sábado, 15 de agosto de 2015

3894) 7 batidas de pino (16.8.2015)



Basílio Pimentel, 44 anos, bêbado até as orelhas, ao entrar num botequim e bradar palavrões insultuosos, dizendo que ali não tinha macho merecedor de levar uma surra dele, e vendo levantar-se de um canto obscuro um marombado de porte schwarzeneggeriano revoltado com a provocação e prometendo primeiro amaciar o bife de porrada pra depois comê-lo: “Vige Maria, o pacote veio maior que a encomenda!”.

Waluza Starr, 47 anos, divorciada duas vezes e separada quatro, dançarina e atriz, depois de noites insones pensando no teste de elenco da novela e decorando um texto minimalista demais pro seu gosto, e depois de fazer o teste, pegar suas coisas, ao se despedir do assistente de direção que coordenou tudo: “Olha, hoje não é meu dia, meu bem, me deixa fora dessa, melhor deixar quieto.”

Vavá de Joaninha, 27 anos, operador de telemarketing, cearense, chegado ao Rio de Janeiro algumas meras semanas atrás, entrando tarde da noite na bodega de Carlindo, que já estava com uma das portas arriada, encostando no balcão, depois de pedir “uma Antártica estupidamente gelada” e ouvir de Carlindo que só tem Brahma morna: “Então traz duas!”.

João Pedro Amarante, 48 anos, advogado, leitor do Diário Oficial, evangélico recente, numa reunião de família a portas fechadas, para a qual foi convocado em caráter de urgência urgentíssima, ao ser botado no canto-da-parede pela esposa gélida e pelos três furibundos irmãos dela, todos exibindo provas fotográficas e documentais de sua ida a um motel com uma piriguete: “Sim, traí, mas não gozei.”

José Carlos de Souza, 32 anos, magrelo, barbeiro, envergando o uniforme branco da categoria, fumando um cigarro em frente ao Salão Excelsior, à espera do primeiro cliente do dia, depois de assobiar para uma morenona reboculosa que passava e vê-la dar meia-volta e partir furiosa em sua direção: “Oxente, dona, eu tava chamando um táxi.”

Tarcísio Alves Gama, 31 anos, bêbado aos tombos, apreendido na madruga por uma viatura da PM, depois de declarar em alto e bom som ser sobrinho do Major Peçanha da Aeronáutica, que mora ali na esquina, ao que os PMs tocam à campainha e o major emerge de pijama para dizer que nunca o viu mais gordo: “Acho que me atrapalhei, meu tio é o Major Montenegro, que mora em Macaé”.

Aluísio Malta Torreão, 28 anos, militante estudantil, ateu convicto, livre pensador, defensor do estado laico, leitor de Emil Cioran e de Charles Bukowski, escutador de Slayer e de Dead Kennedys, no primeiro jantar na casa dos pais da namorada, ao ser interpelado pela futura sogra sobre os seus planos para o futuro: “Dona Amarílis, o futuro a Deus pertence”.




sexta-feira, 14 de agosto de 2015

3893) "Textos para nada" (15.8.2015)




Publicados em 1955, os Textes Pour Rien de Samuel Beckett foram escritos entre 1950 e 1952, e fazem parte de um período em que o irlandês estava se dedicando a afrouxar pacientemente todos os parafusos da prosa de ficção, para ver se ela se sustentava sem eles. Beckett é um autor versátil (romance, poesia, teatro, conto, ensaio, cinema) e onde meteu a mão pareceu resolvido a descobrir algum hipotético “grau zero da escritura”, um patamar mínimo de narração que não fosse a mentira convencionalmente construída em parceria por escritores e leitores ao longo de séculos.

A edição brasileira (Cosac Naify, 2015, tradução de Eloisa Araújo Ribeiro) traz 13 fragmentos sem título, escritos na primeira pessoa, numa espécie de monólogo interior muito diverso do praticado por James Joyce. O texto de Beckett cria uma dessas situações em que acompanhamos os pensamentos e as sensações de um narrador mas nunca sabemos quem é, o que faz, onde está, o que está acontecendo (se é o caso). Um fluxo de associações de idéias que de vez em quando é cortado pelo flash rapidíssimo de um dado concreto, como relâmpago na noite:

“..não posso pedir nada. Nada além da cabeça e das duas pernas, ou uma só, no meio, iria embora saltitando. Ou nada além da cabeça, bem redonda, bem lisa, sem precisão de acabamentos, rolaria, seguiria as ladeiras, quase um puro espírito, não, não daria certo, daqui tudo sobe, é preciso ter perna, ou o equivalente, alguns anéis talvez, contrácteis, com isso se vai longe. Partir da frente da Casa Duggan, numa manhã primaveril de chuva e sol, na incerteza de poder chegar até a noite, o que há de errado aí?”.

Há uma destruição da narrativa, mas a sintaxe fica intacta, embora a separação por vírgula signifique muitas vezes um recomeço do zero, uma volta ao ponto de partida (que ninguém lembra mais qual foi). O posfácio de Lívia Bueloni Gonçalves lembra a amizade entre Joyce e Beckett, mas afirma que “...enquanto Joyce ‘tendia para a onisciência e a onipotência enquanto artista’, ele lidava com a impotência e a ignorância.”  A cada livro publicado Beckett se afastava mais de Joyce, raspando toda sua exuberância barroca, tendendo a um vocabulário ascético e à narração de pequenos episódios absurdistas contados em tom trágico, como gifs animados repetindo-se perpetuamente. Sua prosa funde a comédia do cinema mudo e o pessimismo filosófico pós-guerra; foi a época em que ele começou a escrever em francês, porque usar uma língua estrangeira o obrigava a pensar muito cada palavrinha, cada frase, sem ceder à tentação da prosa fácil onde apenas regurgitamos o já lido e o já escutado.




3892) Fantasia BR (14.8.2015)



Uma literatura de fantasia heróica, como a fantasia de língua inglesa tão lida no Brasil (a trilogia de Tolkien, a série “Narnia” de C. S. Lewis, as “Crônicas de Gelo e Fogo” de George R. R. Martin) envolve uma identificação do autor e do leitor com um passado heróico pressuposto, carecendo ou não de verdade histórica. A fantasia não obedece à História, mas extrai dela sua verossimilhança. E ganha muito quando autor e leitor têm um passado em comum, ainda que seja um passado meramente mitológico, imaginário.

Uma fantasia brasileira pode recorrer às nossas fontes portuguesas e ibéricas. Afinal, se os norte-americanos de hoje podem escrever sobre os celtas, por que não poderíamos nós sobre os iberos? (Atenção: a pronúncia é “i-BÉ-ros”, e não “íberos”). É algo que literariamente é tão nosso quanto dos nossos primos portugueses.

A Escola de Sagres, por exemplo, foi a NASA do século 15, do tempo das grandes descobertas. Era o estado-da-arte da astronomia voltada para a navegação. Ariano Suassuna (Almanaque Armorial, ed. Carlos Newton Júnior, Ed. José Olympio) tem um ensaio fascinante (“Olavo Bilac e Fernando Pessoa: uma presença brasileira em Mensagem?”) sobre dois poemas a respeito da Escola de Sagres, um de Olavo Bilac e outro de Pessoa. Ariano sugere, com argumentos convincentes, que os poemas de Pessoa sobre o Infante D. Henrique e a Escola, no único livro que publicou sob seu nome (Mensagem, 1934)  foram influenciados pelo brasileiro.

Uma literatura brasileira de Fantasia Heróica ou de FC Retroativa (ambientada no passado) pode recorrer com proveito a esse banco-de-dados.  Autores de língua inglesa usam constantemente a mitologia arturiana, céltica, bretã, etc. Primeiro porque faz parte de sua herança cultural e todo mundo tem o direito de se sentir pertencente a alguma tradição épica e heróica. Segundo,  porque sua própria literatura já cultiva isso há séculos, e há um know-how adquirido (e uma familiaridade com nomes, temas e situações, da parte do leitor) que não é de se jogar fora.


Se um autor brasileiro usa a fantasia ibérica, a pegada heróico-mitológica é a mesma – toda mitologia é feita para ativar os mesmos arquétipos através de um panteão diferente.  Mas acima de tudo ela dá a esse autor lendas e episódios específicos, paisagens específicas, correspondências reais específicas da História e da Geografia, que para um leitor de língua inglesa (a maioria desses autores nacionais sonha com o mercado estrangeiro, e tem todo o direito de sonhar) pode significar um leve estranhamento inicial mas depois entraria como um trunfo que a fantasia arturiana não tem, o trunfo do novo num mercado saturado.



quinta-feira, 13 de agosto de 2015

3890) O som e o sentido (12.8.2015)




Num dos livros de Alice, Lewis Carroll faz uma inversão de um provérbio inglês, que diz: “Take care of the pence, and the pounds will take care of themselves”. Refere-se à moeda inglesa (pence/pounds) e poderia entre nós ser adaptado como: “Cuide bem dos centavos, e os reais cuidarão de si mesmos”. 

Em Alice, Carroll faz um curioso paralelo entre dinheiro e linguagem, quando a Duquesa diz à menina: “Take care of the sense, and the sounds will take care of themselves”. Ou seja: “Cuide bem do sentido, e os sons cuidarão de si mesmos”.

Não me parece um conselho útil, mesmo sendo eu um fã do criador do Jabberwock. Minha visão da literatura é o contrário: cuide bem dos sons das palavras, porque o sentido delas cuidará de si mesmo. Muitos escritores (famosos, inclusive) escrevem sem música nas frases, sem sonoridade nas palavras, preocupados apenas com o “conteúdo”. 

É como se quisessem transmitir uma mensagem, e não ligassem se o papel é sujo, a caneta falhada, a caligrafia um ó e a ortografia pior ainda.

Sempre é possível encontrar um meio-termo conciliando som e sentido, até porque os dois têm a mesma importância. Escritores que vêm da área científica passaram a vida sendo treinados a ligar apenas para o sentido, a exprimir da maneira mais exata possível o que estão pensando; a desenvolver raciocínios verbais, argumentações, exemplos, generalizações, etc.  

Querem contar suas histórias com uma “prosa invisível” como dizia Isaac Asimov (ao qual eu responderia que prosa invisível é página em branco). Daí, os autores de origem acadêmica muitas vezes escrevem mal. Não porque sejam burros, mas porque ninguém lhes ensinou a se preocupar com o som das palavras ou o ritmo das frases.

O que define a experiência estética literária é o uso da palavra em sua totalidade, inclusive seu som, a melodia que faz um texto ressoar em nós mil vezes mais do que outro texto que – em tese – está dizendo a mesma coisa.

Existem palavras sem sentido: gurchizuma, rampitíolo, frugamba, esbutonar... É a coisa mais fácil do mundo; posso inventar uma de dez em dez segundos até o fim da vida. (Já cultivo isso no meu “Dicionário Aldebarã”, que não deve ter passado despercebido a todos.)  Mas não existe palavra sem som. 

Todas as palavras que conhecemos e usamos têm som, inclusive as aldebarânicas. Literatura, por definição (pois é o que a diferencia dos outros usos da linguagem) é uma arte onde a palavra é considerada em sua dimensão material, sonora, pois no tumulto de impressões, sensações e emoções em-estado-bruto que fervilha em nossa mente há bilhões de impulsos que são sentido puro, mas só se tornam palavras quando adquirem som.





[Nota: este artigo foi postado aqui no blog fora de ordem, por motivo de viagem, pressa, etc. No "Jornal da Paraíba", ele saiu no dia 12 de agosto, e "Romance policial", artigo 3891, no dia 13 de agosto.]



quarta-feira, 12 de agosto de 2015

3891) Romance policial (13.8.2015)



Um romance policial é como uma investigação científica. O investigador tem em mãos uma porção de fatos e quer saber o que deu origem àquilo tudo. Para tanto, precisa de uma explicação que atenda de maneira cabal aos fatos, sem deixar nenhum de fora. Um único fato concreto que não possa ser explicado pode pôr por terra uma bela teoria. O cineasta Jorge Furtado fez uma divertida sátira a esse aspecto no filme O Homem Que Copiava, quando os protagonistas, por vingança, planejam explodir o apartamento de um indivíduo com ele dentro. Quando começam a executar o plano, vê-se que um deles trouxe para o apartamento uma galinha viva e a colocou bem protegida num armário. “Mas, para que isso!?” exclamam os outros. E ele: “Bom, a polícia também vai se perguntar o que uma galinha estava fazendo aí, e enquanto não acharem uma explicação a investigação não vai poder avançar muito.”

O enredo torna-se às vezes incompreensível porque tentamos racionalizar, no escuro e “a posteriori”, atos praticados por pessoas sob tensão, agindo às pressas e motivadas por fatores que nunca conhecemos de todo. As pessoas têm comportamento contraditório. São valentes num dia e covardes no outro, espertas hoje, burras amanhã, executam as manobras mais complexas e depois acabam derrapando numa bobagem. O detetive, ao concatenar os fatos, tenta descobrir nos agentes motivações e intenções que justifiquem os fatos comprovados. Por que Fulano saiu de casa no meio da madrugada, de chinelos, pegou o carro às pressas, sem ter recebido nenhum telefonema? Por que o assassino ocultou o corpo e deixou um objeto próximo totalmente visível? Por que Sicrano se registrou no hotel com nome falso, e estava sem documento algum quando foi encontrado? Por que a vítima estava armada e não se defendeu, mesmo tendo a chance? Todos esses “porquês” exigem do detetive que busque uma lógica por trás dessas ações; e muitas vezes, no fim da história, ele constata que as pessoas agiram sem a menor lógica, seja motivadas por suspeitas ou medos infundados, seja impelidas por circunstâncias que eram importantes para elas mas que não têm nenhuma relação com o crime, e assim por diante.

Já se disse que a ficção tem obrigação de fazer sentido, mas a vida real não. Quando um detetive propõe teorias, não pode responder uma indagação dizendo “porque sim”; já que ele se propõe a explicar, a explicação tem que fazer sentido, mesmo que na vida real as ações dos personagens tenham sido caóticas ou absurdas. Quando deduz e organiza os fatos, o detetive tem que ser “mais real do que o rei”, tem a obrigação inicial de ser mais lógico do que a vida é.



[Nota: este artigo foi postado aqui no blog fora de ordem, por motivo de viagem, pressa, etc. No "Jornal da Paraíba", ele saiu no dia 13 de agosto, e "O som e o sentido", artigo 3890, no dia 12 de agosto.]

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

3889) Eu me lembro 5 (11.8.2015)



Eu me lembro de um brinquedo mecânico que tinha na Festa da Mocidade: uma mesa cheia de bonequinhos ligados a fios elétricos, tocando e dançando; minha mãe dizia que era o “candomblé”, e por muito tempo associei essa palavra a brinquedos elétricos que se mexiam sozinhos. 

Eu me lembro de Seu Egídio, o enfermeiro, chamado Catabí porque tinha um problema físico e andava todo balançando, e vinha na casa da gente aplicar injeção. 

Eu me lembro dos rosários de coquinhos enfiados numa linha, que minha mãe comprava na feira.

Eu me lembro dos chaveirinhos com imagens 3-D, que a gente segurava e ficava mudando a posição, e a imagem parecia estar em movimento. 

Eu me lembro de quando fui sozinho ver a matinal de domingo no Babilônia e me obrigaram a levar o guarda-chuva porque era um dia nublado, e eu era a única pessoa com guarda-chuva no cinema inteiro. 

Eu me lembro de uma prova de História em que perguntaram o dia do descobrimento da América e eu me atrapalhei e botei “24 de outubro”, que era o aniversário de meu pai, e a professora nem percebeu, ganhei o ponto do quesito.

Eu me lembro dos meus relógios de pulso marca Lanco e Fortissimo, e do despertador marca Westclox. 

Eu me lembro de quando por trás da “barra do quartel” no Estádio Presidente Vargas havia uma enorme placa de Cinzano, e de vez em quando um atacante acertava uma bolada nela, que ficava vários metros mais alta que  a barra. 

Eu me lembro das calças de Nycron e da camisa Volta Ao Mundo, que eu tinha de usar quando trabalhei como datilógrafo na FURNe, e detestava porque tinha a sensação de estar usando roupas de plástico.

Eu me lembro quando depois do último capítulo de uma novela na Rádio Borborema meu pai levou os atores para beber lá em casa e eu vi pela primeira vez um roteiro datilografado. 

Eu me lembro do casarão (que não existe mais)  na rua Vidal de Negreiros onde estudei o 1º. ano primário no Colégio das Lurdinas, e que anos depois se tornou a sede do Treze, servindo de concentração e de sala dos troféus.

Eu me lembro de furtar goiabas da goiabeira do vizinho, atrepado na grade lateral de uma cama de criança (pra servir de escada junto ao muro) e procurando algo amarelo entre as folhas verdes. 

Eu me lembro do Laboratório Químico que ganhei aos 9 anos, com tubos de ensaio, vidrinhos com substâncias e um livreto com instruções para experiências. 

Eu me lembro de personagens de gibi como o Morcego Negro, Flecha Ligeira, Flecha Certeira, Pecos Bill, Cisco Kid, Rocky Lane, Águia Negra, Gabby Hayes, Nyoka. 

Eu me lembro de quando um caminhão da Coca-Cola virou perto da casa de Chico Perácio e nessa noite o Alto Branco inteiro tomou Coca-Cola na janta.



sábado, 8 de agosto de 2015

3888) Os começos de Elmore Leonard (9.8.2015)



Já houve uma tradição de começar um romance com a descrição de uma época ou de um ambiente, e só entrar na ação propriamente dita um pouco mais adiante. E depois surgiu a técnica moderna de começar no meio da ação. Em vez de longos planos-de-conjunto mostrando um ambiente, começar o livro com um close num rosto que pensa ou diz algo, numa mão que faz um gesto, numa pessoa que entra num local.

Fãs de Elmore Leonard fizeram (aqui: http://tinyurl.com/k622jwn) um recenseamento de todos os começos dos livros desse autor que escreveu policial, faroeste e outros gêneros de narrativa curta, seca, direta. Leonard gosta de começos como: “De vez em quando, pela manhã, ele pensava no homem chamado Kirby Frye” (The Law at Randado, 1954). Omitindo o nome do protagonista, ele dá destaque ao nome com que este se preocupa. Ou então o início de City Primeval (1980): “Um dia Karen DeCilia organizou algumas observações que tinha feito e concluiu que seu marido Frank estava tendo um caso com uma corretora de imóveis em Boca”. Uma econômica maneira de mostrar um triângulo amoroso de modo não estático: a história já começa com o instante do “heureca” de uma personagem.

Cat Chaser (1982) começa parecido: “A primeira impressão de Moran a respeito de Nolen Tyler: ele parecia ser de alto risco, o tipo do cara que pega no sono fumando na cama”. Com dois traços ele nos diz algo sobre o personagem que avalia e o que é avaliado. Mostrar personagem e situação ao mesmo tempo é o mérito desta abertura de Bandits (1987): “Toda vez que Jack Delaney recebia um telefonema do hospital dos leprosos para ir buscar um corpo ele era atacado por uma forte gripe ou coisa parecida”. O mesmo com: “Foley nunca tinha visto uma prisão onde você podia andar direto até a cerca sem levar um tiro.” (Out of Sight, 1996).

Momento crucial é um bom lugar para começar uma história: “No último dia de trabalho de Chris Mankowski, às duas da tarde, faltando duas horas para ir embora, ele recebeu uma ligação para ir desarmar uma bomba” (Freaky Deaky, 1988). Ou então imagens fortes que revelam o personagem: “Dennis Lenahan, o ás do trampolim, dizia às pessoas que se você puser uma moeda de 50 cents no chão e olhar para ela de cima para baixo, vai ver o mesmo que ele via quando estava no topo da escada de aço de trinta metros de altura” (Tishomingo Blues, 2002).

Começos assim têm uma concretude visual e emocional que jogam de imediato o leitor na ação, na vizinhança dos personagens. O desafio é manter esse tom ao longo de 200 páginas, mas parece ser uma técnica que, uma vez dominada, pode ser posta em prática sempre que preciso. Mas leva tempo.




sexta-feira, 7 de agosto de 2015

3887) A Vida e os Tempos de Sir Eric Trevor-Dalmas (8.8.2015)



Cap. 1 – De como o menino Eric nasceu no seio de uma próspera família de Hartfordshire, filho de um ex-oficial britânico na Guerra dos Bálcãs e de uma sobrinha-neta de um Par do Reino. 

Cap. 2 – De como toda sua criação e educação foram direcionadas no sentido de um futuro Ministério, embora, em caso de um número excessivo de pretendentes mais qualificados, também servisse uma embaixada num país de clima ameno. 

Cap. 3 – De como seus pais faleceram no afundamento de um transatlântico que levou consigo 200 pessoas e o futuro da linhagem dos Trevor-Dalmas. 

Cap. 4 – De como a infância de Sir Eric coincidiu com o processo judicial em que a Coroa, munida de uma escritura de uma nesga de terreno, arrancou do órfão Sir Eric, por uma prestidigitação jurídica que ele admite não ter compreendido até hoje, a totalidade de seus efeitos e possuídos.

Cap. 5 – De como o mundo é grande, principalmente para um rapaz sardento de vinte e poucos anos que chutou o pau da barraca e foi viver no Marrocos. 

Cap. 6 – De como em Tânger, no espaço de poucas semanas, ele aprendeu a pegar táxi, usar celular, passar troco, depositar cheque, pagar conta, lavar louça, desentupir banheiro, e outras atividades das quais a vida o protegera até então.

Cap. 7 -  De como ele em rápida sucessão descascou batatas num porão até Gibraltar, vendeu tapetes em Sagres, foi garçom de bordel em Jerez de la Frontera, estabeleceu-se em Sevilha como músico de jazz e ativista do Partido Tecnogótico Democrático local. 

Cap. 8 – De como, eleito com expressiva votação, esqueceu totalmente a política e passou a cortejar o jet-set das celebridades musicais, cinematográficas e do mundo “fashion”, cuja amizade angariou pela sua fotogenia e seu irresistível sotaque.

Cap. 9 – De como um desses vendavais da política o arremessou de novo ao seu lugar natural, a rua, e ele só escapou da miséria porque deu um jeito de ficar morando durante mais de um ano no avião de um roqueiro irlandês. 

Cap. 10 – De como a vida real bateu à sua porta com a notícia da vitória judicial de seus advogados londrinos, restituindo-lhe tudo que a Coroa lhe tomara, com juros e correções monetárias, deixando-o como o solteiro mais cobiçado do Reino Unido.

Cap. 11 – De como Sir Eric Trevor-Dalmas não pôde ser encontrado para assumir as responsabilidades inerentes à sua posição, fortuna e cargos, pois sumiu sem deixar vestígios, mudou de nome, de foto, de impressões digitais, e a única pista encontrada pela Interpol entre seus pertences pessoais foi um pedaço de jornal onde, com sua caligrafia, lia-se apenas uma palavra misteriosa: “Arembepe”.



quinta-feira, 6 de agosto de 2015

3886) Albert Maysles (7.8.2015)



(Gimme Shelter, 1970)

Com seu irmão David, Albert Maysles, falecido em março aos 88 anos, dirigiu dezenas de documentários e filmes para TV, muitos deles voltados para o mundo das artes. Seus filmes mais conhecidos são Gimme Shelter (sobre o famoso e desastroso show dos Rolling Stones em Altamont), Get your ya-yas out (sobre uma excursão dos Stones), além de outros sobre Orson Welles, Marlon Brando, Paul MacCartney etc. (Aqui, um resumo ilustrado de sua filmografia: http://mayslesfilms.com/films/).

A carreira de Maysles correu paralela a muitas tendências do documentário nos anos 1960-70, como o cinema verdade, cinema de rua, etc. Ele deixou uma página de instruções para documentaristas e repórteres cinematográficos que por mim continua valendo, independente das tecnologias que aparecem e desaparecem. Diz ele:

“Por Que? Como documentarista, eu entrego meu destino e minha fé à realidade. Ela cuida de mim, ela me dá temas, assuntos, experiência – tudo imbuído do poder da verdade e do romance da descoberta. E quanto mais eu adiro à realidade mais honestas e mais autênticas se tornam minhas histórias. Afinal, conhecimento do mundo real é exatamente o que precisamos para melhor nos entendermos e possivelmente amarmos uns aos outros. É a minha maneira de tornar o mundo um lugar melhor.

“Como? 1) Assuma um ponto de vista distanciado. 2) Sinta amor pelo que está filmando. 3) Filme eventos, cenas, sequências; evite entrevistas, narração, ter um apresentador. 4) Trabalhe com os melhores talentos disponíveis. 5) Torne seu filme experimental: filme sua experiência diretamente, sem ensaio, sem controle. 6) Existe uma ligação entre realidade e verdade. Mantenha-se fiel às duas.

“O que fazer e o que não fazer: 1) Mantenha a câmera firme. 2) Use o zoom manual, não o eletrônico. 3) Leia o máximo possível do manual da PD 170 [uma câmera portátil da Sony]. 4) Leia um livro, ou um capítulo num livro, sobre como compor o quadro cinematográfico. 5) Use o sistema estabilizador que há na câmera. 6) Nunca use tripé (com exceções: filmar fotografias, p. ex.). 7) Seu quadro fica mais firme quando o plano é mais aberto. Quando for filmar caminhando, use um plano bem aberto. 8) Prolongue o começo e o fim de cada plano. O montador (editor) vai precisar disso. 9) Não use luz artificial. A luz que há no ambiente é mais autêntica. 10) Aprenda a técnica mas é mais importante manter os olhos abertos para os momentos mais significativos. Orson Welles: “Por trás da câmera deve haver o olho de um poeta”. 11) Lembre-se: como documentarista você é um observador; um autor mas não um diretor; um descobridor, e não alguém que está no controle de tudo”.



quarta-feira, 5 de agosto de 2015

3885) A luta da tradução (6.8.2015)



Traduzir é focar a atenção no texto e em tudo que existe por trás e em volta do texto. Traduzir é ler de verdade, ler pra valer. Paulo Henriques Britto já disse que só lê um livro quem o traduz, porque é forçado a parar, pensar a sério cada frase, examinar por todos os lados cada palavra para entender o que ela está fazendo ali. 


Pode até existir leitura dinâmica, mas não existe tradução dinâmica. Leitor é lebre, tradutor é tartaruga. Devagar e sempre.

Literatura é texto, e toda a carga expressiva da obra tem que estar nas palavras que serão impressas no papel. Mas a tradução não pode prescindir do contexto. Pra decidir sobre as palavras, muitas vezes é preciso ler outros livros do autor, biografias, estudos. Nem sempre é possível. Nem sempre é indispensável. Mas quando for o caso vale a pena. 

O tradutor tem a obrigação de conhecer o pensamento do autor (mesmo um autor estreante, ou falecido há séculos, ou desconhecido) melhor que o leitor, porque antes de ser parceiro do leitor ele é parceiro do autor.

O tradutor é um intermediário numa experiência alheia; ele está ali para aproximar o livro e o leitor, não pode se entusiasmar muito e “querer brincar também”. (O que, no caso, significa colocar na tradução coisas que não havia no texto.)  

Precisa de envolvimento no instante de ler (para absorver todas as nuances possíveis do texto, perceber todas as suas implicações, alusões, etc.), e distanciamento no instante de botar palavras no papel, para não extrapolar.

É preciso consistência. Se, no interior de um mesmo texto, você resolve traduzir “beach” por praia e “shore” por beira-mar, deve manter isso até o final. Às vezes o autor usa esses termos para distinguir áreas diferentes de uma paisagem maior que ele está visualizando. Mesmo que esses termos sejam sinônimos ou equivalentes, convém traduzir A por A1 e B por B1, sempre. 

Muitos livros exigem que a gente crie um glossário à parte, para manter essa continuidade.

Deve-se ter em mente o estilo e as preocupações específicas do autor. Um autor de estilo floreado, ornamental, exige uma tradução à altura, mesmo que o tradutor não goste de ler coisas escritas dessa forma. 

Um autor que usa muito palavrão não pode ter um tradutor pudico. Se no texto original há trechos numa terceira língua, é melhor mantê-los assim, traduzidos à parte. Se o texto é cheio de neologismos, pede neologismos equivalentes. Se o autor revela preconceitos isso deve ser mantido, não pode ser “corrigido” na tradução.

É bom manter o dicionário aberto ao lado. Quando o consultar, não o feche, deixe-o aberto naquela página. Talvez precise olhar de novo a mesma palavra daí a alguns minutos.