quarta-feira, 15 de julho de 2015

3867) Escritor = traidor (16.7.2015)



Antigamente era normal um romancista passar três páginas seguidas descrevendo o quarto de uma marquesa ou o estúdio de um artista. No século 19 a pintura, o teatro e a ópera compensavam o lado não-visual da literatura, e um leitor era capaz de visualizar colagens de objetos e paisagens que afinal não estavam muito distante de sua experiência diária, mesmo vendo a vida dos nobres à distância. O cinema, quando surgiu, demonstrou ser uma espécie de teatro com o tempo narrativo e o tempo real tão manipuláveis quanto os da literatura.

Um dos primeiros choques tradutórios que senti foi quando comecei a ler S. S. Van Dine em inglês, depois de ter lido em tradução uma meia dúzia de seus romances de crimes enigmáticos (The Benson Murder Case, etc.). Tive um susto. Philo Vance, seu detetive, é um esnobe que gosta de discorrer páginas inteiras sobre egiptologia ou história natural para avaliar a importância de uma pista. Esses longos “infodumps”, ou entulhos de informação, estavam conspicuamente ausentes das traduções de Monteiro Lobato, da Companhia Editora Nacional. Lobato devia achar aquilo um saco e metia a tesoura, cortava tudo. Os leitores que não gostam do dandismo de Van Dine, sua pose de J.-K. Huysmans novaiorquino na década de 1930, podem muito bem ler as versões lobatianas, mais enxutas, mais leves.

Como aliás dizem ser a tradução que Borges fez de “The Purloined Letter” de Edgar Poe para uma das suas antologias. Em termos de estilo Borges era o anti-Poe. Essa sua tradução pode ser um bom exemplo de crítica praticada via tradução, não via ensaio. Traduzir, às vezes, é a nossa chance de reescrever uma história que estilisticamente não nos agrada, e aí cedemos à tentação de melhorar o original.

Lobato e Borges tomava essas liberdades porque eram escritores traduzindo, e não tradutores de ofício. O tradutor de ofício e o escritor sofrem as mesmas tentações, como a de melhorar o original; mas talvez o escritor ceda com mais facilidade. Ressalvando sempre o bom senso das partes envolvidas, o tradutor vê no autor do livro alguém ligeiramente superior a ele, quando mais não seja pelo fato de que é o dono do texto original. Já um escritor pensa: “Ora que diabo, estou traduzindo mas sou escritor também, vou dar uma ajeitada nos parágrafos desse nobre colega.”  O que é o mesmo que ir no museu e dizer: “Vou dar uma ajeitada no nariz desta estátua, na perspectiva desse quadro.”  Onde um tradutor sério passa uma noite inteira pesquisando e sofrendo, um escritor às vezes não hesita em passar o rodo na estilosidade do colega e seguir adiante, esfregando as mãos e assobiando. Ele diz que prefere saber como salsicha é feita.



terça-feira, 14 de julho de 2015

3866) A Floresta lá fora (15.7.2015)



(ilustração: "Biodome", by Shadow-Trance, em www.deviantart.com)

O objetivo da civilização é expandir-se fisicamente até ocupar o mundo inteiro, quando então o mundo entrará em colapso, visto que seu metabolismo não pode sustentar uma malignidade desse porte. Millôr Fernandes dizia que o homem era um câncer da Natureza, e mesmo que não seja algo tão grave pode ser algo tão incômodo como uma “impinge”. O que é bom para a Humanidade? Me lembra aquela piada onde um compadre pergunta o que é bom para úlcera e o compadre responde: “Cigarro, bebida, carne assada, pimenta...” O outro diz: “Danou-se, e isso é bom?”  “É bom pra ela,” disse o outro, “ela cresce, fica mais forte, sai tomando conta de tudo”.

Daí que um dos traumas fundamentais da espécie humana seja essa tentativa psicótica de negar o universo, seja considerando-o território seu e preparando-se para colonizá-lo, seja criando toda uma cultura do homem como espécie necessariamente superior, e disso decorrem uma ética, uma moral, uma estética condizentes. Talvez a imagem equivalente disso na FC seja Trantor, a cidade-planeta de Asimov, cobrindo a superfície inteira do planeta homônimo.

Um artigo de Alexandre Nodari (citado no blog A Bacia das Almas de Paulo Brabo, aqui: http://tinyurl.com/nuvn6wg) fala na semelhança de origem entre a palavra floresta e o conceito de “fora” (forest, forêt). A floresta é tudo que está lá fora, o covil dos ainda-não-civilizados, os morlocks e os ghouls e todos os monstros do lado externo da cúpula transparente e pressurizada que nos protege, e é mais fácil a gente morrer do que dela abrir mão.

Mas toda mão se abre com a morte, como se vê no cinema americano. Se a humanidade se extinguir por completo será por uma Big Crise seguida de fome e epidemias. Não será do dia para a noite. Levará séculos de encolhimento e regressão tecnológica, o que ironicamente retardará a contaminação de alguns grupos significativos, cujo ocaso pode vir a ser rodeado de portentos.

Lá fora as florestas, as árvores ainda não aplainadas em livro, e o que está fora dos livros não tem valor, é uma mera floresta de letras e de sons, moeda sem dono que não merece confiança. A floresta (diz Nodari) “tem espaço para a deserção, a fuga, para a desobediência civil de Thoreau”. A sanha hileicida do modelo econômico global adota a pose fotográfica de quem limpa uma sujeira acumulada há milênios embaixo do tapete do mundo, de quem está extinguindo os últimos redutos de selvageria de-fato que instabilizava as existências de-direito. (Pode-se ver também nas periferias, alagados e favelas um contra-ataque da selva-selvagem comendo a cidade pelas beiras. Uma floresta de madeira que passou pela mão humana.)



segunda-feira, 13 de julho de 2015

3865) A virada do soneto (14.7.2015)


O soneto já foi um símbolo da poesia brasileira. Virou sinônimo de parnasianismo, bacharelismo vazio, salões de festa. O ícone da poesia engessada, vestindo sobrecasaca, cartola e pince-nez. No entanto, poetas de temperamento menos pomposo, como Manuel Bandeira, Drummond, Vinicius de Morais, Marcus Accioly, Glauco Mattoso, quebraram qualquer elo que pudesse existir entre a forma “soneto” e a temática ou inflexão parnasiana. Em todo caso, o soneto está muito longe de ser um modelo já esgotado. Brian Staveley (num artigo aqui: http://tinyurl.com/qzfom2m) lembra uma teoria interessante, e que tem certo fundamento.

Ele diz que o que caracteriza formalmente o soneto é ser composto de 14 versos, que podem vir dispostos em blocos de 4-4-3-3 linhas, no modelo italiano, ou 4-4-4-2, no modelo inglês. Mas o soneto tem um componente essencial, que é a virada (“the turn”). É uma mudança perceptível na narração, exposição, reflexão, que vinha sendo feita até então, uma virada que  leva o poema noutra direção. Segundo ele, no soneto italiano essa virada ocorre entre o oitavo e o nono versos; no inglês, entre o décimo-segundo e o décimo terceiro.

O artigo dá exemplos de bonitos sonetos de Edna St. Vincent Millay onde vemos o soneto ter um enunciado contínuo ao longo dos dois quartetos, e, ao passar para o primeiro terceto, mudar de ponto de vista, ou mudar para um segundo termo de comparação, mudar a enunciação vocal... Ocorre nesse ponto uma virada, de variada natureza, no que vinha sendo dito. E de fato no soneto inglês essa relação rítmica entre as estrofes faz com que as três quadras iniciais tenham um enunciado “A” e as duas linhas finais fornecerem o enunciado “B”. Não é uma regra geral: mas não é difícil achar exemplos, pois é um recurso frequente, uma maneira de evitar a monotonia pela repetição de estrutura.

Sem ser obrigatória, a “virada” é característica. Pegando a obra de um sonetista de primeiro time como Augusto dos Anjos, vemos essa dobrada-de-esquina bem clara em sonetos como “O Morcego” (em “Pego de um pau. Esforços faço...”), “Idealismo” (“Pois é mister que para o amor sagrado...”), “Soneto II ao pai” (“E saí para ver a natureza!”), “Versos íntimos” (“Toma um fósforo. Acende teu cigarro!”). São momentos em que o fluxo do poema nitidamente sofre um corte cinematográfico, vira uma esquina noutra direção. A divisão do soneto em quatro estrofes cria essa pausas artificiais (impostas pelo modelo) que podem se tornar pausas naturais, ou “quebras” naturais, que servem ao poeta como sinalizadores do momento melhor para a entrada de um novo elemento, uma nova idéia ou emoção.




sábado, 11 de julho de 2015

3864) A arte do bordado (12.7.2015)



(bordado renascença)


Numa conversa sobre livros, me lembro de alguém falar que o escritor tal, um clássico qualquer, era bom, mas “bordava muito”. Como se tratava de um autor de língua inglesa, pensei qual seria a palavra mais próxima, me veio “embroidery” que me parece cobrir essa área de rendas de agulha. É uma palavra que chama de imediato nossa noção de enfeite demais, adorno pra mais da conta, uma expansão fractal de padrões e loops geométricos.

Vi uma vez num sebo perto da praça Tiradentes um livro gigantesco de tricô, crochê, etc., com uma babilônia de ilustrações detalhadíssimas mostrando aquelas dízimas periódicas em forma de imagem. Uma coisa tão complexa quanto a montagem de um reator nuclear, pelo menos para mim, que olho de longe.

Mas o que é bordar? Acho que por cronologia e por importância é, primeiro que tudo: reforçar as bordas, as beiras, as periferias de um tecido. Têm que ser reforçadas porque são limites, fronteiras. Precisam da famosa linha preta em volta, que os pintores já discutiram tanto. Bordar é reforçar a borda de algo maior para que não se desfie, não se esgarce, não se desmanche, não se desfaça da escritura e trama que é. Para que não se desalinhe em meros fios soltos.

É um reforçar adornando. Quem redobra uma beira de pano tem que se distrair com alguma coisa, então alguém começou a inventar esses pequenos labirintos simétricos. Formas de alta matemática, geradora de muita filosofia: a arte de ficar bordando imagens ou palavras em silêncio.

Bordar pode ser também: prender a bola na borda do campo, longe de área, como tantos jogadores sabem fazer, driblando, girando, indo, mudando de rota, prendendo de novo, recuando para o ponto inicial. Muito útil em certas combinações de placar atual e tempo restante.  Não sendo assim, atacante, quando borda muito, começa a perder a função, como o ponta-direita que depois do sexto drible bem sucedido em série acha que não custa nada tentar o sétimo.

“Bordar / as bordas”. Isto será uma falsa etimologia? Inventar etimologias rebuscadas tem sido um passatempo para muita gente imaginosa. Seria, se eu afirmasse ter descoberto a “única verdadeira” explicação para uma palavra. Isso, se existe, deve ser muito raro. Mas a atribuição de uma etimologia imaginária pode se valer justamente disso, é o choque de algo que na verdade não tem ligação alguma. O choque da justaposição inesperada, bem surrealista, a sacudida que ela dá na imaginação.  É uma ficção verbal, uma biografia imaginária para uma pessoa (uma palavra) que de fato existe. Um processo de justaposição de idéias para gerar alguma coisa, contando sempre com a ajuda do acaso e a ajuda do engenho.

sexta-feira, 10 de julho de 2015

3863) Dicionário Aldebarã X (11.7.2015)



O planeta de Aldebarã-5 tem uma civilização influenciada pelos colonizadores terrestres.  Seu vocabulário exprime as características da natureza do planeta, e o seu modo de observar os fenômenos da psicologia e da cultura.  Confiram os verbetes abaixo, recolhidos, meio ao acaso, do Pequeno Dicionário Interplanetário de Bolso.

“Lialand”: designa trechos de terra à beira-mar alternadamente acima ou abaixo da água, e também variados tipos de armadilhas para peixes. “Renowan”: a mudança de percepção que ocorre quando percebemos num desenho uma imagem que mesmo tendo sido captada pelos olhos não tinha sido “lida”. “Thercum”: parte central das mesas circulares de estudos, automática, que gira de modo contínuo, com textos que as crianças precisam copiar enquanto ele passa diante dos seus olhos. “Vizmoe”: imagens ou palavras aparentemente sem sentido que se fixam na memória de alguém e começam a adquirir um significado cabalístico; diz-se também daqueles que as inventam.

“Collarg”: situações de conflito em que um dos lados submete o outro a uma intensa pressão, quase insuportável, e não consegue produzir nenhum resultado. “Jambal”: pessoa que dividiu sua vida inteira entre duas nações (duas cidades, etc.) e não consegue se definir por nenhuma delas. “Mamatart”: luva de couro especial para o manuseio de ferramentas de metal e de objetos pesados. “Ondombaert”: o impulso de tentar usar no mundo real os comandos artificiais de um jogo ou de um programa.

“Anant-vir”: pequena bomba de sucção como as de encher pneus de bicicleta, feita com um canudo dentro do outro, usada para sugar insetos dentro de casa e soprá-los para longe no jardim. “Loruim”: estilo de pintura por associação de idéias em que a tela vai sendo coberta por formas improvisadas, diante de uma platéia, sendo a tela sorteada no final para um dos presentes. “Coljun”: a sensação de olhar a foto de uma pessoa desconhecida e saber o que ela está pensando.

“Teflo”: ritual festivo em que famílias se inscrevem apresentando a receita de suas comidas prediletas, e depois um sorteio faz com que se presenteiem umas às outras com os pratos sorteados. “Harbastes”: pequenos ramos de folhas, com alusões em forma de trocadilho, que se coloca sobre a porta de entrada para saudar alguém cuja chegada se espera.  “Almotém”: escrivão juramentado nas casas-de-justiça populares, a quem cabe escutar e depois resumir em uma lauda a querela sem fim entre duas partes, para decisão do juiz. “Oikphan”: diz-se de qualquer parte do corpo quando está coberta por roupas, tintas, maquilagem, tatuagens, ou quando foi substituída por um equivalente artificial.


quinta-feira, 9 de julho de 2015

3862) "Numa Terra Estranha" (10.7.2015)










Este romance de James Baldwin (o título original é Another Country) foi lançado em 1962, ano em que Bob Dylan gravou seu primeiro disco na Manhattan que Baldwin recria e recenseia. O livro de Baldwin é o retrato tenso e desgastado, talvez chocante para a época, de relações variadas dentro de um grupo de pessoas que se conhecem. Rapaz negro com moça branca e vice-versa, homem com homem, pessoas casadas com amantes clandestinos. Tudo isto no mesmo Greenwich Village onde a rapaziada da canção de protesto começava a se juntar aos pesquisadores da folk song tradicional e do blues.

Numa Terra Estranha não tem blues, mas o personagem que decola a história é Rufus Scott, um jovem baterista negro de jazz, com problemas de auto-aceitação. Conhecemos todos os outros através da história dele: sua irmã Ida, cantora; o escritor branco Vivaldo; outro escritor branco, Richard, e sua esposa Cass; o casal gay (branco) Eric e Yves (que vivem na França). Quase todos são artistas, mais ou menos liberais, todos são problemáticos. Richard Silenski é um filho de migrantes que depois de muita batalha publica um romance policial com grande expectativa; Vivaldo é mais jovem, meio seu discípulo, e faz o papel do Escritor Liso Fumando na Mansarda.

O Village é o ambiente natural de Rufus, bem como os bares de jazz na Rua 42 e do Harlem. É também onde mora Vivaldo, que a certa altura passa a ser o foco principal da história. Um Village de fins dos anos 1950, quando um casal interracial de mãos dadas andando na rua atraía os olhares e gerava tensão. As pessoas dormem juntas, brigam, voltam, perseguem carreiras, fracassam, fazem um sucesso que preferiam não ter feito, conversam e discutem o tempo todo. Retorcem assuntos como quem seca roupa. Baldwin é um realista da velha escola.  Alguns capítulos são pequenos contos de vida urbana, preciosos, que quase podem ser independentes do arco narrativo maior.

É a Nova York dos bares gays e bares de marinheiros a poucos metros de distância. Os mesmos ambientes descritos por Samuel R. Delany em suas memórias The Motion of Light in Water (1988). Em 1962 Delany era um jovem romancista negro bissexual casado com uma poetisa branca, Marilyn Hacker, estreando na FC com o romance The Jewels of Aptor. As memórias de Delany completam os interstícios das vidas passadas a limpo por Baldwin, e quem sabe não haja algo de Baldwin na Bellona que Delany veio a imaginar em Dhalgren (1974). Baldwin é mais um daqueles escritores negros norte-americanos (como Richard Wright, Frank Yerby, Chester Himes) que tiveram que ir buscar na França alguma coisa que era sua de nascença e lhes foi subtraída.


quarta-feira, 8 de julho de 2015

3861) Vida de artista (9.7.2015)




(Anna Karina em Viver a Vida)

“Vida de garota de programa não é fácil, vai por mim que já estou nessa há mais de dez anos. Minha mãe deixou de me ver, morreu sem falar comigo. Não era culpa dela, coitada, ela se criou num mundo diferente. No mundo dela, cobrar pra fazer sexo era uma coisa vergonhosa, mas um padre podia cobrar pra batizar uma criança, um médico podia cobrar para salvar a vida de uma pessoa. Até hoje não entendi se ela tinha vergonha era da parte do dinheiro, ou se era da promiscuidade. Será que se eu desse a torto e a direito gratuitamente ela ficaria mais consolada? Não sei, era difícil conversar com ela, não tenho paciência de explicar as minhas coisas pra ninguém, ainda mais naquele clima.

“Cada uma se vira como pode. Sou contra é o que fazem por aí, quadrilha, puteiro, pegar as meninas na marra, obrigar, escravizar, aquele mundo-cão de tráfico. Eu não. Tive sorte de entrar nessa vida por mim mesma, por uma porta que só eu tenho a chave. Só saio com quem eu quero e escolho. A palavra é “agenda”, e tenho a minha, cheia, valendo uma nota. Quando não gosto dum cara aquela vez foi a última. Já entrei em algumas roubadas, mas mulher que casa também entra em roubada, ou não? Todas as roubadas que eu entrei eu consegui sair na boa.

“E tem os clientes-premium, como Dr. Osmundo. Me liga uma vez por mês, às vezes duas. Ele tem uns 70 anos, mas faz academia, está bem conservado. É viúvo, não tem filhos, mora sozinho num apartamentão. Vou lá sempre no fim da tarde, ele está me esperando. Troco de roupa num quarto-de-hóspedes onde tem um armário com roupas no meu número: blusas, bermudas, vestidinho caseiro, lingerie, camisola, chinelo. Nunca vi o quarto dele, a suíte principal. Chego, troco a roupa (e ele já me paga, o envelopezinho dobrado), ficamos por ali, eu preparo um jantar e ele fica vendo TV e tomando um drinque. Conversamos sobre o telejornal, os assuntos do dia, o clima, o trânsito na cidade, a campanha do time dele. Jantamos. Ouvimos música. Às vezes rola o sexo nessa hora. Uma coisa rápida, mas carinhosa.

“A certa altura ele ordena: Vamos dormir. E dormimos juntinhos, sempre no quarto de hóspedes, a cama é ótima, lençol cheiroso, casa bem cuidada. Ficamos conversando sobre a vida, falo minhas coisas, falo da criação da minha filhinha, ele comenta, dá conselhos. Dormimos abraçados. Às vezes o sexo acontece de manhã. Tomamos banho, faço um café, troco de roupa e vou embora. E o cachê... meu Deus. Perguntei por que ele paga tão bem, ele disse: Sai mais barato do que casar. E vou falar pra vocês, acho uma coisa tão tranquila, mas se fosse pra fazer aquilo sete vezes por semana eu ia cobrar muito mais.”


terça-feira, 7 de julho de 2015

3860) 10 assombrações (8.7.2015)




Ninguém estranhou quando o fantasma de Lord Ambersonville apareceu na hora exata em que sua viúva se casava com o General O’Leary. A noiva o viu mas manteve o controle até o sim, a assinatura, o desmaio.

Mary Nowalski, de Boston, comprou num brechó uma mala de viagem seminova, e cada vez que a arruma para viajar vê ali roupas que nunca teve, com sedas e estampas primaveris, tailleurs de banqueira, roupas que se desfazem no ar quando ela tenta vesti-las.

Em um restaurante de Lobito, em Angola, um gerente recebeu (e guardou) uma nota assombrada de “kwanza”, a moeda local, cuja efígie, após a meia-noite, é substituída por um gif animado e sorridente do ex-ditador português Oliveira Salazar.

O Prof. Sérvio Lomanto, de Londrina, tem na parede de seu escritório uma cópia emoldurada e envidraçada da “Declaração Universal dos Direitos do Homem”, na qual aparecem de vez em quando palavras dadas como mortas, tais como virente, anspeçada, sotoposto, lufa-lufa, ergástulo, lornhão.

No iglu onde moram seus pais já idosos, o esquimó Aran avistou um fogo mal-assombrado, pequena fogueira junto à parede do iglu, com chamas se agitando mas sem produzir calor, e sem queimar as mãos que passam através delas como se não existissem, mas mesmo assim não há como sossegar os velhinhos.

O Dr. Yurgen Walloo, de Fort Lauderdale, descobriu que a ocorrência de fantasmas, ou seja, projeções sensíveis de uma impressão de presença de um ser já morto, é muito menos comum nos seres humanos do que nas plantas, onde é tida como fato natural.

Laura Potthill, do Wisconsin, descobriu no aquário de sua sala uma mancha luminosa que se movia em sincronismo com os movimentos do seu peixinho Galahad, e deduziu que seria a aura espiritual da referida criatura.

Foi na tenda do funileiro Argat Ahramadul, numa viela sossegada de um subúrbio antióquio, que brotou uma serpente verde e transparente coleando pela cidade, durante dois dias, e na qual todo mundo reconhecia um antigo burgomestre local.

Perto de São João do Cariri tem uma estrada lateral de duas léguas e no final uma casa velha de paredes de taipa, com teto de ripas e telhas, onde num recanto, por trás do pedestal vazio da TV, o fantasma de uma aranha mantém a teia limpa de moscas há tempos imemoriais.

Fantasmas podem ser apenas vislumbres de um mundo paralelo ao nosso, ou intercalado a ele, talvez baste um pouco de pressão no ponto certo e alguma película ou membrana se deixa traspassar, pensava Zito de Moema, tomando uma cana no batente-de-pau do bar de Abimeleque, fartando-se com o que via, somente daquele ponto, e que descobrira por acaso quando criança.



segunda-feira, 6 de julho de 2015

3859) Lewis Carroll (7.7.2015)





Foi em julho de 1862 o passeio a barco que o reverendo Dodgson, identidade civil de Lewis Carroll, fez com duas garotas de quem era amigo. Durante o passeio, contou a elas a primeira versão das aventuras de “Alice no País das Maravilhas”. Esse livro e sua sequência “Alice Através do Espelho” formam um díptico que não tinha muita semelhança com o que se publicava em seu país naquele tempo. As disciplinas intelectuais e as fixações pessoais de Carroll eram heterogêneas o bastante para garantir que nem todo mundo iria entender tudo, mas todo mundo iria gostar demais de um aspecto do livro.



Carroll deve ter escrito suas obras pensando tanto nas crianças ledoras e entusiasmadas quanto nos colegas lógicos e matemáticos, todo o pessoal que gosta dessas disciplinas, principalmente a geometria e o estudo do espaço e das dimensões. Quem gosta desse aspecto do “Alice” pode gostar da FC de Rudy Rucker e das gravuras de M. C. Escher. Todos os que gostam de labirintos tendo por base a geometria em sucessivos espaços dimensionais – desde o ponto, a linha, o plano, a distorção temporal e da quinta dimensão em diante. Sendo escritor de FC, “o seu é o limite”.



Ele misturava personagens e situações que não pareciam pertencer ao mesmo universo: animais falantes, cartas de baralho, monstros míticos, cavaleiro medieval, xadrez, realidade flexível... E algumas imagens que mesmo talvez inspiradas em algo anterior passaram a ser indissoluvelmente dele: o homem-ovo Humpty Dumpty sentado no muro (celebrado por John Lennon), os dois gêmeos Tweedledum e Tweedledee (celebrados por Bob Dylan), o sorriso do Gato de Cheshire (celebrado por Gal Costa). E talvez tenha ajudado Monteiro Lobato a misturar Tom Mix com mitologia grega, o Gato Félix com o Saci.



Seu texto tem uma certa imprevisibilidade lógica, algo que ele talvez tivesse em pessoa. Aquele indivíduo educado, contido, que gosta de falar e daí a pouco está pensando em voz alta, fazendo raciocínios ou suposições que deixam os interlocutores mais perdidos do que cego em tiroteio. Uma espécie de professor amalucado, mas basicamente inofensivo e simpático. As coisas que ele anotava em seus diários, “hoje inventei isso, hoje desenvolvi a idéia tal”, são surpreendentes. Vivia num mundo mental só dele, era meio esquisitão mas ao mesmo tempo todos o respeitavam.


Era ranzinza, voluntarioso, brigava com o editor, com o ilustrador, com o livreiro, porque queria que tudo fosse do jeito exato que tinha imaginado: o papel, a diagramação, o desenho, o lugar do desenho... O terror dos chefes de gráfica. Era doido? Não sei. Talvez seja a nós que falte um talento, e não a ele um parafuso.


sábado, 4 de julho de 2015

3858) A canção do suicídio (5.7.2015)



Conta-se que a cidade de Budapeste sofreu uma epidemia de suicídios nas décadas após a I Guerra Mundial.  Assim como a praga de ratos que assaltou o vilarejo alemão de Hamelin, que só se salvou com a intervenção de um misterioso flautista, houve, digamos, uma praga de pensamentos sombrios que se infiltrou em Budapeste por todas as fendas, deixando as pessoas abatidas, taciturnas, depressivas.

A devastação da guerra teve seu papel, mas enquanto outras cidades húngaras logo trataram de se reconstruir e retomar suas vidas, Budapeste mergulhou cada vez mais numa “bad trip” negativista. E os suicídios proliferavam. Havia barcos de patrulha permanentemente de vigia na proximidade das pontes, para resgatar as pessoas que se jogavam nas águas do Danubio.

Alguns deram como causa dessa onda de desespero uma canção muito popular na época, “Szomorú Vasárnap” (“Domingo Soturno”), composta por Reszô Seress e lançada em 1933. (Aqui, uma versão, com legendas em português: http://tinyurl.com/ndqn8kd). A canção ficou ainda mais popular quando em 1941 Billie Holliday a gravou em inglês, mesmo mudando a letra para um final otimista. (Aqui: http://tinyurl.com/pthrac6). É uma canção gótica, sombria, vazia de fé na vida e na humanidade. Chegou a ser banida por algumas rádios. O compositor e sua namorada também se suicidaram.

Outra versão diz que os suicídios não foram tantos e foram mera coincidência; a canção teria apenas se valido deles para lançar uma campanha de marketing. Em todo caso, surgiu uma reação quando foi criado, meio por brincadeira, o “Clube do Sorriso”, para trazer a alegria de volta à cidade. (A matéria original, com fotos, está aqui: http://tinyurl.com/ky8jqpn). Havia cursos de “como sorrir”, estudos sobre o sorriso da Mona Lisa ou de Roosevelt ou de Clark Gable, e as pessoas começaram a fabricar e distribuir máscaras artesanais com uma boca sorrindo para ser colocada por cima da boca verdadeira.

Histórias assim, contadas quase cem anos depois, sofrem simplificações violentas. O argumento dessa historieta se torna totalmente kafkeano, pois há o espírito de um Kafka pairando em cada um desses países da Europa Oriental. A literatura pode ganhar com essa mistura de morbidez sombria, humor sarcástico, atitudes coletivas bizarras. Existe algo de cartum ou desenho animado nesses rostos portando sorriso desenhados a lápis de cor; existe algo de literatura oral medieval nessa lenda de pessoas se jogando ao rio por causa de uma canção. São as raízes profundas de narrativas que falam a todos, instantaneamente compreendidas por todos, sem necessidade de explicações ou teorias.