terça-feira, 22 de dezembro de 2015

4004) Linha de chamar verso (23.12.2015)



(Nei Lopes)

No trabalho da gente, seja ele qual for, a gente cria às vezes um dicionário pessoal para indicar coisas sem nome definido. Na poesia de estrofes rimadas e metrificadas, eu sempre usei, por conta própria, dois conceitos relativos ao improviso com batuque. Tinha o “refrão de chamar verso” e a “linha de chamar verso”.

O refrão de chamar verso é aquele velho esquema de canto com palmas: “Chora bananeira / bananeira chora / chora bananeira / meu amor já foi embora.” Aí alguém dá um passo pro meio da roda, ou (se numa mesa) ergue o braço pedindo a vez, e manda uma quadrinha improvisada, ao fim da qual todos voltam a cantar juntos: “Chora bananeira... (etc)”.

Já a “linha de chamar verso” é como se fosse um mote de uma linha só, mas ao invés de aparecer no fim da estrofe aparece no começo, e o cantor improvisa o restante. A linha-de-chamar-verso mais antiga que conheço é “Lá em cima daquela serra...”  Quantos milhares de quadrinhas não já terão sido escritas ou improvisadas pegando a partir de um início tão promissor?

Em Partido Alto – Samba de Bamba (Pallas, 2005) de Nei Lopes há uma porção de termos para essas linhas. À pág. 107, Nei Lopes explica que muitas das quadras cantadas em partidos altos, seja de memória ou de improviso, se desenvolvem “a partir de um pé-de-cantiga, isto é, de um verso inicial padronizado, bastante conhecido.”  À pág. 139, ele amplia essa definição: “Grande parte das trovas, quadras e outros tipos de estrofes da poesia popular se inicia por versos padronizados através dos quais se propõe e estabelece o tema a ser trovado e cantado. A esses versos-matrizes costuma-se chamar ‘trampolins’, ‘muletas’ (...), ‘pés-de-cantigas’, no dizer de Joaquim Ribeiro (...), ou ‘versos feitos’, segundo Mário de Andrade.” Ou seja, é o mesmo princípio do mote na Cantoria nordestina – só que vem no começo, e não no fim.

Nei Lopes lista alguns desses começos, e mostra com que frequência eles iniciam estrofes em nossa música popular: “Vou-me embora, vou-me embora”, “Minha mãe me deu dinheiro” (no Nordeste usa-se tipo assim: “Minha mãe me dê dinheiro / preu comprar um cinturão / o punhal e a cartucheira / pra brigar mais Lampião”), “Alecrim na beira d’água”, “No tempo em que eu cantava”, “Dizem que cachaça mata”, “Minha mãe sempre me disse”... Eu lembraria outros como “Quando eu vim da minha terra” (resgatado por Paulo Vanzolini em sua “Capoeira do Arnaldo”), “Vou falar pra todo mundo”, etc.

Esse mote inicial (ao invés de mote final) é mais um parentesco entre o partido alto e a cantoria, mostrando que os dois compartilham as mesmas raízes e o mesmo espírito, apenas evoluíram por caminhos diferentes.




segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

4003) Como odiar Lovecraft (22.12.2015)



(ilustração: Selin Arisoy)

H. P. Lovecraft foi um dos escritores mais influentes da literatura de horror, que ele misturou com ficção científica para produzir uma espécie de “horror cósmico”. Ele apregoava ser “um homem do século 18 perdido no insuportável século 20”. Criado com certo luxo até os 14 anos, depois teve que se adaptar a uma vida de penúria financeira, doenças na família, um casamento fugaz, daqueles que nunca poderiam ter dado certo. Era em essência um solteirão calado, cheio de venetas, que gostava de dar longos passeios e de ler alfarrábios antigos. E escrevia longas cartas para colegas escritores que, em muitos casos, nunca veio a conhecer.

A cabeça de Lovecraft, esculpida por Gahan Wilson (famoso pelos seus cartuns de humor negro) tornou-se a materialização do World Fantasy Award, um dos principais troféus anuais da literatura fantástica. A lista de quem já ganhou o troféu é enorme, e inclui autores como Fritz Leiber, Gene Wolfe, Tim Powers, Peter Straub e Jack Vance.

Acontece que Lovecraft tinha uma visão muito peculiar a respeito de outras raças, como os negros e os judeus. Seu aristocratismo pomposo exigia esse tipo de esnobismo, e ele parece ter acreditado, como tantos intelectuais brasileiros da mesma época, que a mistura de raças empobreceria ambas. Vai daí que escritores atuais, informados das idéias racistas de HPL, questionaram o uso de sua imagem no troféu. Como se dissessem: “Esse cara é o modelo que devemos seguir?”.

A substituição da estátua foi anunciada na entrega dos prêmios de 2015. Uma reação imediata foi a de S. T. Joshi, biógrafo de Lovecraft, que devolveu os troféus que já tinha ganho e disse ser tudo aquilo “uma concessão covarde ao pior tipo de atitude politicamente correta”. Eu mesmo fiquei pensando: Quem tem razão? Quem acha que HPL por ser grande escritor já está anistiado? Ou quem acha que não, que preconceitos racistas devem ser sempre denunciados e punidos, mesmo que postumamente?

Leio no fanzine eletrônico Ansible (#341, dezembro 2015) o comentário de Dave Langford: “De qualquer maneira, trata-se do adeus do que é largamente considerado o prêmio mais feio concedido na longa e irregular carreira dos prêmios para literatura de gênero.” A visão de Lovecraft sobre a humanidade é que era feia – ele era um misantropo sem generosidade com os que considerava “inferiores”. Apesar dessa deformação, foi também (como tantas vezes acontece) um grande escritor, no sentido de que produziu uma visão do mundo única, vívida, através de imagens que revelam esse mundo ao leitor. O erro talvez tenha sido terem colado sua imagem pessoal a um prêmio que deveria ser algo neutro, sem viés individualista.




sábado, 19 de dezembro de 2015

4002) Seis lendas urbanas (20.12.2015)



(ilustração: Eleonore Weil)

O Homem Sem Cabeça de Badrajupur, na Índia, é uma entidade misteriosa que aparece nas festas e peregrinações populares. É visto seguindo os cortejos, movimentando-se como uma pessoa normal, mas sua cabeça é cortada à altura do pescoço. As pessoas que o tocam são percorridas por uma espécie de choque elétrico suave e têm a sensação de que sua própria cabeça está começando a desaparecer. Ele se aproveita disto para dançar numa clareira da multidão.

Os Ladrões da Lua. Num povoado do Chile é hábito das famílias sentarem na rua nas noites de lua cheia e inventarem histórias que se passam nessa lua sobre suas cabeças. Inventaram a história de um povoado na lua, assaltado por bandidos perigosos. Inventavam cada ladrão mais perigoso do que o outro. Preocupavam-se tanto com as famílias da lua que deixavam suas portas e janelas mal trancadas, para bom proveito dos meliantes de cá.

O Tonel Rolante do Sêrro (MG). Em noites muito silenciosas ouve-se pelas ruas da cidade o ruído de um tonel de metal, oco, sendo empurrado por cima das pedras do calçamento, às vezes descendo uma ladeira com um clangor infernal, às vezes escalando os paralelepípedos devagar e sempre, como que empurrado por mãos vigorosas. Abrem-se as janelas e ninguém vê nada. Fantasma auditivo.

O Brinquedo do Miúdo é um episódio misterioso que se dá em Coimbra e no Algarve. Um miúdo (um menino) aborda um transeunte numa rua escura e pede que devolva o seu brinquedo, que (segundo ele) a pessoa traz no bolso. Em todos os relatos a pessoa mete a mão no bolso e de fato tira de lá o objeto que o menino lhe pedira: uma gaita, um par de óculos, um confeito, um versinho manuscrito, uma bola de gude, um isqueiro, um soco-inglês... E todas as vezes a criança recebe, agradece e some para sempre.

O Carro Que Não Pega. Uma lenda frequente na Ucrânia, na Rússia, na Letônia, e, curiosamente, também no Estado de Sergipe. Um carro fantasma acorda de repente uma vizinhança inteira, com aquele ruído insano, engasgado, de uma ignição que não pega de jeito nenhum, sendo coagida por uma pessoa que não vai desistir com facilidade. Um engasgo torturante, que até parece vai redundar numa explosão, mas não, fica só taxiando. Para quem dirige, é o mesmo que injetar querosene na veia.

A Ponte Fantasma da Kawa-kahihi, no Havaí, é uma ponte que muda de aspecto: é de madeira, ou de pedra em estilo antigo, ou de ferro fundido, de mármore cheio de ornatos... Ela aparece unindo as margens de um rio ou de um desfiladeiro. É uma ponte sempre diferente, mas tão real quanto qualquer outra até o momento em que o viandante encontra-se lá pela metade, quando então ela some no ar.




4001) A roda gigante (19.12.2015)



Ele estava passando uns dias naquele lugar, a serviço. Era uma cidade pequena mas tinha cinema, tinha um teatro com cartazes anunciando show musicais, e tinha um parque de diversões. Chamar aquilo disso era força de expressão. Tudo bastante precário. Brinquedos enormes, mas muito velhos e desgastados. Na segunda noite ele entrou, pensando somente em fazer algumas fotos com o celular, porque havia uns cartazes e uns ângulos interessantes. Comprou ingresso aqui, cerveja ali, puxou conversa. Na bilheteria viu a morena, a quem chamou brincando de Luluza, ao recolher o troco, e ouviu dela uma resposta que o fez dar uma gargalhada e olhar naqueles olhos pela primeira vez.

Voltou na noite seguinte (o trabalho o ocupava das dez até o anoitecer) e retomou o papo com ela numa brecha entre o fim de uma fila e o começo da próxima. Perguntou: “Parquezinho esquisito, hem?  Por que não botam luzes coloridas, como todo mundo?” Ela de olhos baixos, arrumando notas por ordem de valor: “O dono gosta assim. Tudo preto e branco.”  Ele falou: “Que coisa, hem. E você? Gosta mais de preto e branco ou de colorido?”  Para ele era só um puxa-conversa pra não deixar a peteca cair, manter o timing da simpatia. Teria pegado mal para ela?  Que disse: “Eu danço conforme a música, amorzinho,”. Plantou as mãos na bancada, ergueu os olhos para ele, e abriu um sorriso dentifrício. “Eu sou a esposa dele, e danço a música que ele tocar.” “Oooops,” disse ele, gargalhando, “não se ofenda. Não estou achando feio. Torna-se até uma coisa bastante cult.”

Foi quando ele viu o homem descer da roda gigante, e entrar cambaleando num pequeno chalé de madeira ali perto, passando a menos de cinco metros da bilheteria onde estavam. “Lá vai ele,” disse ela. E depois: “Deixou de beber. Agora ele dá uma volta na roda, desce tonto, e escreve.” “Escreve o que?”  “Romance. Vai dizer que nunca ouviu falar de...” Ele anotou o nome, soletradamente. “E como deixaram ele fazer a cabana dele aqui dentro?”, perguntou, e ela: “Ele é o dono do parque. Ninguém vive de literatura neste país. Quando sobrevive, pode pegar uma cerva e comemorar.” Ele entendeu “uma serva”, gargalhou, fez sinal de positivo, legal.

A outra reportagem, a que o levara ali, foi feita, mas logo em seguida ele entregou as fotos e a história (meio dramatizada, e com certa licença poética) do “Eremita High-Tech”. Não, não houve intenção, houve oportunismo. Ele não podia saber que o eremita pularia do alto da roda apenas três dias depois da reportagem.  Deixou a coisa marinando 48 horas e foi apresentar os pêsames à viúva, perguntar se precisava de alguma coisa. “Música, amorzinho, música”.




quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

4000) Problemas de escritor (18.12.2015)



Carlos Drummond de Andrade publicou em 1967, pela Editora do Autor (Rio), o curioso livro Uma Pedra no Meio do Caminho – Biografia de um Poema. Durante anos o poeta arquivou tudo que saía sobre seu poeminha da pedra, fosse a que pretexto fosse, e foi separando tudo em pastas. Os títulos de alguns capítulos dão uma idéia da variedade do material: “Reação pelo ridículo”, “Muita gente irritada”, “Popularidade, mesmo negativa”, “Os amigos da pedra”, “E os inimigos”, etc. Pena que seja meio difícil de obter, e não sei se foi reeditado.

Poucos poemas daquele século provocaram reações tão esperneantes. A pedra de Drummond tirou do sério muitos críticos. Deixaram-se perturbar demais pelo que o próprio autor considerava um poema interessante mas menor, quase uma brincadeira, por que estaria produzindo tanta raiva?

O momento auto-ajuda é você perceber que nem sempre a sua obra que vai ter impacto é sua epopéia de dois mil versos ou sua trilogia que engloba seis gêneros. Às vezes basta um pequeno escândalo estético desse tipo para fazer uma fama. Drummond impressiona pelo modo aparentemente tranquilo e equilibrado como descreve, transcreve e comenta o que disseram a seu respeito. Ele tem o ar kafkeano de um entomólogo examinando a si mesmo. Nesse livro ele republica também o poema em prosa “O Enigma” (Correio da Manhã, 1947; depois em “Novos poemas”, 1946-7), uma clara resposta ao poema da pedra, invertendo apenas seu ponto de vista narrativo.

O bombardeio massacrante dos articulistas que não gostaram da “pedra” é atenuado em parte pelos que a traduziram, a adaptaram, ou lhe deram variadas utilidades a título de homenagem. O poema mais famoso de Drummond virou um meme do seu tempo. Um meme cuja viralidade durou várias décadas e ainda não se esgotou de todo, porque hoje ou amanhã um cartunista do Norte ou um diretor de teatro do Sul vai lançar mão dele para produzir um efeito qualquer.

A pedra no caminho viralizou na administração pública, no esporte, na moda, no rádio; foi vítima de insinuações políticas e era citada nas propagandas. Virou, a julgar pelas centenas de notas e de matérias transcritas por Drummond, uma dessas coisas que você usa sem saber quem inventou e sem ligar a mínima para isso. Poucos poetas que tiveram inclinações modernistas deixaram de fazer algum tipo de paródia, citação ou homenagem a ele. Como se diz da massa de bolo e de alguns clubes de futebol (“quanto mais apanham mais crescem”), Drummond apanhou, certamente preferiria não ter que passar por aquilo, mas como não podia mesmo mudar nada parece que decidiu se divertir um pouco e dar risada de quem dele ria.


quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

3999) Os estrangeiros (17.12.2015)




Anthony Boucher é um nome familiar a quem conhece a literatura policial e de FC norte-americana de 50 anos atrás. Ele foi uma figura decisiva nos dois gêneros, como autor, editor, crítico, resenhador. Era um escritor católico, com formação latina que lhe permitia traduzir do espanhol e do português para o inglês. Philip K. Dick foi grato a ele pela vida inteira, pelo incentivo que recebeu. Foi ele quem traduziu e publicou (no Mistério Magazine de Ellery Queen) o primeiro conto de Jorge Luís Borges a sair nos EUA.

Entre 1942 e 1947, Boucher manteve uma coluna periódica no San Francisco Chronicle.  Em um artigo de 5 de maio de 1946, ele comenta duas traduções recentes para o inglês: O Homem que Via o Trem Passar de Georges Simenon e O Estrangeiro de Albert Camus (ambos traduzidos por Stuart Gilbert). Diz ele:

“Trata-se em essência da mesma história: a de um homem que não consegue aceitar em seu íntimo as convenções usuais da sociedade, mas apenas deixa-se levar por elas até que um assassinato, cometido quase por acaso, lhe dá a chance de explodir a moldura social”.  Boucher descreve Camus como “um jovem romancista com respeitável estatura filosófica e estética, que é uma das duas figuras-chave do curioso movimento contemporâneo francês do Existencialismo”. O ano era 1946 – ainda não era o Camus do Prêmio Nobel; era apenas mais um jovem escritor botando as unhas de fora.

Boucher lembra: “Camus se dedica à criação de um personagem extraordinário, um caixa de banco na Argélia cujas reações (ou ausência delas) apenas não são aquelas que a sociedade exige. Comentaristas do Existencialismo parecem dar a esse personagem um valor filosófico para além da literatura; mas ao nível do romance propriamente dito, é um retrato espantosamente bem executado de um indiferentista em estado puro.”

De fato, o jeitão à deriva do “estrangeiro” Meursault está somente um degrau acima de um indiferentista total, no caso o escrivão Bartleby, de Melville, que reagia a todos os pedidos para que fizesse não importa o que, dizendo: “Eu preferiria não fazer isto”. Meursault é meio que uma versão pop disso, porque tem namorada, toma cerveja com amigos, se preocupa com isso e com aquilo... Mas é como se a vida dele fosse ligeiramente irreal, sem propósito.

Boucher lembra que Camus trabalhou como leitor na editora Gallimard, que publicou o livro de Simenon em 1938. Não é exagero supor que Camus o leu e que foi um dos policiais “hardboiled” que ele diz ter querido emular quando escreveu O Estrangeiro, quatro anos depois: os livros (provavelmente) de Hammett e Chandler... Talvez se possa colocar Simenon nessa lista.



terça-feira, 15 de dezembro de 2015

3998) "Retrato do Artista Quando Jovem Cão" (16.12.2015)




(Dylan Thomas, jovem)


Quando um cara faz um livro de memórias espera-se que ele comece do começo, passe pelo meio e acabe no fim. Claro que há talentos mais ambiciosos que querem ir além disto, com resultados variados. As memórias de Bob Dylan recolhidas em Crônicas, vol. 1 (2004) começam com a chegada dele em Nova York, fazem um ótimo retrato dos músicos boêmios do Greenwich Village de onde ele se catapultou para o sucesso, e depois começam a ricochetear para a frente e para trás, sem cronologia aparente, apenas uma coisa meio por associação de idéias. O que não é nada mau, se as idéias em si valerem a pena. Ele não diz um “A” sobre a criação dos seus grandes discos. Conta apenas os bastidores de estúdio de Oh, Mercy, álbum talvez imerecedor de tal prioridade.

Por que falei em Dylan? Acho que porque o Dylan que me lembrou esse aí foi o poeta Dylan Thomas com seu Portrait of the Artist as a Young Dog (1940). O título já é uma gréia com o Portrait of the Artist as a Young Man (1916) de Joyce, onde aparece o famoso personagem Stephen Dedalus. Um crítico observa que apesar disso é com Dublinenses (1914), do mesmo Joyce, que o Portrait de Thomas se assemelha. Tendo em mente, claro, que estamos comparando um galês e um irlandês. 

São dez histórias curtas que vão desde retratos da vida em família de um Thomas bem garoto até um Thomas jovem-adulto, trabalhando em redação, fumando, indo aos bordéis. Algumas histórias são narradas por ele na primeira pessoa, outras vezes é na terceira pessoa, referindo-se apenas a “o rapaz”, “o jovem”.  Em momento algum pode-se pensar que isto é uma autobiografia no sentido acadêmico. É uma reescritura livre de memórias compartilhadas mas não unânimes.

Quando Bob Dylan lançou em livro suas crônicas, publiquei uma intitulada “Bob Dylan sabe escrever”, porque achei o livro muito bem escrito, no sentido de que parecia escrito pela mesma pessoa que fez aquelas letras, deu aquelas entrevistas, etc.  Bem, Dylan Thomas também sabe, e os seus contos são até fáceis de ler, comparados aos seus poemas densos, alusivos, cheios de imagens surpreendentes. Mas o olho que capta aqueles parágrafos é o mesmo olho do poema.

São as duas moças que se enfurecem ao descobrir que têm o mesmo namorado, o jovem repórter começando a frequentar os inferninhos onde vão os jornalistas mais velhos, os dois garotos de mochila passando um fim de semana num lugar distante, os escritores amadores discutindo seus manuscritos... O olho do jovem Dylan Thomas era um cão farejador, que não perdia um detalhe, conferia tudo, e só trazia aos pés do leitor aqueles que deixavam implícita toda a verdade do resto.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

3997) Noel Rosa (15.12.2015)




(Noel Rosa, por Thiago Bertoni)


Pois é, Noel Rosa faz 105 anos. Noel e Adoniran Barbosa (ambos de 1910) falavam de um tipo de gente muito específico, o sujeito de certo nível que pelas contingências da vida está precisando dormir num banco de praça, porque foi desalojado do muquifo que habitava de graça. É um momento zen da vida humana. A vida é uma coisa diferente para quem só tinha o direito de se concentrar em duas coisas: o que eu vou comer hoje, e onde vou dormir a próxima noite.

“Eu, Mato Grosso e o Joca” são personagens de um que poderiam estar disputando o banco de praça de “O orvalho vem caindo”. Eu entendia que umas daquelas histórias se passavam em São Paulo, outras no Rio. Mas eu achava que conhecia os ambientes, de tanto ver as chanchadas no cinema. Tinha uma vaga idéia dos principais pontos de referência turística no Rio. Eu era um menino. Então vi numa revista Brasil Enigmista um artigo de alguém destacando e comentando versos de Noel Rosa. Reconheci algumas canções que volta e meia eram ouvidas no rádio. Tudo aquilo era dele.

Noel tem virtudes variadas como letrista, mas eu queria bater na tecla de sempre, a da letra que conta uma historinha. Ou letras que são praticamente um cartum em animação, como “Conversa de Botequim”, “Com que roupa”, “Três apitos”... São gifs animados em várias partes. Não é uma história com começo, meio e fim; é uma sucessão de flashes com parcial passagem de tempo, mais em uns, menos em outros. Flashes poéticos que às vezes contam mais sobre um pedaço da história humana do que um livro inteiro.

O freguês do botequim de Noel é como o Riobaldo de Rosa, uma voz incessante, reiterante, minudente e disposta a refletir em voz alta cada luz que lhe mandar a vida. Ele fala com o garçom como o jagunço falava com “o doutor”. Aliás, essa letra parece mais com o monólogo rosiano Meu tio, o Iauaretê, com Cacá Carvalho. Uma peça com apenas dois atores, um só falando, o outro só escutando, quase sem se mexer. No fim, um deles mata o outro. (No botequim o garçom não fala, mas escapa.)

Noel tinha uma riqueza de rimas que lhe permitia dizer uma coisa inesperada sem perder o fio da meada. Usava em suas letras modos de dizer da época, do momento, como qualquer compositor sempre fez.  Para Noel (imagino) bastava dinheiro no bolso, namoro engatando, uma turma boa com quem sair... Nesse ponto se parece a Castro Alves. O número de obras que cada um deixou é muito grande. O poeta baiano morreu com 24 anos; o compositor carioca com 26.  Me pergunto às vezes as obras que teríamos se Noel Rosa, nascido no mesmo ano que Adoniran Barbosa, tivesse vivido até a mesma idade dele.




sábado, 12 de dezembro de 2015

3996) O eu lírico (13.12.2015)




(ilustração: Mana Neyestani)


Existe uma discussão em curso, Brasil afora, sobre as pessoas de origem humilde que conseguem cursar uma universidade, mesmo sendo o que se chama de analfabetos funcionais. Sabem ler, sim. Mas aprenderam apenas a tarefa mecânica de identificar palavras. Não sabem o que aquilo quer dizer. Podem, se estimuladas, dar uma definição passável de cada uma daquelas palavras que rabiscam. Mas se alguém lhes perguntar o que significa um mero parágrafo de jornal sobre assunto que não dominam, terão balbuciantes dificuldades. Diante de um parágrafo da literatura ou da ensaística, naufragarão.

Isso é uma vergonha? De jeito nenhum. É apenas uma erro de programação (ou uma programação propositalmente defeituosa, dirão os mais paranóicos). Nossa civilização precisa de gente assim, que sabe copiar coisas escritas sem entendê-las. Isso deve ter começado desde os tempos cuneiformes, um poeta analfabeto ditando, e um escriba bronco mas competente cravando as runas na argila. Exatidão no registro era mais importante do que entendimento próprio. Hoje não. Exatidão de registro existe a três por dois. O que falta são mentes com mais do que os dois neurônios necessários à alfabetização.

Isso não implica em zombar de quem não sabe ler, mesmo os supostos leitores sofisticados. Há gente com graduação universitária que atribui a Shakespeare ou a Nelson Rodrigues os sentimentos de uma frase dita por um personagem: porque não têm hábito de ir ao teatro, não entendem o jogo de idéias do teatro, e acham que toda frase escrita por um dramaturgo é como um editorial de jornal, um documento partidário, uma carta de intenções registrada em cartório.

As pessoas atacam uma atriz no supermercado porque não gostam da personagem dela na novela do horário nobre. As pessoas entendem mal o que leem. As pessoas têm a mais tênue percepção possível do mundo de teias-de-aranha narrativas em que vivem enredadas - pela TV, pelas revistas, pelos websaites de fofocas. As pessoas comuns (acho eu) têm uma idéia ainda mais esgarçada do que é o mundo real do que um adepto da Teoria Quântica.

As pessoas muitas vezes não percebem que um texto de um desconhecido (mesmo um desconhecido que seja famoso para milhões de pessoas) está ligado a outros contextos e envolve outros sentidos e comenta outros comentários. Enfim. É difícil pegar um jornalista finlandês recém-chegado ao Brasil e tentar explicar para ele nossos 500 anos de história, e a influência que eles têm na atual conjuntura política. Pois bem, o jornalista finlandês é cada um de nós, brasileiros. Não sabemos da missa um terço. O fato de a gente achar que sabe ler não significa que a gente entenda.




sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

3995) Noite de reencontro (12.12.2015)



As portas do bar se abrem para o frio da calçada, o asfalto molhado, as rajadas de água que os táxis projetam quando passam rasgando por cima das poças. Meu grupo sai pela porta aos empurrões, aos apertões, ao cambaleios, estamos eufóricos por estar juntos, quase todos falando ao mesmo tempo. Esse aqui, por exemplo, é Anexarzinho. É marceneiro, e não dirige carro. Tem pernas curtas; é aquilo que chamam de fração imprópria, vai ver que isso pesou. Não sabe ligar um Fusca. Por isso pra onde a rapaziada vai ele tem que arrumar lugar no carro de alguém.

O que é esse grupo falador com quem saio abraçado e meio ébrio? Somos uma turma da terceira idade, gostamos da confraternização e da boa música. Em nosso tempo, fazíamos um samba moderno. Nossa linha era o samba intimista, o samba existencial, com laivos de Cartola e de Nelson Cavaquinho, só que composto na estrutura de um samba-enredo, quer dizer, com uma estrutura de muitas partes, cada qual com letra e melodia próprias, como aqueles velhos sambas primordiais. Várias partes, um refrão recorrente. Em sambas-enredos, mesmo os fakes como os nossos, o material tem que ser variado. Samba de rua tem que ser feito pensando que aquele troço vai ser cantado durante horas, por alguém a pé, no meio da rua, à frente de cinco mil pessoas cantando junto.

Começam as despedidas, os abraços, as trocas de cartões, as admoestações finais, as gargalhadas cheias de bonomia. Uma banda onde a gente tocou por dez anos, trinta anos atrás. É como uma visita que chegou, tornou-se insuportável, mas voltou a ser do-coração depois que foi embora. Aí está Babosa, o vocalista, astro maior das quarentonas ainda no páreo. Agora usa colete. Vilto da Lanternagem é aquele, o do sete-cordas. O pandeiro, o gordinho, é o Gordo Eliézer, dublê de serralheiro e filho de santo.

Como sempre, os dois mais velhos estão afastados dos demais, mergulhados em altas discussões em voz baixa. Dinaldo Granja, o batera mais confiável do lado de cá do Beco das Garrafas, e o cavaquinho Diélson, irmão dele. Dois quengos finos, finos. Músicos de mão cheia, faziam direção musical, faziam tudo, cuidavam das finanças da banda. Ainda hoje, todos os direitos autorais e conexos nos chegam pelas mãos deles dois, pela razão-social que eles criaram. Ninguém guarda mágoas de ninguém, certo? A banda acabou, a vida continua, cada qual hoje tem seu ganha-pão. Podemos considerar uma vitória dos bons sentimentos o fato de ainda estarmos fazendo esse teatro de que somos amigos só porque estes paparazzi daqui desta rua, que Deus os conserve, são os únicos que continuam acreditando em nós.