terça-feira, 7 de outubro de 2014

3624) As vozes de Dickens (7.20.2014)






Um inquietante artigo de Peter Garratt no The Guardian examina a literatura e a vida de Charles Dickens em função do que poderíamos chamar “a arte de ouvir vozes”.  A tese do autor, bastante plausível, é de que Dickens era um desses escritores que praticamente “recebem os espíritos” dos personagens.  Criando os seus romances, improvisava longos diálogos que depois eram passados para o papel.  Diz Garratt que entre 1853 e sua morte em 1870 Dickens realizou 470 performances públicas, que devemos entender como conferências e leituras dos próprios livros com alto grau de teatralidade.  Parece que Dickens eram bom nisso, porque viajou pela Europa e América fazendo essas dramatizações.



Ele cita um testemunho do próprio Dickens sobre o ato da criação literária: “Quando me sento para trabalhar num livro, algum poder benfazejo me mostra aquilo tudo, e atiça meu interesse, e eu não invento nada, não mesmo, eu somente vejo, e passo para o papel.”  Segundo ele, Dickens era interessado em mesmerismo, ilusões e alucinações. (Coisa que, uma geração depois, iria interessar autores como Doyle, Wells, etc.)  Ele provavelmente era um steampunk “avant la lettre”, mas devia ter um certo desdém pela tecnologia.  Seus garotos encardidos, maltratados nos orfanatos, perseguidos nos becos, fugindo de todos, prefiguram essa literatura dos marginais contemporâneos, só que uns marginais num mundo mais Julio Verne do que o dele.



Diz Garratt que “a experiência literária tem muito a ver com a experiência de escutar a conversa alheia.  Ler ficção é um processo de permitir que as vozes dos personagens soem em nosso ouvido interno, e de absorver os sons que produzem.”  Na minha experiência, foi Coelho Neto (Velhos & Novos) o primeiro autor que vi descrever um fenômeno que para mim era óbvio: o fato de que qualquer palavra que lemos vai sendo lida em voz alta por uma voz interior muito semelhante à nossa.  Não diria que é um fenômeno do ouvido (meus tímpanos não ouvem nada), mas do pensamento puro: pensar em palavras é imaginar seu som.


Dickens devia ser um daqueles autores que depois fizeram a fortuna das estenógrafas e dos vendedores de ditafones.  Nem sempre o autor que dita seus livros o faz com arroubos de entusiasmo.  Erle Stanley Gardner, cartesianíssimo autor, nunca perdia de vista a história nem os personagens.  Chandler, Edgar Wallace, todos ditavam para uma máquina tanto quanto Walter Scott ditava para um secretário.  Dickens não pensava em voz alta, provavelmente: tornava-se cada personagem, como num palco só dele. Quem cria assim precisa de alguém que registre.  É uma espécie de mediunidade fingida, para efeito de criação.


segunda-feira, 6 de outubro de 2014

3623) Malditos passaportes (6.10.2014)





No meu tempo de estudante dizíamos: “Os americanos vêm ao Brasil e ficam escandalizados em ver que nós somos obrigados a ter uma Carteira de Identidade.  Isso é coisa de prisioneiro. Lá nos EUA isso não existe.  Quando um cara precisa se identificar, apresenta a carteira de motorista. Isso mostra o quanto vivemos num Estado Policial.”  Verdade parcial, como toda verdade.  Para coisas mais oficiais do que um baculejo na calçada, nos EUA, eles requerem o Social Security Number, que parece ser uma espécie de CPF (o cartão não tem foto nem data de nascimento).



A tendência dos Estados é se tornarem mais policiais e controladores à medida que ficam mais ricos e complicados. A documentação das pessoas de cem anos atrás é irrisória se comparada à de hoje.  Lendo biografias vemos como os dados da vida civil dos biografados são cheios de lacunas, de inconsistências, de ausências inexplicáveis. 



Stefan Zweig, em seu livro O Mundo de Ontem (1942) dizia: “Nada deixa mais claro o imenso retrocesso que recaiu sobre o mundo depois da I Guerra Mundial do que as restrições sobre a liberdade de deslocamento do homem e a diminuição dos seus direitos civis. Antes de 1914 a Terra pertencia a todos. As pessoas iam para onde desejassem e ficavam o quanto quisessem. Não havia vistos nem autorizações de permanência, e sempre me dá prazer deslumbrar os mais jovens contando que antes de 1914 viajei da Europa para a Índia e para a América sem ter um passaporte e sem ter em qualquer momento visto um. Embarcava-se e desembarcava-se sem questionar e sem ser questionado: não era necessário preencher um único dos inúmeros formulários requeridos hoje em dia.”



Não há como não lembrar, diante disto, do poema de Maiakóvski (de 1929) sobre o passaporte soviético. Ele começa dizendo: “Às credenciais não lhes tenho respeito. / Que vão para o diabo todos os papéis!”.  Ele ridiculariza as reações do funcionário de fronteira que manuseia os passaportes: respeito diante do documento britânico, mesuras e salamaleques diante do americano (“pegam como se fosse uma gorjeta”), desprezo pelo passaporte polonês...  Mas quando pega o passaporte vermelho da URSS, “pegou-o como uma bomba, pegou-o como a um ouriço, como a uma navalha afiada...”


O poema de Maiakóvski é cheio do orgulho infantil de quem acreditava num Estado e perdoava, compreendendo seus problemas, sua “necessidade de também ser fera”.  Todo poeta sonha numa lua-de-mel com algum tipo de Revolução. Mas quem é adversário do governo ou do Estado vê maquiavelismo em qualquer inovação do setor burocracia-e-controle.  O aumento da segurança de uns é o aumento da opressão dos outros.


domingo, 5 de outubro de 2014

3622) A solidez do real (5.10.2014)




Claro que o mundo tem seus aspectos hostis, desorientadores, seus momentos de perigo. Mas tem outros que não consigo definir de outra maneira que não “aconchegantes”. O mundo nos acolhe e nos protege, mesmo com a impessoalidade das estruturas prontas, em que podemos confiar para sempre. Por mais que os surrealistas ou os visionários queiram nos convencer do contrário (e eu sou sempre o primeiro a encorajá-los), o mundo ressts a tudo, é contínuo, é coerente. O mundo real tem, sim, feições confiáveis, constantes, que se repetem a cada dia.



Philip K Dick desorientou um entrevistador quando lhe revelou que o Japão não existe. Quando a gente pega um avião para Tóquio, aí sim, “eles” arrumam e produzem um Japão às pressas, pra que haja aeroporto onde a gente desembarque, ruas onde trafegue, hotel onde descanse.  A realidade, para ele, era uma cidade cenográfica, um Mega-Projac coordenado por uma Mega-Globo para nos dar a ilusão de que não existe uma Companhia maligna e lucradora comandando este circo de absurdos. (O filme Truman Show foi um vazamento, um wikileak disso.)



Imagine só se o mundo tivesse que ser rearrumado às pressas em cada amanhecer para estar novamente disponível aos nossos olhos; imagine se tudo fosse guardado à noite em imensos caixotes (como os livros num estande de feira-do-livro) para no começo do dia seguinte ser recomposto pelas mãos pressurosas de um balconista. Eu ficaria muito surpreso se, em Campina Grande, acordasse cedinho, fosse à Praça da Bandeira para resolver algum assunto, e percebesse que na pressa de rearrumar Campina eles tivessem trocado de posição o Colégio das Damas e o Correio.



Essa certeza é tão reconfortante que se torna o piso mínimo de fé de que precisamos para viver uma vida individual tão arisca, tão aleatória. Sabemos que no atravessar da rua um motoboy despirocado pode nos jogar para o Além em fração de segundo, mas em compensação a possibilidade de que um asteróide errante faça o mesmo com a Terra é bem menor.  O planeta nos sobreviverá, como sobreviveu aos dinossauros.


E na verdade não exigimos muito - nem dele, como planeta, nem da civilização. Pedimos apenas que, mesmo na falta de um propósito unificador e geral, nos sejam dados espetáculos (campeonatos de futebol, eleições, guerras) nos quais possamos projetar um senso-de-finalidade, e que, mesmo quando o resultado final nos traga a derrota, possamos achar que alguma vitória teria sido possível.  Suportaríamos até uma descoberta esmagadora como a de Truman (“o mundo é outro”), só não suportaríamos pensar que nada disto faz sentido.


sábado, 4 de outubro de 2014

3621) Salvar o mundo (4.10.2014)




(ilustração: Klaus Pichler)


Faz uns 25 anos que não escuto a frase “Deixa de ser besta, rapaz, você tá querendo salvar o mundo sozinho?”  Já ouvi muito e me ajudou a ponderar.  Não foi menino quem não sonhou em salvar o mundo, sozinho, saindo do banco aos 44 do segundo tempo, entrando, se atirando na primeira bola que vem e empurrando pra dentro o gol do título.  

Se eventos futuros o exigissem, eu aceitaria exércitos para cumprirem minhas ordens e multidões para me carregarem num andor. Já que a vida real se esforça para imitar os filmes de Cecil B. De Mille.

Um garoto de nove anos está lendo uma revista de FC em quadrinhos e descobre que um garoto de dez anos conseguiu meio casualmente detectar com seu aparelhinho de rádio montado em casa a frequência de onda que controla por sinais instantâneos a nave da frota que invadiu a Terra, o que permitiu ao exército construir em tempo recorde um potente transmissor e fazer tombar todas as espaçonaves bem longe, no Oceano Pacífico. 

Ao terminar de ler a palavra FIM, o garoto ergue os olhos para a parede e pensa: “Se ele pode, por que não eu?”  E assim começam, com uma fantasiazinha inofensiva, os grandes saltos da humanidade, as grandes quedas da humanidade.

Freud dizia que essa ficção popular sobre heróis e super-heróis era a ficção do Ego, projeção do que o leitor queria ser, do que queria que lhe acontecesse. Salvar o mundo é a fantasia recorrente nos pulp magazines, nos livrinhos de bolso, nas trilogias de fantasia e de space opera, nas novelas gráficas que fizeram upgrade em todo o panteão de heróis ingênuos dos “comics”.  

A ficção do Ego vai se ampliando com a idade, mas é uma mitologia, um espelho deformador, registrando algumas obsessões coletivas nossas.

O Fantástico parece se sentir mais em casa na ficção popular, que costuma ser essa “ficção do Ego”, do que na ficção “mainstream” praticada pelas cabeças pensantes de cada época (porque cada época tem um grupo que assim se intitula). 

A ficção popular é melodramática, exagerada, fala em salvar o mundo. A ficção pensante é cética, verossímil, fala em dar sentido à existência de um só indivíduo. São dois impulsos distantes, mas não contraditórios. 

Qualquer recurso de caráter realista pode ser absorvido pelas narrativas fantásticas, que não abrem mão da realidade; mas o realismo proíbe a si mesmo pegar material emprestado em troca.  Ele se torna um realismo pobre, criado pela exclusão de muita coisa, ao invés de um realismo abrangente de tudo, com um conceito de realidade que não tivesse problema em dialogar com o fantástico, que fosse capaz de conviver com o aleatório e de aceitar o aparentemente impossível.





sexta-feira, 3 de outubro de 2014

3620) A Revolução das Umbrelas (3.10.2014)




São guerras festivas: uma revolução dos cravos, uma revolução das umbrelas. Uma cidade tomada por um milhão de guarda-chuvas abertos, enfrentando os policiais com seus cães e seus escudos.  A revolução é uma espécie de rito sazonal que dá a volta ao mundo de tantos em tantos meses.  Em Hong-Kong, os jovens querem votar.  Para eles, como para qualquer bando de idiotas que fique, digamos, uns vinte anos sem votar, eleger um Presidente é uma conquista.  Se contentarão com essa duvidosa honra, quando a conseguirem, ou terão coragem de encarar todo este resto?



Um poeta desfolha a bandeira, uma moça desabrocha a sombrinha, e o fato de ser jovem e estar num epicentro qualquer a eleva nos ares como uma Mary Poppins interpretada por Michelle Yeoh.  Era uma hongkonguiana qualquer, uma menina filha dum pessoal e que estudava num colégio, até então uma garota como qualquer outra.  De repente podia votar.  De repente podia escolher em quem queria votar.  De repente, um belo dia, podia estar pedindo aos outros que votassem nela.



O fato de poder quantificar vontades individuais (em eleições, referendos, etc.) é útil principalmente num mundo em que temos de um lado cidadãos sem noção dos seus mínimos direitos diante dos demais, e do outro lado cidadãos sem noção dos seus mínimos deveres diante da sociedade.  Tem gente que acha que está lá para ser capacho mesmo, e a vida não poderia jamais ter sido outra coisa.  E tem gente que, como se diz por aí, “é só venha-a-nós, e ao vosso reino nada.”



Outra faceta disso é que o voto do cientista político vale tanto quanto o do analfabeto, o do governador tanto quanto o do mendigo, embora longe da urna tudo volte à proporção anterior. Além do mais, as eleições são uma maneira de provocar uma febre artificial no povo, estudar suas reações, programar-se para montá-lo.  O povo é um cavalo cheio de venetas, aguenta mil coisas mas de vez em quando manda um pro espaço.  Quem ambiciona montá-lo tem que estudar seus corcoveios – e suas preferências gastronômicas.



Eu não acho que o sistema do voto seja garantia de democracia.  Poder votar é poder opinar, mas um voto no meio de dezenas de milhões perde peso, quase desaparece.  Deve ser emocionante viver numa cidadezinha tão pequena que uma eleição de vez em quando seja decidida por um voto, como um jogo de basquete por um ponto.


E as umbrelas revolucham, revolucham sem parar.  A chuva pode ser lacrimogênea, o granizo de granito, mas as valorosas umbrelas estão ali, defendendo uns hongkonguianos quaisquer não sabemos quem são, mas não duvido que ali no meio também estejam Guy Fawkes, Gene Kelly, Darth Vader, Indiana Jones, Che Guevara, Homem Aranha, Hulk.


quarta-feira, 1 de outubro de 2014

3619) O sucesso irritante (2.10.2014)



(Edição de "Lolita" na Turquia)


Vladimir Nabokov disse uma vez: “Conan Doyle  preferia ser conhecido como o autor de uma história de África, que achava bem melhor que o seu Sherlock Holmes”.  Deve estar se referindo ao romance A Tragédia do Korosko, um navio de europeus tomado como reféns por tuaregues revoltosos. Num programa de entrevistas na TV francesa (aqui: http://tinyurl.com/ozxtunu) ele diz isso respondendo a uma pergunta sobre o sucesso do romance Lolita (1965), se isso o deixava incomodado.  Disse que se incomodava mais com o fato de Lolita, que ele vê como uma pirralha muito desinteressada em sexo, ter sido transformada, pela ilustração e pela publicidade, numa modelo de pernas longas. 



Ele diz que a fenda da porta é a “brânquia mais importante da literatura”, já que é por ali que verdades são conhecidas, segredos são vazados, mistérios são desvendados. Diz que muitas das aparentes complicações de seus romances podem se tornar mais simples se encaradas como problemas de xadrez.  Mais do que enfrentar adversários, emboraele se diga capaz, de vez em quando, num torneio de clube, de fazer com que um campeão caia em sua armadilha, mas o que gosta mesmo é de criar aqueles problemas de revista: “As brancas dão mate em três lances.”  Segundo ele, especializou-se em problemas suicidas, aqueles em que as brancas obrigam as pretas a derrotá-las.



O terno, os óculos e o rosto grande o deixam às vezes parecido com Guimarães Rosa, enquanto disserta sobre espelhos, diz que gostaria de ser “um obscuro entomologista”, explica um xibolete de dicção para reconhecer um moscovita. “O castelo foi queimado por camponeses demasiado zelosos”, diz ele, lembrando como a fortuna do pai desmoronou. 



Perguntado sobre sua língua preferida, diz: “A língua dos meus antepassados ainda é a que me sinto mais à vontade. Mas nunca me arrependerei da minha metamorfose americana.”  A certa altura ele parece recitar uma frase, o entrevistador pergunta se ele está citando, ele diz que sim, e que é uma tradução “muito, muito boa”. (É, ninguém decora o nome de todos os seus tradutores.)


Cita suas leituras infanto-juvenis em inglês: Wells, Kipling, Shakespeare, a revista “The Boys on Paper”.  Nabokov, Jorge Luís Borges, Luís Buñuel, todos têm a mesma idade, talvez tenham lido certos autores ou certo tipo de livro na mesma época.  Nabokov era um fidalgo no exílio, o inglês que tinha foi afiado ao longo de uma fila de professoras e governantas.  Ele e Isaac Asimov (nascido em 1920) são dois russos de nascimento que tornaram-se autores de sucesso nos EUA escrevendo na língua dos anfitriões, e representando polos opostos da arte de escrever.



3618) Rubens F. Lucchetti (1.10.2014)



A pulp fiction tem autores invisíveis, que se multiplicam por toda parte. “Já cheguei a encontrar 15 títulos meus em uma banca, assinados por diversos autores,” diz Rubens Francisco Lucchetti, tão conhecido entre os fãs do Horror quanto Zé do Caixão. 



No Brasil não era comum, quando ele começou a carreira há 60 ou 70 anos, o escritor pulp que hoje está roteirizando quadrinhos, amanhã escrevendo uma novela de rádio, publicando um romance, reeditando contos antigos, metendo-se com cinema.  Nosso primeiro escritor de FC-de-gênero foi Jeronymo Monteiro.  “De gênero” por ser uma tentativa clara de reproduzir aqui as premissas da FC norte-americana, tentativa anunciada com entusiasmo de fã.  Com seu próprio nome e seus recursos, além do seu pseudônimo Ronnie Wells, ele foi um multimídia, na linguagem de hoje: radialista, editor, antologista, ficcionista, crítico... 



O ubíquo R. F. Lucchetti é um nome que eu cresci vendo por toda parte e lendo de vez em quando.  Não conheci sua obra tão bem quanto a de Jeronymo.  (Deste, eu tinha aos doze anos uma coleção das aventuras de Dick Peter com 9 volumes, achava que era completíssima.) Lucchetti atuava mais na literatura de horror, que sempre li menos que FC.  Na página de uma matéria recente sobre ele no Uol (aqui: http://bit.ly/1rx25m4) aparecem as capas de alguns livrinhos de bolso de terror, apenas alguns entre centenas e centenas de títulos. “Noite Diabólica – contos macabros” era um deles, cuja capa lembrei de cara.  Não lembro se foi ali que vi minha primeira referência sobre Ray Bradbury, um resumo comentado de sua carreira, ilustrado por desenhos.



Não li os romances mais famosos de Lucchetti, que me parecem ser “O Crime da Gaiola Dourada” e “O Fantasma do Tio William”, mas devo ter lido dezenas dos seus terrores góticos, seus calabouços, seus zumbis, seus sacerdotes de cultos indizíveis, em livrinhos vendidos nas bancas há 50 anos, feitos em papel jornal, do tamanho de um folheto de cordel. Lucchetti, que tem 84 anos, pertence a um mercado editorial muito diferente do de hoje.


Ele diz que já publicou muita coisa com pseudônimo inglesado, para vender. (Achei “Brian Stockler” uma ótima idéia.)  Na Paraíba estivemos lembrando e homenageando o nosso Deodato Borges velho-de-guerra, o criador do “Flama”, que faleceu há pouco tempo.  Deodato enveredou pelo radialismo em Campina Grande como poderia ter enveredado pela “pulp fiction” se morasse em São Paulo.  Como enveredou, por esses e outros caminhos, o paraibano Péricles Leal, que foi do “Falcão Negro” às telenovelas.  Todos com a inquietude, a imaginação e as contas-a-pagar de todo autor de literatura popular.




terça-feira, 30 de setembro de 2014

3617) Campanhas políticas (30.9.2014)




Uma campanha política é uma peça propagandística (e teatral) complexa. Envolve, em sua parte visível, um catatau de impressos, programas de TV, discursos, comícios, debates, entrevistas coletivas, etc.  A parte invisível deve ser (nunca vi) de reuniões a portas fechadas com doadores de campanha, com companheiros de coligação, promessas, acenos de futuras vantagens, contratos a sete chaves onde cada vírgula é barganhada até a exaustão.

Essa parte invisível é, para as pessoas e entidades envolvidas, a verdadeira campanha, o jogo real, uma Copa do Mundo privada que acontece também de quatro em quatro anos.  A parte visível é essa festa diante dos olhos de dezenas de milhões de eleitores. A campanha não é a Copa, é a cerimônia de abertura. A Copa mesmo começa depois da posse. 

Seria injusto dizer que a campanha não tem valor nenhum.  É a conquista dos corações e mentes do eleitorado, e para isso as encenações têm um peso indiscutível.  Mas campanha é jogo-de-cena.  Algo como a dança de acasalamento de algumas espécies animais. É necessária para que o acasalamento ocorra, mas o acasalamento em si são outros quinhentos, que vêm logo depois.

Acasalamentos a portas fechadas, sob sete capas de sigilo. E la nave va. O direito de eleger os funcionários públicos que administrarão o mundo onde eu vivo é da maior importância, mas seria tão bom que bastasse isso.  Que não precisasse ficar cobrando, não precisasse vigiar e punir.  A maioria dos cidadãos, se perguntados, diriam que não querer se envolver com política é legítimo, mas não precisa entrar em choque com quem quer.

Eleições são como trocas de técnico no futebol.  Têm importância?  Claro que têm. Emocionam multidões? Certamente.  Podem trazer mudanças boas, mudanças ruins?  Sem dúvida.  Mas a estrutura fundamental não muda. Um Presidente da República, pra dar só um exemplo, é o técnico a quem cabe organizar o time e botá-lo pra correr.  Está ali para manter a todos fora do buraco, se possível, até pra que a galinha não pare de pôr seus ovos de ouro.  Quem manda no clube, no entanto, não é o técnico. Em muitos casos, não manda nem no time que botou em campo. 

Num clube seleto como a Seleção Brasileira, a gente já viu técnico como figura decorativa, que está ali pra pôr em prática políticas já decididas no vigésimo andar.  Cabe a ele administrar o lucro ou o prejuízo, dar explicações à TV, ser sabatinado, às vezes até ser derrubado com certa rudeza. Já na política, nunca consegui acreditar que quem manda, p. ex., nos EUA é o Presidente Obama. Ele é como o comandante, dando ordens na torre, e recebendo ligações do dono do navio.



domingo, 28 de setembro de 2014

3616) Palavras sem rima (28.9.2014)





A lista A Word a Day, que assino há anos, trouxe uma postagem sobre um oficial norte-americano do século 19, chamado Henry Gorringe.  Ele foi o responsável pela transferência da chamada Agulha de Cleópatra (um obelisco egípcio) para o Central Park de Nova York.  Sua presença na lista, contudo, era por uma razão ainda mais rara: segundo os redatores, o nome dele é a única rima na língua inglesa para a palavra “orange” (laranja).



Rima é um negócio danado.  Quando dizemos rima, na poesia, estamos falando em geral daquilo que se denomina rima exata, ou rima consoante: laranja / canja, abacaxi / siri, futebol / sol, e assim por diante.  A poesia modernista, no entanto (João Cabral, Cecília Meireles, tantos outros) usou fartamente a rima toante, aquela em que os sons são meramente parecidos: Paraíba / vida, sino / caminho, alma / casa, etc.  Só pra resumir: a rima consoante, exata, tradicional, é aquela onde existe entre as duas palavras uma coincidência perfeita de sons a partir da vogal da sílaba tônica.  As palavras “conta” e “ponta” rimam, não importa se antes da vogal em questão vem um C ou um P.



Meu pai fez para minha avó (Vó Clotilde, que era a cara de Agatha Christie) um soneto chamado “Mãe”, que terminava dizendo: “Pois teu nome sem rima é o hemistíquio / do verso alexandrino de minh’alma”.  Quando o questionei, ele me interpelou: “Pois me diga uma rima para a palavra ‘mãe’”.  Eu disse, em-cima-da-bucha: “Bãe... tamãe...”, e ele me mandou pastar.  Não, não tem rima.  Assim como “sempre” também não tem. Dou um milhão de dólares por duas palavras terminadas em “...empre”, preu fazer uma sextilha que está engatilhada há anos.



Também não têm rima palavras como cérebro, víbora, câncer, nuvem, órfã, mil outras.  De vez em quando aparece um esperto exumando um vocábulo seiscentista, ou distorcendo de leve uma pronúncia pra aconchambrar um verso periclitante.  Vale?  Às vezes vale.  Guilherme de Almeida, artesão de mão cheia e bom poeta, tem um poema chamado “Berceuse da Rimas Riquíssimas” onde cataloga alguns desses truques, como por exemplo rimar “nuvem” com “nu vem”.  Existe o caso famoso de “cinza”, que só rima com “ranzinza”, mas um cantador de viola sabichão encaixou num verso a história de um cantador fanho que em vez de “camisa” falava “caminza”.


Palavras proparoxítonas têm rimas mais difíceis, porque há três sílabas que precisam ser iguais (cântico / romântico). As oxítonas são as de rima mais fácil, a começar pelas terminações de verbos (...ar, ...er, ...ir, ...por).  Quando Monsueto dizia “Pra que rimar amor e dor?” estava exprimindo uma nostalgia afetiva e também uma impaciência estilística.


sábado, 27 de setembro de 2014

3615) Paranóia hospitaleira (27.9.2014)




(Bela Lugosi, 1931)


Um vampiro nunca pode entrar por vontade própria quando vai pela primeira vez à casa de alguém. Ele precisa ser convidado a entrar por alguém, pertencente à residência (ver Drácula, cap. 18). Depois que alguém diz: “Oh, Conde Drácula, mas que surpresa, veio conhecer minha humilde casa, pode entrar, não repare a bagunça”, ele entra, e a partir desse instante você perdeu todo seu domínio, todo seu direito à proibição, à interdição da presença. Ele poderá entrar e sair à vontade. 



Esta é uma das regras da existência do “nosferatu”, mas ela se estende a outros domínios. Celia Fremlin, escritora inglesa, tem um conto arrepiante sobre  uma menina que está sozinha em casa numa noite chuvosa, na ausência dos pais, e ouve outra menina batendo à porta, pedindo para entrar. (Vejo um eco desse conto, que é bem antigo, no filme sueco, depois refilmado nos EUA, Deixe ela entrar)  É um dos medos mais primitivos da humanidade. Se você está trancado e em segurança num ambiente familiar, confortável, etc., será que se arriscaria a deixar entrar ali um desconhecido, que pode representar uma ameaça? (Lembrem de Laranja Mecânica: “Por favor... sofremos um acidente na estrada... meu amigo está ferido... deixem-nos usar o telefone...”). 



A paranóia da hospitalidade é uma daquelas situações analisadas na Teoria dos Jogos em que você é forçado a uma decisão porque com a decisão oposta teria pouco a ganhar (se desse certo) e muito a perder se desse errado. Na dúvida, é melhor dizer: “Vá embora, não vou abrir pra ninguém, vá bater noutra porta”.



Deixar entrar um estranho: eis uma fórmula simples para muitas situações trágicas. Curiosidade e ingenuidade são uma combinação perigosa, vide os troianos ao receber o presente do cavalo de madeira. Levaram o Estranho para dentro de suas muralhas, que era justamente onde ele queria chegar.  Não foram muito mais espertos do que os índios brasileiros que aceitaram roupas usadas e morreram de peste.


Na série Game of Thrones, a hospitalidade, os direitos e deveres recíprocos entre anfitrião e hóspede são sagrados.  Um dos seus momentos mais dramáticos foi no episódio chamado de “Red Wedding”, quando essa regra foi covardemente quebrada.  Matar o hóspede (tanto quanto matar o que hospeda) é o mais desonroso dos crimes. Macbeth recebe o rei em seu castelo e o assassina durante a noite.  Isso é mais vil do que mandar matar um amigo e o filho pequeno, do que aconselhar-se com as três velhas sinistras.  Hospedar um criminoso, ser recebido na casa de um criminoso: uma ingenuidade imperdoável na Guerra dos Tronos.