sexta-feira, 10 de outubro de 2014

3627) Lovecraft e racismo (10.10.2014)





O World Fantasy Award, um dos principais prêmios da literatura fantástica, já foi recebido por muita gente importante. Na categoria de “Lifetime Achievement” (conjunto da obra), já foi para Ray Bradbury, Jorge Luís Borges, Italo Calvino, Harlan Ellison. Consiste num pequeno busto que reproduz H. P. Lovecraft. Em 2011, foi premiada ("Melhor Romance") a autora nigeriana-americana Nnedi Okorafor, que depois manifestou seu constrangimento ao ler um poema racista de Lovecraft. E agora há um movimento para mudar o prêmio, para não constranger pessoas que se julguem (possíveis) alvos de racismo.



Há indivíduos que são racistas e fazem disso o carro-chefe de sua vida, como os membros de Ku-Klux-Klan ou as autoridades da África do Sul na época do apartheid, etc.  Vivem em função disso; é a principal bandeira ideológica de tudo que fazem.  Esses, para quem não é racista, devem ser combatidos com a mesma firmeza com que perseguem suas vítimas.



E há pessoas que são racistas por mera osmose, porque foram criadas num ambiente onde isso era ponto pacífico, era um saber herdado e compartilhado sem jamais ser discutido.  Por isso é importante discutir publicamente o racismo, talvez não para mudar a opinião da categoria anterior – esses são o “núcleo duro” do racismo, não podem ser convencidos, podem apenas ser neutralizados.  Mas a discussão é para esses indivíduos que desprezam pretos ou judeus porque – como parece ser o caso de Lovecraft – cresceram num ambiente onde “gente de respeito não se mistura com gente inferior”, etc. 



Dá-se algo parecido com as religiões.  Muita gente cresce num ambiente vagamente religioso e adota a religião dos pais sem lhe dar muita atenção; torna-se geralmente aquele tipo “crente, mas não praticante”, e muitas vezes, se apertado, se colocado no canto da parede, o sujeito percebe que nem crente ele é pra valer.  Aceitou sem muito interesse, mas não crê naquilo de verdade. 


E Lovecraft? Parece que ele era um meio-caminho entre essas duas posições. Era um sujeito com traumas profundos, enorme senso de inadequação, inaptidão sexual, fantasias de nobreza e aristocracia, impulsos racistas que eram uma fantasia a mais.  Mas nada disso estava sendo celebrado quando foi dada sua imagem ao prêmio. A celebração era do seu talento como escritor e sua influência no gênero fantasia/horror.  Todo escritor tem defeitos como pessoa, tem falhas de caráter, tem ações ou omissões politicamente condenáveis, já se envolveu com atividades capazes de desagradar A ou B.  Vai ser difícil (se resolverem trocar mesmo a estátua) achar um escritor sem defeitos, pra botar no lugar dele.


quinta-feira, 9 de outubro de 2014

3626) Muitos anos depois (9.10.2014)




Na sala de visitas do dr. Amarante só faltava a lareira, mas havia uisque e charutos. “Aqui em São Luís da Serra uma lareira não destoaria,” disse o visitante, o advogado Hugo Restelo. “Meus pais se mudaram para esta casa já na época dos aquecedores elétricos,” disse o dr. Amarante, puxando as cortinas que mostravam por imensas vidraças o vale começando a anoitecer. “Mas tínhamos lareira na casa anterior, onde nasci, e que já não existe mais.”  “Não sabia,” disse Hugo, pegando o charuto do sogro para acender o seu. “Quando o sr. falava em sua casa aqui na montanha, sempre achei que fosse esta.” “A maioria das histórias de fato se refere a esta,” disse o doutor, que, na pia da parede oposta, fazia a torneira jorrar sobre uma caçamba de cubos de gelo, produzindo estalidos. “Vim morar aqui com dez ou onze anos. O mais importante aconteceu aqui.”



Brindaram erguendo os copos. Falaram sobre o passar do tempo. “Disse que a outra casa não existe mais?”, perguntou Hugo, olhando as luzinhas se acenderem nos chalés, em pontos distantes do vale. “Foi destruída acidentalmente. Eu estudava na Europa, tinha ido logo depois da morte dos meus pais,” disse o doutor. “A família do meu pai cuidou de tudo. Não lembro bem como foi”  Uma pausa longa. Hugo; “Uma lareira é um lugar bom para contar histórias, ouvir...”  “Passávamos noites agradáveis junto ao fogo,” disse o doutor. “Era lareira a lenha?” perguntou Hugo. “Não, era a gás, meu pai tinha inventado um sistema de canalização Ele trazia uma parte do gás que alimentava o moinho até nossa casa. Era gás.”


Houve um longo silêncio. “Meu Deus,” disse ele. Depois de mais um silêncio, Hugo falou: “Sabe o que isto significa, não é?  A casa queimou.  O inquérito suspeitou, mas não pôde provar, ter sido um vazamento de gás,”  “Botaram o gás para a festa do meu aniversário de dez anos,” murmurou Amarante. “Só houve o fogo mais de dez anos depois. Não venha me dizer que tem relação.”  Hugo: “Sabíamos que tinha, mas a polícia local, e seus tios, receberam o seguro “sub judice” e botaram uma pedra em cima do processo. Até bem pouco tempo era assim.”  O velho doutor ergueu o rosto. “Desde quando você sabe disso?  Desde quando pensou em arrancar isso de mim?” perguntou. E Hugo: “Desde antes de conhecer sua filha, de casar, de tudo. São milhões. Vários tipos de seguro, de prêmio, sei lá.  As companhias só precisam de uma confirmação idônea de que havia um ‘gatilho’ irregular de gás.”  “O fogo destruiu tudo. Não há provas. Toda a tubulação foi arrancada aos poucos.” “Tiveram tempo para isso?” “Na época, ninguém os estava vigiando.”  Um silêncio. “Quantos milhões seriam mesmo?...”


quarta-feira, 8 de outubro de 2014

3625) Pulp Fiction (8.10.2014)





Se você se avizinhasse de uma banca de revistas cinquenta anos atrás, perceberia, além da ausência de DVDs-de-brinde e de revistas pornô, a presença de uma miríade de livrinhos de bolso para vender. Os anos 1960 foram a Pocket Revolution, iniciada aqui, pelo que me consta, com as “Edições de Ouro” da TecnoPrint, com suas séries famosas de literatura de gênero: Futurâmica, Terror, Policial, Criminal, Aventuras... Logo surgiram séries dos grandes mestres: Agatha Christie, Erle Stanley Gardner, Ellery Queen, Rex Stout, e detetives de grande sucesso popular como Shell Scott, Chester Drum, Mike Shayne, Al Wheeler... Todos saíram às dúzias pelas “Edições de Ouro”.



Mas não eram os únicos. Nos sebos achamos remanescentes dessa fase em que o livrinho de bolso reinou soberano na jângal da literatura barata. Não dá para saber até que ponto eram mal escritos ou mal traduzidos.  No caso da FC, eram a pulp fiction norte-americana no que ela tem de mais melodrama, mais clichê, mais invencionice bizarra.  Livros com títulos como Zym domina o mundo, Homens-monstros do espaço, Os vespões de ouro, O terror da sexta lua... De vez em quando um deles era um clássico, de autor famoso, e a gente só ficou sabendo 20 anos depois.



Nos EUA, as revistas tinham sido o refúgio e a estufa protetora dessa literatura nos anos 1920-30-40. A partir da década de 1950, os pulp magazines, lá, começaram a ser substituídos pelos livros de bolso.  Uma banca de revistas podia exibir uns vinte exemplares simultâneos com histórias de Lester Dent, Hugh B. Cave, autores que sob o pretexto geral de “aventura” passeavam pela FC e pela fantasia, ou se concentravam num gênero, como foi o faroeste para Zane Grey, Louis L´Amour, Max Brand.


O Brasil teve revistas de pulp fiction (A Novela, Detetive, Mistérios, Meia Noite, X-9, Suspense, etc.) e teve a floração de livrinhos de bolso a partir de fins dos anos 1950.  A convivência competitiva entre revistas e livrinhos aconteceu aqui também, nos termos da indústria local. Os termos brasileiros, no caso dos livros de bolso, consistiam em traduzir o que fosse mais financeiramente acessível, publicando raros autores locais.  Alguns brasileiros aceitavam assinar nomes estrangeiros. Rubens Francisco Lucchetti, Jeronymo Monteiro, todos usaram pseudônimo.  Quando eu traduzia para a Editora Récord, vim a conhecer Gilson Soares, tradutor e revisor, que escrevia os romances de Miguel “Chucho” Santillana, autor de dezenas de livrinhos da Bruguera que ninguém teria comprado se ele os assinasse com seu nome verdadeiro.  Alguém precisa escrever a História Secreta da Pulp Fiction no Brasil.


terça-feira, 7 de outubro de 2014

3624) As vozes de Dickens (7.20.2014)






Um inquietante artigo de Peter Garratt no The Guardian examina a literatura e a vida de Charles Dickens em função do que poderíamos chamar “a arte de ouvir vozes”.  A tese do autor, bastante plausível, é de que Dickens era um desses escritores que praticamente “recebem os espíritos” dos personagens.  Criando os seus romances, improvisava longos diálogos que depois eram passados para o papel.  Diz Garratt que entre 1853 e sua morte em 1870 Dickens realizou 470 performances públicas, que devemos entender como conferências e leituras dos próprios livros com alto grau de teatralidade.  Parece que Dickens eram bom nisso, porque viajou pela Europa e América fazendo essas dramatizações.



Ele cita um testemunho do próprio Dickens sobre o ato da criação literária: “Quando me sento para trabalhar num livro, algum poder benfazejo me mostra aquilo tudo, e atiça meu interesse, e eu não invento nada, não mesmo, eu somente vejo, e passo para o papel.”  Segundo ele, Dickens era interessado em mesmerismo, ilusões e alucinações. (Coisa que, uma geração depois, iria interessar autores como Doyle, Wells, etc.)  Ele provavelmente era um steampunk “avant la lettre”, mas devia ter um certo desdém pela tecnologia.  Seus garotos encardidos, maltratados nos orfanatos, perseguidos nos becos, fugindo de todos, prefiguram essa literatura dos marginais contemporâneos, só que uns marginais num mundo mais Julio Verne do que o dele.



Diz Garratt que “a experiência literária tem muito a ver com a experiência de escutar a conversa alheia.  Ler ficção é um processo de permitir que as vozes dos personagens soem em nosso ouvido interno, e de absorver os sons que produzem.”  Na minha experiência, foi Coelho Neto (Velhos & Novos) o primeiro autor que vi descrever um fenômeno que para mim era óbvio: o fato de que qualquer palavra que lemos vai sendo lida em voz alta por uma voz interior muito semelhante à nossa.  Não diria que é um fenômeno do ouvido (meus tímpanos não ouvem nada), mas do pensamento puro: pensar em palavras é imaginar seu som.


Dickens devia ser um daqueles autores que depois fizeram a fortuna das estenógrafas e dos vendedores de ditafones.  Nem sempre o autor que dita seus livros o faz com arroubos de entusiasmo.  Erle Stanley Gardner, cartesianíssimo autor, nunca perdia de vista a história nem os personagens.  Chandler, Edgar Wallace, todos ditavam para uma máquina tanto quanto Walter Scott ditava para um secretário.  Dickens não pensava em voz alta, provavelmente: tornava-se cada personagem, como num palco só dele. Quem cria assim precisa de alguém que registre.  É uma espécie de mediunidade fingida, para efeito de criação.


segunda-feira, 6 de outubro de 2014

3623) Malditos passaportes (6.10.2014)





No meu tempo de estudante dizíamos: “Os americanos vêm ao Brasil e ficam escandalizados em ver que nós somos obrigados a ter uma Carteira de Identidade.  Isso é coisa de prisioneiro. Lá nos EUA isso não existe.  Quando um cara precisa se identificar, apresenta a carteira de motorista. Isso mostra o quanto vivemos num Estado Policial.”  Verdade parcial, como toda verdade.  Para coisas mais oficiais do que um baculejo na calçada, nos EUA, eles requerem o Social Security Number, que parece ser uma espécie de CPF (o cartão não tem foto nem data de nascimento).



A tendência dos Estados é se tornarem mais policiais e controladores à medida que ficam mais ricos e complicados. A documentação das pessoas de cem anos atrás é irrisória se comparada à de hoje.  Lendo biografias vemos como os dados da vida civil dos biografados são cheios de lacunas, de inconsistências, de ausências inexplicáveis. 



Stefan Zweig, em seu livro O Mundo de Ontem (1942) dizia: “Nada deixa mais claro o imenso retrocesso que recaiu sobre o mundo depois da I Guerra Mundial do que as restrições sobre a liberdade de deslocamento do homem e a diminuição dos seus direitos civis. Antes de 1914 a Terra pertencia a todos. As pessoas iam para onde desejassem e ficavam o quanto quisessem. Não havia vistos nem autorizações de permanência, e sempre me dá prazer deslumbrar os mais jovens contando que antes de 1914 viajei da Europa para a Índia e para a América sem ter um passaporte e sem ter em qualquer momento visto um. Embarcava-se e desembarcava-se sem questionar e sem ser questionado: não era necessário preencher um único dos inúmeros formulários requeridos hoje em dia.”



Não há como não lembrar, diante disto, do poema de Maiakóvski (de 1929) sobre o passaporte soviético. Ele começa dizendo: “Às credenciais não lhes tenho respeito. / Que vão para o diabo todos os papéis!”.  Ele ridiculariza as reações do funcionário de fronteira que manuseia os passaportes: respeito diante do documento britânico, mesuras e salamaleques diante do americano (“pegam como se fosse uma gorjeta”), desprezo pelo passaporte polonês...  Mas quando pega o passaporte vermelho da URSS, “pegou-o como uma bomba, pegou-o como a um ouriço, como a uma navalha afiada...”


O poema de Maiakóvski é cheio do orgulho infantil de quem acreditava num Estado e perdoava, compreendendo seus problemas, sua “necessidade de também ser fera”.  Todo poeta sonha numa lua-de-mel com algum tipo de Revolução. Mas quem é adversário do governo ou do Estado vê maquiavelismo em qualquer inovação do setor burocracia-e-controle.  O aumento da segurança de uns é o aumento da opressão dos outros.


domingo, 5 de outubro de 2014

3622) A solidez do real (5.10.2014)




Claro que o mundo tem seus aspectos hostis, desorientadores, seus momentos de perigo. Mas tem outros que não consigo definir de outra maneira que não “aconchegantes”. O mundo nos acolhe e nos protege, mesmo com a impessoalidade das estruturas prontas, em que podemos confiar para sempre. Por mais que os surrealistas ou os visionários queiram nos convencer do contrário (e eu sou sempre o primeiro a encorajá-los), o mundo ressts a tudo, é contínuo, é coerente. O mundo real tem, sim, feições confiáveis, constantes, que se repetem a cada dia.



Philip K Dick desorientou um entrevistador quando lhe revelou que o Japão não existe. Quando a gente pega um avião para Tóquio, aí sim, “eles” arrumam e produzem um Japão às pressas, pra que haja aeroporto onde a gente desembarque, ruas onde trafegue, hotel onde descanse.  A realidade, para ele, era uma cidade cenográfica, um Mega-Projac coordenado por uma Mega-Globo para nos dar a ilusão de que não existe uma Companhia maligna e lucradora comandando este circo de absurdos. (O filme Truman Show foi um vazamento, um wikileak disso.)



Imagine só se o mundo tivesse que ser rearrumado às pressas em cada amanhecer para estar novamente disponível aos nossos olhos; imagine se tudo fosse guardado à noite em imensos caixotes (como os livros num estande de feira-do-livro) para no começo do dia seguinte ser recomposto pelas mãos pressurosas de um balconista. Eu ficaria muito surpreso se, em Campina Grande, acordasse cedinho, fosse à Praça da Bandeira para resolver algum assunto, e percebesse que na pressa de rearrumar Campina eles tivessem trocado de posição o Colégio das Damas e o Correio.



Essa certeza é tão reconfortante que se torna o piso mínimo de fé de que precisamos para viver uma vida individual tão arisca, tão aleatória. Sabemos que no atravessar da rua um motoboy despirocado pode nos jogar para o Além em fração de segundo, mas em compensação a possibilidade de que um asteróide errante faça o mesmo com a Terra é bem menor.  O planeta nos sobreviverá, como sobreviveu aos dinossauros.


E na verdade não exigimos muito - nem dele, como planeta, nem da civilização. Pedimos apenas que, mesmo na falta de um propósito unificador e geral, nos sejam dados espetáculos (campeonatos de futebol, eleições, guerras) nos quais possamos projetar um senso-de-finalidade, e que, mesmo quando o resultado final nos traga a derrota, possamos achar que alguma vitória teria sido possível.  Suportaríamos até uma descoberta esmagadora como a de Truman (“o mundo é outro”), só não suportaríamos pensar que nada disto faz sentido.


sábado, 4 de outubro de 2014

3621) Salvar o mundo (4.10.2014)




(ilustração: Klaus Pichler)


Faz uns 25 anos que não escuto a frase “Deixa de ser besta, rapaz, você tá querendo salvar o mundo sozinho?”  Já ouvi muito e me ajudou a ponderar.  Não foi menino quem não sonhou em salvar o mundo, sozinho, saindo do banco aos 44 do segundo tempo, entrando, se atirando na primeira bola que vem e empurrando pra dentro o gol do título.  

Se eventos futuros o exigissem, eu aceitaria exércitos para cumprirem minhas ordens e multidões para me carregarem num andor. Já que a vida real se esforça para imitar os filmes de Cecil B. De Mille.

Um garoto de nove anos está lendo uma revista de FC em quadrinhos e descobre que um garoto de dez anos conseguiu meio casualmente detectar com seu aparelhinho de rádio montado em casa a frequência de onda que controla por sinais instantâneos a nave da frota que invadiu a Terra, o que permitiu ao exército construir em tempo recorde um potente transmissor e fazer tombar todas as espaçonaves bem longe, no Oceano Pacífico. 

Ao terminar de ler a palavra FIM, o garoto ergue os olhos para a parede e pensa: “Se ele pode, por que não eu?”  E assim começam, com uma fantasiazinha inofensiva, os grandes saltos da humanidade, as grandes quedas da humanidade.

Freud dizia que essa ficção popular sobre heróis e super-heróis era a ficção do Ego, projeção do que o leitor queria ser, do que queria que lhe acontecesse. Salvar o mundo é a fantasia recorrente nos pulp magazines, nos livrinhos de bolso, nas trilogias de fantasia e de space opera, nas novelas gráficas que fizeram upgrade em todo o panteão de heróis ingênuos dos “comics”.  

A ficção do Ego vai se ampliando com a idade, mas é uma mitologia, um espelho deformador, registrando algumas obsessões coletivas nossas.

O Fantástico parece se sentir mais em casa na ficção popular, que costuma ser essa “ficção do Ego”, do que na ficção “mainstream” praticada pelas cabeças pensantes de cada época (porque cada época tem um grupo que assim se intitula). 

A ficção popular é melodramática, exagerada, fala em salvar o mundo. A ficção pensante é cética, verossímil, fala em dar sentido à existência de um só indivíduo. São dois impulsos distantes, mas não contraditórios. 

Qualquer recurso de caráter realista pode ser absorvido pelas narrativas fantásticas, que não abrem mão da realidade; mas o realismo proíbe a si mesmo pegar material emprestado em troca.  Ele se torna um realismo pobre, criado pela exclusão de muita coisa, ao invés de um realismo abrangente de tudo, com um conceito de realidade que não tivesse problema em dialogar com o fantástico, que fosse capaz de conviver com o aleatório e de aceitar o aparentemente impossível.





sexta-feira, 3 de outubro de 2014

3620) A Revolução das Umbrelas (3.10.2014)




São guerras festivas: uma revolução dos cravos, uma revolução das umbrelas. Uma cidade tomada por um milhão de guarda-chuvas abertos, enfrentando os policiais com seus cães e seus escudos.  A revolução é uma espécie de rito sazonal que dá a volta ao mundo de tantos em tantos meses.  Em Hong-Kong, os jovens querem votar.  Para eles, como para qualquer bando de idiotas que fique, digamos, uns vinte anos sem votar, eleger um Presidente é uma conquista.  Se contentarão com essa duvidosa honra, quando a conseguirem, ou terão coragem de encarar todo este resto?



Um poeta desfolha a bandeira, uma moça desabrocha a sombrinha, e o fato de ser jovem e estar num epicentro qualquer a eleva nos ares como uma Mary Poppins interpretada por Michelle Yeoh.  Era uma hongkonguiana qualquer, uma menina filha dum pessoal e que estudava num colégio, até então uma garota como qualquer outra.  De repente podia votar.  De repente podia escolher em quem queria votar.  De repente, um belo dia, podia estar pedindo aos outros que votassem nela.



O fato de poder quantificar vontades individuais (em eleições, referendos, etc.) é útil principalmente num mundo em que temos de um lado cidadãos sem noção dos seus mínimos direitos diante dos demais, e do outro lado cidadãos sem noção dos seus mínimos deveres diante da sociedade.  Tem gente que acha que está lá para ser capacho mesmo, e a vida não poderia jamais ter sido outra coisa.  E tem gente que, como se diz por aí, “é só venha-a-nós, e ao vosso reino nada.”



Outra faceta disso é que o voto do cientista político vale tanto quanto o do analfabeto, o do governador tanto quanto o do mendigo, embora longe da urna tudo volte à proporção anterior. Além do mais, as eleições são uma maneira de provocar uma febre artificial no povo, estudar suas reações, programar-se para montá-lo.  O povo é um cavalo cheio de venetas, aguenta mil coisas mas de vez em quando manda um pro espaço.  Quem ambiciona montá-lo tem que estudar seus corcoveios – e suas preferências gastronômicas.



Eu não acho que o sistema do voto seja garantia de democracia.  Poder votar é poder opinar, mas um voto no meio de dezenas de milhões perde peso, quase desaparece.  Deve ser emocionante viver numa cidadezinha tão pequena que uma eleição de vez em quando seja decidida por um voto, como um jogo de basquete por um ponto.


E as umbrelas revolucham, revolucham sem parar.  A chuva pode ser lacrimogênea, o granizo de granito, mas as valorosas umbrelas estão ali, defendendo uns hongkonguianos quaisquer não sabemos quem são, mas não duvido que ali no meio também estejam Guy Fawkes, Gene Kelly, Darth Vader, Indiana Jones, Che Guevara, Homem Aranha, Hulk.


quarta-feira, 1 de outubro de 2014

3619) O sucesso irritante (2.10.2014)



(Edição de "Lolita" na Turquia)


Vladimir Nabokov disse uma vez: “Conan Doyle  preferia ser conhecido como o autor de uma história de África, que achava bem melhor que o seu Sherlock Holmes”.  Deve estar se referindo ao romance A Tragédia do Korosko, um navio de europeus tomado como reféns por tuaregues revoltosos. Num programa de entrevistas na TV francesa (aqui: http://tinyurl.com/ozxtunu) ele diz isso respondendo a uma pergunta sobre o sucesso do romance Lolita (1965), se isso o deixava incomodado.  Disse que se incomodava mais com o fato de Lolita, que ele vê como uma pirralha muito desinteressada em sexo, ter sido transformada, pela ilustração e pela publicidade, numa modelo de pernas longas. 



Ele diz que a fenda da porta é a “brânquia mais importante da literatura”, já que é por ali que verdades são conhecidas, segredos são vazados, mistérios são desvendados. Diz que muitas das aparentes complicações de seus romances podem se tornar mais simples se encaradas como problemas de xadrez.  Mais do que enfrentar adversários, emboraele se diga capaz, de vez em quando, num torneio de clube, de fazer com que um campeão caia em sua armadilha, mas o que gosta mesmo é de criar aqueles problemas de revista: “As brancas dão mate em três lances.”  Segundo ele, especializou-se em problemas suicidas, aqueles em que as brancas obrigam as pretas a derrotá-las.



O terno, os óculos e o rosto grande o deixam às vezes parecido com Guimarães Rosa, enquanto disserta sobre espelhos, diz que gostaria de ser “um obscuro entomologista”, explica um xibolete de dicção para reconhecer um moscovita. “O castelo foi queimado por camponeses demasiado zelosos”, diz ele, lembrando como a fortuna do pai desmoronou. 



Perguntado sobre sua língua preferida, diz: “A língua dos meus antepassados ainda é a que me sinto mais à vontade. Mas nunca me arrependerei da minha metamorfose americana.”  A certa altura ele parece recitar uma frase, o entrevistador pergunta se ele está citando, ele diz que sim, e que é uma tradução “muito, muito boa”. (É, ninguém decora o nome de todos os seus tradutores.)


Cita suas leituras infanto-juvenis em inglês: Wells, Kipling, Shakespeare, a revista “The Boys on Paper”.  Nabokov, Jorge Luís Borges, Luís Buñuel, todos têm a mesma idade, talvez tenham lido certos autores ou certo tipo de livro na mesma época.  Nabokov era um fidalgo no exílio, o inglês que tinha foi afiado ao longo de uma fila de professoras e governantas.  Ele e Isaac Asimov (nascido em 1920) são dois russos de nascimento que tornaram-se autores de sucesso nos EUA escrevendo na língua dos anfitriões, e representando polos opostos da arte de escrever.



3618) Rubens F. Lucchetti (1.10.2014)



A pulp fiction tem autores invisíveis, que se multiplicam por toda parte. “Já cheguei a encontrar 15 títulos meus em uma banca, assinados por diversos autores,” diz Rubens Francisco Lucchetti, tão conhecido entre os fãs do Horror quanto Zé do Caixão. 



No Brasil não era comum, quando ele começou a carreira há 60 ou 70 anos, o escritor pulp que hoje está roteirizando quadrinhos, amanhã escrevendo uma novela de rádio, publicando um romance, reeditando contos antigos, metendo-se com cinema.  Nosso primeiro escritor de FC-de-gênero foi Jeronymo Monteiro.  “De gênero” por ser uma tentativa clara de reproduzir aqui as premissas da FC norte-americana, tentativa anunciada com entusiasmo de fã.  Com seu próprio nome e seus recursos, além do seu pseudônimo Ronnie Wells, ele foi um multimídia, na linguagem de hoje: radialista, editor, antologista, ficcionista, crítico... 



O ubíquo R. F. Lucchetti é um nome que eu cresci vendo por toda parte e lendo de vez em quando.  Não conheci sua obra tão bem quanto a de Jeronymo.  (Deste, eu tinha aos doze anos uma coleção das aventuras de Dick Peter com 9 volumes, achava que era completíssima.) Lucchetti atuava mais na literatura de horror, que sempre li menos que FC.  Na página de uma matéria recente sobre ele no Uol (aqui: http://bit.ly/1rx25m4) aparecem as capas de alguns livrinhos de bolso de terror, apenas alguns entre centenas e centenas de títulos. “Noite Diabólica – contos macabros” era um deles, cuja capa lembrei de cara.  Não lembro se foi ali que vi minha primeira referência sobre Ray Bradbury, um resumo comentado de sua carreira, ilustrado por desenhos.



Não li os romances mais famosos de Lucchetti, que me parecem ser “O Crime da Gaiola Dourada” e “O Fantasma do Tio William”, mas devo ter lido dezenas dos seus terrores góticos, seus calabouços, seus zumbis, seus sacerdotes de cultos indizíveis, em livrinhos vendidos nas bancas há 50 anos, feitos em papel jornal, do tamanho de um folheto de cordel. Lucchetti, que tem 84 anos, pertence a um mercado editorial muito diferente do de hoje.


Ele diz que já publicou muita coisa com pseudônimo inglesado, para vender. (Achei “Brian Stockler” uma ótima idéia.)  Na Paraíba estivemos lembrando e homenageando o nosso Deodato Borges velho-de-guerra, o criador do “Flama”, que faleceu há pouco tempo.  Deodato enveredou pelo radialismo em Campina Grande como poderia ter enveredado pela “pulp fiction” se morasse em São Paulo.  Como enveredou, por esses e outros caminhos, o paraibano Péricles Leal, que foi do “Falcão Negro” às telenovelas.  Todos com a inquietude, a imaginação e as contas-a-pagar de todo autor de literatura popular.