quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

4029) A lista de Bowie (21.1.2016)



(David Bowie lendo sobre Buster Keaton)

Já disseram (e desmentiram) tudo que eu poderia dizer sobre David Bowie, então não me restou nada a contribuir senão comentar alguns títulos (os que li, ou que tenho para consulta) da lista dos seus 75 livros formadores, reproduzida numa das minhas páginas favoritas, Brain Pickings, de Maria Popova (aqui: http://tinyurl.com/gluf5rj).

A inglesidade de Bowie, sua essência de rapaz londrino, fica mais nítida na minha percepção quando o vejo citando livros como O Outsider (1956) de Colin Wilson, uma das bíblias dos “angry young men” daquela década, e o obscuro romance de Keith Waterhouse, Billy Liar (1959), do qual foi extraído um dos meus dez filmes favoritos, dirigido por John Schlesinger. Uma inglesidade que me parece reforçada por sua valorização de George Orwell (1984, Inside the Whale and Other Essays).

Mas foi o choque com a cultura pop norte-americana que transformou David em Bowie, e este caso de amor de mais de meio século me parece bem refletido quando ele enumera On the road (1957) de Jack Kerouac, A Sangue Frio (1965) de Truman Capote, Lolita (1955) de Nabokov, o póstumo e semi-obscuro A Confederacy of Dunces (1980) de John Kennedy Toole e os ensaios sobre o espírito do rock reunidos por Greil Marcus em Mystery Train (1975). São diferentes faces da América fascinante e transgressiva, a América que se acha representante de todas as Américas, a América ensolarada do rock e a noturna do jazz.

Os interesses de Bowie pela psicologia se refletem na sua escolha de O Eu Dividido de R. D. Laing (que li numa antiga edição da Ed. Vozes) e de The Origins of Consciousness in the Breakdown of the Bicameral Mind (1976) de Julian Jaynes, livro que me foi indicado em outra obra de Colin Wilson. Jaynes estuda o caráter “dividido”, quase esquizoide, da consciência humana, capaz de se ver por dentro e por fora ao mesmo tempo, como se cada um de nós fosse dois, constantemente se vigiando, se interferindo, se ajudando, se sabotando.

Procurei FC e fantástico na lista de Bowie; além de 1984 encontrei obras também inglesíssimas como Nights at the Circus (1984) de Angela Carter e Laranja Mecânica (1962) de Anthony Burgess. E obras cruciais sobre a criação artística: as entrevistas literárias de The Paris Review (ed. Malcolm Cowley), os ensaios de John Cage reunidos em Silence: Lectures and Writing (1961) e o extraordinário The Songlines (1986) de Bruce Chatwin, a descrição de uma Austrália mapeada pela poesia dos aborígines, um continente onde existe uma canção (ou pelo menos uma sextilha) para cada árvore, cada rio, cada monte, cada pedra no caminho.




terça-feira, 19 de janeiro de 2016

4028) "O Despertar da Força" (20.1.2016)



Sempre que testemunho os exageros de devoção de tantos amigos meus pela série Star Wars, repito mentalmente um mantra meio quilométrico no qual lembro a mim mesmo que eles viram o primeiro filme da série na mesma idade virginal com que eu vi Planeta Proibido e A Máquina do Tempo, e que foram os filmes de Lucas que cumpriram para eles a função revelatória, a função estrada-de-Damasco ou estalo-de-Vieira, de lhes arrebatar a imaginação. Vi o início da saga de Luke Skywalker com 27 anos, dos quais dez de cineclubismo e crítica em jornal. Era um pouco mais calejado do que um garoto de dez, e sei a diferença. Na minha frente ninguém fala mal de Fred Wilcox ou de George Pal.

O arrebatamento existiu, por vias transversas. Quando vi Guerra nas Estrelas (esse era o nome; depois arranjaram-lhe um apodo para dar simetria ao índice da série.) eu morava em Salvador e mexia com cinema dia e noite, mas me acreditava o único leitor de FC do Brasil. Só um ou outro amigo com quem dava para comentar um livro ou pedir dicas de filme. E num espaço de tempo muito curto vi o filme de Lucas e o Contatos Imediatos de Spielberg.

Esses dois caras estão há mais de 30 anos cantando um mourão-voltado de sucessos, um bate aqui, o outro responde acolá. Acho Spielberg mais à vontade dirigindo, seus filmes são mais soltos. Os de Lucas, mesmo os bons, nunca mais tiveram aquela soltura de American Graffitti. Mas Star Wars era igual ao cinema mental que fazíamos lendo livrinhos de bolso e pulp magazines antigos. Era futurâmica, era argonauta, era amazing. E era uma aventura pop; não tinha nenhum compromisso com o realismo, desde que fosse possível produzir um efeito melodramático.

O roteiro deste filme novo segue a planta-baixa de várias sequências que deram certo nos anteriores. Há repetição e há inversão de padrões, tanto nas triangulações de personagens quando nas estratégias de destruição do poder inimigo. O filme reconstitui personagens e situações em quantidade bastante para dedilhar o espectador da prima ao bordão. É bonito como alguns personagens envelhecem, e como continuam a ser nada mais do que eles mesmos.

Para corrigir os equivocados filmes anteriores, optou-se pela volta à primeira trilogia, e nesse sentido a preocupação-em- ficar-parecido talvez tenha manietado a imaginação do roteiro. Não há muita trama, há dois MacGuffins (o mapa, o sabre) que parecem o saco-plástico-com-um-milhão-de-reais de tantas telenovelas. Não importa; o que importa é que “the game is afoot”. Louve-se o novo elenco, e louve-se a ousadia dramatúrgica de ceder ao mais básico dos realismos, que é reconhecer que a morte existe.



segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

4027) "Star Wars 7" (19.1.2016)



Que beleza seria o mundo se todo mundo visse no mesmo filme um mesmo filme, hem?  Mas ninguém se banha duas vezes (nem ao mesmo tempo) no mesmo filme. Fui ver Star Wars 7 sem ter lido praticamente nada a respeito. Uma façanha, considerando-se a enxurrada de idéias nas redes sociais. Escapei, e fui ver. Acho que J. J. Abrams e seus roteiristas se banharam longamente nos roteiros anteriores. Desconte-se a obrigação explícita de restaurar o sabor original do produto.

Depois de um clímax militar bem conclusivo, o filme se arremata com um personagem estendendo uma arma para outro, como quem diz: “Vai lutar feito um homem ou vai se deixar melancolizar nessa falésia, feito um poeta romântico?” Todo primeiro segmento de uma trilogia é uma potencial ofensa ao leitor/espectador distraído, que pensava estar pagando por um livro/filme inteiro, daqueles com começo, meio e fim. Lembro do estado de choque no rosto de muitas pessoas ao se acenderem as luzes após A Irmandade do Anel, o primeiro filme da trilogia de Peter Jackson.

Assim como a Odisséia nada mais é do que um cara querendo voltar para casa depois do trabalho, O Despertar da Força é a história de uma encomenda que alguém pede a outra pessoa que entregue a uma terceira. Quem continua sendo um enigma é a tal da Força, cada vez mais uma mistura de telepatia com telequinésia. Ou como “a Voz” das feiticeiras de Duna, mas sem o efeito sonoro correspondente. A voz hipnoticamente obedecida, que proporciona ao filme algumas fugas-do-calabouço na base do liberalismo, como nos velhos seriados. Como dizia Peter Nicholls, são as fugas tipo “com-um-puxão-Jack-rompeu-as-cordas-e-viu-se-livre”. A fuga do personagem acontece por decisão diretorial e dramatúrgica; o ator/atriz obedece até com certo constrangimento.

Abismos, esgrima, perseguições, explosões, prisões, fugas, disfarce, desmascaramento... A saga de Lucas se desenvolve em ziguezague. Não a comparo a Star Trek (que conheço menos). Um show de TV fica anos produzindo e se lapidando. O cinema se guia por outro relógio. Neste filme de Abrams, o diálogo ou é utilitário (para informar ao público algo necessário à trama) ou é o diálogo “snappy”, chinfroso, rápido-no-gatilho, em que nos momentos de maior perigo ou de maior romance um cara (e agora uma mulher) sempre se sai com uma frasezinha mordaz ou blasê.  Cacoete hollywoodiano; marca dágua. Os melhores diálogos do filme são aqueles trechos curtos e surreais, meio Moebius, em que ele diz: “Eu estou com uma carga de antiworms levando a Ranga-Oradesh, mas passei a quadração de elúsia e cheguei aqui em pleno Extrudus. Me arranja quinze abalonakis!”. Ou coisa parecida.





sábado, 16 de janeiro de 2016

4026) O Alien é a gente (17.1.2016)




Desde os dezoito anos eu vejo menções à famosa frase do quadrinista Walt Kelly, o autor da série Pogo: “We met the enemy, and he is us”. “Encontramos o inimigo e ele é nós”. Ou, numa tradução mais coloquial, mais próxima do registro da HQ original: “Saquei quem é o inimigo. É a gente”.

Fui dar uma olhada na história dessa frase e fiquei sabendo que ela surgiu como paródia a outra frase famosa, pronunciada a sério. Em 1913, o Comandante Perry, da marinha norte-americana, assim anunciou aos seus superiores a vitória naval na batalha do Lago Erie: “We have met the enemy, and they are ours” Ou: “Encontramos o inimigo, e eles agora são nossos (=estão em nosso poder).”

A frase de Kelly tem a ver com a criação de alienígenas na ficção científica, porque de cada um deles pode-se dizer: “Ele é a gente”.  Não importa se são lagartiformes ou esféricos, se são mamíferos ou insetóides. Sua aparência pode ser demoníaca como ocorre com os Overlords de Arthur C. Clarke em O Fim da Infância, colossal como o Bihil de O Grande Ser de Peter Randa, quase imaterial como A Nuvem Negra de Fred Hoyle. Pode ser repugnante, incompreensível. No momento em que existe entre eles e nós qualquer interação, qualquer troca de mensagens (mesmo hostis), o Outro nos tocou, nós o tocamos, e sua alteridade se rompeu em parte, porque descobrimos nele alguma coisa de nós mesmos.

Em Alien Encounters (1981) de Mark Rose, ele cita o comentário de Patrick Parrinder, de que “não é possível imaginar algo totalmente alienígena, mas apenas conceber algo que nos seja estranho por efeito de contraste ou de analogia com algo já conhecido.” Isto faz, diz Mark Rose, com que possamos imaginar porcos voadores ou mentes que caminham ou mesmo estrelas inteligentes, mas não somos capazes de imaginar algo que não mantenha relação alguma com o que já conhecemos. Por isso (diz Parrinder) os alienígenas na FC possuem sempre uma dimensão metafórica. Por mais que sejam produtos da imaginação, e por mais desbragada que esta seja, há sempre algo nosso nesse elemento que sintetiza a Estranheza.

Na trilogia Comando Sul, de Jeff Vandermeer (Ed. Intrínseca), esse problema é colocado de uma maneira enigmática, tarkovskyana (a obra evoca tanto Stalker quanto Solaris). Os personagens (e o leitor) se deparam com fenômenos que só podem ser explicados como a interferência de uma inteligência estranha, e cabe a eles concatenar uma série de fatos disparatados nesses fenômenos, durante os quais os humanos da narrativa passam a questionar a sua própria existência, porque depois do Contato as leis físicas do mundo parecem ter deixado de vigorar universalmente.



sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

4025) A palavra assustado (16.1.2016)



“Assustado” era um termo usado nos anos 1950-60 para designar um baile de moças e rapazes em casa de família.  O nome se deve ao fato de que, no início, o costume era fazer a festa de surpresa. Combinava-se tudo antes à revelia da pessoa cuja casa havia sido escolhida para a “invasão”. Cabia às moças levar os salgadinhos, e aos rapazes os refrigerantes e outras bebidas. 

Na hora marcada, o grupo chegava de repente na casa, e em poucos minutos a radiola estava tocando, todos bebiam e dançavam. Como reagiam os donos da casa? Olha, pelo que me lembro, nunca fiquei sabendo de alguma reação hostil. Eram outros tempos – talvez.

Depois, o termo estendeu-se para qualquer festa dançante numa residência, mesmo previamente combinada com os donos da casa.  Era um típo de festa moderninha, urbana. José Laurentino, em Meus Versos Feitos na Roça, diz: 

A prima me olhou sorrindo 
e disse pobre coitado 
já sei que você meu primo 
ainda está atrazado 
é do mato é arigó 
eu não gosto de forró 
nós vamos a um assustado.

Em sua pesquisa A Música Popular no Romance Brasileiro, José Ramos Tinhorão registra várias vezes este termo, como ao transcrever (vol. 1, pag. 131-132) uma cena de Memórias de um Sargento de Milícias de Manoel Antonio de Almeida: 

“Resultado: acaba sendo preso pelo Vidigal como vadio durante uma súcia – como se chamavam na época as pequenas farras improvisadas, estilo assustado...”

Em outro momento, Tinhorão comenta um romance de Clóvis Amorim, de 1934: 

“Era o que já se podia comprovar no capítulo ‘Fuzarca’ desse romance O alambique, ao descrever o escritor uma festa de assustado na casa do personagem Laurentino.” (vol. 2, pag. 208). 

Mais adiante, comentando A marcha de Afonso Schmidt (1941), deixa clara a diferença entre um « assustado » e uma festa de verdade:  "Ao dizer que D. Sinhara chamava o baile em preparação de assustado, o romancista ressalva que ela “dizia assustado por modéstia” (vol. 2, pag. 374).

É um termo datado, palavra cuja existência depende de um contexto de hábitos, depende de certos costumes sociais. Desaparecendo os costumes, seja por que motivo for, desaparece a palavra. 

Nessa intersecção entre dança, bebida e música, outros termos, no que me diz respeito, estão rumando para o desaparecimento, como certos eventos dos clubes sociais: a “manhã de sol” (um conjunto musical tocando à beira da piscina), o “jantar dançante”, a “tertúlia” (o baile do sábado, ou do domingo à noite, não lembro mais; a noite nobre da semana). Como não frequento mais esses clubes, no entanto, talvez esses termos continuem de vento em popa e quem esteja rumo ao ocaso seja eu mesmo.





4024) Os marcianos de Wells (15.1.2016)



(ilustração: Henrique Alvim Corrêa)

Quando H. G. Wells publicou A Guerra dos Mundos (1898), sua invasão alienígena surgiu bem no miolo do espírito do tempo. A Grã-Bretanha, no auge do colonialismo, podia se ver como invasora e como invadida, como a literatura de guerra da época cansou de explorar. Havia uma plausibilidade enorme naquela população pacata do interior que primeiro se aglomera e se abanca para assistir a mais um prodígio merecedor de conversas de “pub”, e logo em seguida dispara espavorida ao ver que aquilo é uma invasão maligna, de criaturas que vieram para matar.

Verossímil porque percutia as teclas de medos mais profundos, medos coletivos e ancestrais. Howard Koch, o homem que roteirizou para Orson Welles a famosa adaptação radiofônica de 1938, se maravilhava ao ver os ouvintes aceitando que dentro de meros 45 minutos avistavam-se em Marte as explosões do disparo das naves, a chegada destas à Terra, o ataque dos marcianos, o extermínio de batalhões inteiros e a queda das principais cidades. Em apenas 45 minutos, e tanta gente acreditou!

É a lição da literatura, do cinema, do próprio rádio: se uma narrativa for sólida e flexível, e se houver continuidade topológica em sua estrutura de causas e efeitos, ela pode ser comprimida ou esticada até limites muito amplos. Só perde a força quanto a compressão força a retirada de elementos essenciais, ou quando a expansão começa a diluir seu movimento interior.

Os marcianos são fisicamente monstruosos, e dominam uma alta tecnologia. São dois clichês do gênero, e Wells os explicou em poucas páginas, como já fizera com a teoria do Tempo como 4a. dimensão em A Máquina do Tempo (1895). Mais do que os clichês, contudo, vale observar os pequenos detalhes que o seu narrador percebe e comenta. A certa altura, trancado num porão que os marcianos examinam à procura de humanos, o narrador diz: “Passou-se uma era inteira de intolerável suspense, e então eu os ouvi mexendo no trinco. Os marcianos entendiam portas!”.

E no entanto esses mesmos marcianos desconhecem a roda. Locomovem-se via estruturas metálicas insetóides, baseadas em sistemas de alavancas e de discos de um material elástico que, como os nossos músculos, se contrai à passagem de corrente elétrica. Esse jogo de aproximações e afastamentos se estende pelo livro inteiro. Inclui a revelação indireta de que os marcianos se alimentam do nosso sangue, e à cena inesquecível na reta final, quando o narrador, percorrendo a Londres devastada e deserta, avista uma máquina marciana imóvel à distância, aproxima-se, e vê os urubus devorando tiras de carne de algo que está lá dentro. Uma imagem que diz tudo sobre nosso parentesco.




quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

4023) A cultura oral (14.1.2016)



(Mia Couto)

Comentando a tradição oral de Moçambique, diz Mia Couto: “As pessoas podem discutir a coisa mais sagrada e mais séria do mundo, economia por exemplo, mas o fazem contando isso com histórias, com pequenos casos, com provérbios, com aquilo que são os conceitos da oralidade. (...) A oralidade não é a ausência do saber da escrita, a oralidade é um outro saber, uma outra maneira de olhar o mundo”.

A cultura oral tem um formato próprio, um espírito próprio. Ela é, por exemplo, uma cultura do concreto, baseada menos em generalizações abstratas e mais em casos, exemplos, anedotas, episódios, lendas, fábulas, provérbios, parábolas. Situações humanas cuja superposição vai cristalizando na mente dos ouvintes uma mensagem embutida. Aquilo que Lévi Strauss em “O Pensamento Selvagem” descrevia como “uma ciência do concreto”. Quando temos aquelas fábulas que se concluem com uma “moral da história”, aquela fórmula sintética que “explica” a história, não acho exagero dizer que a história em si (“A cigarra e a formiga”, “A raposa e as uvas”, etc.) pertence ao espírito da cultura oral, e a “moral da história” à cultura escrita, com o seu tom sintético e generalizante.

Por outro lado, a cultura oral é fluida; não existe “o original” de nada. Tudo é cópia, é versão. (Estamos regressando a esse estágio agora, com a reprodutibilidade instantânea do mundo digital. O mais difícil no mundo virtual é estabelecer a autoria original de algo, ou traçar a precedência de cada versão entre milhares que aparecem.) Cada versão é diferente das outras, cada uma é igualmente crível. É um mundo onde não é possível confrontar duas versões e bater um martelo a respeito da autenticidade de uma e da falsidade da outra. Na cultura oral é como na natureza: duas mangueiras são diferentes mas são ambas mangueiras, uma não é uma mangueira falsa e a outra uma mangueira de verdade. Na cultura oral, o conceito de autoria individual é muito tênue. Ela é apenas a fagulha inicial de alguma coisa cuja autoria é coletiva, social.

A cultura oral exige a presença física. Não há gravadores nem microfones: ela se dissemina a partir da fala, do corpo presente, de boca em boca. É uma atividade presencial. Um verso, uma anedota, uma parábola, tudo isso é criado individualmente, por uma pessoa qualquer, mas depois disso começa a propagação coletiva no espaço e a preservação coletiva no tempo. O verso, a anedota, se incorporam à memória de todos. A presença física do indivíduo, necessária no momento inicial da propagação, se dilui, fica para trás. A comunidade é o que hoje chamaríamos de HD, de “nuvem”, onde tudo fica armazenado e teoricamente disponível.





terça-feira, 12 de janeiro de 2016

4022) Poemas para o Quixote (13.1.2016)



Talvez sejam Dom Quixote e Sancho a dupla de personagens mais famosos da literatura, mais famosos até do que Sherlock Holmes e o dr. Watson, que a eles se assemelham. Desde 1605 e 1615, anos em que foram publicadas as duas partes do romance de Cervantes, viraram referências, símbolos, parâmetros. Em comemoração a esta última data, Carlos Newton Júnior compilou a antologia Poemas para Dom Quixote & Sancho (Recife, Editora UFPE, 2015), onde reúne poemas ou fragmentos de poemas de autores brasileiros e portugueses, do século 19 até nossos dias. Em alguns casos, são apenas menções passageiras numa obra que trata de outro assunto; em outros, a dupla de Cervantes é o foco principal do poema.

Além de vários poetas obscuros (para mim, pelo menos), a antologia traz versos de Machado de Assis, José Saramago, Ivan Junqueira, Cruz e Souza, Augusto Frederico Schmidt, vindo até autores mais recentes como Fausto Wolff, Alexei Bueno e Orides Fontela. De um modo geral, os poemas glosam os temas propostos por Cervantes; não cheguei a ver uma releitura, uma tentativa de dar uma nova versão dos personagens, a não ser no longo poema dramático “O amor de Dulcinéia” (1928) de Menotti del Picchia, que propõe um Sancho sonhador e um Quixote pragmático. Como regra geral, os autores aceitam a formulação de Cervantes e usam os personagens com a reiteração constante dos perfis que já conhecemos.

“De nós dois,” diz Carlos Drummond, “quem o louco verdadeiro? / O que, acordado, sonha doidamente? / O que, mesmo vendado, / vê o real e segue o sonho / de um doido pelas bruxas embruxado?”. A oposição maior entre os dois personagens é a polaridade sonho/não-sonho, glosada por quase todos os poetas. Ferreira Gullar diz: “Chamar-me de louco, ousas! / Loucos são todos, em suma: / uns, loucos por várias cousas, / outros por cousa nenhuma!”.  São, por assim dizer, poemas líricos sobre um tema épico, onde a grandiosidade do real e do sonho transparece em versos como os de Teixeira de Pascoaes: “A vida só é bela na montanha / só é bela no mar ou no deserto...”

Trechos de humor estão presentes, como quando Del Picchia descreve o cavaleiro montado em Rocinante como “um espeto em cima de um estrepe”, ou quando Drummond o faz exclamar: “Amigo Sancho, vai-te à merda!”.  Mas, por patéticos que sejam, os personagens são uma concentração inédita de vida, de sofrimento verdadeiro, de alegrias, de uma agitação fugaz não muito distante da nossa.  E o português João Manuel Simões adverte: “Considera, Sancho irmão / que é pouco, para viver, / todo o tempo que há no mundo. / Contudo, para morrer / (amarga constatação) / basta apenas um segundo.”




segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

4021) Como fugir pelo mato (12.1.2016)



(ilustração: Silas Manhood)

A principal vantagem de fugir pelo mato é não poder mais ser visto depois de uma certa distância. A fuga é mais lenta, mas não importa. Carreira desabalada é para quem foge na rua, na estrada, em campo aberto. No mato, deve-se avançar sem paradas, sem hesitações, andando, desviando-se de obstáculos, ganhando terreno a passos largos, e mantendo esse ritmo durante horas, sem parar.

Procurar espaços onde o avanço pode até ser mais lento, mas em compensação você não possa ser visto. Se for avistado em campo aberto, mesmo correndo você já perdeu a sua maior vantagem. Pise com cuidado. Um caco de vidro, uma pedra pontiaguda, podem ser a diferença entre a vida e a morte, para quem está com um tênis ou sapato leve. Mude de rumo com frequência, mas sem perder de vista a direção de onde veio. Fugir voltando não vai adiantar nada.

Atenção ao latido dos cachorros. Procure afastar-se. Se começarem a ficar mais próximos você vai ter que procurar uma árvore. Oriente-se pela posição do sol, ou da lua e das estrelas, se houver. Não precisa saber nome de constelação ou coisa parecida. Basta estabelecer um ponto de referência e mantê-lo sob controle. De vez em quando pare por meio minuto para escutar Aproveite para respirar melhor. Só olhe para trás nesses momentos.

Lembre-se de que você pode escolher para onde vai, e seus perseguidores é que têm a obrigação de descobrir para onde você foi.  Ao encontrar uma cerca, melhor do que pular e seguir em frente é pular e seguir ao longo dela. O mesmo quanto a um rio. Se achar uma estrada ou caminho-de-roçado, por onde passam os burros e as motos, vá por ele, mas parando e escutando sempre: passa gente ali.

Nunca imagine que já se livrou dos seus perseguidores. Também não fique pensando que eles estão a um minuto de alcançá-lo. Pense assim: “Eles estão vindo na direção certa, mas têm que avançar mais devagar do que eu. Enquanto eu continuar avançando, tenho chances.” Se avistar uma rodovia, vá na direção dela, mas mantenha distância: seus perseguidores podem estar vindo por carro. Acompanhe-a de longe até avistar um posto de gasolina, ou outro tipo de parada onde você pode pegar carona clandestina num caminhão ou outro veículo, sem ser visto, e ir para bem longe.

Fugir pelo mato é uma arte cultivada há milênios, que já salvou a vida de milhões de pessoas. A inexistência de tratados didáticos a respeito mostra o quanto a nossa sociedade está preparada para as regras, não para as exceções, e nos momentos cruciais em que tudo é uma questão de vida ou morte ficamos dependendo dessa memória ancestral gravada em nosso DNA. Fica aqui esta modesta contribuição. Nunca se sabe.




sábado, 9 de janeiro de 2016

4020) A Língua Portuguesa (10.1.2016)



Existe uma oposição, que acho equivocada, entre linguagem coloquial e norma culta. Oposição que no Brasil (talvez em outros lugares também) ganhou um viés de marca de classe. Ser de classe superior é ser capaz de usar uma linguagem culta, gramaticalmente impecável, para demonstrar estudo. Gramática, ortografia, pronúncia e vocabulário são crachás necessários na subida da pirâmide social. É bom, é ruim, é certo, é errado? Não sei, o debate está em aberto, sempre acho melhor saber das coisas do que ignorar. Não se organiza essas coisas por decreto, e o fato é que aqui funciona assim.

Vem daí esse sintoma linguístico das pessoas usarem palavras de fora da linguagem comum quando querem alegar superioridade social e moral sobre os outros. Quando um político precisa afirmar em público que é um homem honesto, estas palavras (tão humanas, tão honestas!) não lhe bastam. Dizer isso qualquer pé-rapado pode! Ele precisa dizer que é um “cidadão de reputação ilibada”, e com esse vocabulário acredita estar colocando em xeque pelo menos dois terços dos que o criticam. Falar assim é como dizer: “Eu estou de terno e gravata. E você? Jeans e havaianas? Rá-rá-rá.”

A história da língua brasileira é a história de uma progressiva desternoegravatização da fala, do abandono de uma língua engessada, protocolar, em favor de uma língua mais flexível, solta, aberta para novidades, capaz de reproduzir o sentimento e a personalidade do falante em cada momento. Me espanta saber que ainda hoje existe quem ache errado usar pronome oblíquo em começo de frase. E impressiona constatar que cem anos atrás Lima Barreto já escrevia como escrevemos hoje, e que as academias literárias de hoje estão repletas de seguidores de Coelho Neto - no que Coelho Neto, grande escritor, tinha de pior: a pompa ornamental da prosa.

Isto não quer dizer que todo mundo deva falar como os personagens de Adoniran Barbosa ou de Patativa do Assaré, mas que uma língua madura e saudável é capaz de acolher essas variantes sem que seu núcleo desmorone. E o núcleo da língua não é o juridiquês insuportável do editorialismo político e classista de nossa imprensa. O núcleo é Camões e é Machado, é o Padre Vieira e o cachaceiro Gregório de Matos, é Oswald de Andrade e seu aparente antípoda Fernando Pessoa. E são também (olha o pulo de susto!) os letristas da música popular, que muitas vezes dominam a gramática e o vernáculo melhor do que muitos medalhões. Melhor do que muitos beletristas que se dão ares mas não sobreviveriam na palavra impressa sem a proteção invisível da força-tarefa de revisores que caminha atrás deles, limpando os erros que deixam cair pelo caminho.