ter dito: “-- Nunca mais verás as coisas belas da vida... / -- Não devias ter te maltratado tanto... / -- Perdi os olhos que tanto adorava / ...” – enfim, poderia ter tido mil reações de horror ou de dó. Mas não: “Diminuíste o teu valor (de mercado). Ninguém a quem eu queira te vender (porque vou te vender, já que não tens mais aquilo que me encantava) vai me pagar o preço que investi em ti.”

Ressalva: Existe a possibilidade, caso de fato seja um conto oriental, de algo ter se modificado na tradução. A frase no original podia ser algo como “perdeste algo valioso”, ou “diminuíste a beleza que te valorizava”... Muitas vezes a tradução, mesmo tentando ser fiel, impõe um sentido que o original não tinha.


7. Ela respondeu:
– Não quero que haja nada em mim que te afaste de adorar a Deus.

É um desses diálogos de que o cinema está cheio, o das mulheres altruístas que se sacrificam para que o homem amado possa, sei lá, casar com uma princesa sem que ela, uma namorada plebéia, o atrapalhe, ou separam-se do amado que vai se candidatar a um cargo público e não pode mostrar o mundo uma amante negra... Todos os mil sacrifícios feitos em nome do amor. Mesmo que se trate (no presente caso) do amor impossível de uma mulher pelo homem que a comprou.


8. De noite, o homem ouviu em sonho uma voz que dizia: “A moça diminuiu seu valor para ti, mas o aumentou para nós e a tiramos de ti.” 

O sonho, nesses contos orientais, é quase sinônimo da voz de Deus (em contos ocidentais modernos, é a voz do Inconsciente Freudiano).  Portanto, é Deus, o Deus em quem ele deixara de pensar, que se comove com o sacrifício da moça. (Veja-se também o plural divino, que pode ser visto como o plural majestático dos reis, ou como uma insinuação de um Deus múltiplo.)

Deus percebe que ela sacrificou os próprios olhos não somente pelo homem, para que pudesse pensar em Deus, mas também por Deus, para que pudesse ser adorado em paz. Deus agradece à moça o gesto elegante de ter se retirado da disputa e deixado caminho livre para Ele no coração do homem.


9. Ao acordar, encontrou quatro mil denários sob o travesseiro. A moça estava morta.

Um desfecho perfeito, em duas frases tão indissolúveis uma da outra quanto as duas faces da Lua. Deus leva a moça e devolve o dinheiro que o homem, por um instante, julgou ter perdido. E, ironicamente, a história termina como começou: a moça sendo novamente comprada por quatro mil denários.

A leitura do ponto de vista feminino nos mostra a tragédia de uma moça vendida como escrava, que acaba assediada pelo patrão por sua beleza, assusta-se, mutila-se para escapar-lhe, e acaba morrendo. A moça é quem menos ganha com tudo que aconteceu.

O homem compra uma escrava, deixa-se levar por uma paixão carnal, perde a escrava, recupera o dinheiro. E ganhou o que com tudo isto? Ganhou a experiência; ganhou um fato extraordinário em sua vida; ganhou (talvez o conto seja autobiográfico, e o homem da história seja Ahmed Ech Chiruani) uma história para contar.


  





sexta-feira, 4 de agosto de 2017

4258) Luiz Melodia 1951-2017 (4.8.2017)




Ficamos agora sem o nosso negro gato, a nossa pérola negra, a voz que embalou os sonhos de muitas juventudes. Ainda que não tivesse embalado os sonhos de milhões, embalou os meus, e a perda aqui dentro do cofre dos afetos seria a mesma. Resta o consolo de que herdamos a música, pois a obra permanece. Consolozinho furreca esse. Puído de tanto uso a cada perda.

Durante o dia de hoje vi nas redes sociais desabafos e lamentos e risadas de pessoas que tocaram com Melodia, beberam com Melodia, excursionaram com Melodia; todos têm, é claro, episódios hilários ou tocantes para contar. Eu não o conheci pessoalmente, a não ser no palco, nos muitos shows seus que assisti ao longo da vida, primeiro pelo Nordeste afora, e depois no Rio de Janeiro. Não sei avaliar a pessoa. Só tive acesso ao personagem.

Luiz Melodia foi a essência concentrada de uma faixa da música carioca revelada para nós brasileiros a partir dos anos 1960. Um grupo de negros talentosíssimos e instáveis que inclui Jorge Ben, Tim Maia, Jards Macalé e muitos outros. Cada um com perfil musical próprio, mas todos trazendo aquela medula de samba que todo mundo conhece tão bem. Para alienígenas como eu, que não obstante a alienação amam o samba, o samba é uma roupa. Para eles é uma pele. Se lhes arrancarem todas as roupas que levam ao palco (soul, pop, blues, o que quiserem) é o samba que os recobre e os mantém inteiros.

Todos estes se projetaram um pouco aproveitando as ondas sucessivas da Jovem Guarda e do Tropicalismo. Movimentos de jovens que ajudaram os jovens sambistas daquele tempo a aceitar com curiosidade e sem culpa os sons eletrificados da época em que subiram nos seus primeiros palcos.

O Jorge Ben que trouxe em 1963 seu Samba Esquema Novo já estava pouco depois sendo escalado pela imprensa nos times informais da Jovem Guarda, e chegaria depois a sua fórmula imbatível que eu nem sei mais como se chama, na salada de rótulos de hoje. Será “samba rock”? Não importa; me lembro de uma entrevista onde ele dizia que o seu segredo era ter na Banda do Zé Pretinho dois baixos elétricos.

Tim Maia não se encaixou na Jovem Guarda mas deu-lhe uma massacrante volta-por-cima quando voltou dos EUA com seus primeiros sucessos esmagadores embebidos no soul, na percussão balançante, nos metais implacáveis e alegres da Vitória Régia.

Jards Macalé foi o mais tropicalista deste grupo, nas parcerias, nas canções gravadas, nas posturas conceituais desconcertantes e desabusadas – sem deixar de ser um eterno lobo solitário, um bloco do eu-sozinho sem similar na música da pátria.

E Melodia passeava pelo blues, pelo pop, pela canção romântica – da qual ele tinha um modo também só-seu de drenar o excesso de água com açúcar e aumentar a voltagem de tragédia. Canção de amor na voz de Melodia era sempre uma canção de amor durante um bombardeio.

Em parte talvez por aquela mágoa ancestral que administra a alegria momentânea de tantos brasileiros. O samba que, como viriam a lembrar depois os pais do Tropicalismo, é o pai do prazer e o filho da dor. As canções de amor que Luiz Melodia pescava nos repertórios mais improváveis estão sempre contaminadas por essa tristeza imensa que os olhos dele mostravam em cada close, mesmo quando o verso era brincalhão ou otimista.

Era o nosso negro gato, dono do pedaço, player com sete vidas, malandro de dar drible em bala. E ao mesmo tempo alguém que parecia trazer nas costas o peso de um milênio de escravidão e a influência má dos signos do Zodíaco. E uma angústia profunda que conferia vastidão ao verso mais singelo que cantasse.

Sempre cercado por músicos de talento que achavam um privilégio dialogar com um voz como aquela, Melodia era como aquele ator de teatro que pega meia dúzia de falas desenxabidas de um autor sem inspiração e diz (respeitando cada vírgula delas) caminhões de subtexto. O segredo é a voz, que colore esses versos, tanto os de alta voltagem poética quanto os versinhos tapa-buraco das canções pop. Agarra todos – e eleva todos ao lugar de onde soa, seja o alto da montanha ou o fundo-do-poço do coração.

Melodia era, como Augusto, um monstro de escuridão e rutilância. Capaz de cantar a alegria do nascer do sol:

“Juízo Final” (Nelson Cavaquinho e Élcio Soares)
        
E de cantar a paz do cair da noite:

“Suave é a Noite” (Paul Francis Webster e Sammy Fain, versão de Nazareno de Brito)              :

De ir ao fundo do porão com o poeta que desceu aos infernos e sair dali brincando com as próprias cicatrizes:

“Que Loucura” (Sérgio Sampaio)

Era uma voz de quem foi lá no fim do futuro, viu tudo – e jurou não contar nada quando voltasse. As canções falam do presente, da vidinha boa e boba de todo mundo a cada dia. Era somente o olhar quem revelava o que ele viu, e a voz que nos consolava, como se dissesse: “Não se preocupe, não aconteceu ainda”.











quinta-feira, 3 de agosto de 2017

4257) Imagens kafkeanas (3.8.2017)



Kafka é chamado de “o Profeta do Absurdo” ou coisa parecida, e isso é bom, porque distingue espécies diferentes de Absurdo. Vou falar de duas variantes deste conceito, que eu chamaria de O Absurdo Monstruoso e O Absurdo Existencial. 

Para o primeiro, vou usar como exemplo uma faixa do Surrealismo (movimento que tem uma comprida interface com o Absurdo), e para o segundo a obra de Kafka, que no presente sentido engloba um mundo literário onde estão autores como Albert Camus, Samuel Beckett, Jean Genet, Eugene Ionesco e outros.

No Absurdo meio gratuito do Surrealismo, coisas incoerentes são justapostas de modo premeditadamente caótico, para produzir um choque de novidade, de inesperado. As pinturas de Salvador Dalí são um bom exemplo disso. 

Dalí, inclusive, popularizou a tal ponto essa técnica que se tornou uma espécie de símbolo mundial do Surrealismo, desbancando o verdadeiro criador, alma e cérebro do movimento, André Breton. 

E vulgarizando a palavra a ponto de “surrealista” ser usado hoje, pelo menos no Brasil, como sinônimo de qualquer coisa que não faça sentido. Nas transmissões de futebol a gente ouve: “é um decisão surrealista do técnico tirar Fulano pra botar Sicrano”. Salvador Dalí foi o Andy Warhol do Surrealismo. Um talento real administrado por um oportunismo voraz e infalível.

Se o Absurdo de Dalí é assim, o de Kafka é o contrário. No seu mundo, poucas coisas literalmente fantásticas acontecem: o homem transformado em inseto de A Metamorfose é uma exceção. Kafka explora um absurdo lógico de um mundo aparentemente igualzinho ao nosso, mas onde tudo tem uma lógica perversa, prolixa, contraditória, inesgotável.

O absurdo de Kafka não é o da ausência de explicações, mas o de sua proliferação incessante, o que faz com que percam todo sentido. Seu absurdo não tem o charme do de Dalí, dos panos de pratos com estampa da Persistência da Memória ou mousepads com a mulher das gavetas, as belas girafas incendiadas, os elefantes pernilongos.


(Salvador Dalí, A tentação de Sto. Antonio) 

No mundo 1, o surrealista, cada passo nos faz saltar para uma paisagem diferente, um universo diferente. No mundo 2, o de Kafka, cada passo nos faz caminhar sem avançar, como se andássemos numa esteira rolante que vem ao nosso encontro e a paisagem fosse sempre uma só.

O mundo surrealista, se encarado como pesadelo, é o mundo alucinatório do esquizofrênico, onde coisas impossíveis e terrificantes acontecem com verossimilhança total. Já o mundo de Kafka é o mundo da depressão, onde nada acontece a não ser algo meio indiferenciado, mas envolvente, paralisante, diluidor de contornos e esvaziador de substâncias.

O personagem kafkeano começa os trabalhos insurgindo-se contra o Absurdo, batalhando pelos seus direitos, protestando contra os abusos. Esperneia, esperneia, mas aos poucos o Absurdo o conquista e sua revolta vai amainando. No final, ele se ajoelha e oferece o pescoço à faca do executor.



Nesse sentido Kafka antecede Samuel Beckett e seus personagens passivos, inertes, que se desgastam em pequenas ações ridículas e discursos irrelevantes.  

A imagem (no sentido de “impressão mental deixada por uma experiência intelectual intensa e já finda”) de O Processo, é a imagem de um labirinto burocrático de milhões de leis que ninguém entende por completo: nem os processantes, nem os processadores, nem os processados. Todos são vítimas em alguma medida, principalmente estes últimos, quando são pequenos funcionários que vivem em casas de pensão.

(ilustração: Landis Blair)

Em A Metamorfose, a sensação matinal de acordarmos num mundo monstruoso onde todo mundo diz que é normal e que o monstro somos nós, e nós concordamos.

Em O Castelo, a existência de poderes estabelecidos há séculos, invisíveis, inacessíveis, uma força talvez já morta mas onipresente.

Em A Colônia Penal, o fato de que a tecnologia mais sofisticada existe para servir ao Poder, e que os transgressores do Poder entenderão na dor da própria carne aquilo que o protagonista-vítima de O Processo não chegou a entender: o teor do seu crime e da sentença que o condenou.



O que é monstruoso no mundo de Kafka são as relações simbólicas e as atitudes pessoais. Daí que criaturas e objetos fantásticos sejam raros: a máquina da Colônia Penal, o inseto pensante da Metamorfose, as enigmáticas bolinhas saltitantes de  “Blumfeld, um Solteirão”, a Estátua da Liberdade empunhando uma espada em América...

E tem o Odradek, uma criatura imaginada por Kafka no conto “Preocupações de um Pai de Família”(1919) e incluída por Jorge Luís Borges em sua antologia O Livro dos Seres Imaginários.

Na tradução de Carmen Vera Cirne Lima:

Seu aspecto é o de um carretel de linha, achatado e em forma de estrela, e a verdade é que parece feito de linha, mas de pedaços de linha, cortados, velhos, emaranhados e cheios de nós, de tipos e cores diferentes. Não é apenas um carretel; do centro da estrela sai uma hastezinha e nesta se articula outra em ângulo reto. Com a ajuda desta última de um lado e um dos raios da estrela de outro, o conjunto pode ficar de pé como se tivesse duas pernas.



(O odradek, por Jeff Wall)

Descrito assim parece um desses brinquedos artesanais, não um ser vivo, mas ele é ser vivo mesmo, que aparece de vez em quando na casa do narrador:

Muitas vezes, quando cruzamos a porta e o vemos lá embaixo, encostado ao balaústre da escada, temos vontade de falar-lhe. Naturalmente não se fazem a ele perguntas difíceis, mas sim o tratamos – seu tamanho diminuto nos leva a isso – tal uma criança. “Como te chamas?” perguntam-lhe. “Odradek”, diz. “E onde moras?” “Domicílio incerto,” responde, e ri, mas é um riso sem pulmões. Soa como um sussurro de folhas secas.

Já o conto “Blumfeld, um solteirão” (em A Muralha da China), fala de um funcionário burocrático na virada-de-século, que por um lado é primo legítimo do Joseph K. de O Processo, e por outro lembra o Bartleby de Melville. Ou aquele personagem advocatício e paternal de Um Conto de Duas Cidades, de Dickens, cujo nome não me ocorre agora.

Foi Marcos Agra quem primeiro me chamou a atenção para o fato de que na história de Blumfeld, um burocrata pacato que corta um dobrado com dois ajudantes absolutamente inúteis e improdutivos, as duas bolinhas são uma espécie de transcrição dos dois empregados. Para quem não leu o conto, que é curto e inconclusivo: Blumfeld descobre que atrás de si há sempre duas bolinhas pulando alternadamente no chão, como duas bolas de pingue-pongue (o exemplo é meu).

Se ele se vira para a porta, as bolinhas pulam com velocidade e se postam às suas costas. Depois de algumas manobras, o que faz ele? Dá um jeito de abrir a porta do armário, afastar-se, virar-se de costas para ele (obrigando as bolinhas a pular diante do armário), e ir recuando, empurrando as bolinhas para trás, e então trancá-las dentro dele.



Isso é interessante porque ouvindo falar na aridez metafísica do mundo de Kafka a gente pode perder essas interferências no aparente realismo literário. As bolinhas se comportam como partículas subatômicas, reagindo à presença humana. Lembram também um desses objetos conceituais que só a Ficção científica pode oferecer: os discos de metal dos irmãos Strugatsky em seu livro Stalker (ou Roadside Picnic; este detalhe não aparece no filme de Andrei Tarkovsky).

O que são? Dois discos que se comportam como se fossem um. Digamos A e B. Parecem dois pratos de metal, daqueles de bandinha do interior ou circense. Estão sempre à mesma distância e à mesma posição relativa. Ergue-se deles um nas mãos, e o outro se eleva, eternamente paralelo, solto no ar. São baldadas as tentativas de separá-los, de afastá-los. Uma parede de chumbo, interposta entre elas, não corta essa relação invisível.

Subentende-se que o objeto existe numa dimensão a mais do que a nossa. Para nós, os dois discos são dois objetos, dois seres. Para eles, são trechos de algo ultradimensional que cruza nosso mundo naqueles dois pontos.

Voltando a Kafka: as bolinhas saltadoras de “Blumfeld” até que colaboram com a maneira científica, comportando-se de forma regular, revelando continuidades de resposta, permitindo previsão e controle. Blumfeld prevê o comportamento delas a ponto de dar um migué e transferi-las para dentro do armário. Quando ele senta na cama, esbaforido, é que percebe que se sair dali começa tudo de novo.

Como falei acima, o Monstro é raro em Kafka: é o Absurdo Existencial que predomina, a recorrência de situações que, mais do que ameaçadoras, são inquietantes por si sós. O terror que provocam não é o de que a nossa vida vai ser extinta, é o de que a vida, como um todo, seja inexplicável.