sábado, 18 de julho de 2015

3870) O Gótico Moderno (19.7.2015)



(A Noiva de Frankenstein, 1935)


As receitas de cada um de nós se compõem em função do repertório do que lemos, do que ouvimos, do que assistimos, e cada combinação pessoal é única. 

Na minha lista, uma narrativa Gótica moderna (romance, conto, cinema, HQ, etc.) tem que ter sempre uma presença muito forte do espaço, porque o próprio nome nos traz à mente a arquitetura. O espaço do romance ou do conto gótico, portanto, sente-se à vontade em paisagens com vastos espaços vazios no meio dos quais se ergue uma construção colossal (“A Casa de Usher”). Uma topografia medieval, que encontra seu contraponto na cidade: um vasto espaço fervilhante de seres e recortado em espaços que parecem poder se subdividir e se multiplicar indefinidamente (Metrópolis).

Também das catedrais vem o lado sobrenaturalista tão essencial do gótico: fantasmas, rituais, maldições. A existência de um mundo superior ao nosso, do qual somos sombra e reflexo, “as above, so below” está presente na narrativa gótica, mesmo a de cunho mais sadista e blasfemo. O gótico pode não acreditar em Deus, mas isso não o impede de negociar a alma com o Diabo. 

João Cabral de Melo Neto revelou a medula gótica da nossa civilização dos engenhos quando disse, mais ou menos: “Meu problema com religião é que não acredito em Deus mas morro de medo do inferno.” 

O gótico envolve paixões extremadas e violência física. Etimologicamente, invoca os Godos do original, bárbaros, cruéis, cujos genes talvez estejam espalhados pelo Brasil. Os visigodos viveram na Península Ibérica e foram parte essencial do levante que expulsou de volta os Mouros. 

O romance gótico só termina deixando pelo caminho algumas tragédias.  E, retomando o viés sobrenatural citado acima, pode-se dizer que a visão-do-mundo gótica implica na revelação da existência do Mal no mundo.

Já usei o termo “Ciência Gótica” para descrever ambientes como o “laboratório de Frankenstein” ou o “sótão do alquimista” ou os “centros secretos de pesquisa da Nasa / CIA / FBI / KGB / etc”. É um arremedo de cenário científico, mas as mentes que o manipulam são insanas, ou malévolas, ou simplesmente bizarras. A Ciência Gótica é uma ciência sequestrada por objetivos e métodos com os quais o espírito científico não tem muita afinidade.

O Gótico narrativo envolve a noção de um Universo parcialmente oculto e indevassável, de onde brotam comandos absurdos, inexplicáveis, determinando nossa fortuna ou desgraça; e a tentativa de criação de processos artificiais para controlar esses poderes ou negociar com eles, em situações sempre de vida ou morte. Situações-limite onde o triunfo, a felicidade e o conhecimento jamais ocorrem juntos.






sexta-feira, 17 de julho de 2015

3869) Viagens espaciais (18.7.2015)




Jorge Luís Borges ironizava a expressão “viagens espaciais”, dizendo que toda viagem, mesmo para o subúrbio, é uma viagem espacial, pois acontece no espaço. Era o mesmo (dizia ele) que dizer “substâncias químicas”. Nossas viagens espaciais dependem, em grandíssima parte, não apenas dos veículos e dos combustíveis de que dispomos, como também do modo como entendemos o espaço, como avaliamos o espaço que se estende à nossa volta.



Em Orlando, na Flórida, foi divulgada a foto aérea de duas residências que estão em espaços contíguos e ao mesmo tempo estão a cerca de dez quilômetros de distância. As casas estão fundo-a-fundo, viradas para ruas diferentes. Uma pessoa de uma delas pode ir para seu quintal ou pátio traseiro e passar para o quintal da outra casa. Mas se ela quiser ir visitar esses vizinhos de carro vai ter que sair pela rua da frente, e, seguindo a mão e obedecendo aos cruzamentos, terá que dar uma volta de dez quilômetros, a menor distância possível a ser percorrida de carro.



O espaço é um só, do ponto de vista físico, mas os nossos deslocamentos não estão sujeitos apenas ao lado físico, eles têm que passar pelo filtro de como organizamos nossas maneiras de percorrer esse espaço. Razões de urbanismo, engenharia de trânsito, etc., fazem com que os carros precisem se deslocar em canais de espaço muito específicos. Além dos obstáculos físicos, como os prédios, ele encontra obstáculos conceituais, como uma rua em contra-mão ou um gramado.



O exemplo dessas casas em Orlando é uma possível metáfora do que a ciência e a FC chamam de “buracos de minhoca” ou “wormholes”.  São atalhos no espaço onde é possível passar através de pontos específicos, evitando a volta de dez quilômetros e chegando direto à casa vizinha. Podemos também pegar uma folha de papel, fazemos duas marcas, distantes uma da outra, e depois dobramos o papel, colocando as duas marcas em contato. Com isso, encurtamos a distância ao amassar o papel, mas para isso precisamos de uma dimensão extra. (Supõe-se que a folha é uma superfície sem espessura, apenas bidimensional).


Para efeito de criação de histórias, pode-se lançar a hipótese de que um “wormhole” só pode ser acessado por “pedestres”, não por “carros”. Ou seja, fazer passar por ele a massa de uma espaçonave exigiria uma quantidade inconcebível de energia, mas uma pessoa vestida de traje espacial ou num “esquife espacial” exigiria uma minúscula fração disso. Bastaria ter uma estação espacial construída nas vizinhanças e ficar mandando os viajantes quando necessário.  Os deslocamentos de espaçonaves pela galáxia são comparáveis à volta de 10 km de quem viaja de carro.



quinta-feira, 16 de julho de 2015

3868) O crime de Kalimero (17.7.2015)



(ilustração: Giambattista della Porta)

“Pode procurar aí os registros da morte de Jorge Kalimero. Foi galã de sucesso da Vera Cruz nos anos 1950, mudou-se pro Rio e viveu do Cinema Novo até os 80, voltou para São Paulo e ziguezagueou por toda a escala de personagens da Boca do Lixo até o controvertido final. O filme em que morreu era para ter sido seu triunfal retorno aos 70 anos, longe das telas há uma década.

“Kalimero, depois de velho, virou um pequeno caudilho. Viajava levando uma caravana com esposa, filhos, criados, secretárias que mal sabiam anotar um telefone, protegidos que cochichavam ao seu ouvido e ele metia a mão no bolso, entregava bolos de notas amassadas. Grande ator, mas sem noção da vida real.

“A cena do dia fatal era a morte do seu personagem. General aposentado, depois de ganhar a guerra, está em casa numa manhã de inverno, ouvindo música. Um ladrão entra, há luta, o ladrão o mata com um tiro no peito. O assassino? Um pobre diabo que não sabia quem ele era.

“Aquela era a primeira cena do dia. Kalimero saiu do seu trailer às oito, figurino do personagem, entrou no cenário, foi preparado. Rodaram numerosos planos. Quando rodaram a cena do tiro, o projétil disparado pela arma do coadjuvante varou o coração do veterano astro.

“O processo foi coberto pela imprensa, está tudo bem à vista. Veredito: acidente. Havia duas opções na cena: um tiro de festim, para o qual bastaria uma veste reforçada por baixo da roupa; ou um projétil de verdade, que produziria um choque mais realista no peito do ator, mas precisaria haver por baixo um colete antibala comum, daquele da polícia.

“O juiz disse que o tiro foi acidental, mas Kalimero tinha dinheiro e propriedades, a decadência dele era somente artística. Muita gente querendo sua morte, ainda mais agora, trabalhando, seguro assinado. E eu trabalhava nesse filme. Foi um dos meus primeiros trabalhos, eu servia de menino de recados para os assistentes de direção.

“O crime consistiu em alguém garantir à equipe que tudo bem com projéteis de verdade, porque o astro exigiu o colete à prova de bala. E em alguém garantir do outro lado que o tiro seria festim, e bastaria um pulôver reforçado com pelica.

“Ninguém comentou isso, enquanto as cenas eram rodadas. Ninguém checou um detalhe tão importante. Difícil saber. Mas eu, eu ouvi o assistente novo, primeiro filme com aquela equipe, dando esses dois recados, e eu ouvindo e ninguém me vendo. Depois do tiro e da confusão, foi interrogado e liberado. Depois, ninguém mais o viu.  Quando a polícia foi ao endereço que fornecera encontrou um casal de tios idosos que mal lembravam o nome completo dele, e não o viam há vinte anos. E nunca mais foi visto. “






quarta-feira, 15 de julho de 2015

3867) Escritor = traidor (16.7.2015)



Antigamente era normal um romancista passar três páginas seguidas descrevendo o quarto de uma marquesa ou o estúdio de um artista. No século 19 a pintura, o teatro e a ópera compensavam o lado não-visual da literatura, e um leitor era capaz de visualizar colagens de objetos e paisagens que afinal não estavam muito distante de sua experiência diária, mesmo vendo a vida dos nobres à distância. O cinema, quando surgiu, demonstrou ser uma espécie de teatro com o tempo narrativo e o tempo real tão manipuláveis quanto os da literatura.

Um dos primeiros choques tradutórios que senti foi quando comecei a ler S. S. Van Dine em inglês, depois de ter lido em tradução uma meia dúzia de seus romances de crimes enigmáticos (The Benson Murder Case, etc.). Tive um susto. Philo Vance, seu detetive, é um esnobe que gosta de discorrer páginas inteiras sobre egiptologia ou história natural para avaliar a importância de uma pista. Esses longos “infodumps”, ou entulhos de informação, estavam conspicuamente ausentes das traduções de Monteiro Lobato, da Companhia Editora Nacional. Lobato devia achar aquilo um saco e metia a tesoura, cortava tudo. Os leitores que não gostam do dandismo de Van Dine, sua pose de J.-K. Huysmans novaiorquino na década de 1930, podem muito bem ler as versões lobatianas, mais enxutas, mais leves.

Como aliás dizem ser a tradução que Borges fez de “The Purloined Letter” de Edgar Poe para uma das suas antologias. Em termos de estilo Borges era o anti-Poe. Essa sua tradução pode ser um bom exemplo de crítica praticada via tradução, não via ensaio. Traduzir, às vezes, é a nossa chance de reescrever uma história que estilisticamente não nos agrada, e aí cedemos à tentação de melhorar o original.

Lobato e Borges tomava essas liberdades porque eram escritores traduzindo, e não tradutores de ofício. O tradutor de ofício e o escritor sofrem as mesmas tentações, como a de melhorar o original; mas talvez o escritor ceda com mais facilidade. Ressalvando sempre o bom senso das partes envolvidas, o tradutor vê no autor do livro alguém ligeiramente superior a ele, quando mais não seja pelo fato de que é o dono do texto original. Já um escritor pensa: “Ora que diabo, estou traduzindo mas sou escritor também, vou dar uma ajeitada nos parágrafos desse nobre colega.”  O que é o mesmo que ir no museu e dizer: “Vou dar uma ajeitada no nariz desta estátua, na perspectiva desse quadro.”  Onde um tradutor sério passa uma noite inteira pesquisando e sofrendo, um escritor às vezes não hesita em passar o rodo na estilosidade do colega e seguir adiante, esfregando as mãos e assobiando. Ele diz que prefere saber como salsicha é feita.



terça-feira, 14 de julho de 2015

3866) A Floresta lá fora (15.7.2015)



(ilustração: "Biodome", by Shadow-Trance, em www.deviantart.com)

O objetivo da civilização é expandir-se fisicamente até ocupar o mundo inteiro, quando então o mundo entrará em colapso, visto que seu metabolismo não pode sustentar uma malignidade desse porte. Millôr Fernandes dizia que o homem era um câncer da Natureza, e mesmo que não seja algo tão grave pode ser algo tão incômodo como uma “impinge”. O que é bom para a Humanidade? Me lembra aquela piada onde um compadre pergunta o que é bom para úlcera e o compadre responde: “Cigarro, bebida, carne assada, pimenta...” O outro diz: “Danou-se, e isso é bom?”  “É bom pra ela,” disse o outro, “ela cresce, fica mais forte, sai tomando conta de tudo”.

Daí que um dos traumas fundamentais da espécie humana seja essa tentativa psicótica de negar o universo, seja considerando-o território seu e preparando-se para colonizá-lo, seja criando toda uma cultura do homem como espécie necessariamente superior, e disso decorrem uma ética, uma moral, uma estética condizentes. Talvez a imagem equivalente disso na FC seja Trantor, a cidade-planeta de Asimov, cobrindo a superfície inteira do planeta homônimo.

Um artigo de Alexandre Nodari (citado no blog A Bacia das Almas de Paulo Brabo, aqui: http://tinyurl.com/nuvn6wg) fala na semelhança de origem entre a palavra floresta e o conceito de “fora” (forest, forêt). A floresta é tudo que está lá fora, o covil dos ainda-não-civilizados, os morlocks e os ghouls e todos os monstros do lado externo da cúpula transparente e pressurizada que nos protege, e é mais fácil a gente morrer do que dela abrir mão.

Mas toda mão se abre com a morte, como se vê no cinema americano. Se a humanidade se extinguir por completo será por uma Big Crise seguida de fome e epidemias. Não será do dia para a noite. Levará séculos de encolhimento e regressão tecnológica, o que ironicamente retardará a contaminação de alguns grupos significativos, cujo ocaso pode vir a ser rodeado de portentos.

Lá fora as florestas, as árvores ainda não aplainadas em livro, e o que está fora dos livros não tem valor, é uma mera floresta de letras e de sons, moeda sem dono que não merece confiança. A floresta (diz Nodari) “tem espaço para a deserção, a fuga, para a desobediência civil de Thoreau”. A sanha hileicida do modelo econômico global adota a pose fotográfica de quem limpa uma sujeira acumulada há milênios embaixo do tapete do mundo, de quem está extinguindo os últimos redutos de selvageria de-fato que instabilizava as existências de-direito. (Pode-se ver também nas periferias, alagados e favelas um contra-ataque da selva-selvagem comendo a cidade pelas beiras. Uma floresta de madeira que passou pela mão humana.)



segunda-feira, 13 de julho de 2015

3865) A virada do soneto (14.7.2015)


O soneto já foi um símbolo da poesia brasileira. Virou sinônimo de parnasianismo, bacharelismo vazio, salões de festa. O ícone da poesia engessada, vestindo sobrecasaca, cartola e pince-nez. No entanto, poetas de temperamento menos pomposo, como Manuel Bandeira, Drummond, Vinicius de Morais, Marcus Accioly, Glauco Mattoso, quebraram qualquer elo que pudesse existir entre a forma “soneto” e a temática ou inflexão parnasiana. Em todo caso, o soneto está muito longe de ser um modelo já esgotado. Brian Staveley (num artigo aqui: http://tinyurl.com/qzfom2m) lembra uma teoria interessante, e que tem certo fundamento.

Ele diz que o que caracteriza formalmente o soneto é ser composto de 14 versos, que podem vir dispostos em blocos de 4-4-3-3 linhas, no modelo italiano, ou 4-4-4-2, no modelo inglês. Mas o soneto tem um componente essencial, que é a virada (“the turn”). É uma mudança perceptível na narração, exposição, reflexão, que vinha sendo feita até então, uma virada que  leva o poema noutra direção. Segundo ele, no soneto italiano essa virada ocorre entre o oitavo e o nono versos; no inglês, entre o décimo-segundo e o décimo terceiro.

O artigo dá exemplos de bonitos sonetos de Edna St. Vincent Millay onde vemos o soneto ter um enunciado contínuo ao longo dos dois quartetos, e, ao passar para o primeiro terceto, mudar de ponto de vista, ou mudar para um segundo termo de comparação, mudar a enunciação vocal... Ocorre nesse ponto uma virada, de variada natureza, no que vinha sendo dito. E de fato no soneto inglês essa relação rítmica entre as estrofes faz com que as três quadras iniciais tenham um enunciado “A” e as duas linhas finais fornecerem o enunciado “B”. Não é uma regra geral: mas não é difícil achar exemplos, pois é um recurso frequente, uma maneira de evitar a monotonia pela repetição de estrutura.

Sem ser obrigatória, a “virada” é característica. Pegando a obra de um sonetista de primeiro time como Augusto dos Anjos, vemos essa dobrada-de-esquina bem clara em sonetos como “O Morcego” (em “Pego de um pau. Esforços faço...”), “Idealismo” (“Pois é mister que para o amor sagrado...”), “Soneto II ao pai” (“E saí para ver a natureza!”), “Versos íntimos” (“Toma um fósforo. Acende teu cigarro!”). São momentos em que o fluxo do poema nitidamente sofre um corte cinematográfico, vira uma esquina noutra direção. A divisão do soneto em quatro estrofes cria essa pausas artificiais (impostas pelo modelo) que podem se tornar pausas naturais, ou “quebras” naturais, que servem ao poeta como sinalizadores do momento melhor para a entrada de um novo elemento, uma nova idéia ou emoção.




sábado, 11 de julho de 2015

3864) A arte do bordado (12.7.2015)



(bordado renascença)


Numa conversa sobre livros, me lembro de alguém falar que o escritor tal, um clássico qualquer, era bom, mas “bordava muito”. Como se tratava de um autor de língua inglesa, pensei qual seria a palavra mais próxima, me veio “embroidery” que me parece cobrir essa área de rendas de agulha. É uma palavra que chama de imediato nossa noção de enfeite demais, adorno pra mais da conta, uma expansão fractal de padrões e loops geométricos.

Vi uma vez num sebo perto da praça Tiradentes um livro gigantesco de tricô, crochê, etc., com uma babilônia de ilustrações detalhadíssimas mostrando aquelas dízimas periódicas em forma de imagem. Uma coisa tão complexa quanto a montagem de um reator nuclear, pelo menos para mim, que olho de longe.

Mas o que é bordar? Acho que por cronologia e por importância é, primeiro que tudo: reforçar as bordas, as beiras, as periferias de um tecido. Têm que ser reforçadas porque são limites, fronteiras. Precisam da famosa linha preta em volta, que os pintores já discutiram tanto. Bordar é reforçar a borda de algo maior para que não se desfie, não se esgarce, não se desmanche, não se desfaça da escritura e trama que é. Para que não se desalinhe em meros fios soltos.

É um reforçar adornando. Quem redobra uma beira de pano tem que se distrair com alguma coisa, então alguém começou a inventar esses pequenos labirintos simétricos. Formas de alta matemática, geradora de muita filosofia: a arte de ficar bordando imagens ou palavras em silêncio.

Bordar pode ser também: prender a bola na borda do campo, longe de área, como tantos jogadores sabem fazer, driblando, girando, indo, mudando de rota, prendendo de novo, recuando para o ponto inicial. Muito útil em certas combinações de placar atual e tempo restante.  Não sendo assim, atacante, quando borda muito, começa a perder a função, como o ponta-direita que depois do sexto drible bem sucedido em série acha que não custa nada tentar o sétimo.

“Bordar / as bordas”. Isto será uma falsa etimologia? Inventar etimologias rebuscadas tem sido um passatempo para muita gente imaginosa. Seria, se eu afirmasse ter descoberto a “única verdadeira” explicação para uma palavra. Isso, se existe, deve ser muito raro. Mas a atribuição de uma etimologia imaginária pode se valer justamente disso, é o choque de algo que na verdade não tem ligação alguma. O choque da justaposição inesperada, bem surrealista, a sacudida que ela dá na imaginação.  É uma ficção verbal, uma biografia imaginária para uma pessoa (uma palavra) que de fato existe. Um processo de justaposição de idéias para gerar alguma coisa, contando sempre com a ajuda do acaso e a ajuda do engenho.

sexta-feira, 10 de julho de 2015

3863) Dicionário Aldebarã X (11.7.2015)



O planeta de Aldebarã-5 tem uma civilização influenciada pelos colonizadores terrestres.  Seu vocabulário exprime as características da natureza do planeta, e o seu modo de observar os fenômenos da psicologia e da cultura.  Confiram os verbetes abaixo, recolhidos, meio ao acaso, do Pequeno Dicionário Interplanetário de Bolso.

“Lialand”: designa trechos de terra à beira-mar alternadamente acima ou abaixo da água, e também variados tipos de armadilhas para peixes. “Renowan”: a mudança de percepção que ocorre quando percebemos num desenho uma imagem que mesmo tendo sido captada pelos olhos não tinha sido “lida”. “Thercum”: parte central das mesas circulares de estudos, automática, que gira de modo contínuo, com textos que as crianças precisam copiar enquanto ele passa diante dos seus olhos. “Vizmoe”: imagens ou palavras aparentemente sem sentido que se fixam na memória de alguém e começam a adquirir um significado cabalístico; diz-se também daqueles que as inventam.

“Collarg”: situações de conflito em que um dos lados submete o outro a uma intensa pressão, quase insuportável, e não consegue produzir nenhum resultado. “Jambal”: pessoa que dividiu sua vida inteira entre duas nações (duas cidades, etc.) e não consegue se definir por nenhuma delas. “Mamatart”: luva de couro especial para o manuseio de ferramentas de metal e de objetos pesados. “Ondombaert”: o impulso de tentar usar no mundo real os comandos artificiais de um jogo ou de um programa.

“Anant-vir”: pequena bomba de sucção como as de encher pneus de bicicleta, feita com um canudo dentro do outro, usada para sugar insetos dentro de casa e soprá-los para longe no jardim. “Loruim”: estilo de pintura por associação de idéias em que a tela vai sendo coberta por formas improvisadas, diante de uma platéia, sendo a tela sorteada no final para um dos presentes. “Coljun”: a sensação de olhar a foto de uma pessoa desconhecida e saber o que ela está pensando.

“Teflo”: ritual festivo em que famílias se inscrevem apresentando a receita de suas comidas prediletas, e depois um sorteio faz com que se presenteiem umas às outras com os pratos sorteados. “Harbastes”: pequenos ramos de folhas, com alusões em forma de trocadilho, que se coloca sobre a porta de entrada para saudar alguém cuja chegada se espera.  “Almotém”: escrivão juramentado nas casas-de-justiça populares, a quem cabe escutar e depois resumir em uma lauda a querela sem fim entre duas partes, para decisão do juiz. “Oikphan”: diz-se de qualquer parte do corpo quando está coberta por roupas, tintas, maquilagem, tatuagens, ou quando foi substituída por um equivalente artificial.


quinta-feira, 9 de julho de 2015

3862) "Numa Terra Estranha" (10.7.2015)










Este romance de James Baldwin (o título original é Another Country) foi lançado em 1962, ano em que Bob Dylan gravou seu primeiro disco na Manhattan que Baldwin recria e recenseia. O livro de Baldwin é o retrato tenso e desgastado, talvez chocante para a época, de relações variadas dentro de um grupo de pessoas que se conhecem. Rapaz negro com moça branca e vice-versa, homem com homem, pessoas casadas com amantes clandestinos. Tudo isto no mesmo Greenwich Village onde a rapaziada da canção de protesto começava a se juntar aos pesquisadores da folk song tradicional e do blues.

Numa Terra Estranha não tem blues, mas o personagem que decola a história é Rufus Scott, um jovem baterista negro de jazz, com problemas de auto-aceitação. Conhecemos todos os outros através da história dele: sua irmã Ida, cantora; o escritor branco Vivaldo; outro escritor branco, Richard, e sua esposa Cass; o casal gay (branco) Eric e Yves (que vivem na França). Quase todos são artistas, mais ou menos liberais, todos são problemáticos. Richard Silenski é um filho de migrantes que depois de muita batalha publica um romance policial com grande expectativa; Vivaldo é mais jovem, meio seu discípulo, e faz o papel do Escritor Liso Fumando na Mansarda.

O Village é o ambiente natural de Rufus, bem como os bares de jazz na Rua 42 e do Harlem. É também onde mora Vivaldo, que a certa altura passa a ser o foco principal da história. Um Village de fins dos anos 1950, quando um casal interracial de mãos dadas andando na rua atraía os olhares e gerava tensão. As pessoas dormem juntas, brigam, voltam, perseguem carreiras, fracassam, fazem um sucesso que preferiam não ter feito, conversam e discutem o tempo todo. Retorcem assuntos como quem seca roupa. Baldwin é um realista da velha escola.  Alguns capítulos são pequenos contos de vida urbana, preciosos, que quase podem ser independentes do arco narrativo maior.

É a Nova York dos bares gays e bares de marinheiros a poucos metros de distância. Os mesmos ambientes descritos por Samuel R. Delany em suas memórias The Motion of Light in Water (1988). Em 1962 Delany era um jovem romancista negro bissexual casado com uma poetisa branca, Marilyn Hacker, estreando na FC com o romance The Jewels of Aptor. As memórias de Delany completam os interstícios das vidas passadas a limpo por Baldwin, e quem sabe não haja algo de Baldwin na Bellona que Delany veio a imaginar em Dhalgren (1974). Baldwin é mais um daqueles escritores negros norte-americanos (como Richard Wright, Frank Yerby, Chester Himes) que tiveram que ir buscar na França alguma coisa que era sua de nascença e lhes foi subtraída.


quarta-feira, 8 de julho de 2015

3861) Vida de artista (9.7.2015)




(Anna Karina em Viver a Vida)

“Vida de garota de programa não é fácil, vai por mim que já estou nessa há mais de dez anos. Minha mãe deixou de me ver, morreu sem falar comigo. Não era culpa dela, coitada, ela se criou num mundo diferente. No mundo dela, cobrar pra fazer sexo era uma coisa vergonhosa, mas um padre podia cobrar pra batizar uma criança, um médico podia cobrar para salvar a vida de uma pessoa. Até hoje não entendi se ela tinha vergonha era da parte do dinheiro, ou se era da promiscuidade. Será que se eu desse a torto e a direito gratuitamente ela ficaria mais consolada? Não sei, era difícil conversar com ela, não tenho paciência de explicar as minhas coisas pra ninguém, ainda mais naquele clima.

“Cada uma se vira como pode. Sou contra é o que fazem por aí, quadrilha, puteiro, pegar as meninas na marra, obrigar, escravizar, aquele mundo-cão de tráfico. Eu não. Tive sorte de entrar nessa vida por mim mesma, por uma porta que só eu tenho a chave. Só saio com quem eu quero e escolho. A palavra é “agenda”, e tenho a minha, cheia, valendo uma nota. Quando não gosto dum cara aquela vez foi a última. Já entrei em algumas roubadas, mas mulher que casa também entra em roubada, ou não? Todas as roubadas que eu entrei eu consegui sair na boa.

“E tem os clientes-premium, como Dr. Osmundo. Me liga uma vez por mês, às vezes duas. Ele tem uns 70 anos, mas faz academia, está bem conservado. É viúvo, não tem filhos, mora sozinho num apartamentão. Vou lá sempre no fim da tarde, ele está me esperando. Troco de roupa num quarto-de-hóspedes onde tem um armário com roupas no meu número: blusas, bermudas, vestidinho caseiro, lingerie, camisola, chinelo. Nunca vi o quarto dele, a suíte principal. Chego, troco a roupa (e ele já me paga, o envelopezinho dobrado), ficamos por ali, eu preparo um jantar e ele fica vendo TV e tomando um drinque. Conversamos sobre o telejornal, os assuntos do dia, o clima, o trânsito na cidade, a campanha do time dele. Jantamos. Ouvimos música. Às vezes rola o sexo nessa hora. Uma coisa rápida, mas carinhosa.

“A certa altura ele ordena: Vamos dormir. E dormimos juntinhos, sempre no quarto de hóspedes, a cama é ótima, lençol cheiroso, casa bem cuidada. Ficamos conversando sobre a vida, falo minhas coisas, falo da criação da minha filhinha, ele comenta, dá conselhos. Dormimos abraçados. Às vezes o sexo acontece de manhã. Tomamos banho, faço um café, troco de roupa e vou embora. E o cachê... meu Deus. Perguntei por que ele paga tão bem, ele disse: Sai mais barato do que casar. E vou falar pra vocês, acho uma coisa tão tranquila, mas se fosse pra fazer aquilo sete vezes por semana eu ia cobrar muito mais.”