terça-feira, 10 de novembro de 2015

3968) O renascer da barbárie (11.11.2015)



“Ninguém, mesmo nos andares superiores, parecia perceber o contraste entre os convivas elegantemente vestidos e o estado de degradação do prédio. Ao longo dos corredores juncados de sacos de lixo não recolhidos, entre as lixeiras entupidas e os elevadores vandalizados, caminhavam homens trajando “dinner jackets”, e mulheres que erguiam a barra dos longos vestidos de noite ao caminhar por entre os cacos de garrafas partidas. O perfume das caras loções de após a barba se misturava com o odor das cozinhas repletas de lixo.”

A cena é de High Rise (1975), o romance em que J. G. Ballard descreve um condomínio de luxo de 2 mil moradores regredindo à selvageria quando os sistemas de funcionamento (luz, água, ar condicionado, elevadores, etc.) entram em colapso. Profissionais liberais londrinos, sofisticados e cheios de dinheiro, transformam-se em selvagens, promovendo saques, estupros, espancamentos coletivos, numa regressão à vida tribal onde vigora a lei do clã mais forte ou mais bem armado, em depredações que se estendem pelo interior do prédio gigantesco.

O surto de selvageria descrito por Ballard é uma brusca aproximação de contrários que coexistem à distância em nossa sociedade. Qualquer grande cidade tem condomínios de luxo, tem guerras de gangs, tem moradores de rua, mas cada um no seu lugar, no seu setor. Ballard os transforma uns nos outros no interior do prédio de 40 andares e esse choque produz a fagulha do fantástico. Moradores sofisticados de penthouses londrinas se comportam como os personagens de Laranja Mecânica ou de Guerreiros da Noite.

Também não há como não perceber a influência de Luís Buñuel neste romance onde a selvageria dos burgueses enclausurados na mansão de O Anjo Exterminador toma conta desses milhares de psicólogos, esportistas, investidores na Bolsa, médicos, advogados. O edifício, agora, é uma espécie de Alphaville paulistana que vai se degradando em cortiço, em monturo, em campo de batalha.

“Sentados em círculo à luz das velas, aqueles neurocirurgiões, catedráticos de universidade e investidores no mercado financeiro demonstravam todo o seu talento para a intriga e a sobrevivência, exercitado por anos de serviço na indústria, no comércio e na vida universitária”. A explosão de barbarismo não é apenas o ressurgimento do troglodita ansioso por “segurança, comida e sexo”.  A civilização, por mais tecnológica e racional que pareça, está a serviço dos instintos básicos do troglodita, que é capaz de brotar como um Hulk furioso todas as vezes que o verniz das convenções sociais e da segurança econômica começa a se descascar. 



3967) Arrastão em Alphaville (10.11.2015)





Este ano marca o 40º. aniversário de lançamento de High Rise (1975), um dos romances mais perturbadores do inglês J. G. Ballard. O que não é pouco, visto se tratar do autor de livros como Crash (filmado por David Cronenberg, com James Spader). Ballard é um crítico cruel da sociedade tecnoburocrática, que ele vê como uma violentação constante da natureza humana.  Os impulsos animais são cobertos com uma capa de civilização consumista, escrava da mecanização, embrutecida mental e emocionalmente através da publicidade, da política, dos códigos de conduta.

High Rise descreve três meses na existência de um enorme condomínio residencial para profissionais de alto nível, na periferia de Londres. Nesse prédio de 40 andares, com 20 poços de elevador, encontram-se todas as instalações indispensáveis à vida civilizada moderna: escolas infantis, bancos, supermercados, piscinas, salões de beleza, quadras de esporte, salões de festa. E aos poucos se forma entre os dois mil moradores uma pirâmide social com os mais ricos nos andares superiores (e elevadores exclusivos) e os mais pobres nos de baixo. Tensões sociais começam a brotar, ao mesmo tempo em que a manutenção falha e os conflitos tornam-se brigas declaradas.

Ballard obtém o efeito do fantástico através da escalada gradual do absurdo no comportamento desses executivos, astros de TV, psicanalistas, publicitários, arquitetos, etc. Eles entram espontaneamente em conflito quando elevadores, lixeiras e outras instalações começam a falhar. Das discussões com insultos verbais passam às agressões físicas, aos espancamentos, aos crimes.  Eletricidade e abastecimento de água entram em colapso, e o prédio se transforma numa imensa lixeira onde clãs de profissionais liberais, empunhando facas e bastões, invadem os apartamentos dos andares rivais, estuprando suas mulheres e saqueando suas despensas.

De dia, os moradores vestem suas roupas elegantes, ligam seus carros de luxo e vão à cidade trabalhar. À noite voltam para o prédio e se dedicam a embriagar-se em orgias ruidosas.  Praticam arrastões ao longo dos corredores, uns subindo rumo ao topo como uma forma de conquista de um poder simbólico, outros descendo aos andares de baixo para dar uma lição aos inferiores.

Delirante e provocador em 1975, o livro, a cada década que passa fica parecendo mais uma profecia terrível sobre o que pode acontecer na vida real, se forem cortados alguns fios muito retesados que mantêm erguida e esticada a lona do circo civilizatório. O vôo acelerado rumo ao futuro high-tech pode nos levar num salto brusco para o tempo das cavernas. Um primata com sede de sangue empunhando uma chave inglesa. 


sábado, 7 de novembro de 2015

3966) Nove bilhetes (8.11.2015)



“Mamãe. Tou indo morar com Dilermando. Ele é honesto e trabalhador, sim, pouco me importa se é feio. Falei falei ninguém quis me ouvir. Papai parece uma parede e você só faz reclamar. Apois reclame agora. Sua ex-filha, Cilene.”

“Dr. Barros: Neste envelope o sr. vai encontrar prints de postagens recentes de sua lavra, numa rede social. Acreditei porque vi. Convoquei o Conselho para uma reunião extraordinária hoje às 14 horas e sua presença é exigida. A rescisão do seu contrato lhe será entregue à saída da reunião, se não tiver uma boa explicação para isto. Duvido que tenha. Arnaldo Penske.”

“Fala Betão. Tudo em cima meu irmãozinho. Três coisa. Primeiro o conserto do carro, tu vai ter que rachar comigo, blz? O véio virou fera. Bora agilizar. Segundo a festa das meninas do salão de manicure vai ser na quinta em vez da sexta, no Bar do Macuco mesmo. Terceiro: tu é muito feio, cara, tu só tem nariz e queixo kkkkkk. Teu bróder Peninha.”

“Carminha, mulher, tu visse o que a infitete da Zezé tá falando de tu no feice? Eu fosse tu chamava João pegava o carro e ia lá na budega dela e bachava o cacete. Prela aprender. Sua amiga fiel, Dora.”

“Prof. Nivaldo: Registro aqui meu agradecimento pelos seus gentis comentários ao capítulo da tese. Cabe-me esclarecer que a escassez de referências bibliográficas é provisória e deve-se ao acúmulo de afazeres, tanto de ordem acadêmica quanto pessoal, que tem caracterizado minha vida nos meses mais recentes. Muito grata, sua (esperançosa) orientanda, Rosimeire.”

“Sr. Campista: Esta é a quarta vez que venho aqui, toco e ninguém atende. Minhas mensagens e telefonemas o senhor não responde. Lamento mas começo a ver nesta atitude um indício de má vontade, quando não de má fé. Tomarei as providências legais cabíveis. Ariosvaldo.”

“Caro Heitor: Obrigado pelo envio dos três volumes de sua trilogia ‘A Lenda do Unicórnio – Um Épico Céltico-Bretão’. Infelizmente a obra não se enquadra em nossa linha editorial, pois a Conteúdo é especializada em ciências jurídicas e sociais. Desejamos boa sorte nas próximas tentativas! Atenciosamente, Magali Seixas, Coordenadora Editorial.”

 “Márcia: Esqueça aquilo de ontem. Foi bobagem minha. Bebida faz dessas coisas. Você e Camilo são meus maiores amigos. Vamos dar uma risada e esquecer tudo. Atenda o telefone, por favor. Não vou te encher o saco. Meus sentimentos são problema meu. Vamos, atenda. Paulo.”

“Môzinho, deixei salada e frango na geladeira, é só esquentar e jantar, depois bote tudo na pia. Assim que acabar o culto eu volto pra lhe cobrir de beijos! Lhe amo muito. Sua Helô. PS: Não precisa esquentar a salada viu? Amo amo amo.”




3965) Notas sobre videogames (7.11.2015)



Uma grande parte do público, quando ouve falar em videogame, pensa que existem apenas games de guerra, ação, aventura, violência. Games de explosões, massacres, tiroteios, bombardeios, serial killers, zumbis, etc.  São numerosos, sim.  Tantos quanto os filmes análogos no cinema. Mas, tal como no cinema, existem games de todo tipo. Games de mistério, games de gerenciamento (administrar uma cidade, um império, etc.), games de enigmas e quebra-cabeças. Achar que todo videogame é de violência é uma visão tão limitada quanto achar que toda a MPB consiste em samba.

Os games resgatam uma forma perdida de experiência dramática, uma espécie de inocência onde se entra num mundo sem saber nada dele, e é preciso aprender como funciona, é preciso assimilar tudo na base da tentativa-e-erro. E é o jogador (ao contrário do espectador de cinema) quem toma todas as decisões.

A maioria dos games se alterna entre trechos expositivos, os “filminhos” onde fragmentos da história são contadas, sem interferência do jogador, e os trechos interativos, os trechos de jogo propriamente dito. Mais ou menos como um teatro onde cenas decoradas e reproduzidas viessem intercaladas com cenas de improviso envolvendo a platéia.

O desenvolvimento dos jogos foi maciçamente realizado por engenheiros que criavam a mecânica (reprodução e movimento das imagens) mas não tinham nenhuma formação dramatúrgica. Não estavam preocupados com a arte narrativa, ou com a psicologia dos personagens, ou originalidade nos enredos. Seu objetivo era reproduzir movimentos plausíveis, melhorar as texturas de pele ou de roupa, as trajetórias dos objetos, etc.

Para Tom Bissell (“Extra Lives”) os games começaram como um desafio para engenheiros, viraram um negócio milionário ao se tornarem capazes de produzir aventuras interativas, e somente depois passaram a ter ambições mais “artísticas”.

O game, mais do que qualquer forma de arte narrativa, promove um conflito entre a autonomia do autor e a autonomia do jogador. A tensão entre uma obra fechada, onde tudo está previsto de antemão, e uma obra aberta, onde a cada vez que o game é jogado pode ocorrer algo inteiramente novo.

Peter Molyneux afirmou certa vez: “Fazer um videogame é como se alguém fizesse um filme onde 90% do tempo fosse consumido preparando os cenários e 10% filmando as cenas com os atores”. Tom Bissell afirmou que os games foram em vinte anos das inscrições rupestres ao teto da Capela Sistina. Molyneux completou dizendo que não só isso: antes de pintar o teto da Capela, os games tiveram que inventar a arquitetura, cortar as pedras e fabricar as tintas, tudo ao mesmo tempo.




quinta-feira, 5 de novembro de 2015

3964) Caminhos do cinema (6.11.2015)



Muitos anos atrás, Michelangelo Antonioni observava que cinema e televisão estavam ficando cada vez mais parecidos. As salas e telas de cinema ficavam cada vez menores, e as telas da TV (e os correspondentes aparatos sonoros) cada vez maiores. 

Note-se que ele disse isso em 1985, muito antes das nossas TVs digitais de não-sei-quantas polegadas, dos nossos poderosos “home-theatres”, das nossas salinhas especiais para 60 espectadores. Isso era num tempo em que um cinema mediano tinha mil lugares.

A essência do cinema (seja lá o que isto for) muda a cada ano, a cada década. A experiência cinematográfica da minha adolescência não tem nada a ver com a da adolescência dos meus filhos. 

Lumière disse que o cinema era uma invenção sem futuro; Thomas Edison achou que o disco fonográfico iria servir para o estudo de idiomas. Inventores, em geral, estão examinando sua invenção quase tocando-a com a ponta do nariz, e não fazem a menor idéia das consequências que aquilo pode ter.

Meio século atrás, nos EUA, filmes estreavam em circuitos secundários, periféricos, e os produtores iam avaliando a reação do público e direcionando aquele título rumo aos mercadores mais promissores. Hoje, vigora a cultura do “first week-end”: toda uma verba gigantesca, e a logística correspondente, se volta para o fim-de-semana em que o filme será exibido simultaneamente em 3 mil ou 4 mil salas, no país inteiro. 

É um super investimento de risco. Um filme que não vai bem nesses três dias de lançamento raramente se recupera. É tudo ou nada. Em breve inventarão “cinemas sensíveis”, capazes de aferir a resposta emocional do público ao longo da sessão e editar o filme (suprimindo ou acrescentando cenas específicas) durante a própria projeção.

Nos subúrbios do império, a coisa é diferente. Em breve teremos em nossos smartphones não apenas os aplicativos de câmera mas também os de ilha de edição. Será possível filmar e editar o filme no celular, e depois distribuí-lo via WhatsApp, email, inbox do Facebook, o escambau. Curta-metragens serão distribuídos quase como spam, para milhares de telefones ao mesmo tempo.

A cultura do “mash-up”, da reedição e remontagem de material alheio pré-existente, vai se difundir cada vez mais. O uso de webcam e de transmissões ao vivo tipo “Mídia Ninja” vai fornecer um gigantesco copião em crescimento constante e acelerado; por trás dos que filmam virão os que editam, e esse gigantesco acervo de material produzirá filmes coletivos de todo tipo, desde cinema-verdade até colagem-dadaísta. 

"Se for algo já presente na cultura, for tecnicamente possível e não for economicamente inviável, provavelmente irá acontecer."




3963) As mulheres na FC (5.11.2015)




("James Tiptree, Jr.")

Em suas entrevistas, Ursula K. Le Guin diz envergonhar-se de um momento no início da carreira quando, para publicar em revistas de FC quase exclusivamente masculinas, usou o nome “U. K. LeGuin” para que os leitores pensassem que ela era um homem, e lessem seus contos. A FC norte-americana foi sempre um domínio de nerds anglo-saxões; eu mesmo me surpreendo até hoje com o fato de alguém como Isaac Asimov ter feito sucesso sem precisar de pseudônimo.

Ursula não foi a única, coitada, a usar esse joão-sem-braço das iniciais para esconder seu gênero. Lembro de C. L. Moore (1911-1987), autora das aventuras espaciais de Northwest Smith, entre as quais o clássico “Shambleau” (1933). Esposa e parceira de Henry Kuttner, Catherine L. Moore disfarçou sua identidade feminina através de várias colaborações com o marido e pseudônimos como “Lawrence O’Donnell” e “Lewis Padgett”. 

Algo parecido se deu com a carreira de Leigh Brackett (1915-1978), a formidável roteirista de filmes como “Rio Bravo” (1958), “The Long Goodbye” (1973) e “O Império Contra-Ataca” (1980). O prenome unissex certamente a ajudou em sua carreira literária. Rola uma história de que Howard Hawks leu um livro dela e mandou contratá-la para trabalhar no roteiro de “The Big Sleep” (1946, adaptando Raymond Chandler), pensando que se tratava de um homem.

O caso mais notório é o de Alice Sheldon (1915-1987), que usou o pseudônimo de “James Tiptree Jr.” para entrar no mercado de FC e conseguiu manter esse segredo durante dez anos. Durante esse período alguns críticos notaram um certo viés feminino na ideologia de seus contos, que produziram um tremendo impacto entre os leitores, sendo ainda hoje um exemplo de tratamento diferenciado das questões de gênero na FC.  Em 1977 Gardner Dozois publicou uma extensa análise de sua obra, ainda acreditando tratar-se de um homem. Talvez o disfarce tenha sido necessário à autora por questões pessoais: ela foi agente da CIA entre 1952-1955, e depois teve uma carreira acadêmica (era doutora em Psicologia Experimental) que preferia manter à parte de sua atividade literária.

Exemplos como estes (certamente há outros) são uma ilustração a mais das dificuldades que uma mulher encontra ao disputar vaga num mercado onde os homens predominam, não somente como leitores, mas também como editores, ou seja, as pessoas que decidem o que vai ser publicado. Hoje, mais de 40 anos depois, nomes disfarçados dessa forma são desnecessários, mas as recentes polêmicas envolvendo o Prêmio Hugo (onde se debateu ferozmente a legitimidade de uma FC escrita por “minorias”) mostra que a briga continua.



quarta-feira, 4 de novembro de 2015

3962) Ursula Le Guin (4.1.2015)



Recentemente os leitores e críticos andaram comemorando os 86 anos de Ursula K. LeGuin, para muita gente “a maior escritora de FC de todos os tempos”. Esses títulos são meio bombásticos e pomposos, não fazem muito o meu estilo, mas se eu tivesse que escolher apenas uma autora mulher no gênero escolheria ela, que escreveu Os Despossuídos (1974), A Mão Esquerda da Escuridão (1969), O Nome do Mundo é Floresta (1976), The Lathe of Heaven (1971) – cada qual melhor do que o outro, além de dezenas de contos brilhantes e da famosa série de fantasia (desta não li muita coisa) de Terramar (“Earthsea”, vários volumes).

LeGuin é uma pessoa tranquila e sensata (tenho a excelente tradução inglesa dela para o Tao Te King – o Livro do Caminho Perfeito de Lao Tsé), uma argumentadora implacável, uma feminista ponderada e cheia de argumentos. Filha de um antropólogo, ela trouxe para a FC da época em que estreou um conhecimento refinado de ciências sociais e psicologia, o que deu aos seus livros uma textura humana ausente de grande parte da FC da época, mesmo a de melhor qualidade.

Le Guin é um dos grandes nomes de uma linha de FC chamada justamente de “humanista”, por ser uma literatura onde a tecnologia está presente de forma crucial, mas em segundo plano. O primeiro plano é ocupado pelos conflitos e aventuras de indivíduos em situações sociais muito claras, e muitas vezes com profundas discussões e questionamentos sobre questões de gênero, raça, ideologia, classe social, etc. Seria (para usar a expressão brincalhona atual) uma “ficção científica de Humanas”, e envolve autores como ela, Kim Stanley Robinson, Frank Herbert, Ray Bradbury, Samuel R. Delany, Walter M Miller e muitos outros.

Sem querer insistir demais nessa divisão (pois na verdade em literatura tudo se mistura, o humano e o científico nunca estão ausentes de qualquer obra de FC), é importante ter em mente que muitos leitores (falo de leitores adultos, maduros, com conhecimento razoável de literatura mas zero em FC) desgostam do gênero apenas porque pegaram para ler obras famosas e elogiadas mas que não correspondem ao seu temperamento. Um leitor fanático por tecnologia e especulações científicas pode achar um livro de Kim S. Robinson sem graça, e o mesmo pode ocorrer com um leitor de perfil mais humanista que se depare com uma obra de Arthur C. Clarke. Em todo caso, a obra de Le Guin, ainda lúcida, ativa e escrevente aos 86 anos, tem espessura e substância para merecer o respeito de qualquer leitor que se interesse de fato não só pelo destino da humanidade no cosmos mas pelo destino de um grupo de pessoas dentro da casa onde moram.




segunda-feira, 2 de novembro de 2015

3961) Leandro High Tech (3.11.2015)



Dias atrás participei da VI Feira Literária de Boqueirão (Flibo), o principal evento literário da Paraíba, realizado à força de idealismo e de trabalho voluntário numa cidade pequena e sem muitos recursos. Um exemplo para cidades maiores, no Brasil inteiro, que vivem jogando dinheiro fora e queixando-se de que não têm verbas para a cultura. Dividi uma mesa com Astier Basílio, o qual apresentou um notável trabalho de pesquisa sobre a presença de Leandro Gomes de Barros (o homenageado da VI Flibo) na imprensa do seu tempo. Fiquei surpreendido ao ver como Leandro (1865-1918) era uma figura conhecida no Recife da época, publicando poemas nos jornais e sendo citado nas colunas como um tipo popular, pitoresco, de temperamento satírico e bem-humorado, ainda que (segundo os jornalistas) sua poesia fosse rude e tosca, sem obedecer aos “padrões literários” da época. Pior para os padrões da época, porque ninguém os conhece hoje, e a poesia de Leandro está mais viva do que nunca.

Leandro foi um exemplo notável do encontro daquilo que os escritores da ficção científica cyberpunk usaram como definição de seu gênero: “High tech + low life”. Alta tecnologia e baixa classe social. O computador nas mãos de um favelado. Um gravador nas mãos de um índio. Um piano europeu nas mãos de um negro de Nova Orleans. Um microfone e uma caixa de som nas mãos de um cantor de hip-hop do Harlem. As rádios e gravadoras de discos do Rio de Janeiro nas mãos de um sanfoneiro do Exu. A confluência inevitável entre a cultura dos despossuídos e os produtos da transbordante cornucópia de uma tecnologia que produz maravilha atrás de maravilha e as derrama no mercado sem atentar para suas possíveis consequências, e até mesmo sem meios para impedi-las. (Veja-se como a cópia digital afundou a indústria fonográfica.)

No caso de Leandro, foi o encontro das modestas prensas tipográficas manuais, tornadas obsoletas pela invenção do linotipo, com a poesia oral que se agigantou a partir da Serra do Teixeira por volta de 1850 – uma poesia composta no papel mas transmitida de boca em boca, de memória em memória, ou nos famosos “versos de traslado”, copiados com capricho em folhas de papel almaço por pessoas de boa caligrafia.

Leandro cresceu nessa cultura, e ao se transferir para o Recife usou as prensas tipográficas agora obsoletas (mas que para ele eram “alta tecnologia”) para criar o cordel nordestino ao modelo do cordel português, mas já um cordel distinto em temática, em ambientação, em fraseado, em sonoridade. Cada vez que uma tecnologia nova chega às mãos do Povo, os resultados são imprevisíveis, inevitáveis e irreversíveis. Viva Leandro!



domingo, 1 de novembro de 2015

3960) Contracapa de podcast (1.11.2015)

(desenhos de Guillermo del Toro)

&  a vida é muito curta para que nela possa caber uma missão cumprida  

&  depois que a gente aprende a desligar a TV, começa o curso de aprender a não ligar de novo  

&  o corpo é o cafetão da mente, e bota a pobrezinha em cada roubada  

&  pra que tanto livro de colorir, se de acordo com a gramática eu não coloro  

&  a verdade é que tem certos autógrafos que a gente só pede para ser gentil  

&  o governo produz marginais para ter um pretexto para produzir mais polícia  

&  um dia de um velho vale um mês de um jovem  

&  a vida da gente deveria ser tão cheia de realizações que a morte fosse recebida com alívio  

&  o artista precisa ter em mente o tempo todo que está sendo observado por 10% de especialistas e 90% de leigos absolutos  

&  tudo que você escuta significa o mundo tentando lhe dizer alguma coisa  

&  a cidade vive cheia de luzes que só iluminam a si mesmas  

&  mais ensina uma queda do que dez conselhos 

&  a arte de bombardear cidades para reinar sobre ruínas  

&  o transatlântico afunda enquanto a tripulação se engalfinha e a primeira classe saracoteia no convés  

&  um planeta que tivesse várias luas desenvolveria facilmente esquemas complexos de presságios e superstições  

&  estou com uma casa pronta, mas só quero colocá-la num lugar que pareça um Cariri à beira-mar  

&  um vingador mascarado que executa banqueiros com uma bala de ouro  

&  o inferno dos tímidos é uma festa num apartamento pequeno cheio de gente desconhecida  

&  ela é daquele tipo de mulher que somente homem inteligente acha bonita  

&  palavras escritas servem para formatar a mente de quem as decifra e interpreta  

&  meus antepassados talvez se envergonhassem de mim, mas mesmo assim me orgulho deles  

&  em muitos guarda-bagagens deve haver malas não-reclamadas, contendo bombas que falharam sem explodir  

&  um sebo onde livros aleatórios estariam marcados: “este é de graça, pode levar ao caixa”  

&  romance qualquer um escreve, quero ver é inventar um provérbio que fique  

&  não há coisa mais patética do que um patife falando de ética  

&  todas as vezes que botei a mão no fogo por alguém nem o fogo escapou  

&  a melhor coisa da praia é olhar para ela de dentro do ar condicionado  

&  o Facebook é uma torre-de-marfim cheia de altofalantes  

&  um paraquedista caindo em parafuso e se encravando chão adentro  

&  toda xenofobia é seletiva  

&  um escritor cuida das palavras da língua do mesmo jeito que um caixa de banco cuida do dinheiro alheio  

&  estudos comprovam que o mundo está cheio de indivíduos que sobrevivem ao próprio caráter  

&  quando adormecemos a mente joga a âncora no fundo de si mesma e começa a captar tremores   &




sábado, 31 de outubro de 2015

3959) A lei do linchamento (31.10.2015)



Bob Dylan falava sobre os cartões-postais com fotos de linchamentos sendo postos à venda, e virando itens de colecionadores. Naquele tempo, principalmente lá no Sul dos EUA, linchavam-se negros e migrantes, que depois eram fotografados em encenações grotescas. Outras fotos são meros retratos crus dos corpos pendentes, como a “estranha fruta” cantada por Nina Simone. E as pessoas colecionavam isso. Por que? Bem, primeiro porque gostavam, segundo porque não era proibido, e terceiro porque colecionador é alguém que tem que colecionar alguma coisa, então eles escolheram aquilo.

“As pessoas passaram a achar que têm mais direitos do que realmente têm,” disse José de Souza Martins (“Revista e”, Sesc-SP); só que “a relação social, no dia a dia, é uma negociação permanente.”  Repito que nada no mundo se compara à intensidade com que um rico exerce seus direitos e um pobre os seus deveres. E o direito de vida ou morte é a distopização final.

Tremam, míseros mortais, diante de qualquer grupo de pessoas com certeza absoluta de uma total impunidade e do mais inviolável segredo! O mundo está cheio delas. Existem, sim, e agem como se fossem a mais mefistofélica Camorra dos Bórgias.  De situações assim estão cheios os techno-thrillers cyber-conspiracionistas. Elites intocáveis de homens de terno preto decolando em helicópteros e falando em cifras. Os superóis do lumpen. A mitologia do século corporativo criou tais poderes, e a impenitência desses poderes, para que um bilhão de zés-ninguém se catapultem como super-homens, e tomara que algum saiba aterrissar.

“O linchamento,” diz o professor da USP, “se desenrola em um quadro mental de absoluta loucura, é uma loucura súbita. (...) As pessoas não sabem o que estão fazendo, e não é que elas estejam fingindo.”  Isso deve valer para esses linchamentos brutais de rua, uma pessoa sendo atacada por um grupo, e os dois acompanhados por uma multidão. Às vezes se verifica, depois, que foi tudo meio por acaso, um ladrãozete passou correndo e deu azar de ser pegado, somente isso. “Olhe, doutor, minha vida pra mim é tudo, mas eu sei que pra sociedade a minha vida não vale nada, então vida nenhuma pode valer mais do que a minha,” disse um que por enquanto escapou.

Já escrevi aqui sobre os postais do linchamento (aqui: http://tinyurl.com/kcfhpop). Em “Desolation Row”, “... os postais de linchamento estão à venda, o salão de beleza está cheio de marujos, e o circo chegou na cidade”. O circo vislumbrado por Dylan nessas livres-associações não é o de Chaplin nem o de Fellini, pode ser algo como o Circo do Dr. Lao, que presenteava tanto a vida quanto a morte aos seus espectadores.