segunda-feira, 16 de maio de 2016

4114) O ídolo Cauby Peixoto (16.5.2016)



Quando eu era menino e comecei a ouvir música no rádio, ele era um dos maiores cantores do Brasil, um equivalente ao que Roberto Carlos seria anos mais tarde. Eram ele, Nelson Gonçalves, Orlando Silva... Quem mais? Falo do ano de mais-ou-menos 1960, quando Cauby se apresentou em Campina Grande, na Rádio Borborema, e eu o vi em pessoa, de relance, pela primeira e última vez.

(Digressão: a Rádio Borborema nessa época era um pé de escada no Calçadão da Rua Cardoso Vieira, entre a Sorveteria Flórida, que ficava na esquina, e o Café São Braz, que valorosamente continua no mesmo lugar. Ou pelo menos estava, da última vez que passei por lá. Pelo andar da carruagem, pode ser sido substituído por uma farmácia, porque em Campina tem “bem pouquinha” farmácia.)

Cauby era nosso maior cantor porque vivíamos ainda o auge da Música Radiofônica Brasileira, que foi substituída pela Música Televisiva Brasileira, para o bem e para o mal. O rádio continua tocando, mas não é mais ele que impõe os grandes sucessos. A TV chancela e carimba quem vai tocar, e as rádios vão atrás.

Era um grande artista, sem dúvida, no quesito vocal, no quesito histriônico (o que modernamente chamamos “presença de palco”), na diplomacia, no trato carinhoso com os fãs, na simpatia meio artificial mas provavelmente sincera, porque ele adorava o showbiz, adorava os aplausos, o sucesso. Mais que o sucesso das manchetes e das paradas: adorava o sucesso do recinto, de estar naquele instante entusiasmando com sua interpretação um auditório cheio de pessoas. O sucesso visceral, epidérmico, aqui-e-agora, que o palco proporciona a quem sabe driblar suas armadilhas e usar bem suas alavancas. O sucesso de Cauby corresponde ao espírito da canção de Chico Buarque, “Bastidores”, que ele adotou para si. A carreira de Cauby está inteira naqueles versos e naquela ondulação melódica. Seu destino era cantar junto à estridência triunfal de uma Big Band ou no aconchego etílico de um piano-bar.

Visto de perto percebia-se que ele era moreno, “pele cor de oliva” como se diz na literatura, uma figura latina ou cabocla, moreno claro na linha de Castro Alves ou Gonçalves Dias. Usou por muito tempo um bigodinho fino, e somente agora, em retrospecto, percebo que se parecia bastante com Prince, o jeito meio andrógino, a firmeza inabalável, a pose imperial equilibrada pelo sorriso perpétuo e radiante. Um Prince bem comportado, é claro, um Prince que só usava black-tie e impecáveis sapatos pretos. Somente após a idade madura aderiu aos babados, aos frufrus, aos paetês, e acho que a “fase Las Vegas” de Elvis Presley o ajudou nessa transição.

Sua música foi sempre a música romântica, e era ele o modelo permanente para os que surgiram ao longo da minha adolescência: Agnaldo Rayol, Agnaldo Timóteo, Altemar Dutra, Nelson Ned, Jessé. A música de amor cantada com arrebatamento stanislavskiano, sem pudor, sem peias, “emoção à flor da pele”, como prometem os cartazes desses shows. A grande maioria das chamadas “duplas sertanejas” de hoje não faz música do sertão. Faz esse tipo de música, música romântico-urbana em clima de opereta ou de chá dançante. Apesar dos chapéus de cowboy, aqui e ali uma bota ou camisa xadrez, apesar do figurino e da atitude que lembra mais Tin Pan Alley do que Vegas, essas duplas todas são herdeiras de Cauby e não de Tonico e Tinoco. 

Quando veio a Campina Grande, não havia ainda grandes shows em teatros, praças, ginásios, estádios. O maior cantor do Brasil cantou no auditório da Rádio Borborema, onde cabiam cento e poucas pessoas. Ele, também, subiu aqueles gastos degraus de pedra que eu tanto subi, garoto, levando o envelopezinho com a resposta do teste semanal do programa “Falando de Cinema” de Humberto de Campos.

Meu pai trabalhou anos como redator naquela rádio, e quando Cauby veio cantar ele levou a mim e a minha irmã Clotilde. A platéia estava repleta, e ouvimos o show num salão ao lado do auditório. Era o salão da diretoria da rádio, acho, apinhado de pessoas. A certa altura da noite o astro adentrou o recinto, cumprimentou um por um, apertou todas as mãos. Não lembro se apertou a minha. Alguém lhe disse: “Cauby, a rua está cheia de gente que não pôde entrar. Claro que você não vai poder cantar para elas, mas podia pelo menos vir até a sacada, dar um aceno?...”  “Claro,” disse ele.

Foi até a sacada, e quando a multidão o viu elevou-se um clamor de aparecimento do Papa na Praça de São Pedro. Ele ergueu os braços, teatral, pedindo silêncio. Fez-se um silêncio de alfinete caindo em paralelepípedo. E ele encheu a rua com o vozeirão belo e potente: “Conceição.... eu me lembro muito bem...”

Todos lembrarão.

Links:
“Bastidores”








sábado, 14 de maio de 2016

4113) A arte de improvisar histórias (14.5.2016)



(ilustração: Julie Paschkis)

Um velho clichê diz que violão é o instrumento mais fácil de tocar e mais difícil de tocar bem. (Violão porque é o que eu toco; imagino que qualquer músico já ouviu dizer isso a respeito do seu instrumento.) Eu diria que inventar histórias de improviso é a coisa mais fácil de fazer e a mais difícil de fazer bem. Em rodas de conversa com amigos já pratiquei a nobre arte de começar uma história meio sem pé nem cabeça, depois de dois minutos dizer para o cara ao lado: “Agora vai tu”, e cada um ir adicionando seu trecho e passando adiante.

(Digressão: esse sistema é o que em inglês chamam de “round robin”, uma criação coletiva com cada autor pegando a história onde o outro larga. Existe na FC e no romance policial, por escrito, não improvisado. Os surrealistas franceses gostavam de improvisar histórias, poemas ou narrativas de sonhos em voz alta. Um dos meus contos preferidos de Conan Doyle é “Cipriano Overbeck Wells, mosaico literário”, onde numa alucinação meio machadiana o narrador vê-se cercado de autores como Jonathan Swift, Bulwer-Lytton, Walter Scott, Daniel Defoe e outros, improvisando em “round robin” uma história para ele.)

Fazer de improviso é mais difícil se o cara for se preocupar com aspectos que já são complicados no texto escrito: coerência do enredo, originalidade da idéia, riqueza de descrições, profundidade psicológica... 

Não, uma história inventada em voz alta deve ir se jogando para a frente sem saber o que vem depois, e a imagem que me vem à cabeça é um macaco saltando de galho em galho, largando-se de um galho forte que se enverga e o arremessa como uma catapulta bem no meio da copa de outra árvore onde por certo não faltará com o quê se pegar. Assim vai o narrador de improviso.

Já improvisei muita historinha para meus filhos na hora de dormir, a única regra era que não podia ficar bolando sinopse meia hora antes. Eu só me permitia pensar na história depois de pronunciada a fórmula mágica do Era uma vez. Depois disso eu olhava em torno, via a janela aberta e dizia: “Um dia, o Macaco vinha andando pela floresta de noite e viu de longe uma janela acesa, num lugar onde ele nunca tinha visto casa nenhuma”. O que vem depois não sei, mas qualquer coisa pode se encaixar aí.

Escrever assim (porque isso faz parte de escrever) requer certas precauções. Me lembro muito das histórias que Tia Adiza contava para a gente, mais de meio século atrás, nesse mesmo ritual de botar pra dormir. Ela vinha com umas histórias bem concatenadas, que eu acho que eram menos improvisadas do que exumadas da memória. E de vez em quando aparecia algo como:

“Aí o Rei mandou prender o rapaz no calabouço, os guardas jogaram ele no porão, fecharam o alçapão lá no alto e botaram uma pedra em cima. O rapaz ficou preso. Mas certa hora ele ouviu um barulho na grade.” 

“Que grade, tia?”  

“Oi, não falei na grade não? Num canto do porão tinha uma portinha baixa, gradeada, que dava pro lado de fora!”

Elementos narrativos brotavam assim, do-nada, de acordo com as conveniências do herói, e dela. Eu já ficava com medo de imaginar a cena, porque podia haver uma porção de elementos deus ex machina que ela estava vendo e eu não. 

“Aí o rapaz ia caminhando pelo descampado, aí se deitou pra descansar. Foi quando ele ouviu um tropel, lá vinha um touro furioso, imenso, correndo pra cima dele!...”  

“Eita, tia, e o que foi que o rapaz fez?” 

“Ele subiu correndo na árvore! Oi, não falei na árvore não? Era uma mangueira bem alta...”

Quem está inventando em voz alta precisa dessa cara de pau. Quem escreve, não. Quando ele perceber que faltou informação prévia ao leitor (que não aceita ouvir falar pela primeira vez em algo quando nesse algo repousa todo o peso de uma cena), ele pode voltar atrás quanto espaço for necessário para “plantar” a informação sobre a gradezinha ou a mangueira. De preferência, dando-lhe um contexto que não sugira de que maneira será utilizada a seguir.

Se o fluxo principal da história for atraente, o ouvinte perdoa muita coisa, perdoa que a moça seja loura numa cena e morena na outra, como as mulheres fatais de Buñuel. Perdoa que um táxi ou uma carruagem que o herói deixou esperando por ele estejam à sua espera até hoje após o fim do livro. Perdoa que o herói tente alcançar seus objetivos da maneira mais tortuosa quando com duas manobras poderia resolver tudo. 

O ouvinte-leitor sabe e sente que, se fosse assim, não haveria história. Ele aceita as maiores inverossimilhanças, desde que estas tornem a história mais vívida, e não menos. Os melhores filmes de Hitchcock se baseiam nesse tobogã narrativo onde cenas implausíveis se sucedem da maneira mais emocionalmente plausível que se possa imaginar.






quinta-feira, 12 de maio de 2016

4112) Ilha Nula, o lugar que não existe (12.5.2016)




Escrevi dias atrás aqui no blog (“O Kafka da era digital”, 12 de abril, https://t.co/caAUYpuVoH) sobre certos resultados meio surrealistas do mapeamento digital via satélite. Naquele caso, era o modo como os rastreamentos de endereços IP de computadores, quando não têm sua localização geográfica corretamente identificada, são todos “jogados” para o ponto central dos EUA, uma região pouco povoada do Kansas.

Fiquei sabendo agora da existência de um ponto parecido como esse, que os profissionais do ramo chamam “A Ilha Nula” (“Null Island”).  É um lugar virtual, ou seja, não tem existência material mas é útil para a organização do espaço em nossos mapeamentos; algo como a Linha do Equador, também fictícia.

(Digressão: Conta-se que nas Copas do Mundo disputadas na Europa em 1934 e 1938, os jogadores da Seleção Brasileira iam de navio, e ao se aproximarem da Linha do Equador algum espertinho pregava um fio de cabelo horizontalmente nas lentes de um binóculo e ficava mostrando a Linha, para o deslumbramento dos marinheiros-de-primeira-viagem.)

Null Island fica no ponto cartográfico chamado de 0°N 0°E, ou seja, zero grau de latitude e zero grau de longitude, o local onde a Linha do Equador cruza o Primeiro Meridiano. É o “zero cartesiano” do mapa-múndi, o centro de tudo. Este ponto fica no Oceano Atlântico, no Golfo da Guiné. Como o mapeamento cartográfico serve para orientar inclusive o mapeamento satélite-digital do GPS, é um ponto importante. Precisa ser registrado. E como ali nada existe, é mar alto, colocou-se no local uma bóia meteorológica, ancorada ao fundo.

Esse tipo de referência é usado em sistemas mapeadores como Google Maps, Mapquest ou outros. É o World Geodetic System 1984 (WGS84), usado pelo Departamento de Defesa dos EUA e pelo GPS. Sempre que um endereço é digitado erradamente ou sofre algum tipo de interferência que o torna inválido, o resultado apresentado aparece assim, “0°N 0°E”, ao invés de um endereço completo tipo: 7o 13’ 50” S 35o 52’ 52” O. (Esta é a localização de Campina Grande, por esse sistema.)  E os geógrafos (ou sei lá quem) decidiram projetar nesse lugar zero-zero essa ilha inexistente. A Wikipedia informa que eles atribuem à Ilha Nula uma área simbólica de 1 metro quadrado, com uma linha costeira de 4 metros lineares.

Tal como ocorria no exemplo do Kansas, a Ilha Nula é considerada “um dos lugares mais visitados da terra”, virtualmente, é claro, pelas centenas de milhões de resultados “0°N 0°E” que milhões de computadores estão obtendo todos os dias.

O artigo que estou consultando (aqui: http://tinyurl.com/z2ptrl9) fala que essa localização se refere apenas aos cálculos geográficos segundo o padrão do WGS84, mas existem muitos outros padrões, e o “ponto zero” de cada um fica num local diferente do globo. Olha só que idéia ótima para cercar de verossimilhança científica um lugar imaginário, daqueles dignos de figurar no The Dictionary of Imaginary Places (1980) de Alberto Manguel & Gianni Guadalupi.

(Digressão: este dicionário, aliás, registra apenas os lugares imaginários da literatura, não os da ciência, de modo que Null Island não figura nele. Existe apenas uma Land of Null, também conhecida como Wisdom Kingdom, proposta no livro infantil The Phantom Tollbooth (1962) de Norton Juster.)

E tudo isto daria um excelente arrazoado técnico para  situar lugares imaginários como o Monte Analogue imaginado por René Daumal, num dos “romances inacabados” mais inquietantes da literatura. Mas isso já é outra história.









domingo, 8 de maio de 2016

4111) A peleja de Romano com Inácio (8.5.2016)





(Patos-PB: o beco ao lado da Igreja da Conceição, construída em 1773, local da famosa peleja)


O primeiro relato que li sobre a famosa cantoria a desafio entre Romano do Teixeira e Inácio da Catingueira foi o de Câmara Cascudo em Vaqueiros e Cantadores (1937), que já li em edição moderna, de bolso, por volta de 1971. Cascudo diz que a peleja aconteceu em 1870, e foi este o ano que me ficou na memória. Fui checar agora em F. Coutinho Filho, Violas e Repentes (1953), e este, num capítulo mais rico de informações do que o de Cascudo, inclusive transcrevendo diferentes versões de várias estrofes, diz que a peleja aconteceu em 1874.

Estive recentemente em Patos, a “Morada do Sol” paraibana, para fazer uma palestra pela Fundação Ernâni Satyro, graças a Geralda Medeiros de Lacerda, Biu do Xadrez e Wandecy Medeiros. Foi em Patos que a famosa peleja aconteceu. Coutinho Filho relata não só a cantoria como a sua grande repercussão. Pessoas já vieram me perguntar se nesse desafio tão famoso eles tinham mesmo cantado sem parar durante três dias, como rezam algumas lendas. Eu penso que o mais provável seria os dois cantadores terem se enfrentado em três noites sucessivas. Seriam três encontros, não um só. Não era uma maratona. Seria mais como certas festas que o cara vai pra casa, dorme um pouco, e quando volta a festa recomeça. Já fui muitas festas assim. (Cantoria não.)

Essa peleja é emblemática por envolver um branco letrado e um negro escravo, que foi depois alforriado. (Outra peleja que tem um perfil ligeiramente diferente, mas também tem semelhanças, é a do Cego Aderaldo com Zé Pretinho, que uns dizem ter sido tão imaginária quando a de Athayde com Raimundo Pelado.) As diferentes versões fazem a balança pender para um ou para o outro. O desfecho mais famoso é aquele em que Romano joga sobre Inácio uma estrofe repleta de mitologia grega, fazendo-o encostar o pandeiro e confessar que não podia acompanhá-lo naquele campo. Há um texto de Graciliano Ramos onde ele conta a história da peleja, irrita-se com o truque de Romano e declara Inácio vencedor.

Romano ganhou a cantoria assim:

Latona, Cibele, Réia, 
Íris, Vulcano, Netuno, 
Minerva, Diana, Juno, 
Anfitrite, Androcéia, 
Vênus, Climene, Amaltéia, 
Plutão, Mercúrio, Teseu, 
Júpiter, Zoilo, Perseu, 
Apolo, Ceres, Pandora! 
Inácio, desata agora 
o nó que Romano deu! 


A mitologia de Romano era mais uma mitologia de charadista e de leitor de almanaques do que a de helenista. O importante nessas estrofes nem é o assunto, é a técnica de usar a cadência e a rima para produzir esquemas mnemônicos de repetição improvisada.

Átila Almeida e José Alves Sobrinho, no seu Dicionário Bio-bibliográfico de Repentistas e Poetas de Bancada (1978) reitera a data de 1874 mas não deixa muito mais coisa inteira: “Das pelejas havida[s] entre os dois grandes cantadores, por volta de 1874, há tantas e tão enfeitadas versões que da variedade só se pode concluir pela falsidade de todas. (...) Catingueira, escravo e analfabeto, devia ser um talento para elevar-se ou ser elevado à altura de disputar com Romano, mas nunca poderia ter levado vantagem nesse embate. Romano além de igualmente talentoso tinha mais recursos para explorar. Nas comparações que têm sido feitas dos dois poetas nunca foi dito que Romano poderia ser, talvez, o maior admirador de Inácio, quem o promovia.”

Mal comparando, uma peleja como essa estaria para a Cantoria assim como o duelo do OK Corral está para o faroeste. Uma cantoria, ou uma lenda, ou uma história de extraordinário enredo, pode sofrer mil versões ou variantes. Confrontar versões sempre foi comum entre pessoas que colecionam versos. Faz parte do ofício. Ninguém decora uma cantoria inteira, com a possível exceção de Zé de Cazuza.

Assim como os próprios mitos, assim como a história dos próprios personagens mitológicos citados por Romano, a peleja acabou tendo numerosas versões esfarrapadas que, superpostas umas às outras, recompõem uma cantoria meio documental, meio fictícia. Na mitologia, cada narrativa do mito cobre alguma área não coberta pelas versões já conhecidas. Todas vão se superpondo.  Seria um desafio interessante fazer um livrinho, uma edição comentada, com um apanhado do maior número possível de versões da peleja entre Inácio e Romano, tentando engastá-las todas numa mesma estrutura. Uma versão de soma e de síntese, por assim dizer.

O verso de mitologia de Romano é meio que um travalíngua voltado contra ele próprio, mas em todo caso é uma bigorna poética na cabeça do contendor. Há quem critique os cantadores enciclopedistas, dessa estirpe que Romano representou em sua época e Ivanildo Vila Nova na minha. Poemas enumerativos podem às vezes não ter muita beleza poética, mas aquelas enormes estrofes enumerativas de peixes ou de bichos que tem nos folhetos de Costa Leite, e de outros, tem menos um propósito estético do que um jogo lúdico de memória e de articulação no canto:

Temos voador, olhete e tunimba 
enxova, corvinho, tabá, sirigado, 
cacholote, robalo, salema e dourado, 
pirapitinga, cangula e sardinha 
sanhauá, camorim, galo e tainha, 
tintureira é um peixe, preciso rimar, 
o peixe canguito não posso deixar 
camurupim, aniquinho, albacora, 
tira-vida, guaiabira e garacimbora 
são peixes que vivem nas águas do mar.

(José Costa Leite, Peleja de José Costa com Poetisa Baiana).

Ou essas estrofes intercaladas de Manoel Camilo dos Santos: 

I – Amaro, Augusto, Adriano, 
Ambrósio, Alonso, Agripino, 
Anastácio, Ageu, Alípio, 
Abel, Aleixo, Avelino, 
Antero, Alfeu, Ananias, 
Abílio, Antonio, Adelino. 

C – Breno, Bruno, Belarmino, 
Bento, Brito, Belisardo, 
Berchior, Braz, Benevides, 
Bertoldo, Belo, Bernardo, 
Bival, Boanerges, Berto, 
Balila, Brandão, Bivardo.
(Manoel Camilo dos Santos, A Grande Peleja de Ivanildo Vila Nova com Manoel Camilo dos Santos).

E um exemplo de um folheto do próprio Ivanildo Vila Nova, um dos expoentes desta técnica: 

Um elogio geral 
aos craques do passado: 
Pavão, Bolão, Juvenal, 
Danilo, Heleno, Machado, 
Ávila, Barbosa, Ademir, 
Zizinho, Chico, Jair, 
Friaça, Biguá e Bria; 
Leônidas, Noronha e Tim 
Patesco, Pedro Amorim, 
Galo e Domingos da Guia. 

(Ivanildo Vila Nova, O futebol através dos tempos)

Os versos enumerativos se tornam um cântico cuja função é de sagrar, salvar os seres registrando-os pela palavra, pelos seus nomes. Como Bispo do Rosário resgatava cada coisa em sua Enciclopédia do Apocalipse envolvendo-a em fio azulado, o poeta resgata cada matinho de beira de estrada ou cada qualidade de caça que ele enumera. Enquanto o nome daquele peixe for repetido por alguém cantando decorado aqueles galopes, é quase como se o peixe mesmo tivesse continuado a existir. 

São poemas que tem uma utilidade etnográfica, também. Como as songlines dos aborígenes da Austrália, poemas geográficos intermináveis descrevendo cada pedra, cada rochedo, cada riacho, cada arvoredo, cada lugar. São usados como mapas verbais, para que as pessoas, repetindo-os, não se percam.

Tudo isso não terá começado com esse verso específico de Romano, é claro. Mesmo ainda àquela altura, já devia haver uma fartura de exemplos. Esse tipo de balaio ou verso pronto está no cerne da poesia popular, não tem nada a ver com ser repente ou não. É como as enumerações bélicas de Homero na Ilíada ou os microcatálogos zoobotânicos de Guimarães Rosa em “Cara de Bronze”, “O Burrinho Pedrês”, etc. A mera repetição de nomes, sem nenhum nexo sintático entre eles, uma mera lista crua nome a nome, acaba ganhando um valor muito mais sonoro do que denotativo. Vira uma litania, uma latomia, um mantra, com uma sonoridade talvez próxima da sonoridade primitiva da língua geral, o nheengatu, que tanta gente neste Brasil véio já falou. 


No meu livro Os Martelos de Trupizupe (Natal, Engenho de Arte, 2004) incluí algumas estrofes de um trabalho meu, um desafio onde os dois cantadores terminam suas estrofes, respectivamente, com os motes: “Cantador tem que ser analfabeto” e “Cantador tem direito a estudar”. São duas correntes sociais poderosas dentro da poesia popular. Poderíamos dizer que Romano, branco, culto, empunhando uma viola, produziu o arquétipo do atual cantador; e que Inácio, negro, humilde, empunhando um pandeiro, tornou-se um arquétipo para os nossos emboladores de coco. O talento é o mesmo. Os caminhos da História é que são diferentes.




terça-feira, 3 de maio de 2016

4110) Fala, Gabí (3.5.2016)



(Gabí e Kátia)

Tem morrido gente que não morrerá nunca. Neste fim de semana foi meu mestre Gabí, Gabimar, irmão de Ogírio Cavalcanti, os dois comandando musicalmente um dos conjuntos de baile mais sólidos e mais longevos do Nordeste. O “Conjunto de Ogírio” tocava qualquer música nova que fosse aparecendo, tocava nas grandes festas, caía em turnê nos meses de festejos. De bailes de debutantes a tertúlias, de manhã-de-sol a jantar-dançante, com guitarras, vocais, sopros, percussão e o teclado de Gabí.

Gabí era instrumentista, compunha, arranjava, tinha curiosidade pela música como um enxadrista tem pelo xadrez. Ele era cego, e Ogírio, no tempo em que os conheci, também já tinha a vista prejudicada. O ouvido de Gabí era uma coisa que espantava a todos nós, violonistas com menos de vinte anos, que íamos pedir-lhe que “tirasse as músicas” pra gente. Gabí botava o disco, pegava o violão, e quando o tom não estava já igualado, ao invés de mexer nas tarraxas ele tinha um mecanismo que ralentava ou acelerava o picape; ele afinava o elepê pelo violão.

Nossa banda era Os Sebomatos, e os dois irmãos, Ogírio principalmente, nos chamavam mangando “Os Sabonetes”. Gabí, inclusive, tocou na banda antes de mim. Na primeira vez em que eu vi os Sebomatos foi antes de uma sessão dos Beatles no Capitólio. Eram Sérgio, Bolívar e Marcelo tocando e cantando, e Gabí acompanhando no teclado. (deveriam ser então Os Sebomagas, para os mais puristas, depois que ele substituiu Toninho, e Sebomabras depois que eu entrei). Não deve ter muitos cantores em Campina Grande que não foram acompanhados por ele num estúdio ou num palco.

Uma vez, durante uma tarde, ela passou quase todas as músicas do Sgt. Pepper’s para a gente. Como ninguém sabia notação nem cifra, a gente se valia da memória visual e da lógica interna da música para lembrar depois os acordes, quando chegava em casa e podia ficar praticando. Era difícil às vezes aprender os acordes dele, porque ele tocando assim descontraidamente fazia com a mão esquerda apenas as notas que ia tocar, não o acorde inteiro, mas aí se lembrava que estava demonstrando para a gente e formava os acordes corretos, chamando a atenção para as passagens.

Anos depois Ogírio me contratou para ensinar o trumpetista Crisaldo, o grande “Galinha”, a cantar em inglês músicas como “25 or 6 to 4” do Chicago Transit Authority. Minha tarefa era tirar as letras, escrever uma versão fonética e passar com ele, o que era sempre uma grande gréia. Lembro da casa deles quase em frente à Catedral, a sala espaçosa sempre com algum instrumento. Gabi estava em todos os palcos. Uma vez, no Encontro da Nova Consciência, fui vê-lo no camarim antes de um show, cheguei perto: “Fala, Gabi.” Ele reconheceu a voz. Fazia uns dez anos que a gente não se encontrava. Eu me admirava às vezes que ele conhecesse a voz de todo mundo e ele dizia algo como “quando a gente reconhece ajuda bastante.”

Eu via ele e Ogírio os dois mais ou menos como bluesmen americanos, que naquela época eu ainda tinha escutado pouco. Gabí tinha algo de Ray Charles, mas acho que muitas vezes tinha que ser um George Martin. A mulher de Gabí, Kátia, dividia com ele palco, discos, arranjos, gravações com artistas de todo gênero musical. O piano dele e a voz dela, imagino, estão espalhados pelo trabalho de muita gente. 

Existe uma história informal das bandas-de-rock e conjuntos-de-baile de Campina Grande, e uma boa parte dela está no saite “Ritmo Melodia” (http://www.ritmomelodia.mus.br/), ao qual muita gente, inclusive eu, já deu depoimento sobre as bandas de sua época. As bandas de jovens roqueiros estavam destinadas a serem desfeitas dali a alguns vestibulares. Todo mundo ia largando, ia estudar, e as bandas sumiam. O conjunto de Ogírio era um projeto profissional a longo prazo, um esteio do circuito musical da região, formou gerações de músicos, era algo com a resistência temporal e a solidez de uma Orquestra Tabajara. 

O tempo passa, o tempo voa, eu duvido que ainda seja capaz de lembrar do dedilhado de “Sun King” nem do solo de “While my guitar gently weeps” (Abbey Road e o Álbum Branco foram-lhe arrancados aos poucos). Acho que quem é músico de verdade não esquece essas coisas. As pessoas para quem a música é a coisa mais importante, e ao mesmo tempo a coisa que mais lhes dá prazer e que elas conhecem melhor, adquirem uma certa nobreza de príncípios. Existe em alguns verdadeiros músicos uma percepção das harmonias e desarmonias que existem no mundo. Artes, crafts, habilidades podem criar uma solidariedade de espírito entre as pessoas, mesmo que sejam de diferentes credos ou persuasões. Um bom músico é alguém que percebe, transcria e reproduz os vais e vens da vida, as ondas, as ascensões e as quedas, a dinâmica da contenção e do estouro, as delicadezas acústicas e o ribombo high-tech. A música pode nos provocar as mais massacrantes emoções, e pode também nos deixar em paz com alguma coisa, sendo paz não importa nem com quê.

O saite Retalhos Históricos de Campina Grande tem neste endereço um material de áudio e fotos sobre a infância de Gabí: (http://cgretalhos.blogspot.com.br/2016/05/memoria-audio-fotografica-gabimar.html#.VyhNbdIrLMo).  













domingo, 1 de maio de 2016

4109) O dia de um serial killer (1.5.2016)







O filme começa como um documentário tradicional, em preto e branco, imagem granulada, câmera na mão balançando bastante. 

A primeira cena é de um homem jovem de pé no estreito corredor de um trem em movimento, debruçado à janela, olhando para fora. Uma mulher vem se aproximando, do lado oposto ao da câmera, e quando ultrapassa o homem por trás ele se endireita, com agilidade surpreendente, dá-lhe uma gravata e a arrasta para a cabine cuja porta estava aberta. Caem os dois sobre o banco; ele a agarra com uma espécie de fio, e a estrangula devagar, enquanto ela se debate cada vez menos, e ouvem-se apenas os ruídos surdos da luta e o balanço cadenciado do trem.


Parece o início de um filme policial qualquer, mas nisso o filme corta para um terreno baldio onde o homem está agachado junto a um corpo envolto em lona. Ele se dirige para a câmera, num tom de quem dá entrevista, e começa a discorrer sobre os aspectos técnicos de um crime, como por exemplo a quantidade de pedras que é preciso amarrar a um cadáver para jogá-lo na água e impedir que ele depois venha à tona. De trás da câmera ouvimos perguntas, a que ele responde com vivacidade e nonchalance. 

Sim (percebemos), ele é um serial killer, e está sendo seguido por uma equipe de filmagem que documenta seus crimes e faz o retrato de seu dia-a-dia (encontros com a família, ensaios musicais com a namorada, etc.), entre pessoas inocentes que não fazem a menor idéia dos crimes que ele comete.

O filme é belga, intitula-se C’est arrivé près de chez vous (1992) e foi escrito, produzido, dirigido, montado e interpretado por três estudantes de cinema sem um vintém no bolso: Benoît Poelvoorde, Rémy Belvaux e André Bonzel. O título da versão em inglês, admirada por Quentin Tarantino, é Man bites dog

Pertence ao gênero chamado mockumentary, “mock documentary”, documentário fingido. Neste gênero o meu preferido é This is Spinal Tap (Rob Reiner, 1984), onde uma equipe acompanha turnês e gravações de uma hilária banda de rock, fictícia, é claro.


Em C’est arrivé..., muitos crimes são mostrados apenas em cenas rapidíssimas de poucos segundos, mas há pelo menos duas sequências mais longas em que o diretor consegue transmitir a aterrorizante impressão de que aquilo está acontecendo de verdade. 

A primeira é quando Ben, o assassino, invade uma casa e mata sucessivamente esposa, marido e filho pequeno, contando para isto com a ajuda de membros da equipe. 

A outra é quando invadem um apartamento e durante uma longa noite todos eles, assassino e documentaristas, estupram a esposa e depois a matam juntamente com o marido.


Nestas cenas fica mais claro o aspecto (para mim) mais perturbador do filme. Não são as cenas de violência gráfica, porque afinal estamos acostumados a ver coisas até piores nos filmes de hoje. Não é a sensação de que “aquilo tudo é de verdade”, porque depois dos primeiros minutos qualquer espectador menos opaco percebe que se trata mesmo de encenação com atores. 

Mas o gradual envolvimento da equipe com os crimes de Ben arrasta o filme do gênero mockumentary para aquele departamento mais amplo dos filmes que questionam a imprensa e o modo como ela se envolve e manipula os fatos que alega estar documentando.


Para mim, C’est arrivé... (ou Man bites dog) se assemelha, por exemplo, a A Montanha dos Sete Abutres (“The Big Carnival”, Billy Wilder, 1951), onde um jornalista inescrupuloso (Kirk Douglas) retarda o quanto pode o socorro a um homem soterrado numa caverna, para faturar com o episódio. 

Ou com Rede de Intrigas (“Network”, Sidney Lumet, 1976), onde um âncora de telejornal (Peter Finch) tem um surto ao vivo e acaba servindo de pretexto para sua rede de TV intervir na política norte-americana. 

Ou Mera Coincidência (“Wag the Dog”, Barry Levinson, 1997), onde um produtor de Hollywood (Dustin Hoffman) inventa uma guerra fictícia na Europa para desviar a atenção do público de um escândalo envolvendo um candidato a presidente dos EUA.


Vistos em conjunto, estes filmes (e vários outros) ajudam a refletir sobre ética e antiética da imprensa, sobre a manipulação midiática de conteúdos supostamente “imparciais e objetivos”, sobre o envolvimento interesseiro de jornalistas ou documentaristas com os acontecimentos que estão abordando, sobre as infinitas formas de manipulação e distorção dos fatos para produzir um discurso fictício, a tal ponto que fica impossível distinguir entre a cobertura de um crime e a cumplicidade com ele.








quarta-feira, 27 de abril de 2016

4108) Quem inventa o sonho? (27.4.2016)





Há um texto famoso de Robert Louis Stevenson sobre os sonhos, que incluí na minha edição/tradução de O estranho caso do dr. Jekyll e Mr. Hyde (São Paulo: Hedra, 2011). “Um capítulo sobre o sonho” é um longo depoimento autobiográfico em que Stevenson fala sobre a importância dos sonhos em seu processo criativo, com riqueza de exemplos, contando episódios tão bizarros que só podem mesmo ser verdade, porque um ficcionista imaginativo como ele não teria a menor necessidade de mentir.

A certa altura, Stevenson narra uma complicada história de amor e de crime que inventou dormindo, um romance inteiro, cheio de pessoas e de reviravoltas de enredo, com uma revelação final espantosa, quando uma das personagens, numa frase curta, revela toda a verdade escondida até então. O autor diz que acordou estupefato, e confessa a sua perplexidade diante disto. Se a mente que sonhava (raciocina ele) é a dele próprio, como é possível essa cisão psíquica onde uma parte da mente consegue esconder da outra parte um segredo? A mente que conta e a mente que presencia a história não são uma só? Então, como é possível o segredo? Como é possível a espantosa surpresa final diante de algo que nós mesmos estávamos pensando?

A mente que sonha e a mente que escreve literatura são a mesma? Acho que cada pessoa é diferente. Muitos dos meus contos e poemas se originaram de sonhos, que memorizei com cuidado ao acordar e depois, levantando da cama, anotei sem perda de tempo. Mas raramente o sonho vem com a história completa. Em geral ele fornece um sentimento, uma ambientação, um fragmento meio “nonsense” de um episódio que depois eu procuro reconstituir e ampliar, sem tentativa de explicação. Charles Dickens comentou, numa carta de 1843:

“A propósito de sonhos, não é uma coisa estranha que autores de ficção nunca sonhem com suas próprias criações, reconhecendo, mesmo adormecidos, que elas não têm existência concreta? Eu nunca sonhei com meus personagens, e acho que isso é tão impossível que sou capaz de apostar que Walter Scott nunca sonhou com os dele, por mais reais que sejam.”

Lewis Carroll registrou em 1899 um sonho no qual ia visitar uma família de amigos, e durante a visita ficava sabendo que uma das filhas, Polly, estava se apresentando numa peça num teatro local. Nesse momento, Carroll avistava a própria Polly sentada nas proximidades, só que era Polly quando tinha nove ou dez anos apenas. Ele perguntava à mãe se poderia levar Polly ao teatro consigo, e ela autorizava. Diz ele:

“Eu estava claramente consciente do fato (mesmo sem a menor surpresa diante daquela incongruência) de que eu estava levando a Polly criança para assistir uma apresentação da Polly adulta! Ambas as imagens, Polly como criança, e Polly como mulher, são, imagino, igualmente nítidas na minha memória normal, da vigília; e ao que parece durante o sonho eu dei um jeito de dar a cada uma delas uma individualidade independente.”

Como se sabe que Carroll tinha fascinação por garotinhas (uma espécie de pedofilia platônica, pois não há registro de qualquer ação dele neste sentido, o que condiz com seu temperamento tímido e cortês), dá para perceber que em sua memória a mulher crescida não tinha conseguido eliminar do seu mundo imaginário a menina.

Edmond de Goncourt (escritor, criador de um famoso prêmio literário francês juntamente com seu irmão Jules) conta que pouco tempo depois da morte do irmão, a quem era muito unido, sonhou que caminhava ao lado dele pelas ruas de Paris, e encontrava um grupo de amigos, entre os quais Téophile Gauthier. Todos vinham ao seu encontro e lhe apresentavam as condolências, e ele as aceitava, roído pela dúvida, porque avistava a poucos metros de distância o irmão vivo, esperando para continuarem a caminhada, e também tinha bem clara na memória os anúncios fúnebres que vira pregados por toda parte.

É um sonho que lembra o que Gabriel Garcia Márquez conta no prólogo dos seus Doze Contos Peregrinos (1992). Quando morava em Barcelona, o escritor sonhou que estava acompanhando o próprio enterro, a pé, num grupo de amigos em clima de festa, embora todos trajassem luto. Amigos do mundo inteiro tinham comparecido à cerimônia, e Gabo sentia-se feliz por ver todos juntos, depois de tanto tempo. Quando tudo chegava ao fim todos começavam a ir embora e ele tentava acompanhá-los, mas alguém lhe dizia: “Você é o único que não pode ir embora.” E ele conclui:

“Só então compreendi que morrer é não estar nunca mais com os amigos”.















domingo, 24 de abril de 2016

4107) Shakespeare e Cervantes (24.4.2016)



O conceito de contemporaneidade é uma coisa engraçada. Usa-se muito essa palavra como sinônimo de “atual”, “da época presente”: A música brasileira contemporânea tem explorado tais e tais caminhos.  Mas o que me interessa é a contemporaneidade como laço entre duas coisas, dois acontecimentos bem separados no espaço.

Já li uma crítica questionando uma dessas contemporaneidades históricas (“Fulano e Sicrano viveram na mesma época”). É quando Castro Alves diz, em “O Livro e a América”:

Por uma fatalidade 

dessas que descem de além, 

o sec'lo, que viu Colombo, 

viu Gutenberg também. 

Quando no tosco estaleiro 

da Alemanha o velho obreiro 

a ave da imprensa gerou... 

O Genovês salta os mares... 

Busca um ninho entre os palmares 

e a pátria da imprensa achou...

Não há sincronia entre as vidas e os tempos dessas duas grandes figuras, embora tenham de fato vivido no mesmo século. A primeira Bíblia de Gutenberg é de 1455, quando Colombo era ainda um guri de cinco anos. O “quando” usado pelo poeta não supõe que os dois fatos que refere são simultâneos, mas que são sucessivos. Quando isso, depois aquilo.

Vejam com que fluência o poeta compara a invenção de um com o voo de uma ave, e o descobrimento geográfico do outro com o achamento de um ninho. Essa ligação metafórica suaviza o fato de que os dois viveram em mundos separados. Gutenberg morreu em 1468, sem desconfiar que existia outro continente além do Atlântico. Já Colombo, era um leitor voraz de obras impressas, como as Viagens de Marco Polo.

Salman Rushdie, num texto aludindo à contemporaneidade entre Shakespeare (1564-1616) e Cervantes (1547-1616), faz alguns comentários pertinentes, como o de notar que os livros do soldado têm muito menos batalhas, e as guerras são menos levadas a sério, do que as peças do dramaturgo que nunca esteve em campo de batalha.

Em casos assim, resta sempre a curiosidade de saber se dois escritores dessa estatura, vivendo praticamente no mesmo continente, não teriam ouvido falar na fama do outro, e se interessado para ler algo que o outro escreveu. Acho isso sempre um detalhe importante para um bom biógrafo literário investigar. O que ele lia? O que chamava sua atenção? Quem eram os mais lidos na época dele, pelos amigos, pelos colegas, pelo público-alvo?

A crítica registra que entre o Bardo de Avon e o criador do Cavaleiro da Triste Figura (que em inglês recebe o charmoso apodo de “the Knight of the Doleful Countenance”) o único contato possível pode ter sido (não se sabe ao certo) Shakespeare lendo o Dom Quixote, grande sucesso europeu, traduzido ao inglês por Thomas Shelton em 1612 (a parte I). Houve portanto um período de quatro anos em que o dramaturgo inglês podia tê-lo lido em sua língua. Quanto a Cervantes conhecer suas peças, seria bem menos provável. Eram um sucesso localizado, ao contrário do Quixote, e só séculos depois ganharam o mundo.

Borges tem um viés interessante para essa questão de duas pessoas contemporâneas. Num dos últimos ensaios de Otras Inquisiciones (“Nueva refutación del tiempo”), ele conta, com a maior seriedade:

No princípio de agosto de 1824, o capitão Isidoro Suárez, à frente de um esquadrão de hussardos do Peru, decidiu a vitória de Junín; no princípio de agosto de 1824 De Quincey publicou uma diatribe contra Wilhelm Meister Lehrjahre; esses fatos não foram contemporâneos (agora o são) já que os dois homens morreram, aquele na cidade de Montevidéu, este em Edimburgo, sem saber nada um do outro.
Ou seja, Suárez viveu num universo onde o panfleto de Thomas De Quincey não existia, e provavelmente o próprio De Quincey também. E não é difícil imaginar um mundo em que um poeta romântico inglês não tenha conhecimento da existência de um militar sulamericano. Viveram em mundos isolados, estanques.

O que Borges parece querer dizer é que não basta terem existido materialmente ao mesmo tempo, como sabemos que aconteceu. Seria preciso que de algum modo as idéias de pelo menos um deles influenciasse o pensamento ou as ações do outro. Seria preciso que pudéssemos dizer que houve um mundo em que pelo menos A conhecia a existência de B.  Seria preciso que houvesse um universo mental, pelo menos um, onde eles dois fossem reais.

Não deve ser difícil prolongar esse jogo, imaginar mil pares de eventos desrelacionados num momento histórico qualquer. Em julho de 1930, por exemplo, surgiu um dos mais famosos personagens do romance policial, o detetive Maigret, de Georges Simenon, na novela Pietr-le-Leton. Também em julho de 1930 deu-se o assassinato de João Pessoa por João Dantas, no Recife, no dia 27 daquele mês. Os protagonistas do crime desencadeador da Revolução de 30 teriam alguma informação sobre o livro do então obscuro Simenon? Duvido. Simenon e seu público saberiam do crime da Confeitaria Glória, no longínquo Brasil? Duvido.

Como diria Borges, são fatos contemporâneos agora, que, através de nós, eles começam pela primeira vez a habitar o mesmo universo. Na intuição idealista de Borges (“só é real o que é pensado”) viviam em universos estanques, até que surgiu uma mente capaz de pensar juntas suas duas idéias.




sexta-feira, 22 de abril de 2016

4106) Geraldo Azevedo no Museu da Imagem e do Som (22.4.2016)



Quarta-feira passada, passei a tarde no Museu da Imagem e do Som (MIS), no Rio de Janeiro, participando do depoimento de Geraldo Azevedo para o projeto Depoimentos Para a Posteridade. A sessão de cerca de quatro horas e meia de conversa, dirigida pelo jornalista João Pimentel, teve como entrevistadores eu, Eliana Pittman, Neila Tavares e Carlos Morel.

Acompanho o trabalho de Geraldo há décadas. Ele é de uma geração de compositores e cantores um degrau acima da minha: Alceu Valença, Zé Ramalho, Elba Ramalho, Fagner, Ednardo, Belchior etc. Artistas nordestinos que gravaram seus primeiros discos nos anos 1970. Depois deles veio uma segunda leva de “paraíbas”, incluindo eu, Ivan Santos, Lenine, Fuba, Lula Queiroga, Tadeu Mathias, Alex Madureira e muitos outros.

É sempre bom ouvir a narração da carreira de alguém por ordem cronológica, ver a sucessão de pequenos fatos que vão, sem que a gente perceba, nos conduzindo na direção da vida artística. Geraldo nasceu num sítio em Jatobá, nas vizinhanças de Petrolina (PE). Antigamente, era distante; hoje, o local foi engolido pela cidade, que cresceu muito mais do que sua vizinha Juazeiro (BA).

Geraldo conta que na infância a escola ficava a alguns quilômetros de distância, e ele ia montado num jegue, que já sabia o caminho: parava exatamente no local da professora. Na volta, no sol a pino, o calor era tanto que ele adormecia agarrado ao burro em movimento (como o vaqueiro do conto “O Burrinho Pedrês” de Guimarães Rosa), e o burro voltava para casa sem precisar de guia. A mãe de Geraldo, dona Nenzinha, alfabetizou todos os filhos, e também o marido, já adulto.

Jatobá ficava pertinho do rio São Francisco. Às vezes, nas cheias do rio, as árvores onde os meninos brincavam ficavam só com a copa do lado de fora, e o pai advertia: “Depois que baixar, não subam nessas árvores, está cheio de cobra lá em cima.” As cobras subiam para se proteger.

Ele lembra uma época, já rapaz, quando a equipe de Carlos Coimbra andou por lá filmando Lampião, Rei do Cangaço, com Vanja Orico e Geraldo del Rey. Os dois Geraldos ficaram amigos e tocavam violão juntos. O método preferido naquela época era um daqueles métodos de violão “pé-duro”, de acordes “quadrados”, o Método Bandeirantes. Na mesma época, Geraldo conheceu João Gilberto, que tinha ido visitar o pai em Juazeiro.

Geraldo veio ao Rio trazido por Eliana Pittman, que o tinha visto tocar violão nos bares do Recife. Era jovem, e de repente viu-se tocando com pessoas como Antonio Adolfo e Erlon Chaves. “O violão não tinha captador, era com microfone,” lembra ele. “Quando eu sabia a música, aproximava o violão do microfone. Quando não sabia direito os acordes, afastava”.

Ele fala também dos seus primeiros contatos com outros artistas, inclusive Geraldo Vandré. Quando Vandré se escondeu por causa do golpe de 1968, os dois fizeram a “Canção da Despedida”, que segundo Geraldo foi composta nos lugares onde ele estava escondido: na casa de D. Aracy Moebius (esposa de Guimarães Rosa) e depois no sítio da modelo e atriz Marisa Urban.

Ele fez um longo depoimento sobre as torturas que sofreu depois que foi preso pela ditadura, porque tinha amigos envolvidos com organizações clandestinas e colaborava com desenhos em alguns panfletos. E ironiza o regime. Quando ele e Alceu Valença gravaram seu primeiro disco juntos, em 1972, o então ministro Jarbas Passarinho apareceu na imprensa exibindo o disco, o primeiro disco quadrafônico da música brasileira. Depois, quando Ernesto Geisel visitou a Alemanha para discutir energia nuclear, no pacote de presentes que levou para as autoridade estava outro disco do ex-preso Geraldo.

E por aí vai. A carreira de Geraldo me parece uma carreira única na sua geração de compositores nordestinos. Não conheço nenhum outro, naquela faixa, que domine o violão como ele, que tenha sua inventividade de melodia e harmonização. Cria da Bossa Nova na adolescência, ele evoluiu para outros estilos na idade madura, e assimilou influências da música africana, latino-americana, o rock, o tropicalismo e o mais que se seguiu.

A primeira vez que assisti um show de Geraldo foi muitos anos atrás, quando eu era um cineclubista cabeludo em Salvador, e fui vê-lo no Teatro Vila Velha, um show voz e violão. Na hora do bis, ele pediu à platéia que sugerisse uma música. Eu gritei: “Cravo Vermelho!”  E fiquei super orgulhoso quando ele (que nem sabia da minha existência, então!) tocou. É aquela música linda que começa: “Eu sou daqui – mas vim de longe...”




terça-feira, 19 de abril de 2016

4105) O horror cósmico de William Sloane (19.4.2016)



Veio parar às minhas mãos a edição-ônibus de The Rim of Morning (New York: New York Review Books, 2015), que reúne duas novelas de William Sloane, ao que parece suas duas únicas incursões como autor de FC. Os dois livros são To Walk the Night (1937) e The Edge of Running Water (1939). As duas novelas vêm sendo publicadas em conjunto com o título The Rim of Morning desde 1964.

Falarei sobre a primeira delas. To Walk the Night é contada sob a forma de flash-back por Bark Jones, um estudante recém-formado de uma universidade na região de Nova York. O início do livro mostra Bark chegando de carro, à noite, à casa do pai de um grande amigo seu, trazendo na mala um vaso com as cinzas do amigo, morto alguns dias atrás no outro lado do país. A reunião entre Bark e Mr. Lister, o pai do falecido Jerry Lister, é o tempo presente da narrativa, que consiste na narração minuciosa, por parte de Bark, de uma série de acontecimentos estranhos dos últimos dezoito meses, envolvendo os dois amigos recém-saídos da faculdade, um professor que fazia pesquisas obscuras sobre o espaço-tempo, e a misteriosa esposa deste.

Um dos aspectos mais interessantes de flashbacks deste tipo é que, como se trata de uma narração verbal, ela admite de vez em quando (e Sloane faz uso consciente disso) interrupções do flashback para o retorno ao tempo presente, quando os personagens trocam impressões e comentários sobre os fatos passados. Em alguns casos, nas histórias mais pulp fiction, este artifício é usado para fornecer explicações sobre o enredo, explicações que o autor teve dificuldade de encaixar na ação da narrativa e preferiu dar de graça ao leitor usando falas do personagem-narrador.

Não é o que faz Sloane. Os comentários entre Bark e Mr. Lister esclarecem detalhes dos acontecimentos passados mas, de um modo geral, fazem alusões incompletas a outros fatos ou circunstâncias, o que aumenta o mistério e o suspense narrativo. É uma dessas histórias cheias de referências indiretas ao futuro, do tipo “Naquele instante, não percebi a importância deste pequeno detalhe”, ou “Eu não poderia saber as consequências que esse fato aparentemente banal iria ter dias depois”. Bem usado, esse artifício é um gancho poderoso para prender o leitor até que sua curiosidade seja satisfeita.

Não revelarei muita coisa do argumento, para não dar spoilers aos dois ou três leitores que talvez venham um dia a ler o livro. Que vale a pena, sim. A história lembra, por um certo ângulo, o filme Lifeforce (Tobe Hooper, 1985), inspirado no romance de Colin Wilson The Space Vampires (1976), onde a bela Mathilda May encarna um ser alienígena que suga com indiferença a vida dos humanos com que se defronta. Lembra também aqueles contos de Lovecraft onde, depois que algum fato espantoso provoca uma tragédia sem explicação, alguns personagens se reúnem e comparam lembranças, tentam encaixar as peças do quebra-cabeças para entrender o que aconteceu. Também lembra (muito) o Arthur Machen de The Great God Pan (1894), que provavelmente lhe serviu de inspiração.

Uma história lovecraftiana, mas o que assombra, mais do que o enredo, é a prosa límpida e clássica de Sloane, um autor de quem eu nunca tinha ouvido falar. Não lembro de muita gente na FC de 1937 que escrevesse tão bem quanto Sloane neste livro. Lembra a prosa limpa-de-exageros de Heinlein, mas Heinlein só estrearia dez anos depois. E tem um certo tom clássico, talvez mais britânico do que norte-americano, o que me leva a achá-lo muito mais próximo de autores ingleses dos anos 1930 como Aldous Huxley e Olaf Stapledon do que com os grandes nomes da FC norte-americana da época, que seriam talvez E. E. Doc Smith, Stanley Weinbaum, A. Merritt, o próprio Lovecraft...  Todos podem ganhar no quesito imaginação, mas nenhum, me parece, escreveu tão bem, de forma tão clara, expressiva, controlada, quanto Sloane. Se me dissessem que o livro é de hoje, eu poderia acreditar.

Além dos dois romances citados (lerei em breve o segundo), Sloane (1906-1974) publicou duas antologias de FC: Space, Space, Space (1953) e Stories for Tomorrow (1954), sendo esta última a mais elogiada. Foi professor de escrita criativa na Bread Loaf Writer’s Conference durante vinte e cinco anos, e algumas de suas aulas foram reunidas em The Craft of Writing (1983). Durante a maior parte da vida trabalhou com editor na Rutgers University Press.