quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

3710) 13 coisas que eu vi (14.1.2015)



Eu era pequeno e vinha chegando de ônibus em João Pessoa e naquela pontezinha do rio Sanhauá vi uma menina se equilibrando na passarela de uma palafita, e ela escorregou sem querer e caiu com tudo dentro da água.

Num hotel em Campos (RJ), eu esperava no estacionamento o carro que vinha me buscar, quando vi um hóspede parar junto de um carro todo empoeirado e escrever no vidro com o dedo: LAVA-ME POR FAVOR.

No metrô de Paris eu vi uma mulher de seus 75 anos de pé, vestindo roupas surradas, com o braço estendido e a mão em concha. Quando alguém lhe dava uma moeda, ela fechava os olhos de vergonha, e abaixava a cabeça.

Eu estava na rua olhando uma construção, e um pedreiro, do chão, jogava tijolos para outro no segundo andar, ambos ocultos por paredes, de modo que eu só via os tijolos se elevando no ar e sumindo dentro do prédio.

No ônibus para ir à rodoviária de Salvador eu passava por um campo de pelada onde bem no meio tinha um toco de árvore com um metro de diâmetro, a galera inclusive tabelava a bola no toco pra driblar os adversários.

Eu estava mexendo nos livros na estante de nossa casa na Rua Padre Ibiapina e vi uma lagartixa morta, ressecada. Ela ficou presa embaixo de um livro e morreu de fome, e o livro era a Bíblia Sagrada.

Numa rua do Flamengo eu vi, da janela do ônibus, dois caras discutindo na calçada. Um deles, mais alto, segurava pela mão o filhinho de 3 ou 4 anos. O outro era quem gritava mais, e a certa altura esbofeteou o mais alto no rosto. O cara não reagiu, e o filho não olhava para o agressor, olhava apenas para o rosto do pai.

Num lago congelado no centro de Amsterdam, vi a queda estrondosa de um patinador que devia pesar uns 200 quilos, e só depois criei coragem para atravessar o lago a pé.

Voltando de uma viagem ao Vale do Jequitinhonha, o ônibus parou para o almoço num restaurante de beira de estrada, e eu vi no quintal um papagaio, amarrado por uma correntinha a um bujão de gás no terreiro.

Vi na porta de um banheiro da Universidade Católica de BH a frase escrita a caneta, “Che Guevara não morreu”, e logo abaixo: “Deve estar comendo sua mãe agora.”

Perto de Triunfo (PE) eu vi um sítio cuja cerca de arame estava cheia de CDs pendurados, talvez para refletir o sol e afugentar os bichos.

No interior da Paraíba eu atravessei uma ponte sobre um rio seco, em cujo leito se via uma porteira, pois tinha virado caminho de gado.

Em Campina, perto da Faculdade de Filosofia atrás da catedral, eu ia andando com Leopoldo, um datilógrafo, e ele viu o salto de um sapato emergindo da terra e o arrancou, aí disse que sempre que via aquilo pensava que tinha um cara enterrado ali de cabeça pra baixo.



terça-feira, 13 de janeiro de 2015

3709) Benjamin Black (13.1.2015)



“Benjamin Black” é o pseudônimo adotado por John Banville para assinar uma série de romances policiais iniciada em 2006 com Christine Falls, e que nestes oito anos já produziu sete romances.  Fiquei prestando atenção em Banville quando vi uma palestra dele na Flip 2013 e Sérgio Flaksman (que já o traduziu) me disse que ele estava escrevendo um romance com Philip Marlowe, autorizado pelos herdeiros de Raymond Chandler.  Banville já ganhou um caminhão de prêmios literários, inclusive o Booker Prize, o mais importante da Grã-Bretanha.  Já comentei aqui o outro livro dele que li, o ótimo The Book of Evidence: http://tinyurl.com/pmepokg.

Christine Falls (2006) é o primeiro dos romances centrados em Quirke, um patologista de Dublin que depois de anos dissecando cadáveres começa a querer saber o que os trouxe ali. É uma Dublin dos anos 1950, chuvosa, depressiva, cheia de gente religiosa e inflexível. Já ia dizer que parece um “filme noir”, mas não são os altos contrastes entre preto e branco que dão o clima ao livro. Seria um “filme gray”, porque tudo é cinzento: a chuva, os prédios, os sobretudos, a moral das famílias tradicionais em cuja medula acontecem crimes inomináveis. Investigando a morte casual de uma moça, Quirke começa a descobrir uma rede de tráfico de bebês sob a proteção de organizações religiosas.

Banville tem uma prosa rica, concentrada, extrato literário puro para se tomar em gotas; Benjamin Black tem o mesmo extrato diluído numa prosa narrativa mais convencional.  Banville já declarou que se sente mais realizado com seus “thrillers” sob pseudônimo do que com os livros “sérios”, pois estes são obras de arte frustradas (como toda obra de arte), e os romances policiais acabam chegando mais perto do que queriam.  Christine Falls é um livro cruel, uma dessas histórias onde no fim todo mundo saiu perdendo alguma coisa.

“Black” descreve com conhecimento de causa a banalidade do Mal, como nessa cena em que Quirke é espancado à noite por capangas: “Quando os dois caíram sobre ele, com seus sapatos de bico de metal, parecia-lhe agora que agiam como trabalhadores comuns, carregadores de carvão, por exemplo, ou açougueiros manobrando uma carcaça desajeitada, ambos vingativamente ressentidos daquela tarefa, grunhindo, suando, atrapalhando um ao outro e doidos para que aquilo acabasse logo”.  Quirke bebe e fuma sem parar, vive sozinho (é viúvo) num apartamento minúsculo, é sarcástico, antissocial, um Philip Marlowe desencantado com o mundo. “Quando gente ruim,” diz um personagem, “acha que tem o dever de praticar o que se diz ser o Bem, a gente começa a sentir um cheiro de enxofre.”

domingo, 11 de janeiro de 2015

3708) A Gréia e a Zuêra (11.1.2015)



(foto: Christopher McKenney)

Todo humorista que trabalha e publica num país sob ditadura sabe que se falar mal do Grande Irmão pode ir para a cadeia, o hospital ou o cemitério.  Mesmo assim, humoristas do mundo inteiro topam correr esses riscos, e muitos se dão mal.  Tiro o chapéu para esses caras, porque se eu vivesse (como já vivi) num país sob ditadura eu provavelmente iria sair pela tangente e satirizar Nabucodonosor ou Calígula. 

E não me refiro apenas às ditaduras convencionais. O massacre do Charlie Hebdo em Paris, onde morreram vários desenhistas e funcionários do jornal, foi realizado por um tipo especial de ditadura que está crescendo no mundo.  Não é mais o ditador cuja estátua e efigie estão por toda parte, é o ditador oculto e às vezes anônimo, que quase ninguém ouviu falar. Não é a ditadura dos tanques de guerra na rua, é a ditadura de bomba na mochila.  Uma não é menos ditadura do que a outra.

Que o diga Salman Rushdie, perseguido durante anos por ordem de um aiatolá. O simples fato dele ainda estar vivo mereceria ser comemorado diariamente (inclusive porque é um ótimo escritor). A ditadura terrorista não é menos cruel nem menos absurda do que a Ditadura de Estado.  Não é onipresente como ela, mas por ser invisível parece estar a ponto de brotar em qualquer canto.

Todos devemos ter direito à Gréia (a deusa grega da Galhofa e da Esculhambação) e à Zuêra (a deusa africana da Gozação e do Escárnio). Sem elas, não poderíamos viver. Saber aguentar uma piada sem perder o sorriso e a pose é uma prova de traquejo social e de segurança íntima.  Quando o camarada reage com violência a uma piada, revela de pronto seu calcanhar de Aquiles.

Sendo o mundo o que é, porém, a piada é vista (e às vezes é feita) como mera ofensa sem humor, desaforo gratuito.  Humoristas vêm catucando onças com varas curtas desde que o mundo é mundo. Os humoristas deviam ser mortos, pelo que diziam?  Não. Deveriam ser proibidos de dizê-lo?  Não.  Mas todo humorista sabe que caminha em terreno minado; aceita o risco como o soldado que vai pra guerra está aceitando o seu. Que um cara tenha a coragem suicida de fazer isso é uma coisa admirável. Extremismos e fanatismos estão recrudescendo por toda parte. Esse humor demolidor e de escracho com símbolos alheios está sendo feito num contexto de guerra, mesmo uma guerra declarada unilateralmente, como a dos terroristas. Nosso verniz de democracia é tênue; às vezes basta o peso de um cartum para rachá-lo, e aí a verdadeira natureza do Poder se revela. Porque o país pode até ser uma democracia formal, mas o mundo, como um todo, continua sujeito à Ditadura do Terror.





sábado, 10 de janeiro de 2015

3707) Wolinski (10.1.2015)



E os extremistas mataram Wolinski, o único cartunista francês cujo nome e cujo traço eu sabia de cor.  Conheci a obra dele lá por 1980, em Olinda, quando eu me asilava na casa de Paulo Santos de Oliveira, perto do Alto da Sé.  Paulo era cartunista (hoje é romancista: A Noiva da Revolução) e junto à sua prancheta havia uma estante cheia de álbuns trazidos das andanças européias. Wolinski tinha aquele traço minimalista e acelerado que Henfil, entre nós, levou aos píncaros mais delirantes. Seu personagem típico era um cara careca de nariz batatudo, queixo noel-rosa, sempre cercado por sereias vulcânicas que ou se recusavam ao sexo com ele ou se ofereciam sem que ele percebesse. A sacanagem de Wolinski nada tinha da nossa sacanagem moreno-tropical, era o mundo daqueles magrelos e branquelos franceses, discutindo Godard ou Sartre mas pensando o tempo todo naquilo.  Me identifiquei no ato.

Depois saíram álbuns dele aqui, pela Editora Três, se não me engano. Foi um alívio, porque o francês daqueles baluns era um dialeto críptico muito diferente do francês do “Cahiers do Cinéma”, que eu conseguia decifrar às apalpadelas. O humor era escrachado, e, pro meu temperamento cauteloso, ousado demais.  Nem a turma do Pasquim pegava tão pesado quanto o daquelas publicações, o Charlie Hebdo, o Canard Enchainé, o Echo des Savanes, outros nomes que agora me vêm brotando na memória, por entre a fuzilaria.

Quando o sujeito passa 50 anos satirizando Deus e o Mundo, um destes dois acaba reagindo. Em geral não é Deus.  Vi uma piada ótima na esteira do massacre, um twitter em inglês dizendo: “Eu sou Deus Todo Poderoso, sou Onisciente e Onipresente, o criador dos Tempos e dos Espaços, e posso muito bem aguentar uma porra duma piada”. Já o Mundo, infelizmente, não tem o mesmo senso de humor do Pai Eterno. Não sei ainda (alguém chegará um dia a saber?) se os assassinos são fanáticos ressentidos ou se são paus-mandados para apimentar uma crise geopolítica. Ou uma terceira coisa, ainda pior que estas duas. Mas é no meu artista que penso, o artista cujo rosto só vi, pela primeira vez, nos necrológios.

Disseram os sobreviventes que os Ninja-do-Mal entraram de rifles em punho na redação e “fizeram a chamada”, mandando que todos se identificassem para serem abatidos. Nas linhas que a tinta da História deixa em branco, todo mundo é capaz de rabiscar a lápis a lenda que mais lhe agrada. Criei para mim a fantasia consolatória de que ao ouvir seu nome, pronunciado com ódio pelos enviados do ódio, Wolinski, 80 anos, uma vida plena, uma vida ganha, ligou o “foda-se”, ficou de pé e disse: “Wolinski sou eu.  Algum problema?”




sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

3706) Tudo que reluz é Louro (9.1.2015)



(Instituto Lourival Batista, na antiga residência de Louro)

Acabo de chegar do Vale do Pajeú, onde passei cinco dias que pareceram durar cinco minutos mas valeram por um curso de cinco meses. A festa do Centenário de Lourival Batista (1915-1992), o velho e querido Louro do Pajeú, juntou centenas de poetas, cantadores, glosadores, cordelistas, pesquisadores, apologistas e estudiosos da poesia para comemorar os cem anos de um dos cantadores de viola mais amados, pelo cara talentoso, paternal, boêmio e inteligentíssimo que era.

Foram cinco dias de festa, com shows de numerosos artistas e grupos locais, além de Ednardo, Xangai, Maciel Melo, Vital Farias. A família de Louro também subiu ao palco com sua filha Bia Marinho e seus netos Tonfil e os integrantes do grupo Em Canto e Poesia. Tivemos lançamentos de livros sobre poesia popular, shows de MPB e forró, mesa de glosas (a primeira que vi ao vivo, uma coisa fascinante), e apresentações de violeiros. Tive a alegria de reencontrar cantadores amigos meus há quatro décadas, como Severino Feitosa, Moacir Laurentino e João Furiba (lúcido e alegre com mais de 90 anos).

“Tudo que reluz é Louro”, o lema do evento, foi criado por Ésio Rafael e imediatamente adotado por Antonio Marinho, organizador-chefe, motor de mil cilindradas, que bate o escanteio e faz o gol de cabeça. Louro reluz na memória de todos, pelas muitas qualidades como pessoa e como poeta.  Rei do trocadilho na poesia popular, aplicou nela seu talento de charadista capaz de desmontar e remontar uma palavra em questão de segundos, sem esforço aparente.  Dono de uma língua ferina muito temida pelos adversários, era ao mesmo tempo incapaz de uma maldade.  Boêmio inveterado, passava três dias seguidos na farra, cantando, bebendo, despranaviando, e há quem diga que (como fez o sol com o bíblico Josué) a lua passava três dias e três noites sem se mexer no céu, para acompanhá-lo na farra.

Essa poesia é a poesia que brotou na Serra do Teixeira por volta de 1850 e meio século depois começou a se derramar pelo verde do vale do Pajeú, unindo Paraíba e Pernambuco num país acima das fronteiras, onde a palavra “poeta” é forma de tratamento, e onde, se um menino de pés descalços se aproxima da gente na rua, não é para pedir dinheiro, é para oferecer um verso. Durante o evento desta semana, no centro da cidade uma multidão três vezes maior assistia shows de Pablo, Harry Estigado e Calcinha Preta. São dois Brasis, duas cidades que enxergam mundos diferentes, convivendo no mesmo espaço urbano, na mesma rede de relações civis. A gente não precisa combater a cidade dos outros. Basta fazer com que a nossa continue assim: viva, alegre, forte e reluzindo, chamando a atenção dos satélites da NASA.




3705) As multidões de Zoza (8.1.2015)



(ilustração: Inferno The Royal)

Fosse Zoza um caba fraco, já tinha dado um tiro na cabeça. Porque não sei não, mas é multidão demais pruma cabeça só.  Não é todo mundo que aguenta passar o dia argumentando com tanta gente. Por exemplo. Zoza acorda às três da tarde, tem um boleto que vence hoje, e tem que pegar o Banco aberto antes das quatro.  Na verdade, ele nem sequer “lembra”. Já acorda com dois ou três gritando: “Zoza! Vagabundo! Isso é lá hora! Toma um banho, veste uma roupa decente, a conta venceu!  Bora, campeão, sejas foda, corre lá senão é mais dez por cento!”  Zoza cambaleia, esfrega água fria, derrama água fervendo, beberica sem açúcar enquanto se veste. A vinte metros do banco brota-lhe do íntimo outra multidão que o insulta. “Lacaio do capital!” Todos exigem dele uma moral, uma Ética, uma teoria verossímil do homem hodierno.  Zoza explica: o boleto etc.  Não o perdoam. O banco fecha. Olha aí Zoza, parado na calçada, olhando o muro e pesando os prós e os contras de admitir que tudo aquilo aconteceu.

Zoza mora numa pensão onde a dona, paga em dia, nem se interessa. Para ela nada está além da imaginação. Se alguém desembarcar seu galeão no continente virgem da alma dela, vai encontrar a dez metros da costa um posto de gasolina, uma borracharia, uma lanchonete-bar  e um puteiro, todos da mesma dona.  Ela não quer nem saber.  Não liga se você responde com outra voz, se seu olho faísca, porque ela inclusive é uma pessoa de mentalidade moderna, aberta.  Você pagando, e pagando em dia, pode ser, ter, fazer – o que bem quiser. Para a dona da pensão, um esquizofrênico em dia é melhor do que um sadio atrasado.

Zoza era expulso das pensões. Grupos revoltados o conduziam mentalmente aos arrastos, com ele gritando: “Não!  Não pago um centavo!  A humanidade me deve isto!”  Zoza se espantava com o próprio atrevimento, mas cedo descobriu que algumas donas de pensão não só acreditavam na sua conversa de “Diálogo Psico-Astral com uma Raça Superior”, como davam a isso um valor maior que ele próprio. A única raça superior em que Zoza acreditava era pegar, e cráu! 

E ele vive assim, senhoras e senhores, desorientado com tantas ordens peremptórias, com tantas voracidades normativas, com tantos imperativos categóricos, com tantos palpites na vida dele, pitacos sem noção, cutucadas, alfinetadas, todo mundo querendo botar voz e voto no derivar da sua vida.  Zoza tinha essa cara enfarruscada e não era para menos. É difícil se fazer ouvir por cima de uma gritaria mental tão grande, é difícil manejar um navio que cada vela puxa para um rumo diferente, é difícil fazer jus às multidões de si mesmo, tão cobradoras, sempre em busca de mais e mais.




quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

3704) Henry James e Machado (7.1.2015)



De vez em quando alguma coisa de Henry James me lembra Machado de Assis.  Não sei se alguém os acha parecidos; eu acho, e muito.  Quando se fala nas influências britânicas de Machado é lembrado Laurence Sterne, citado nominalmente (e bem visível, em estilo) no Brás Cubas.  Eu penso na semelhança de Machado com James. Aqueles salões, aquelas paixões furtivas, senhores emproados, damas melífluas, aquele ambiente de chás e comendadores e intrigas a meia voz por entre leques e mantilhas. Sem falar nos dois estilos, que correm em paralelo, como dois pianos acompanhando, cada um a seu modo, uma melodia que só os dois escutam.

No conto “The Romance of Certain Old Clothes” (1868) vi esta cena breve de uma discussão de casal, onde o autor diz: “Lloyd put his arm around his wife’s waist and tried to kiss her, but she shook him off with magnificent scorn.”  Que eu traduziria assim, ao meu modo: “Lloyd passou o braço pela cintura da esposa e tentou beijá-la, mas ela o repeliu, com soberano desprezo.”  O adjetivo “magnificent” me lembrou uma cena parecida.  Fui encontrá-la no capítulo XV do Brás Cubas, quando nosso herói está tentando subornar Marcela (a dos “quinze meses e onze contos de réis”):

“No dia seguinte levei-lhe o colar que havia recusado. — Para te lembrares de mim, quando nos separarmos, disse eu. Marcela teve primeiro um silêncio indignado; depois fez um gesto magnífico: tentou atirar o colar à rua. Eu retive-lhe o braço; pedi-lhe muito que não me fizesse tal desfeita, que ficasse com a jóia. Sorriu e ficou.”

É pouco; mas é típico.  A “magnificência” dos gestos deixa a entender que são resultado de longo estudo por parte da mulher. Há em Machado e James uma espécie de ironia bem-humorada no acompanhar das ações dos personagens, menos para diminuí-los do que para divertir-se, por meio de certa malícia paternal, com seus percalços. Onde se distinguem mais é na presença mais ativa (e mais moderna) do Eu-Narrador de Machado, mais desenvolto do que o de James, mais disposto a ocupar o proscênio, a fazer parar a história enquanto proseia com o leitor. 

No mais, ambos os romancistas são discretos, meditativos, mais à vontade com salas de visitas do que com batalhas campais; ambos conscientes do público feminino que os lia, ambos mais afeitos à observação atenta do que à ação arrebatadora.  Seu mundo é o de cavalheiros que nunca trabalham, de uma vida social de regras rígidas e maledicência constante, repleta de duplos sentidos, evasivas, dissimulações, pequenos rituais de salão que mal ocultam a dinâmica real dos amores e dos ódios, um estilo indireto de vida social que impregna e modula a frase, o enredo, a voz narrativa.




3703) Contracapa de chip (6.1.2015)



(ilustração: Supranav Dash)

&  poesia não tem regras que é preciso obedecer, tem hábitos que é possível mudar  &  já que é assim, regulamentemos a propina e incorporemos o trambique  &  bastaria o mundo inteiro ficar sem luz elétrica sete dias para destruir a civilização como a conhecemos  &  na política só existem dois objetivos: chegar ao poder, e manter-se no poder; o resto são tarefas perfunctórias e retórica tecnocrata  &  a Natureza foi sábia quando nos fez sem botão de autodesligamento  &  certas drogas dão uma aparente grandeza a quem não consegue mais crescer  &  vá à luta; a única coisa que cai do céu é satélite sem manutenção  &  a vida é feita de alegrias equivocadas e sofrimentos inúteis  &  tem gente que se comporta como se estivesse cercada de biógrafos autorizados  &  aquela extenuante sensação de viver numa vitrine iluminada em plena avenida  &  não me lembro a última vez em que eu abri os olhos de manhã e disse “oba!”  &  a vida é como o futebol, para cada gol sofrido é preciso fazer pelo menos dois  &  toda foto é um fotograma de um filme que se perdeu  &  não abra minha cabeça não, que vai ser barômetro explodindo pra todo lado  &  a imbecilidade chega a ser perdoável, quando desacompanhada da grosseria e da pretensão  &  será que uma biografia só pode escolher entre ser uma versão imposta e uma calúnia gratuita?  &  ricos não se contentam com animais, eles precisam de pessoas-de-estimação  &  e aqui estou eu de novo, entrando nas águas daquele outro rio e tomando meu último banho mais uma vez  &  a vida é uma fruta onde a gente é obrigado a engolir casca e caroço  &  o mundo fez da minha alma massa de pão  &  quem me dera lembrar de dez por cento dos repentes bonitos que eu ouvi  &  fazer um poema concreto em forma de formigueiro  &  o supersticioso está sempre a um passo de explodir o mundo  &  tem histórias que são tão inverossímeis que só podem ser verdadeiras  &  qualquer dia desses vai ter aplicativo de smartphone com primeiros socorros, com canivete suíço, com psicanalista  &  a poesia é um macaco segurando uma banana de dinamite  &  feliz de quem não usa a força bruta mas poderia se precisasse  &  a esperança é a única que move  &  eu sou contra o latifúndio, mas quando é preciso eu defendo o meu  &  é o Acaso quem distribui os destinos  &  o mau gosto é mais próximo do sentimental do que do distanciado, mais próximo do bonito do que do grotesco  &  toda verdade humana é parcial, ou não seria humana  &  tudo que pode servir de prova da existência do Destino pode servir também de contraprova  &  a gratidão é o reconhecimento de uma dívida que não precisa ser paga  &

3702) Colecionar livros (4.1.2015)



Ser colecionador de livros não é comprar tudo que aparece pela frente. 

O colecionador de verdade entra muitas vezes num sebo atrás do outro e sai de mãos vazias, por orgulhoso amor à arte.  

Ele reconhece, numa prateleira de livraria a três metros de altura, uma lombada que não vê há trinta anos, e aponta: “Aquele ali”.  

Ele completa uma coleção específica (uma Futurâmica, uma Vagalume, uma Os Audazes) e continua em busca, para a lenta substituição dos volumes mais estragados por outros mais apresentáveis.  

Ele vai passando de ônibus num bairro desconhecido, vê de relance uma livraria, salta, entra, e sai de lá com uma preciosidade caída como um raio em céu azul.

O colecionador de verdade olha para suas estantes e considera a sério a possibilidade de começar a guardar livros no corredor do prédio, no elevador. 

Ele ouve a pergunta-padrão: “Você já leu esses livros todos?” e responde: “Sim, agora estou relendo”.  

Ele tem o mesmo livro em cinco versões diferentes: uma 1ª. edição, uma cópia autografada pelo autor, um exemplar para ler metendo a caneta, outro com uma capa que vou-te-contar, e uma edição eletrônica para fazer buscas rápidas. 

Ele tem a ousadia de botar dois livros improvavelmente lado a lado na estante, e sabe que isso é uma pequena obra de arte conceitual. 

Ele separa para doação 200 livros inúteis, e no dia seguinte traz metade deles de volta às estantes, porque foram reavaliados e achados imprescindíveis.

O colecionador não consegue esquecer até hoje o livro raríssimo e caríssimo visto num sebo e deixado para comprar no dia seguinte, quando, é claro, já não havia mais sinal dele. 

Ele tem uma primeira edição rara, toda estropiada e dilacerada, e não sabe se encaderná-la é um benefício ou um sacrilégio.  

Ele para numa calçada onde há uma lona coberta de livros, avista uma preciosidade largada por entre o resto, pensa: “Até 150 reais eu pago”, pergunta quanto é, e o cara responde com um muxoxo: “Tá velhinho... me dá 1 real.”

O colecionador encontra no sebo, numa daquelas prateleiras rente-ao-chão, um livro estranho, ininteligível, de autor ignorado, sobre tema controverso, folheia, fica perturbado, leva pra casa, e meses depois esse livro torna-se a única vítima de um inusitado e nunca repetido ataque de cupins. 

Ele viaja pelo mundo e tem o hábito de, em cada cidade por onde passa, comprar pelo menos um livro que vai ficar associado àquela cidade em sua memória.  

Ele folheia seus livros ao acaso e encontra entre as páginas fotos, flores secas, sedas, ingressos de teatro ou cinema, bilhetes, pequenos souvenires que valem, cada um, um livro inteiro – tal como cada livro vale uma biblioteca.





3701) O traidor Snowden (3.1.2015)



O criador do Netscape, Marc Andreesen, diz, curto e grosso: “Se você procurar a palavra ‘traidor’ numa enciclopédia, vai achar uma foto de Edward Snowden”.  

Diz Bill Gates: “Ele violou a lei, então eu certamente não o considero um herói. Ele não tem muita admiração de minha parte.”  

A CIA (onde ele trabalhava) e o FBI ganharão a megassena no dia em que botarem as mãos nele.  Edward Snowden é mais um norte-americano (como Daniel Ellsberg, que divulgou os “papéis do Pentágono” durante a Guerra do Vietnam) que aceitaram se tornar um Judas diante de todo o seu país, por motivos de consciência.

Snowden trabalhava em tecnologia da informação para a CIA e depois para a National Security Agency, e percebeu os desmandos que essas entidades praticavam contra o cidadão comum, violando emails e telefonemas, espionando pessoas sem autorização judicial, colocando filtros de investigação em canais públicos e privados onde não tinham o direito de fazê-lo. 

Ele era funcionário de alto escalão, com acesso a senhas e códigos.  Um belo dia, encheu o bolso de pendraives com documentos secretos a que teve acesso (cerca de 1 milhão e 700 mil) e fugiu para Hong Kong.  O material que ele copiou está hoje nas mãos de três grupos de jornalistas.

Refugiou-se na Rússia, enquanto os EUA torciam para que ele entrasse num avião que pudesse ser forçado a aterrissar num país aliado.  Uma situação surrealista: um norte-americano que defende a liberdade de informação fugindo do governo de Barack Obama e se refugiando sob o governo de Vladimir Putin.  (Nada no mundo é tão preto-ou-branco quanto nossa preguiça mental gostaria que fosse.)

Na revista Wired de setembro (http://tinyurl.com/q2gqxzz) Snowden diz como é viver num ambiente onde quem tem o Poder faz o que bem entende: 

“É como a história da rã na água fervendo. Você é exposto a um pouquinho de maldade, um pouquinho de violação das regras, um pouquinho de desonestidade, um pouquinho de trapaça, um pouquinho de desserviço ao interesse público, e vai aprendendo a deixar pra lá, e acaba justificando aquilo tudo.”  

Antes que a água começasse a ferver pra valer, Snowden pulou fora.

Jorge Luís Borges, no conto “Três versões de Judas”, propõe uma tese herética: a de que o Filho de Deus que veio salvar o mundo não foi Jesus Cristo. Ser chicoteado e crucificado, diz ele, era um preço irrisório a pagar pela glória de ser endeusado por todos os milênios vindouros.  

Foi Judas quem aceitou praticar a pior das vilanias: a traição a um amigo. E sofrer o castigo que nunca se apaga: o da infâmia.  Cada vez que execramos Judas, aumentamos o preço que ele (o verdadeiro filho de Deus) pagou para nos salvar.