quinta-feira, 14 de maio de 2015

3813) "Ensaio sobre a Cegueira" (14.5.2015)



Este romance de José Saramago, de 1995, lembra O Dia das Trífides de John Wyndham, cuja tradução foi publicada em Lisboa em 1962, na Colecção Argonauta. Há quem lembre também “A escuridão”, conto de André Carneiro (1963), que incluí na minha antologia Páginas de Sombra (2003). Todas essas histórias de “a humanidade ficou cega” percorrem caminhos parecidos, às vezes previsíveis, inevitáveis, pois as situações são basicamente as mesmas.  O que importa é o que cada autor consegue extrair delas.

Saramago mostra uma cegueira que é branca. Não uma cegueira de trevas, mas de luz, que lembra o testemunho de Jorge Luis Borges: “O preto é uma das cores que fazem falta a um cego. (...) Para mim, que estava acostumado a dormir no escuro, foi bastante incômodo, por muito tempo, ter que dormir nesse mundo de neblina esverdeada ou azulada e vagamente luminosa que é o mundo do cego.”

O núcleo de personagens principais se cria em torno do episódio inicial. Um homem fica cego ao volante; outro conduz seu carro e o deixa em casa, mas logo em seguida rouba o carro do que ficou cego, e mais adiante cega também. O “primeiro cego”, como passa a ser chamado, vai se consultar com um oftalmologista, e este consultório será o centro de propagação da cegueira, porque atinge os demais pacientes, todos com algum problema nos olhos: a rapariga de óculos escuros (como se trata de uma garota de programa, o termo português não destoa), o velho com a venda no olho, o menino estrábico.  Guiados pelas mulher do médico, que por alguma razão não cegou, são eles a constelação de luzes apagadas que iremos seguir até o capítulo final.

O livro não diz nenhum nome próprio: nem de pessoa, nem de lugar, nem de produto. É mais uma tentativa (tem havido muitas, ultimamente) de romance que evita dizer onde se passa. Ouvimos falar em prédios, consultórios, supermercados, quartéis, praças, e não vemos um nome sequer. Tudo que se conta neste livro (e que automaticamente visualizamos em Lisboa, por ser português o autor) poderia ter acontecido em Campina Grande.

Os primeiros cegos são trancafiados num manicômio desativado, e ali seguem-se episódios de sujeira e violência que lembram o Anjo Exterminador de Buñuel, lembram as memórias de campos de concentração. Saramago é um escritor de viés pessimista, chamado de “sal-amargo” por mais de um resenhador. O mais admirável é o modo como ele consegue tornar plausíveis, numa situação espantosa e desumanizadora como esta, os pequenos gestos de solidariedade dos seus personagens. As pequenas coragens, pequenas compaixões, compreensões e gentilezas: as últimas coisas humanas que se extinguirão.






terça-feira, 12 de maio de 2015

3812) O que é ser analfabeto (13.5.2015)



Um amigo meu passou uma semana no Japão. “Descobri o que é ser analfabeto,” disse ele. Pensou que tudo lá tinha letreiro em inglês, mas tem muito pouco. “É terrível você ficar olhando aqueles insetozinhos escritos, saber que aquilo significa alguma coisa, mas não ter nenhuma pista. Nunca senti tanta falta das linguagens ideográficas, como os hieróglifos, onde pelo menos a palavra passarinho parece um passarinho”. Ironia maior pelo fato de que o japonês começou como linguagem ideográfica, mas foi se sofisticando. Hoje, alguém pra ler precisa ser alfabetizado.

Viver numa cidade grande e não saber ler é como ser jogado no mar com os braços amarrados. Em “Um Assassino entre Nós" ("A Judgement in Stone", 1977), Ruth Rendell conta a história de uma empregada doméstica inglesa que, por motivos variados, nunca se alfabetizou e chegou à idade adulta sem que ninguém percebesse essa deficiência. Numa infância desorganizada pela guerra, Eunice Parchman trocou várias vezes de escola, interrompeu os estudos, e durante a adolescência seu objetivo não era mais aprender a ler, e sim esconder que não sabia. E (diz a autora) a vantagem de ser analfabeto é que o indivíduo adquire uma excelente memória visual e se força a ser capaz de lembrar de tudo. Povos inteiros fazem isto desde que o mundo é mundo.

Uma velha piada apócrifa diz que Rui Barbosa saiu de casa às pressas, esqueceu os óculos, e ao chegar à rua São Clemente perguntou a um homem humilde, na calçada, que bonde era aquele que estava se aproximando. O homem respondeu: “Desculpe, eu também não sei ler”. Quem não sabe ler geralmente alega “um problema na vista” e pede para alguém lhe repetir em voz alta bilhetes, recados, tudo. Aprende a distinguir os números, acostuma-se a reconhecer palavras nas placas e letreiros públicos, mas não conseguiria reproduzi-las com lápis e papel, se lhe pedissem. Vive (diz Rendell) “numa misteriosa e sombria liberdade feita de sensações, instinto, e ausência da palavra impressa”.

O analfabeto que precisa esconder sua condição vive num estado permanente de alerta, porque de um instante para outro podem tentar obrigá-lo a decifrar alguma coisa; precisa de um repertório permanente de desculpas, evasivas. Acostuma-se a perguntar. Cultiva fama de distraído, esquecido. Conversa pouco, para que lhe façam menos perguntas. Diz Ruth Rendell: “O hábito de se isolar estava entranhado nela; não era mais consciente. Todas as fontes de calor humano e gestos de afeição e de entusiasmo tinham secado. O isolamento era algo natural agora, e ela não entendia que aquilo começara quando ela começou a se afastar da palavra impressa, dos livros, das coisas escritas à mão”. 



segunda-feira, 11 de maio de 2015

3811) Mario Quintana e Ray Bradbury (12.5.2015)



(Norman Rockwell, Looking out to sea, 1919)



Numa entrevista concedida a Edla Van Steen (incluída em Da Preguiça como Método de Trabalho, 1987) Mario Quintana dizia: “O que de melhor e de pior se publica atualmente nos Estados Unidos são as novelas de ficção científica. Entre elas, descobri as de um grande poeta, Ray Bradbury. É dessas obras que a gente gostaria de ter escrito.”  

Um elogio assim talvez baste para justificar minha tentativa de aproximação entre os dois escritores, que de fato têm muita coisa em comum. Bradbury é chamado por muitos “o poeta da FC” pela sua prosa rica de metáforas, o olhar lúdico com que descobre ângulos imprevistos em qualquer coisa, sua insistente fascinação com a infância. Sua obra lembra (mais do que a de Garcia Márquez) a frase de Garcia Márquez quando dizia: “Meu avô me contava histórias. Morreu quando eu tinha oito anos. Nunca mais aconteceu nada interessante em minha vida”.

Quintana (1906-1994) não tinha fôlego de ficcionista. Era bom prosador, como provam suas numerosas crônicas, suas ótimas traduções (Proust, Balzac, Virginia Woolf, Voltaire, Fredric Brown, etc), seus numerosos “fragmentos de almanaque”, uma forma específica que ele cultivou intensamente ao longo da obra. Sua aparente ingenuidade de menino tem muitos pontos em contato com Bradbury (1920-2012), inclusive numa certa rejeição aos aspectos mais invasivos da tecnologia. Ambos tinham fascínio por outros planetas, mas não por espaçonaves. Pelas perguntas da ciência, não por suas respostas.

Quintana dedicou ao norte-americano um poema (“Ray Bradbury”) em Esconderijos do Tempo (1980), dizendo que foi ele “o primeiro que, depois da infância, conseguiu encantar-me com suas histórias mágicas”. Fala (numa enumeração nostálgica que provavelmente deixaria Bradbury coçando a cabeça meio perplexo) no Menino Jesus, nas princesas, nos reis “heráldicos como cartas de jogar”, em São Jorge, em Dom Quixote, e depois finaliza:

Todo esse encantamento de uma idade perdida 
Ray Bradbury o transportou para a Idade Estelar 
e os nossos antigos balõezinhos de cor 
agora são mundos girando no ar. 
Depois de tantos anos de cínico materialismo 
Ray Bradbury é a nossa segunda vovozinha velha 
que nos vai desfiando suas histórias à beira do abismo 
-- e nos enche de susto, esperança e amor.

Não sei até que ponto o autor de O País de Outubro se agradaria em ser chamado de “Old Grandma”, mas os dois partilham a mesma sentimentalidade, a recusa ao materialismo, a lealdade para com o fraco e o pequeno, o humor negro sem crueldade, o jeito misto de menino e ancião, algo que ambos tiveram constantemente de uma ponta à outra da vida. 





sábado, 9 de maio de 2015

3810) O autor e o editor (10.5.2015)



(Pierre-Jules Hetzel e Jules Verne )

Um livro recente de William Butcher (Jules Verne inédit: les manuscrits déchiffrés, Lyon, ENS, 2015) mostra o resultado de anos de pesquisa nos manuscritos de Jules Verne. Na segunda metade do século 19 Verne foi o autor mais popular da França e um dos mais populares do mundo. Ao conhecer o editor Jules Hetzel, sua carreira tomou um rumo definitivo. Juntos os dois conceberam uma série de livros, sob o título geral de “Viagens Extraordinárias”, em que romances de aventuras serviriam de pretexto para passar informações científicas para leitores jovens, num momento histórico em que a política, a economia e a ciência trabalhavam em conjunto para expandir mundo afora o domínio europeu. A relação Verne/Hetzel é sempre citada quando se fala de projetos editoriais a quatro mãos; e o editor francês teve um papel importante no desenvolvimento do “romance científico” de sua época, tal como Hugo Gernsback e John W. Campbell teriam no meio século seguinte, na pulp fiction dos EUA.

O estudo de Butcher parece confirmar algo que vem sendo discutido há anos: Hetzel interferiu com mão pesada na escrita de Verne, forçando o autor a dirigir-se a um público pequeno-burguês, doméstico, adolescente, dando ênfase nos livros ao aspecto educativo e de formação do caráter, e extirpando tudo que pudesse ser polêmico ou desagradável. A prova mais evidente disso é sua recusa em publicar o distópico e sombrio Paris no Século XX, que Verne lhe apresentou em 1863 e guardou no cofre após a recusa. (O livro só foi publicado em 1994.)

Uma resenha de Nicolas Bareit (aqui: http://lectures.revues.org/17836) comenta os cortes promovidos por Hetzel em longos trechos e capítulos inteiros dos manuscritos que Verne lhe apresentava. Com 138 reproduções de páginas manuscritas, desenhos, esquemas, resumos, etc., o livro mostra o processo de trabalho do autor e permite comparar seu primeiro texto com o texto final publicado.

Outros estudos têm elogiado o trabalho do editor em enxugar a prosa abundante de Verne, o excesso de detalhes técnicos que ele (como todo autor que pesquisa a fundo) teve trabalho para recolher e não queria deixar de fora. Agora, lança-se nova luz sobre o outro lado. Um membro do grupo Le Club des Savanturiers, no Facebook, comentou: “Os capítulos suprimidos e as passagens inéditas revelam um Nemo heróico, um Fogg criminoso, uma Aouda despida, um Axel grande amante, um Strogoff altamente politizado. Em uma palavra: o Jules Verne existente antes do trabalho editorial geralmente iníquo de Jules Hetzel. Os leitores, incluindo-se aí os críticos, conheceram apenas um Verne leve, censurado, mutilado na própria carne".




sexta-feira, 8 de maio de 2015

3809) "Santa Sangre" (9.5.2015)



Estou coordenando, para a Escola de Cinema Darcy Ribeiro (Rio de Janeiro) uma Mostra do Cinema Fantástico, com filmes todos os sábados às 14 horas, entrada franca. A escola fica na esquina da Rua 1º. de Março com Rua da Alfândega, pertinho do CCBB. (Após a sessão, neste sábado, haverá debate comigo e o prof. Sérgio Almeida.)

Hoje, sábado 9, será exibido Santa Sangre (1989) de Alejandro Jodorowsky, cineasta brotado na onda do cinema underground dos anos 1970, os chamados “midnight movies”. Jodorowsky é uma figura arlequinal nas artes, tendo se envolvido com literatura, teatro, cinema, quadrinhos; foi parceiro de Moebius e de Fernando Arrabal. Na ficção científica é conhecido pelo seu projeto frustrado de adaptar o romance “Duna” de Frank Herbert, que não resultou em filme, nunca decolou, mas foi uma certa injeção de ambição imaginativa no gênero, pelo menos na Europa.

Dentre os seus filmes oficiais, El Topo (1970) é um faroeste iniciático, A Montanha Sagrada (1973) é uma jornada-do-herói controlada por um duende metalinguístico, e Santa Sangre é um melodrama mundo-cão, grotesco e surpreendente, uma mistura de filme-de-terror-B-mexicano baseado em pulp-fiction estilo “weird menace”. Tem pontos de contato com um certo tipo de cinema “udigrudi” que se fazia no Rio e São Paulo na época. Um cinema meio sujo, anárquico, e que mesmo numa das raras superproduções só produz na pindaíba. Filmes pululantes de marginais, artistas de circo, fanáticos religiosos, bandidos excêntricos, militares, padres, políticos, mutilados, anões, deficientes físicos... Tipos inquietantes, meio caricaturais. Violência física, mas esfriada pela imprevisibilidade do enredo.

Santa Sangre tem momentos daquele dramalhão com ressonâncias freudianas que se vê em Nelson Rodrigues ou em Buñuel. Deste, principalmente, tem aquele gosto pelo excessivo, pelo gótico, pelas imagens bizarras sem explicação. Tem alguma coisa daquele exagero mórbido do teatro de Grand Guignol ou de algum dos vários tipos de teatro da crueldade (ou da violência) que foram tão praticados naquela época.

A certa altura o filme faz lembrar o conto de Maupassant, “O artista”, em que um atirador de facas num circo confessa ter vontade de matar a esposa, que o acompanha no número, mas diz que não consegue “errar”. O cinema de Jodorowsky é muito referencial, cheio de alusões, citações, homenagens, paródias a Fulano ou Sicrano. Mas quando ele emula Hitchcock, não é de uma maneira previsível, como acabaram se tornando os filmes de Brian de Palma, onde a referência fica sendo a razão de ser da cena. Jodorowsky insere a referência, mas não é nela que a cena está focada.


quinta-feira, 7 de maio de 2015

3808) O polvo (8.5.2015)



(foto: Sebastian Niedlich)

Um fato insólito ocorreu mês passado no Laboratório de Biologia Marinha da cidade de Devon, na Inglaterra. Uma assistente do laboratório, Diana Rubin, 28 anos, estranhou o fato de que, ao abrir a porta às 6 da manhã (ela era geralmente a primeira a chegar, para controlar os índices de um dos trabalhos que estava pesquisando) encontrou o chão molhado e percebeu a ausência de peixes ou crustáceos de um dos vários tanques de espécimens que ficavam numa extremidade do salão. As escrivaninhas, o material de escrita, os arquivos, tudo o mais estava intacto. Quando o fato se repetiu, câmeras de segurança foram instaladas, enquadrando inclusive as portas e janelas. A luz foi deixada acesa. Certo dia, checando as imagens ao chegar, Diana teve um susto.

Numa das laterais do laboratório havia um grande tanque, com um polvo dentro. O tanque era fechado por uma tampa circular metálica, de rosca. Mesmo à distância, foi possível perceber que a certa hora da madrugada, o polvo se aproximou da tampa, por dentro, aplicou as ventosas dos tentáculos à superfície interna da tampa, desenroscou-a, continuou a segurá-la com um tentáculo e esgueirou-se pela abertura de uns trinta centímetros de diâmetro, forçando para fora seu corpo esponjoso, borrachudo, cheio de cartilagens. Deslizou para o chão, deixando um rastro molhado, foi até um tanque aberto, recolheu alguns peixes, trouxe-os consigo, escalou o tanque, voltou para dentro dágua, voltou a enroscar a tampa pelo lado de dentro e fez sua refeição. Tudo não durou mais que dois ou três minutos.

Diana Rubin pediu providências. A direção do laboratório a ignorou. (Ela era uma bolsista recém-chegada do interior, não tinha amigos influentes.) Os colegas a quem denunciou o fato riram-se dela, recusaram-se a ver as gravações. Durante dois dias, Diana falou com meia dúzia de cientistas, e o único que concordou em ver as imagens disse que eram de má qualidade, que aquilo só seria aceitável se fosse filmado de perto, com uma câmara digital de boa definição. Brincando, sugeriu que se ela provasse o que dizia conseguiria uma promoção e um aumento.

Na manhã seguinte, pesquisadores chegaram ao laboratório e viram o corpo de Diana Rubin caído no chão, tendo ao lado uma câmara espatifada. Seu pescoço estava partido, cheio de marcas roxas. Poças de água no chão. O polvo estava em seu tanque, parecia adormecido. Ao lado do cadáver, via-se uma caneta e um bloco de anotações, todo molhado, onde era possível ler em garranchos:  “mim matei”, em letras de imprensa trêmulas, que pareciam de criança, pareciam de alguém que está começando a se auto-alfabetizar.


quarta-feira, 6 de maio de 2015

3807) Ler na cama (7.5.2015)



Pergunta-se muito às pessoas “qual é o seu livro de cabeceira”, supondo com isto que cada pessoa mantém um livro junto à cama para se aconselhar naquele aconchego de pré-dormida, ou durante as horas de insônia. 

Livro de cabeceira implica livro favorito, livro companheiro-de-todas-as-horas, mas que, como qualquer companhia de todas as horas, ganha uma importância especial nas horas em que tudo está bem, tudo está em paz, a família ressona, a cidade descansa, as contas estão pagas, “governo e oposição estão sem assunto” (como dizia Guilherme de Figueiredo), o mundo inteiro está adormecido... e para acontecer o “plin!” da perfeição a gente precisa apenas estender o braço, e apanhar o Livro de Cabeceira. Qual é o seu?

Eu não tenho, ou melhor, tenho junto da minha cama um movelzinho de madeira com duas fileiras de volumes. A última vez que contei, eram vinte e sete. 

Ali tem principalmente livros recentes que ainda estão sendo examinados pra ver se dão um caldo, livros de amigos, livros divididos em unidades menores (poesia, contos, artigos, variedades, fragmentos) que vou lendo ao ritmo de uma unidade por semana. 

Não existe O Livro Especial, e muitos que ali estão são livros de releitura, volumes de contos ou de poemas que já li dez vezes, mas a última delas foi quinze anos atrás. Em verdade vos digo: a gente só pode dizer que conhece um livro quando o lê pelo menos duas vezes.

O “pobrema” de ler na cama não é mental nem bibliográfico, é físico. Primeiro, a posição. Tudo que a Inquisição Espanhola vem fazendo à minha coluna nos últimos vinte anos não se deve às minhas piadinhas de herege, e sim ao costume de ler deitado. 

Os médicos já insistiram: “Ponha travesseiros, sente em forma de L (tronco ereto, pernas esticadas). Não leia na horizontal com os travesseiros forçando seu pescoço para cima”. Disseram, mas não adiantou, foi como se eu telegrafasse hoje para John Lennon pedindo-lhe que não desse autógrafo a ninguém quando chegasse em casa tarde da noite.

E aqui pra nós, é uma coisa fisicamente absurda o camarada pretender ler deitado, com os dois braços tendo que manter o livro erguido no ar, com a luz do teto incidindo nos olhos e a página sendo mantida na sombra. Em casa a gente se vira, mas 99% dos hotéis brasileiros tratam seus hóspedes como indivíduos avessos à leitura: não há um mísero quebra-luz pra clarear o livro. 

Sem contar o maior problema de todos, resumido por Millôr Fernandes num versinho que trago decorado desde a infância: 

Ler na cama 
é uma difícil operação. 
Me viro e me reviro 
e não encontro posição. 
Mas, se afinal encontro um cômodo abandono... 
pego no sono.






terça-feira, 5 de maio de 2015

3806) Dicas anti-racismo (6.5.2015)



(foto: navio negreiro, por Marc Ferrez)

A revista eletrônica Salon perguntou a ativistas e escritores negros que atitudes podiam ser tomadas, por pessoas brancas, para combater o racismo nos EUA. Algumas respostas (http://tinyurl.com/pbhj8hd) indicam caminhos para isto, numa época de tanto conflito e de tanta violência, como vimos recentemente em Baltimore. (Sem falar no Brasil, claro.) Para Kali Holloway, que escreveu a matéria, “abordar o racismo e a desigualdade racial como um branco aliado é necessariamente desconfortável e difícil. Implica em pôr de lado defesas pessoais para reconhecer as maneiras como nós, brancos, consciente ou inconscientemente apoiamos a supremacia dos brancos. Significa desafiar a si mesmo a reconhecer a existência dos privilégios, e do fato de que nos beneficiamos deles, pessoalmente.”

Brittney Cooper, co-fundadora do Salon sugere que não basta a um simpatizante branco ir às comunidades negras para manifestar apoio, mas também proclamar sem medo esse apoio quando estiver cercado apenas de brancos, e usar seus privilégios para confrontar as injustiças raciais quando as presenciar, seja no mercadinho da esquina ou na sala de reuniões da diretoria. A escritora Daisy Hernández (A Cup of Water Under My Bed: a Memoir) aconselha o pessoal a prestar atenção na linguagem quando estiver lendo ou escrevendo. Quando a polícia atira em alguém na rua, o texto se refere a um “estudante” ou a um “jovem negro”? Falar e escrever significa fazer escolhas verbais que definem nossa atitude, e essas escolhas muitas vezes são herdadas inconscientemente.

Arthur Chu, colaborador de Salon, aconselha os brancos a lerem algum livro: “É mais barato do que pagar por uma aula, e infinitamente melhor do que tentar estudar o assunto com opiniões de terceira ou quarta mão fazendo perguntas via Twitter. Se você tem amigos negros ou asiáticos, é muito melhor perguntar qual o livro que eles lhe recomendam do que pedir a eles que lhe expliquem ali, na hora, a questão racial.” Rebecca Carroll, colaboradora do Guardian, levanta entre outras questões esta, muito simples, citando a atriz Amandla Stenberg, a Rue de Jogos Vorazes: “Que tal se a gente gostasse das pessoas negras tanto quanto gosta da cultura negra?”.

Sarah Sahim, escritora, adverte: “Fique de pé e proteste. Muitos estão impossibilitados de protestar, mas há opções. Crie alguma coisa: fanzines, arte, podcasts, artigos. Vocês são brancos. Usem o respeito incomparável que recebem como direito de nascença para reconhecer e corrigir esta situação”. O privilégio é uma moeda, uma arma, um poder; que a gente recebe sem pedir, quando nasce, e resolve como vai usar, quando cresce.



3805) Ruth Rendell 1930-2015 (5.5.2015)



Ela pertenceu à linhagem das grandes damas do romance policial britânico, com Agatha Christie, Dorothy Sayers, P. D. James e outras. Cada uma com seu estilo e suas histórias; cada uma com seus criminosos típicos e seu detetive preferido. Não li nenhum dos romances de Ruth Rendell onde aparece o Inspetor Wexford, sua criação mais famosa, mas nada está perdido. O único consolo que temos na morte de um escritor é que ele se vai mas os livros ficam. (Imaginei agora, durante ume terrível fração de segundo, um planeta distópico onde a morte de um escritor fazia desaparecer para sempre todos os seus livros impressos e todas as palavras escritas por ele ao longo da vida.)

O obituário da BBC registra um fato divertido: bem jovem, ela trabalhou como repórter num jornal de Essex, e acabou demitida devido à cobertura que fez de um jantar num clube esportivo local. Rendell não compareceu ao evento e fez o que muitos repórteres fizeram e farão até o fim dos tempos: escreveu a reportagem “no escuro”, uma vez que jantares desse tipo são sempre iguais. O que ela não contava é que o orador principal da noite teve morte súbita durante o discurso, e o jornal dela foi o único que ignorou o fato.

“Eunice Parchman matou a família Coverdale porque não sabia ler nem escrever.” A frase inicial de Um Julgamento em Pedra (1977) é um dos começos mais famosos da literatura policial, porque abre o livro revelando quem é o criminoso.  A série fatalista de circunstâncias que leva uma empregada (que esconde o fato de ser analfabeta) a chacinar os patrões foi filmada por Claude Chabrol (La cérémonie, 1995). Pedro Almodóvar filmou Carne Trêmula (1997) baseado em seu romance Live Flesh (1986). A obra de Rendell, felizmente, tem sido traduzida no Brasil: deve haver mais de vinte títulos à disposição do leitor, por várias editoras.

Traduzi apenas um dos contos magníficos dela: “O Duplo (Encontro no Parque)”, na minha antologia Contos Fantásticos de Amor e Sexo (Ímã, 2011), a história de um homem dividido entre duas mulheres iguais. “The New Girl Friend” (1984) conta a história da amizade entre uma mulher e seu vizinho que pratica “cross-dressing” quando está sozinho em casa.  “The Fallen Curtain” (1975) mostra a busca silenciosa de um homem para reconstituir um episódio obscuro em que se envolveu num parque com um adulto, quando era menino. “The Haunting of Shawley’s Rectory” (1979) fala de uma casa assombrada por visões de um crime. Sua prosa é límpida, implacável; sua percepção da alma humana chega a ser incômoda – ela parece saber sobre seus personagens mais do que a prudência recomenda.


sábado, 2 de maio de 2015

3804) Que fim levou? (3.5.2015)



(foto: John Stanmeyer)

Que fim levou Marquinho Honolulu, lá de Olinda, que estava em todas as festas, não cantava, não dançava, ficava só sentado fumando e olhando as meninas, volta e meia se apaixonava pela namorada de alguém e entrava num processo etílico que durava meses, e a quem eu tentei inutilmente explicar como era o sistema correto, 4-4-3-3, de fazer sonetos?

Que fim levou Dona Terta, que todo dia pegava uma cadeira de palhinha, levava até embaixo de uma árvore frondosa em frente à oficina mecânica onde trabalhava seu filho único, Rondismar, e ficava ali fazendo crochê e ouvindo música no radinho de pilha, assim como quem não quer nada, e ai dos colegas de oficina se por causa disso mangassem de Rondismar, que tinha dois metros e cem quilos?

Que fim levou Vânder de Souza, que estudou comigo no Estadual da Prata, bem católico, bem certinho, e o único cara que eu já vi fazer um problema de palavras-cruzadas sem olhar o desenho, apenas ouvindo a gente dizer o enunciado e o número de letras, mantendo na memória cada letra de cada casa já preenchida?

Que fim levou Sônia Lima, a flor do meu bairro, musa unânime dos adolescentes locais, que desfilava inatingível do alto de seus três anos a mais do que eu, loura, nórdica, simpática, que se formou em enfermagem, e, dizem os invejosos, acabou casando com o primeiro doente a quem atendeu?

Que fim levou Dona Amarílis, doceira, quituteira, mãe de cinco filhos, esposa exemplar, que aos cinquenta anos ganhou numa loteria qualquer (e nem foi essas fortunas todas, porque acabou em menos de dois anos), largou tudo e foi viver com um primo em Caruaru?

Que fim levou Dandinho, que morava perto da bodega de Seu Anísio, trabalhava numa oficina, e um dia apareceu de cabeça raspada e disse que estava fazendo um treinamento ninja secreto para entrar na Polícia Federal, mas antes do fim da semana a irmã dele revelou que era piolho?

Que fim levou Seu Sueldo, aquele velho que vivia se balançando numa cadeira no terraço, com um caderninho na mão, anotando coisas, não se sabe o que, porque não era jornalista nem policial, era um ferroviário aposentado, e talvez por isso mesmo vigiasse tanto a rua, antes do filho ser transferido para uma agência bancária em Conselheiro Lafaiete e levá-lo consigo?

Que fim levou Valdir Bamba, amigo de um primo meu, que trabalhava no Zoológico de Dois Irmãos do Recife, e um dia tomou umas caebas, chegou triscado no trabalho, teve um bate-boca com um supervisor que quase resulta em tiro ou peixeirada, mas resultou apenas em Valdir Bamba sair abrindo tudo quanto foi gaiola e jaula, e promovendo um pandemônio que levou dias para ser corrigido?