quinta-feira, 24 de julho de 2014

3559) Smartfone (24.7.2014)




Será que a grafia “smartfone”, que já vejo sendo usada por aí, vai substituir “smartphone”, o termo original em inglês?  A tendência natural da nossa língua, ao assimilar palavras estrangeiras, é escrever da maneira que se pronuncia: futebol, gol, chofer, etc.  Uma partícula escrita com intenção de pronúncia inglesa atrapalha o usuário, está pedindo para ser mudada. Temos aí um ponto de inflexão, algo que está assumindo uma forma que, por algum motivo, tende a não se fixar, a ser substituída por alguma outra. Aquilo que o I-Ching chama de linhas instáveis ou mutantes, pequenos detalhes que estão a ponto de se transformar noutra coisa.

Daí que eu prefira escrever “websaite” e não “website”, e já expliquei esta opção num artigo recente (http://tinyurl.com/nh6nno8). Me parece que trocar um “ph” por um “f” é muito mais simples, uma transição quase imperceptível, ajudada aliás pela nossa reação subliminar de considerar as coisas escritas com “ph” como antiquadas.  Imagino quanto tempo levará para a língua brasileira a eliminar esse “ph” de “photoshop” e adotar de vez a grafia “fotoshop” (na qual “s” seria mantido para evitar a confusão com “chope”, a bebida.).

É bom lembrar que as letras K, W e Y foram (ao que me consta) recuperadas para nossa língua por uma dessas reformas ortográficas recentes. Não creio que a partícula “web”, por exemplo, venha a ser substituída por “ueb” ou “uébi”, como querem alguns usuários. Creio que o “w” em casos assim tende a se fixar. Por outro lado, as grafias que induzem a pronúncias erradas deveriam ser substituídas, daí que eu prefira escrever draive, pendraive, saite, etc.  (Mas nem sempre cola – os implacáveis revisores restituem a forma anterior com fervor inquisitorial.)

E o que fazer com “iPhone”?  Esse “i” minúsculo que se pronuncia “ái” é uma marca visualmente muito característica; na verdade considero esta uma palavra composta mas sem hífen, a junção sendo assinalada pela manutenção da inicial maiúscula no segundo termo. Pode ser que um dia digamos (com coerência acústica) “aifone”, ou, por escrito, “aiFone”, mas duvido. Esse “ai”, que soa como uma queixa ou lamento (ao invés de induzir o individualista “Eu” do termo em inglês), não vai pegar facilmente em português.

A lógica sugere que “wi-fi” seja um dia trocado por “uai-fai”, mas não sei se teremos essa ousadia coletiva. “Uai”, que sugere interjeição mineira, corre o risco de introduzir um ruído, desviar a atenção do leitor e fazê-lo ter uma primeira interpretação errada da palavra. Como o “w” está se reincorporando ao alfabeto, o termo poderia virar “wai-fai”. Isso cola? Que o tempo o diga.


quarta-feira, 23 de julho de 2014

3558) Escrever por dinheiro (23.7.2014)



O escritor Neil Gaiman conta que no início de sua carreira, ainda pouco conhecido, recebeu um telefonema de uma editora propondo-lhe trabalho. Queriam saber se ele estava disposto a escrever um livro sobre um artista de rock, uma espécie de biografia. Ele se entusiasmou com a idéia e começou de cara a propor temas: Velvet Underground, David Bowie, Elvis Costello... A editora o interrompeu e disse: “Calma, não é você quem escolhe. Me diga: você quer escrever um livro sobre Barry Manilow, sobre o Def Leppard ou sobre o Duran Duran?”.  Gaiman acabou topando escrever sobre o Duran Duran, que era uma banda relativamente nova, porque, diz ele, “para escrever sobre Barry Manilow eu teria que escutar pelo menos uns 40 discos de Barry Manilow”.  O livro foi escrito, e é Duran Duran: The First Four Years of the Fabulous Five (1984).

Escritores principiantes têm às vezes uma idéia meio maniqueísta sobre os conceitos de trabalho artístico e trabalho comercial. O trabalho artístico seria aquele que “vem de dentro”, como se costuma dizer. Uma idéia que o artista tem por uma mera idiossincrasia pessoal, uma inspiração, um impulso, uma veneta soberana do seu Ego.  E o trabalho comercial seria aquele que ele faz por dinheiro, pressionado por pessoas de moral escusa que percebem o momento financeiramente fragilizado que ele vive; um trabalho que não se distingue da prostituição, da venda de favores sexuais para pagar o aluguel, o condomínio e o seguro do carro.

Nem tanto ao mar nem tanto à terra, pessoal. O que a vida real nos propõe são situações próximas do episódio relatado por Gaiman. Na minha experiência, recebo o tempo todo propostas como aquela. Nem somos totalmente livres para escolher, pois se trata se um projeto alheio para o qual estamos sendo convidados, nem somos obrigados a aceitar tudo – há sempre uma margem de múltipla escolha onde podemos escolher o que mais nos agrada, ou o que menos compromete a nossa reputação. E, no caso do artista freelancer, existe a possibilidade de dizer: “Ih, rapaz, não achei muito interessante. Chama outra pessoa, mas na próxima vez me fala de novo, pode ser que role.”

O escritor profissional não vive apenas de ter idéias geniais na calada da noite, vive do telefone que toca às três da tarde convidando-o para fazer algo em que ele nunca tinha pensado. O profissionalismo começa no momento de aceitar ou não, de ter a coragem de recusar quando o trabalho não convém, e a disposição para fazer o melhor possível depois que aceita. Até mesmo as garotas do “trottoir” têm a chance de escolher se querem entrar no carro daquele cara, ou se acham que é uma roubada.


terça-feira, 22 de julho de 2014

3557) Jogador que se joga (22.7.2014)



(Robben, o bailarino)

O jogador brasileiro confirmou e carimbou, nesta Copa, a sua fama de “flopper”, de jogador que se joga ao chão sem ter sofrido falta, fingindo ter sido atingido, para induzir o juiz à marcação de um pênalte.  Entre nós, na nossa cultura da malandragem, isto é visto como esperteza, como inteligência. Quem age assim tenta fazer de otário o jogador do outro time (que poderia ter feito a falta, optou por não fazê-la, e foi punido por isso) e o juiz (que acreditou na mentira).  

Essa malandragem de “cavar pênalte” é da mesma categoria do sujeito que paga o restaurante com cheque sem fundo, do sujeito que falta ao trabalho porque tomou uma carraspana e pede atestado médico a um doutor amigo, do sujeito que combina com alguém para que roube seu carro, embolsa o seguro e ainda vende o carro por baixo do pano. É disso que muitos brasileiros se orgulham.

Pois olhe, se eu fosse jogador de futebol e entrasse na área com a bola dominada eu faria como faz Lionel Messi – alguém só me derrubaria com um tiro de espingarda 12. Quem parte pra fazer o gol quer fazer o gol, mas esses atacantes de hoje quando sentem o bafo do zagueiro desabam como florzinhas no vendaval. Nesta Copa do Mundo, o ridículo pênalti marcado a favor do Brasil no jogo de estréia contra a Croácia (pênalti salvador, aliás), numa encenação patética de Fred, acabou sendo prejudicial a longo prazo. Pênaltis verdadeiros a nosso favor acabaram não sendo marcados, porque nosso time perdeu a pouca credibilidade que já tinha. É um tanto humilhante sair navegando pelos websaites de futebol mundo afora e perceber que nós, os ex-reis do futebol, somos hoje objeto de zombaria do mundo inteiro (antes mesmo dos 7x1), como covardes e desonestos, que têm medo de tentar o gol.

São só os brasileiros? É somente Neymar que é “cai-cai”?  Claro que não.  Esta Copa nos trouxe de volta o holandês Robben, um notório cavador de pênaltis graças a suas quedas acrobáticas (ganhou um de graça contra o México). Mas esse traço indica um indivíduo (ou todo um grupo social) que tem medo de ousar e prefere transferir a responsabilidade para alguém. O jogador-que-se-joga poderia tentar o gol, mas tem medo de perder e ser cobrado; acha melhor fingir que sofreu um pênalte e jogar a responsabilidade nas costas de um colega. É curioso que, apesar da aparente facilidade do pênalte, inúmeros atacantes desfrutam de uma chance muitíssimo melhor do que a cobrança de um penal, mas a covardia os inibe de tentar. Pode ser um sintoma daqueles povos que acham que o Governo é quem tem de resolver todos os problemas, e ele, cidadão, não tem dever algum, tem só direitos.


domingo, 20 de julho de 2014

3556) Questões de tradução (20.7.2014)



Por que traduzir um livro já traduzido? Os leigos se dividem. Uns dizem que é porque a primeira edição tinha erros, e que a segunda deverá ser igual à primeira, menos esses erros. Outros, que a tradução existente é muito antiga e é preciso trazer aquela obra para “a linguagem moderna de hoje”.  

Tudo isso é possível, mas do ponto de vista meramente literário uma obra qualquer propõe um jogo recriativo com diferentes graus de dificuldade para cada idioma e cada tradutor. Como ficaria “Meu Tio, o Iauaretê” de Guimarães Rosa em russo, ou Exercícios de estilo de Queneau em mandarim?

Vou citar um exemplo simples, que um amigo me propôs recentemente. “I was devastated with the news of my grandmother’s death”Um tradutor pode dizer: “Eu fiquei devastado com a notícia da morte da minha avó.”  Outro diria: “Eu fiquei arrasado com a notícia da morte de minha avó.”  

Qual dos dois está mais certo?  Em termos literais, ambos estão igualmente certos, têm sentido equivalente, mas o verbo “arrasar” e o adjetivo “arrasado” se tornaram muito mais frequentes na nossa linguagem coloquial. “Fiquei arrasado”, portanto.

O verbo devastar não aparece muito em nossa linguagem afetiva, sobre assuntos pessoais. É quase um verbo técnico: “Um tornado devastou na tarde de ontem uma região de Illinois...”  Em português de agora, “fiquei devastado” tem intenção metafórica bem clara, mas não corresponde a um modo de falar familiar e espontâneo. Se a intenção do autor é dizer uma frase que não chame a atenção, melhor dizer “arrasado”. Nada impede que quarenta anos atrás devastar e arrasar fossem igualmente comuns, ou que voltem a sê-lo daqui a mais quarenta.

O tom das palavras muda, o seu peso, a dramaticidade da idéia que se quer passar. E os inventores de expressões (tanto na literatura quanto na fala das ruas) vão procurando formas mais inesperadas, mas plausíveis, de dizer a mesma coisa. 

"Eu virei um hindemburg quando minha avó morreu." 

"A quebra da minha firma ano passado foi um naufrágio titânico." 

"Rapaz, o resultado do jogo de ontem me obliterou." 

Expressões assim chamam a atenção na primeira vez que são usadas; com o tempo podem se tornar tão neutras quanto “fiquei arrasado”.

É possível que algum tradutor use devastado por outras razões.  A história pode estar se passando em 1920.  Talvez em inglês o sentido da palavra tenha se mantido mais ou menos uniforme; mas como “arrasado” ganhou hoje uma roupa de coloquialidade, se o romance se passa muito tempo atrás, dizer “fiquei devastado” pode ficar um pouco “de época”, evocar indiretamente uma maneira mais floreada de falar, ao invés de um coloquialismo datado de hoje.







sábado, 19 de julho de 2014

3555) João Ubaldo (19.7.2014)



O falecimento de João Ubaldo Ribeiro entristeceu todo mundo que gosta de literatura, inclusive eu, que conheço tão pouco sua obra. Nunca li Viva o Povo Brasileiro, por exemplo, que dizem ser o seu “grande livro”, o que não duvido, pelos longos trechos que cheguei a conhecer aqui e ali. Li o Sargento Getúlio nos anos 1970 e achei extraordinário. Li uma porção de contos, e depois me habituei a ler suas crônicas na imprensa. Li em parte seu romance de ficção científica, O Sorriso do Lagarto, de que não gostei muito, mas merece ser reavaliado.  Mas não posso dizer que conhecia bem a obra dele. Conhecia o estilo, que era exuberante, aos borbotões, baianamente derramado, cheio de malícia, de irreverências divertidas, de uma ironia com os poderosos bem próxima à de Jorge Amado. Como este, ao que parece, tinha o hábito de citar pessoas reais nos seus romances, recurso que (já me disseram) é receita infalível de sucesso, pois cada cidadão citado torna-se um entusiasta divulgador do livro.

Ubaldo traduziu, ele próprio, seu romance principal para o inglês, com o título An Invincible Memory – uma façanha espantosa. Vi-o dizer, numa entrevista, que foi uma doidice e que jamais faria aquilo de novo. Talvez tenha preferido isto por não saber se um tradutor estrangeiro seria capaz de encontrar equivalentes à altura para seu vastíssimo vocabulário de termos, entonações, sintaxes e prosódias populares.  Ele misturava esse português inculto e plebeu ao português castiço.  Gente da geração dele (e da minha) assimilou os clássicos lusitanos no colégio, viu depois que não tinha nada a ver com a língua falada na rua pelo povo de verdade, mas resolveu manter como uma língua paralela. No Brasil a gente tem a liberdade de usar “xibiu” e “circunlóquio” na mesma frase! Uma espécie de miscigenação linguística, um contubérnio adúltero entre a retórica do invasor e o fraseado do invadido.

Ubaldo era um sujeito sem papas na língua (acho que ouvindo esta expressão ele daria uma risada grossa e faria uma piada eclesiástica qualquer). Queixou-se uma vez de que entregou à editora o primeiro rascunho de um livro, pra dar uma idéia do que seria, viajou para descansar, com idéia de fazer revisão do texto na volta, e ao chegar encontrou o livro nas livrarias, com o texto-bravio “ipsis litteris”. Brigou? Não, deu uma gargalhada e ficou mangando.

Minha última leitura dele foi A Casa dos Budas Ditosos, um livro-de-safadeza bom danado, muito correspondente às fotos do autor que na manhã de hoje brotam por toda a imprensa eletrônica, uma cara sorridente, maliciosa, regozijada, com um riso quente e uma voz de quem já foi e já voltou.


sexta-feira, 18 de julho de 2014

3554) Contracapa de tablet (18.7.2014)



é difícil manter a elegância e ao mesmo tempo evitar um naufrágio  &  precisamos de robôs capazes de fazer palavras cruzadas enquanto esperam nossas ordens  &  quando falta luz no prédio a gente regride 200 anos em cinco minutos  &  quando a gente, em vez de ficar esperando, vai fazer outra coisa, a água ferve muito mais depressa  &  um labirinto de corredores de caverna onde ecoa ainda a voz de um xamã morto há cem anos  &  sonhei que uma voz me sussurrava: “só conta pra velhice o tempo em que você não estiver pensando”  &  a Beleza é um disfarce sutil da Verdade  &  esse problema não é nada que um pedido de desculpas público, daqui a trinta anos, não possa amenizar  &  você começa bebendo porque não se sente bem; depois, bebe para se sentir bem; depois, pra não se sentir mal  &  um folhetim gótico intitulado “A Legenda do Monastério”  &  um filme onde a câmera evitasse os atores e mostrasse apenas as suas sombras  &  não basta o cara ter que ser um tamanduá, precisa também comer formiga todo dia  &  a política é um esporte em que um dos times joga todos os jogos em casa  &  tem gente que procura equilibrar a vida ingerindo quantidades cavalares de açúcar e de sal  &  ser escritor de FC lendo apenas FC é como um exército ir para a guerra levando o dobro da munição e nenhuma comida  &  malandra é a chuva, que cai mas não se quebra  &  às vezes é até bom um terremoto para zerar um impasse legislativo  &  o Brasil vai acabar com a senzala e não consegue se livrar da casa grande  &  um presidente está para o governo assim como o sinalizador de aeroporto está para os aviões  &  quem propôs o nome “ornitorrinco” estava apenas tentando reagir à altura do que via  &  eu queria um teclado que me permitisse escrever dormindo  &  acordo todos os dias ao som de clarins que não sei se são de guerra ou de café na mesa  &  certos livros de FC parecem um foguete interplanetário fazendo a circular do bairro  &  o clichê é tão necessário a alguns animais quanto a respiração  &  o poder corrompe, o poder absoluto corrompe absolutamente, mas a definição de corrupção é relativa  &  nada mais parecido do que café frio e cerveja morna  &  sempre compareci aos meus desencontros comigo mesmo  &  pior do que o medo da tortura é o medo do ridículo, e pior do que a morte é a risada alheia  &  temos mais pena de um cão doente do que de um mendigo porque o mendigo disputa espaço conosco  &  eu só direi que o país vai mal quando os mortos forem deixados apodrecendo nas calçadas  &  depois de conversar com ela por meia hora percebi que o que eu estava fitando não eram os olhos, eram os seios mesmo  &


quinta-feira, 17 de julho de 2014

3553) A entropia do futebol (17.7.2014)



Há um livro, se não me engano de Neil Gaiman, em que o mundo está passando por um aumento da entropia.  Entropia é a medida da desorganização do Universo, em que há uma dissipação da energia e todas as coisas vão ficando mais caóticas e indiferenciadas. Quando a gente deixa uma xícara de café em cima da mesa, ela se degrada, esfria sozinha, perde energia. No mundo descrito por Gaiman, as fitas cassete com música gravada (clássica, popular, etc.) se guardadas por mais de duas semanas sem ninguém mexer nelas, se degradam – transformam-se todas em The Best of Queen.

O que me lembra um clássico da FC: Ubik de Philip K. Dick.  No universo em que vive o protagonista, acontece algo semelhante. O universo está involuindo, está sofrendo um aumento de entropia que faz as coisas se tornarem progressivamente mais antigas, mais atrasadas. A história se passa no futuro mas à medida que a entropia aumenta o personagem anda na rua e as pessoas começam a aparecer com roupas dos anos 1940, os carros viram carros daquela época, e assim por diante. Quando ele toma o remédio chamado “Ubik”, uma espécie de tônico miraculoso, aí tudo bem: carros, roupa, arquitetura, anúncios nas ruas, tudo volta a pertencer à época em que a história acontece.

Posso estar sendo pessimista, mas acho que estamos passando por um período ubikiano no futebol.  Esta Copa mostrou grandes times campeões do mundo jogando um futebol muitíssimo abaixo do que praticavam pouco tempo atrás, inclusive o Brasil.  Há uma diferença ubikiana entre nossa Seleção da Copa das Confederações e a da Copa do Mundo. O que dizer da fortíssima Espanha, campeã mundial em 2010, que chegou no Brasil e virou saco de pancadas, como se fosse uma espécie de Íbis?  Os grandes craques como Cristiano Ronaldo, Messi, Iniesta, etc., todos estavam atuando na Copa como versões bizarras de si mesmos. E não me venham falar dos poucos times ou poucos craques que jogaram bem. São a exceção que confirma a regra. (Se eu fosse rico destinaria alguns milhões de dólares ao sujeito que inventou essa frase, um 171 filosófico que permite à gente afirmar qualquer coisa e escapar impune.)

Nosso futebol, em especial, está passando por uma degradação espontânea, uma entressafra sem fim, uma fase Ubik, e urge descobrir o tônico fantástico que nos trará de volta ao jogo bonito que poderíamos estar praticando em 2014. Esta regressão entrópica, da qual nem a Seleção Brasileira escapou, está fazendo com que mesmo algumas das melhores equipes do mundo pisem no gramado para praticar um futebol bumba-meu-boi digno dos melhores (piores) momentos de algumas peladas da Concacaf ou da Oceania.


quarta-feira, 16 de julho de 2014

3552) O desejo e o objetivo (16.7.2014)



Uma das piores coisas que podem acontecer durante uma discussão sobre literatura e mercado editorial é alguém aludir a Stephen King, J. K. Rowling ou Paulo Coelho para dar exemplo seja lá do que for. Esse pessoal que vende milhões passa para o autor novato a idéia de que o objetivo dele deve ser, também, vender milhões de cópias, o que é um erro. Na pressa de atingir esse número irreal, ele vai se oferecer pra “transar com Deus e com o lobisomem”, como dizia o parceiro do autor de O Alquimista. Não vai conseguir, e talvez acabe entrando para o clube azedo e ressentido dos que dizem: “Pois é... um país que não lê... ah, se eu escrevesse em inglês...”

Vender dez milhões de exemplares não pode ser o objetivo de ninguém que publica um livro, ainda mais se for um livro de estréia. É um objetivo irreal, que chega à beira do absurdo, mas mesmo assim vejo muitos autores jovens e autoconfiantes dizerem: “Se a série Crepúsculo vendeu tanto assim, por que um livro meu não pode vender também?”.  Isso, minha gente, não é um objetivo, é um desejo.  Todo mundo é livre para desejar o que quiser, sonhar com o que bem entender.  Mas isso não pode ser confundido com um objetivo.  Objetivo é algo que está no horizonte do possível, algo que pode ser planejado e cumprido.

Quando Dan Brown ou Stephen King fazem a tiragem inicial de um livro novo com um milhão de exemplares, isso não é um desejo, é um objetivo.  Toda a história anterior da vendagem do autor o autoriza a imprimir um milhão de cópias de uma tacada só. Ele já sabe que é possível vendê-las. (Às vezes encalha; às vezes, dependendo da aceitação do livro, mesmo Brown ou Coelho levam anos para vender essa tiragem inicial. Mas o objetivo era fundamentado, sim.)

Meus livros têm em geral uma tiragem de 2 ou 3 mil exemplares, que é a tiragem padrão do mercado brasileiro.  Alguns já venderam 40 ou 50 mil, mas nem por isto eu coloco esse número como um objetivo. Se rolar, beleza.  Mas o bom senso aconselha, a mim e aos editores, ir de pouquinho, sentindo a resposta do público, e preparando tiragens maiores se a gente vir que a aceitação é boa.

Colocar Paulo Coelho e seus não-sei-quantos-milhões de livros vendidos na conversa é despertar um desejo confuso e infantil de sucesso instantâneo, sucesso com pouco esforço. Duvido que algum novo autor se dispusesse a fazer a peregrinação que Paulo Coelho fez, com o Diário de um Mago embaixo do braço, de livraria em livraria, de rádio em rádio, de jornal em jornal, de TV em TV, de amigo em amigo, vendendo caladinho seu peixe, pensando talvez que iria ser um sucesso com 20 mil livros vendidos.


terça-feira, 15 de julho de 2014

3551) Alemanha Ano Zero (15.7.2014)




Em mais uma Copa que não teve uma grande seleção (tipo Brasil em 82 ou Holanda em 74), venceu a mais aplicada e de futebol mais ofensivo, embora com altos e baixos. A Alemanha, merecidamente campeã, teve o melhor ataque, com 18 gols contra 4. A vice-campeã Argentina fez 8 gols contra 4, no total. Fez menos gols na Copa inteira do que a Colômbia fez na fase de grupos (nove).

Valeu a simpatia dos alemães, que estudaram o ambiente e a população e souberam se cercar de um clima positivo. A Argentina promoveu a maior invasão de torcedores; foi a seleção que teve mais torcida, se bem que o Brasil deve ter sido a que teve mais espectadores-a-favor. A Holanda bateu na trave mais uma vez: começou goleando e tirando o sono dos adversários e foi minguando ao longo da competição. Seu ataque, tão talentoso (Robben, Van Persie, Sneider), lhe faltou em jogos decisivos contra Costa Rica e Argentina (0x0).

Dentre os times menores, as melhores surpresas foram a Colômbia, a Argélia, o Chile e a Costa Rica, que acabou virando o “segundo time” de todo mundo. Os grandes que decepcionaram foram a Espanha, a Inglaterra, a Itália, Portugal e Brasil.  Alguns times estão numa escalada de qualidade que vale a pena vigiar, como é o caso dos EUA e da Bélgica.  Os times africanos, desta vez, vieram muito fracos, e somente Gana e Nigéria mostraram algum futebol.

Foi uma Copa com excelente média de gols na primeira fase, prejudicada por uma série de 0x0 e 1x0 no mata-mata final. Uma Copa dos goleiros, sem dúvida, e eu escolheria Tim Howard dos EUA como representante da categoria. Uma Copa de más arbitragens, mostrando (para alegria do meu preconceito) a incompetência da Fifa na sua preparação e escalação. Justiça seja feita, a Fifa se redimiu introduzindo duas coisas que deverão se consolidar: o tira-teima eletrônico para saber se a bola entrou no gol, e o spray de espuma para marcar a posição da barreira (que o Brasil já usa há séculos).

Uma Copa que se abriu e se fechou com duas goleadas para entrar na História: os 5x1 da Holanda sobre a campeã Espanha, e os 7x1 da Alemanha sobre o Brasil, jogo sobre o qual ainda vão correr alguns atlânticos de tinta. Houve pelo menos uma dúzia de jogos de altíssima voltagem emocional. Nenhuma violência desmedida, embora a truculência que houve pudesse ter sido bem menor se as arbitragens tivessem um melhor nível. A classificação final foi justa, embora uma justiça amarga para a Argentina, que apostou tudo em Messi e o viu atuando aquém do esperado, e para o Brasil, que como dono da festa mandou a campo uma das seleções mais jovens, menos preparadas e mais emocionalmente equivocadas de toda sua história.


domingo, 13 de julho de 2014

3550) "Sunset Boulevard" (13.7.2014)



Dizem que este filme de Billy Wilder, em sua primeira versão, começava com vários cadáveres conversando num necrotério. Cada um dizia como tinha morrido, e então era a vez de Joe Gillis (William Holden) contar sua história.  As audiências-teste acharam a cena ridícula, o diretor teve que refazê-la, e ficou um dos melhores começos de filmes hollywoodianos. A voz em off acompanha a chegada da polícia à mansão, mostra ironicamente o cadáver boiando na piscina, e diz: “Esse cara morto aí sou eu. Agora vou contar como tudo começou.” (Não exatamente assim; é um texto excelente.)

O filme sobre a estrela decadente Norma Desmond é contado pelo roteirista desempregado e a-perigo Joe Gillis. É um bom sujeito, meio malandro mas fundamentalmente um cara que quer apenas arranjar trabalho para pagar as dívidas e não perder o automóvel. Ele começa como “script doctor” para dar uma organizada no roteiro faraônico escrito pela ex-atriz, e termina como playboy teúdo e manteúdo. Prisioneiro, como se fosse um personagem de Twilight Zone, de uma mansão parada no tempo, de onde quem ousa entrar não consegue sair.

A estrela, que aparece com um turbante que não deixa de lembrar Carmen Miranda, o contrata porque ele é de Sagitário.  As portas internas da casa não têm fechaduras. “Madame tem crises de melancolia, e já tentou o suicídio”, diz o mordomo (que parece um general prussiano) Max von Mayerling, interpretado por Erich von Stroheim.  Aconselho ver a versão comentada do DVD, onde um crítico mostra todas as intrusões da vida real no filme, desde a lanchonete onde o pessoal de Hollywood comia e bebia na madruga até aparições rápidas de Cecil B. de Mill e Buster Keaton interpretando a si mesmos. O filme, aliás, faz referências visíveis ao passado dos próprios atores, que interpretam caricaturas de si mesmos.

É um dos filmes mais cáusticos já feitos sobre Hollywood, e é de admirar que tenha sido feito nos mesmos estúdios (no caso, a Paramount) cuja vida ilha-da-fantasia ele se propõe a criticar. Algumas cenas estão a um passo do surrealismo de Buñuel em L’Âge d’Or: o baile de reveillon para duas pessoas, o velório do macaco, o jogo de baralho dos ex-atores. É a Hollywood de baixo vingando-se com sarcasmo da Hollywood de cima.

De modo cruel, o único sopro de vida normal, de ar puro, é a paixão de Gillis por uma roteirista jovem, com quem ele começa a escrever um filme às escondidas. Por trás da Hollywood das estrelas egocêntricas e dos produtores superpoderosos, Wilder enxerga o que ele considera a Hollywood boa-praça, a dos roteiristas e diretores como ele mesmo, envolvidos na briga-de-cachorro-grande dos egos alheios.