quarta-feira, 8 de julho de 2015

3861) Vida de artista (9.7.2015)




(Anna Karina em Viver a Vida)

“Vida de garota de programa não é fácil, vai por mim que já estou nessa há mais de dez anos. Minha mãe deixou de me ver, morreu sem falar comigo. Não era culpa dela, coitada, ela se criou num mundo diferente. No mundo dela, cobrar pra fazer sexo era uma coisa vergonhosa, mas um padre podia cobrar pra batizar uma criança, um médico podia cobrar para salvar a vida de uma pessoa. Até hoje não entendi se ela tinha vergonha era da parte do dinheiro, ou se era da promiscuidade. Será que se eu desse a torto e a direito gratuitamente ela ficaria mais consolada? Não sei, era difícil conversar com ela, não tenho paciência de explicar as minhas coisas pra ninguém, ainda mais naquele clima.

“Cada uma se vira como pode. Sou contra é o que fazem por aí, quadrilha, puteiro, pegar as meninas na marra, obrigar, escravizar, aquele mundo-cão de tráfico. Eu não. Tive sorte de entrar nessa vida por mim mesma, por uma porta que só eu tenho a chave. Só saio com quem eu quero e escolho. A palavra é “agenda”, e tenho a minha, cheia, valendo uma nota. Quando não gosto dum cara aquela vez foi a última. Já entrei em algumas roubadas, mas mulher que casa também entra em roubada, ou não? Todas as roubadas que eu entrei eu consegui sair na boa.

“E tem os clientes-premium, como Dr. Osmundo. Me liga uma vez por mês, às vezes duas. Ele tem uns 70 anos, mas faz academia, está bem conservado. É viúvo, não tem filhos, mora sozinho num apartamentão. Vou lá sempre no fim da tarde, ele está me esperando. Troco de roupa num quarto-de-hóspedes onde tem um armário com roupas no meu número: blusas, bermudas, vestidinho caseiro, lingerie, camisola, chinelo. Nunca vi o quarto dele, a suíte principal. Chego, troco a roupa (e ele já me paga, o envelopezinho dobrado), ficamos por ali, eu preparo um jantar e ele fica vendo TV e tomando um drinque. Conversamos sobre o telejornal, os assuntos do dia, o clima, o trânsito na cidade, a campanha do time dele. Jantamos. Ouvimos música. Às vezes rola o sexo nessa hora. Uma coisa rápida, mas carinhosa.

“A certa altura ele ordena: Vamos dormir. E dormimos juntinhos, sempre no quarto de hóspedes, a cama é ótima, lençol cheiroso, casa bem cuidada. Ficamos conversando sobre a vida, falo minhas coisas, falo da criação da minha filhinha, ele comenta, dá conselhos. Dormimos abraçados. Às vezes o sexo acontece de manhã. Tomamos banho, faço um café, troco de roupa e vou embora. E o cachê... meu Deus. Perguntei por que ele paga tão bem, ele disse: Sai mais barato do que casar. E vou falar pra vocês, acho uma coisa tão tranquila, mas se fosse pra fazer aquilo sete vezes por semana eu ia cobrar muito mais.”


terça-feira, 7 de julho de 2015

3860) 10 assombrações (8.7.2015)




Ninguém estranhou quando o fantasma de Lord Ambersonville apareceu na hora exata em que sua viúva se casava com o General O’Leary. A noiva o viu mas manteve o controle até o sim, a assinatura, o desmaio.

Mary Nowalski, de Boston, comprou num brechó uma mala de viagem seminova, e cada vez que a arruma para viajar vê ali roupas que nunca teve, com sedas e estampas primaveris, tailleurs de banqueira, roupas que se desfazem no ar quando ela tenta vesti-las.

Em um restaurante de Lobito, em Angola, um gerente recebeu (e guardou) uma nota assombrada de “kwanza”, a moeda local, cuja efígie, após a meia-noite, é substituída por um gif animado e sorridente do ex-ditador português Oliveira Salazar.

O Prof. Sérvio Lomanto, de Londrina, tem na parede de seu escritório uma cópia emoldurada e envidraçada da “Declaração Universal dos Direitos do Homem”, na qual aparecem de vez em quando palavras dadas como mortas, tais como virente, anspeçada, sotoposto, lufa-lufa, ergástulo, lornhão.

No iglu onde moram seus pais já idosos, o esquimó Aran avistou um fogo mal-assombrado, pequena fogueira junto à parede do iglu, com chamas se agitando mas sem produzir calor, e sem queimar as mãos que passam através delas como se não existissem, mas mesmo assim não há como sossegar os velhinhos.

O Dr. Yurgen Walloo, de Fort Lauderdale, descobriu que a ocorrência de fantasmas, ou seja, projeções sensíveis de uma impressão de presença de um ser já morto, é muito menos comum nos seres humanos do que nas plantas, onde é tida como fato natural.

Laura Potthill, do Wisconsin, descobriu no aquário de sua sala uma mancha luminosa que se movia em sincronismo com os movimentos do seu peixinho Galahad, e deduziu que seria a aura espiritual da referida criatura.

Foi na tenda do funileiro Argat Ahramadul, numa viela sossegada de um subúrbio antióquio, que brotou uma serpente verde e transparente coleando pela cidade, durante dois dias, e na qual todo mundo reconhecia um antigo burgomestre local.

Perto de São João do Cariri tem uma estrada lateral de duas léguas e no final uma casa velha de paredes de taipa, com teto de ripas e telhas, onde num recanto, por trás do pedestal vazio da TV, o fantasma de uma aranha mantém a teia limpa de moscas há tempos imemoriais.

Fantasmas podem ser apenas vislumbres de um mundo paralelo ao nosso, ou intercalado a ele, talvez baste um pouco de pressão no ponto certo e alguma película ou membrana se deixa traspassar, pensava Zito de Moema, tomando uma cana no batente-de-pau do bar de Abimeleque, fartando-se com o que via, somente daquele ponto, e que descobrira por acaso quando criança.



segunda-feira, 6 de julho de 2015

3859) Lewis Carroll (7.7.2015)





Foi em julho de 1862 o passeio a barco que o reverendo Dodgson, identidade civil de Lewis Carroll, fez com duas garotas de quem era amigo. Durante o passeio, contou a elas a primeira versão das aventuras de “Alice no País das Maravilhas”. Esse livro e sua sequência “Alice Através do Espelho” formam um díptico que não tinha muita semelhança com o que se publicava em seu país naquele tempo. As disciplinas intelectuais e as fixações pessoais de Carroll eram heterogêneas o bastante para garantir que nem todo mundo iria entender tudo, mas todo mundo iria gostar demais de um aspecto do livro.



Carroll deve ter escrito suas obras pensando tanto nas crianças ledoras e entusiasmadas quanto nos colegas lógicos e matemáticos, todo o pessoal que gosta dessas disciplinas, principalmente a geometria e o estudo do espaço e das dimensões. Quem gosta desse aspecto do “Alice” pode gostar da FC de Rudy Rucker e das gravuras de M. C. Escher. Todos os que gostam de labirintos tendo por base a geometria em sucessivos espaços dimensionais – desde o ponto, a linha, o plano, a distorção temporal e da quinta dimensão em diante. Sendo escritor de FC, “o seu é o limite”.



Ele misturava personagens e situações que não pareciam pertencer ao mesmo universo: animais falantes, cartas de baralho, monstros míticos, cavaleiro medieval, xadrez, realidade flexível... E algumas imagens que mesmo talvez inspiradas em algo anterior passaram a ser indissoluvelmente dele: o homem-ovo Humpty Dumpty sentado no muro (celebrado por John Lennon), os dois gêmeos Tweedledum e Tweedledee (celebrados por Bob Dylan), o sorriso do Gato de Cheshire (celebrado por Gal Costa). E talvez tenha ajudado Monteiro Lobato a misturar Tom Mix com mitologia grega, o Gato Félix com o Saci.



Seu texto tem uma certa imprevisibilidade lógica, algo que ele talvez tivesse em pessoa. Aquele indivíduo educado, contido, que gosta de falar e daí a pouco está pensando em voz alta, fazendo raciocínios ou suposições que deixam os interlocutores mais perdidos do que cego em tiroteio. Uma espécie de professor amalucado, mas basicamente inofensivo e simpático. As coisas que ele anotava em seus diários, “hoje inventei isso, hoje desenvolvi a idéia tal”, são surpreendentes. Vivia num mundo mental só dele, era meio esquisitão mas ao mesmo tempo todos o respeitavam.


Era ranzinza, voluntarioso, brigava com o editor, com o ilustrador, com o livreiro, porque queria que tudo fosse do jeito exato que tinha imaginado: o papel, a diagramação, o desenho, o lugar do desenho... O terror dos chefes de gráfica. Era doido? Não sei. Talvez seja a nós que falte um talento, e não a ele um parafuso.


sábado, 4 de julho de 2015

3858) A canção do suicídio (5.7.2015)



Conta-se que a cidade de Budapeste sofreu uma epidemia de suicídios nas décadas após a I Guerra Mundial.  Assim como a praga de ratos que assaltou o vilarejo alemão de Hamelin, que só se salvou com a intervenção de um misterioso flautista, houve, digamos, uma praga de pensamentos sombrios que se infiltrou em Budapeste por todas as fendas, deixando as pessoas abatidas, taciturnas, depressivas.

A devastação da guerra teve seu papel, mas enquanto outras cidades húngaras logo trataram de se reconstruir e retomar suas vidas, Budapeste mergulhou cada vez mais numa “bad trip” negativista. E os suicídios proliferavam. Havia barcos de patrulha permanentemente de vigia na proximidade das pontes, para resgatar as pessoas que se jogavam nas águas do Danubio.

Alguns deram como causa dessa onda de desespero uma canção muito popular na época, “Szomorú Vasárnap” (“Domingo Soturno”), composta por Reszô Seress e lançada em 1933. (Aqui, uma versão, com legendas em português: http://tinyurl.com/ndqn8kd). A canção ficou ainda mais popular quando em 1941 Billie Holliday a gravou em inglês, mesmo mudando a letra para um final otimista. (Aqui: http://tinyurl.com/pthrac6). É uma canção gótica, sombria, vazia de fé na vida e na humanidade. Chegou a ser banida por algumas rádios. O compositor e sua namorada também se suicidaram.

Outra versão diz que os suicídios não foram tantos e foram mera coincidência; a canção teria apenas se valido deles para lançar uma campanha de marketing. Em todo caso, surgiu uma reação quando foi criado, meio por brincadeira, o “Clube do Sorriso”, para trazer a alegria de volta à cidade. (A matéria original, com fotos, está aqui: http://tinyurl.com/ky8jqpn). Havia cursos de “como sorrir”, estudos sobre o sorriso da Mona Lisa ou de Roosevelt ou de Clark Gable, e as pessoas começaram a fabricar e distribuir máscaras artesanais com uma boca sorrindo para ser colocada por cima da boca verdadeira.

Histórias assim, contadas quase cem anos depois, sofrem simplificações violentas. O argumento dessa historieta se torna totalmente kafkeano, pois há o espírito de um Kafka pairando em cada um desses países da Europa Oriental. A literatura pode ganhar com essa mistura de morbidez sombria, humor sarcástico, atitudes coletivas bizarras. Existe algo de cartum ou desenho animado nesses rostos portando sorriso desenhados a lápis de cor; existe algo de literatura oral medieval nessa lenda de pessoas se jogando ao rio por causa de uma canção. São as raízes profundas de narrativas que falam a todos, instantaneamente compreendidas por todos, sem necessidade de explicações ou teorias.


sexta-feira, 3 de julho de 2015

3857) As formas do conto (4.7.2015)



(ilustração: José Paulo, 1990)


Muitas tentativas de definir o gênero “conto” partem de um pressuposto errado, o de que o conto tem uma única forma, uma natureza que pode ser resumida numa única fórmula. Mas o conto não tem um desenho formal obrigatório como têm certas formas fixas da poesia, tipo o soneto. Qualquer poema de 14 linhas divididas em dois grupos de quatro e dois grupos de três, com o mesmo número de sílabas em cada linha, pode ser chamado de soneto ( de modelo italiano, no caso), independente do idioma, do assunto, da cadência rítmica, etc. 

O conto, no entanto, não tem essa nitidez de design. É uma nuvem indistinta de possibilidades. E cada um joga em cima dele a definição que lhe convém.

Uma história curta. Uma história curta, com começo, meio e fim. Uma narrativa curta de ficção (=inventada, que não aconteceu). O relato curto de um fato real ou fictício. Tudo isto são definições possíveis, úteis, mas que não esgotam o assunto. 

Um gênero literário admite uma fórmula mas não se resume a ela: o gênero é a possibilidade de tensionar essa fórmula através da pressão de uma personalidade única, a do autor. Todo autor reinventa em parte o gênero que explora. Se não, os gêneros nunca mudariam. As obras 100% formulaicas podem até ter uma breve aceitação, mas desaparecem. Falta-lhes o elemento do “novo”, e até o mais indolente, o mais embrutecido leitor acaba sentindo essa falta.

Com dificuldade para produzir uma definição estrutural para o conto (além da tríade começo-meio-fim) muita gente adota o comodismo de defini-lo pela extensão: o conto seria como um romance (não é), só que curto. Todo texto curto seria conto, e isso aparece com mais nitidez  nesses concursos de microcontos (de dez palavras, 100 caracteres, duas frases, seja qual for o critério), onde qualquer texto que satisfaça o critério numérico é classificado, porque “basta ser curto para ser conto”. Não é bem assim.

Microcontos de FC em 6 palavras? 

Bruce Sterling: “Era algo muito dispendioso, permanecer humano”. Para mim, não é um conto, é uma reflexão. 

Rocke S. O’Bannon: “Está atrás de você! Corra, senão---” Sugere mais um conto: há uma situação dramática clara, embora clichê. 

Howard Waldrop: “Choveu, choveu, choveu, e jamais parou”. Também cria uma situação dramática. 

Eileen Gunn: “Computador, trouxemos baterias de reserva? Computador?...” Mais uma vez, há uma situação dramática, mas isto se parece mais com um cartum do que com um conto; é um flash de um instante, cabendo ao leitor deduzir o que veio antes e o que virá depois. 

Quando criamos uma fórmula restritiva, quantitativa, o autor é obrigado a produzir uma pepita de ouro do tamanho encomendado.






quinta-feira, 2 de julho de 2015

3856) Títulos de filmes (3.7.2015)



Anos atrás li uma matéria de jornal sobre as distribuidoras de filmes no Brasil. Um dos assuntos conversados era a atribuição de títulos. Um funcionário dizia que eles mantinham no escritório um caderno de títulos, que eram atribuídos meio aleatoriamente sempre que surgiam filmes difíceis de traduzir.  Os títulos tinham que ter a ver com o tema do filme, e deviam ser chamativos, no estilo de Trama diabólica, Pacto de sangue, Almas em leilão, Entre dois amores, À beira do abismo, Desejo mortal, Rastros de ódio...

Quando um filme se intitula Once upon a time in the West não custa muito traduzi-lo para Era uma vez no Oeste. Mas quando um filme tem o título de Giant, talvez “Gigante” passe uma idéia errada. O que faz a distribuidora? Tira de sua cartola mágica um dos melhores títulos de todos os tempos, Assim caminha a humanidade. O Sunset Boulevard de Billy Wilder poderia ter virado “Avenida Crepúsculo”, mas resultou no ótimo Crepúsculo dos Deuses.

Nem sempre essas descobertas são consequências da pobreza do original. Um filme chamado Love is a many splendored thing bem poderia ser batizado aqui como “O amor é uma coisa muito esplendorosa”, mas não acho isto melhor do que Suplício de uma saudade, que bateu e ficou. É açucarado, mas está no clima do filme, o que não acontece com o Depois daquele beijo que apuseram a Blow Up.

Quando o original tem um título marcante, melhor mantê-lo e colocar um enfeite lusófono, como temos em Outland, Comando Titânio, Minority Report: a nova lei, Videodrome, a síndrome do vídeo. Só não se deve é pegar pesado como ocorreu com Darling, a que amou demais (Schlesinger), Persona: quando duas mulheres pecam (Bergman) ou Mouchette, a virgem possuída (Bresson).

O bom e velho Expedito, distribuidor de filmes na Paraíba, era senhor-do-baraço-e-do-cutelo no circuito interiorano. Tinha o direito conquistado de cortar cenas, mudar títulos, o escambau. Contou pra gente uma vez como resolveu o problema gerado por Édipo Rei de Pasolini. “Isso é lá título!”, reclamou. E cortou o nó górdio de maneira exemplar: Édipo, o Homem Que Matou o Rei. E dizia: “É mentira minha? Assista o filme!”.

Tiro meu chapéu para quem transformou America, America de Elia Kazan em Terra do sonho distante; Bonnie and Clyde de Arthur Penn em Uma rajada de balas; The man from Laramie de Anthony Mann em Um certo capitão Lockhart, Pierrot Le Fou de Godard em O demônio das onze horas; The big country de William Wyler em Da terra nascem os homens; Deus e o diabo na terra do sol de Glauber Rocha em Le dieu noir et le diable blond.







quarta-feira, 1 de julho de 2015

3855) Aprender a ler (2.7.2015)



Quando li o Tarzan de Edgar Rice Burroughs (na antiga tradução, acho que de Monteiro Lobato, da Coleção Terramarear) um dos episódios que mais me marcaram foi aquele em que Tarzan, já rapazinho e criado pelos macacos, encontra na floresta uma cabana abandonada. 

Ele não sabe que era a cabana onde seus pais tinham vivido; fica fascinado pelos livros, que são descritos com o “olho bruto” de quem vê algo sem compreender para que serve. Os livros têm figuras, e embaixo das figuras o rapaz-macaco vê umas formiguinhas enfileiradas, assim: “m-e-n-i-n-o”. E com isso ele vai relacionando as formiguinhas com as figuras, e aprende sozinho a ler. 

Fantasioso? Sem dúvida, mas é dramaturgicamente impecável, e é a única cena do livro que eu lembro inteiramente até hoje.  (No original, aliás, é até mais plausível: ele se acostuma a ver as três formiguinhas b-o-y embaixo de toda imagem de um menino.)

Dias atrás fiz uma palestra para uma turma de estudantes de leitura numa escola particular em São Paulo. São pessoas na faixa dos 30-40 anos que não tiveram carreira escolar normal e que agora, depois de adultos, estão praticando a leitura, inclusive leitura em voz alta. Meus cordéis publicados pela “34” (Artur e Isadora, O Flautista Misterioso) estão sendo estudados por eles, daí o convite para que eu fosse trocar idéias.

Contei a eles o caso do cordelista João Martins de Athayde. O pai queria que o menino o ajudasse na roça, e proibiu que ele estudasse. O garoto era teimoso, e aprendeu a ler por conta própria. Pegava pedaços de jornal que tinham ficado presos nas touceiras do mato, e perguntava às pessoas: que letra é essa, etc. Depois, conseguiu uma carta do ABC e andava com ela escondida no chapéu, estudando-a escondido, sempre que tinha tempo, fazendo perguntas a um e a outro. Assim se alfabetizou.

Há muitos casos de cordelistas analfabetos que compunham seus folhetos inteiramente de memória e depois ditavam as sextilhas a um filho que sabia ler e escrever. E o mais bonito é que a alfabetização do filho era custeada com a venda dos folhetos do pai analfabeto.  

E há o caso famoso de outro poeta popular, não me ocorre agora qual deles, que estava dando uma entrevista a um jornalista do Sudeste, que a certa altura lhe perguntou: “Seu Fulano, o senhor estudou?”. E ele respondeu, com modesto orgulho: “Não estudei, mas hoje sou estudado.”

Há numerosos tipos de meritocracia, mas ainda estou para ver um exemplo de alguém que tenha dependido exclusivamente de si próprio para vencer na vida. Da minha parte, gosto de lembrar essas histórias dos cordelistas humildes todas as vezes que recebo um cachê para falar numa Feira do Livro.





3854) A Oferenda (1.7.2015)



“Desde o cair da noite a cidade está cheia de expedições punitivas com homens empunhando barras de ferro, tochas, facões, lanternas e megafones. Incêndios crepitam nos sobrados dos recém-aprisionados. Os grupos gritam palavras de ordem, gritam os slogans que há meses lemos nos panfletos caídos na sarjeta ou distribuídos nos vagões de trem. Os perseguidos são poucos, mas são conhecidos, e em cada bairro as milícias armadas partem direto para o endereço de cada um, como que obedecendo a um planejamento urdido há meses no silêncio das conspirações.

“Caminho pela rua a passos apressados, porque é assim que todos estão andando, e não quero chamar a atenção. Não reconheço a rua onde ando; o que vim fazer aqui? Visto roupas que não são minhas. Não sei por que estou disfarçado. Sinto-me zonzo, desorientado, não sei ao certo para onde devo ir, sei apenas que preciso andar depressa. O alarido aumentou, e em cada rua que percorro são mais numerosas as poças de sangue, os corpos frouxos que pendem amarrados aos postes ou aos parachoques dos carros. Apresso o passo, vou me esquivando dos grupos com quem cruzo, os jovens ferozes de peito inflado, os cidadãos de olhos baixos, tensos, as mulheres dando-se os braços, apressando-se em passinhos miúdos rumo a algum refúgio possível.

“Disfarçado, irreconhecível, vejo surgir à frente um portão, que se abre, a mão de um menino me puxa para dentro de um pomar com árvores copadas, onde um cachorro fareja meus pés e se afasta. O garoto me conduz por entre os troncos, até um pátio coberto por um telheiro baixo. Homens de chapelão e de fuzil a tiracolo me apressam. Outro portão ao fundo. Trancas de ferro são afastadas; empurram-me com gentileza. Outro cão, maior, se aproxima e esfrega o focinho na minha mão estendida, parece me reconhecer. O portão se fecha e sigo sozinho por um corredor abobadado e úmido, desço degraus de pedra, vejo ao longe uma grade de ferro.

“Quem são essas pessoas? Onde estou? Do que estou fugindo? A grade desliza rangendo para o lado, o impulso irresistível da fuga me obriga a cruzar o umbral, sinto a grade deslizar de volta. Um cheiro de urina velha e de carne em decomposição. Um porão vasto, ao fundo do qual ergue-se uma criatura quadrúpede e mais alta do que eu, de pelo negro e olhos brilhantes, farejando-me. Caio de joelhos na palha úmida, porque sei por fim que minha caminhada terminou. A cidade será pacificada, enterrará os seus mortos ao nascer do sol, seguirá seu caminho graças a mim. Quando ele se aproxima e arreganha os dentes de um palmo de comprimento, eu fecho os olhos e aceito meu destino. Eu sou a Oferenda.


segunda-feira, 29 de junho de 2015

3853) O Futebusiness (30.6.2015)



A Seleção Brasileira ganhou dez amistosos seguidos mas bastou soltarem-lhe em cima duas ou três seleções sulamericanas e caímos todos na realidade. Uma coisa é ganhar de seleções européias que estão cumprindo um contrato Fifa “entre bocejos e pés de chinelos” e tirando fotos com os fãs. Outra coisa é entrar em campo para enfrentar colombianos e paraguaios com sangue no olho e cem anos de piadinhas verde-amarelas nos ouvidos.

O futebusiness internacional não deseja nem recomenda a decadência das grandes seleções. Tudo que ele quer é subir o sarrafo financeiro a ser saltado por todos: clubes, televisões, patrocinadores, seguradoras, confederações. Todo mundo está gastando mais com o futebol. O esporte corporativo gentrifica a pelada de rua e a transforma num complexo de gastos que vão do hotdog ao direito de imagem, da cadeira numerada à percentagem nos contratos. Ninguém quer diminuir com isso a qualidade do jogo, pelo contrário. Mas é como chamar um jogador e dizer: “Olha, você ganha 100 mil por ano, agora vai ganhar 25 milhões, e precisa corresponder à altura.” O jogador não sabe como multiplicar sua qualidade técnica nessa proporção; acaba multiplicando a marra, o nervosismo, o discurso pretensioso de vendedor-do-ano ou de escolhido-por-Deus.

Nosso sofrimento na Copa América foi uma mera continuidade do sofrimento numa Copa do Mundo em que nosso time não jogou uma boa partida sequer. Ganhou aos tropeções de times mal ranqueados, ganhou dando pancada (o time que fez mais faltas na Copa de 2014), ganhou cavando pênaltis ridículos. Na Copa América, esse tecido de incompetência continuou a ponto de não se enxergar a costura. De Felipão a Dunga a única mudança notável foi a entrada de mais uma leva de nulidades como Roberto Firmino, Douglas Costa, Filipe Luís... Se eu vir algum desses cidadãos jogar futebol no futuro, retirarei alegremente o que digo.

Jogadores medíocres escalados para se valorizarem no mercado, e o técnico deve dizer: “Olha, tou te dando uma chance única, vê se aproveita.” Até os que são bons jogadores sofrem uma pressão que os deixa mentalmente descompensados, como Thiago Silva, praticante de alguns dos gestos mais absurdos dos últimos anos; e Neymar, craque e prima-dona. Reitero o que disse: as megacorporações não querem enfraquecer o futebol brasileiro, não querem que o Brasil perca. Nossas vergonhas são mero efeito colateral. O que está acontecendo no mercado do futebol (e espero que o escândalo Fifa possa significar o começo do fim) é como durante uma partida arrancar o Maracanã do lugar onde está e depositá-lo em outro. Impossível não ter efeito na bola. A bola pune.





sábado, 27 de junho de 2015

3852) Não poetize o poema (28.6.2015)



Numa entrevista concedida em 1994 a José Geraldo Couto, João Cabral de Melo Neto assim falou a respeito da noção de poesia:

Naquele poema ‘Alguns Toureiros’ eu digo que aprendi com Manolete a não poetizar o poema. Porque esse é o problema de muito poeta: é que ele faz um poema poético. Quer dizer, faz um poema a partir de elementos já convencionalmente poéticos. Ele perfuma a flor. É como se você planta uma rosa e depois acha que a rosa não está cheirando o suficiente e aí põe, em cima da rosa, perfume de rosas para ela cheirar mais (risos). Eles perfumam o poema. Existem toureiros que fazem isso também, floreiam demais o jogo.”

Poetizar o poema significa encher o poema de emoticons, de pequenas sinalizações indicando ao leitor a reação emocional que o poeta espera provocar. Sinalizações que revelam a insegurança do poeta com relação aos meios que emprega. 

Ele acha que o que escreveu não é suficiente, acha que o leitor não vai entender, e começa a reescrever aumentando, começa a encher o verso de pequenas redundâncias, como se cochichasse ao leitor, “olha só, isso aqui é triste”, “preste atenção, aqui é para você achar graça”, e assim por diante. Surgem redundâncias como “um sorriso alegre cheio de felicidade”.

Isso equivale, na prosa, àquele excesso de informações que o escritor, ansioso para descrever bem uma ação, começa a jogar no papel (e no olho do leitor). “Fulano entrou na sala esbaforido, enxugando o rosto, devido ao calor que fazia lá fora, pois era um dia de sol forte, uma vez que estavam em pleno verão e isso o fazia suar bastante”.  

Ou aqueles pequenos detalhes que todo escritor já cometeu uma vez ou outra: “Fulano ergueu as duas mãos no ar” (o que faz o leitor pensar: “e por que não as cinco mãos, ou as dezessete?”).

João Cabral via na arte dos grandes toureiros uma redução do jogo corporal ao mínimo essencial de movimentos, uma espécie de balé no limite entre a vida e a morte, uma economia de gestos onde um movimento a mais poderia desequilibrar o conjunto e fazer com que o toureiro fosse atingido. A mesma economia de traços de um desenho de Miró ou de Picasso (para ficar nos espanhóis).

Poetizar o poema é enchê-lo de adiposidades verbais, é achar que dois adjetivos invariavelmente se somam (quando na maioria dos casos cada um enfraquece o outro). 

Sem falar no uso do que ele chama de “elementos já convencionalmente poéticos”, ou seja, “rosa” é uma palavra considerada naturalmente poética, enquanto que “fósforo” ou “lagartixa” não o são. Uma noção que (para ficar nos nordestinos) Augusto dos Anjos já tinha bombardeado muito tempo antes.