terça-feira, 4 de março de 2014

3438) Fermata (5.3.2014)



(escultura de Bernini)

A lágrima de mármore está fixa no ar, imóvel, solta.  Eu passaria uma aliança em torno dela, se tivesse. As serpentinas de mármore dos cabelos das dríades, retorcendo-se em cachos revoltos, leves, quase flutuando. A abelha que mal roça a casca lisa do fruto. A folha oscila ao lado de outras folhas e a posição de cada uma delas evoca aquele ir e voltar.

O tempo parou, tudo que era carne virou Carrara, ou granito, ou pedra sabão.  Um instante atrás tudo esvoaçava, tudo tremulava, tudo fluía, o mundo era um concerto de ondas vibratórias, a carne, a folha, a nuvem, o cabelo, a sombra arrastada pelo vento.  Mas agora tudo está freezado no espaçotempo: o pólen esvoaçante das flores, os respingos e os borrifos das brincadeiras das náiades nas pedras ensolaradas do riacho. Cada microgota dessa água que espadana é de pedra esculpida, tão fincada na paisagem quanto um prego.

O tempo parou. Como uma alavanca puxada para trás, encaixada numa ranhura, e presa ali.  Pronto, acabou-se, aquilo está lá naquele ponto e dali não vai sair jamais.  No frontão guerreiro, o aço de mármore fende os músculos de mármore, rompendo tudo no interior daquele corpo, cujo escudo de defesa estava anormalmente erguido, claramente porque o artista entendia pouco da luta que retratava aos bocejos. Seus guerreiros sonham vitórias de mármore enquanto os outros gemem sua dor de mármore e morrem sua morte de mármore.  
O caçador na orla da mata.  A corça no seu súbito salto, no seu susto, sua esquiva. Tudo em mármore. Aqui está o arco ainda tremendo, a corda ainda vibrando, a flecha suspensa em algum ponto da sua geodésica vacilante rumo ao alvo. Sobre esses olhos de mármore sem pupila, chovem imagens de mármore que ele guardará para sempre em sua memória imune à erosão. Poucas vezes a matéria parece tão indestrutível, tão protegida do esfarelamento em grãos discretos, partículas soltas..

Que arte superior em magia a todas as outras seria uma escultura em pedra que paralisasse assim o tempo, não só o tempo do mito retratado, mas o tempo da pedra. Uma arte escultórica que suspendesse a pedra solta no espaço, de modo que por ter se tornado escultura ela deixasse de ser pedra e pudesse pairar assim, como uma bolha de matéria soprada pela mente, esvoaçando parada, sustentada magicamente pelo poder de ter se tornado algo além da carne e de Carrara.  Que, assim como os frutos de mármore nunca apodrecem, as lágrimas de mármore nunca caíssem no chão.  Uma arte em que o corpo mais efêmero se tornasse eterno e o corpo mais pesado se tornasse imponderável. Uma arte de esculpir em que toda a matéria fosse feita de luz.


3437) "The Dream Years" (4.3.2014)



Este romance de Lisa Goldstein, de 1986, é uma fantasia histórica que envolve viagens no tempo, que acontecem sem nenhuma tentativa de explicação centífica.  Meu interesse nele surgiu pelo fato de ser uma exploração literária das atividades do grupo surrealista liderado por André Breton, na Paris dos anos 1920.  Leio tudo o que acho de interessante a respeito do surrealismo.  Biografias, histórias e análises são numerosas, mas, curiosamente, há poucas obras de ficção.

Naquela década Paris fervilhava com o surrealismo (que se concentrava mais na literatura e artes plásticas), a vanguarda cinematográfica (aliás, próxima do surrealismo) de Jean Epstein, Germaine Dulac, René Clair, Man Ray, etc., a pintura modernista, principalmente o cubismo de Picasso e Braque... Para não falar na agitação política de comunistas e anarquistas. Era uma cidade não muito grande pelos padrões atuais: um pouco menos de três milhões de habitantes (curiosamente, nunca passou disso). Um caldeirão de criação cultural como poucas vezes se viu.

No livro de Goldstein, o fictício protagonista é Robert St. Onge, poeta que convive no círculo de André Breton, Antonin Artaud, Paul Éluard, Louis Aragon, etc.  Vivem todos naquela pindaíba celestial, circulando pelos cafés e bulevares. Compõem poemas coletivos, contam sonhos, promovem pequenos “happenings” improvisados.  A palavra de ordem é libertar a mente das cadeias da linguagem, da moral, da educação burguesa; se possível, libertá-la inclusive das leis do espaço e do tempo.  E Robert começa a se ver transportado, através de uma mulher misteriosa, para a Paris de 1968, cheia de manifestações, bombas, barricadas, repressão policial.

São dois momentos diferentes e fascinantes da cidade, e a transição, meio mágica, aparentemente gratuita, lembra a de Meia Noite em Paris de Woody Allen: “As ruas se alongaram até o infinito e depois se contraíram. Ele esperou que elas ficassem sólidas novamente.”  Nessa aventura futurista, Robert St. Onge entra em choque com seu melhor amigo, André Breton (sempre ardoroso e dono-da-verdade) e se apaixona pela moça que veio do futuro para buscá-lo.

É um livro leve e sem grande aprofundamento; apesar de ter sido marquetado como adulto, eu o consideraria uma boa introdução ao Surrealismo para o público juvenil.  Lisa Goldstein já ganhou alguns prêmios importantes, inclusive um National Book Award para The Red Magician (1982), e publicou alguns contos interessantes na Asimov’s Magazine. The Dream Years reconstitui, em seu melhores momentos, a vida boêmia dos surrealistas, sobre a qual, ao que eu saiba, poucos romances foram escritos.


domingo, 2 de março de 2014

3436) Escrita acadêmica (2.3.2014)




Critico às vezes o jargão acadêmico nesta coluna, não por preconceito contra a academia, mas por impaciência com o jargão.  E não por me julgar acima dele, mas por ter que combatê-lo em cada frase que escrevo, já que ele não passa de um atalho para dizer coisas complexas.

Dias atrás, no artigo “Autores meticulosos”, produzi esta pérola, falando de Robert Silverberg: 

“A autoconsciência do autor que recebe o upgrade de uma pulp fiction para uma New Wave paga o preço de uma teorização filosófica para cada frase”. 

Upgrade é jargão da informática, significa passar para um estágio mais avançado de alguma coisa. 

Pulp fiction significa (no contexto da frase) um tipo de ficção escrita “ao correr da pena”, sem muita reflexão a não ser a de saber para onde a história está indo. 

New Wave é um movimento da ficção científica dos anos 1960, mais consciente das técnicas literárias, dos movimentos de vanguarda, dos conceitos teóricos. 

A frase poderia ser reformulada assim: 

“Quando um escritor adquire uma consciência mais apurada da técnica literária, ele evolui de uma ficção aparentemente espontânea, livre, lúdica, para um estágio mais complexo e mais exigente, e o preço que paga por esse aperfeiçoamento é precisar explicar a si mesmo, em cada frase, por que motivo a frase tem que ter aquela forma”.  

Bem melhor, não é mesmo?

Um artigo de Joshua Rothman em The New Yorker (http://nyr.kr/1jVgVQd) equaciona bem essa oposição entre linguagem jornalística (simples) e linguagem acadêmica (ininteligível). O mercado jornalístico está se expandindo, inclusive eletronicamente, e precisa de pessoas capazes de dizer coisas substanciais com relativa clareza. Por outro lado, o mercado acadêmico se contrai. “Para construir uma carreira acadêmica bem sucedida,” diz ele, “é preciso impressionar grupos minúsculos de pessoas: colegas de departamento, editores de livros e de periódicos, comitês acadêmicos.”  

Rothman afirma que o jornalista precisa ser simpático, porque está escrevendo para estranhos; o acadêmico, contudo, escreve para uma comunidade que, em tese, compartilha suas informações e seu vocabulário. Não precisa explicar seu jargão a ninguém. E, como se presume que a atitude a ser mantida tem que ser científica, “a prosa acadêmica é, idealmente, algo impessoal, escrita por uma mente neutra para outras mentes neutras.” 

Uma escrita quase criptografada, para ser lida por quem domina igualmente a chave desse código. Não é bem o elitismo dos que se julgam superiores; deve ser a impaciência de quem não pode ficar reexplicando e redefinindo tudo cada vez que uma pessoa de fora entra na conversa.



sábado, 1 de março de 2014

3435) Um poema de W H Auden (1.3.2014)




É um poema intitulado “The Lucky”, e faz parte da bela série de 20 poemas intitulada “The Quest”, de 1940 (aqui: http://bit.ly/1fOrJZb).  Estruturalmente é um quase-soneto de 14 linhas com estrofes 6-6-2 (rimando ABCACB – ABCACB - DD); as linhas são de metro variável, a maioria em decassílabos (até onde consigo escandi-los de ouvido), sendo algumas delas, na engraçada nomenclatura do verso inglês, “pentâmetros iâmbicos” (di-DUM di-DUM di-DUM di-DUM di-DUM). Não traduzirei o poema.  Tentar traduzir, mantendo o sentido, um poema rimado e metrificado é como pegar um carro e querer ir ao mesmo tempo pro sertão e pra capital.

Começa pelo título. “O Sortudo” é nome de desenho animado, “O Afortunado” parece vestir um terno de linho branco. Tem um buraco na língua portuguesa para um termo tão simples como “lucky”. Auden questiona:

“Digamos que ele tivesse dado ouvidos ao comitê de eruditos: só ficaria sabendo onde não devia procurar. Digamos que o cão obedecesse ao chamado do seu assobio: a cidade soterrada nunca teria sido descoberta. Digamos que ele tivesse mandado embora a criada descuidada: o criptograma nunca teria caído das folhas do livro”. Pequenas decisões, pequenas encruzilhadas, pequenos acasos de que dependem as grandes descobertas e aventuras.

“’Não fui eu!’, ele exclamou, quando, firme e perplexo, tropeçou no crânio de alguém que viera antes. ‘Um refrão absurdo brotou na minha mente e deixou desmontada a Esfinge do intelecto; conquistei a Rainha porque meu cabelo era ruivo; essa aventura terrível é um tanto chata.”  E conclui: “É este o tormento dos que falharam: ‘Eu estava condenado desde o princípio, ou teria vencido, caso tivesse fé na graça divina?”.

Isto é um arremedo questionável do original, sem poesia, mas dane-se a poesia por enquanto. Auden era um poeta religioso com profundas crises metafísicas, destino dos poetas religiosos (como é possível crer naquilo tudo sem que a Razão esperneie de vez em quando?).  As grandes jornadas, as grandes demandas, as grandes empreitadas heróicas dependem de coincidências, detalhes, escolhas involuntárias. Nunca sabemos se nossa consagração ou nossa catástrofe são mesmo nossas.

Toda demanda, seja ela a de Frodo ou a de Quaderna, envolve esse diálogo surdo com o Invisível.  Tal como os espiões de Maugham, que nunca sabem a finalidade das ordens que cumprem. Ou como os babilônios de Borges, que agindo ou não agindo obedecem sempre às ordens da misteriosa Companhia lotérica. Mesmo quando alguém dá todas as suas riquezas, seu sangue e sua vida para obter um triunfo, ao ser festejado pode apenas dar de ombros e dizer, para que conste da ata: “Tive sorte”.

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

3434) Manifestações (28.2.2014)



1) Vamos torcer por um Brasil em que a gente tenha projetos-de-futuro diferentes e consiga se tratar com respeito e negociar com sensatez. 2) Os partidos de esquerda costumam sempre se fracionar à esquerda, porque quando crescem não conseguem mais conviver com a própria esquerda.  3) É engraçado você endeusar um vulto histórico, desencantar-se com ele, mas depois sair à rua para defender a estátua dele diante de um bando de milicianos subvencionados. 4) Uma noite de horror e fogueiras sem controle, uma noite de tropeções e queixo arrebentado, uma noite de ácido nos olhos mas de vergonha na cara. 

5) Se a rua é de todos, paciência, é deles também (identificar e demolir a contradição nesta afirmativa; depois recuperar a formulação original, relativizando-a mediante uma superpremissa de natureza ética).  6) Será possível produzir um estado policial meramente através do estímulo a protestos violentos, insuflando-os de fora, de modo a fazer aumentarem, por assim dizer, os anticorpos de combate?  7) Há uma enorme tensão na voz das pessoas que não sabem direito se ficam a favor disto ou daquilo, e uma sede de vingança cega no seu discurso quando finalmente encontram uma posição. 8) Uma multidão é como uma saca de feijão, não há dois indivíduos iguais. É mero preconceito seu achar que um caroço de feijão é igual a outro.

9) Quem nasceu primeiro, o ovo ou a serpente? 10)  As redes sociais funcionam como uma droga no corpo da sociedade, acelerando as sinapses, turbinando os estímulos, e periga a sociedade ficar mais viciada nelas do que os próprios indivíduos.  11) O processo de acanalhamento da política é essencial para manter fora dela todos os que não são canalhas e não gostam de conviver com canalhas, e desse modo os canalhas não precisam proibir a presença destes, pois um dia eles mesmos se afastarão. 12) Liberdade de expressão é o diálogo entre um estudante indócil e um capadócio de cassetete e capacete.

13) O principal objetivo do terrorismo é produzir um anti-terrorismo duzentas vezes maior. 14) Quebrar caixas eletrônicos para agredir os Bancos é como queimar santinhos para dar prejuízo ao Vaticano. 15) E se alguém encostasse o Brasil na parede e pedisse pra ver os documentos?  16) O fascismo não chega de repente como a guilhotina, chega volta-a-volta como o garrote vil.  17) No jornalismo ninguém tem mais credibilidade do que as fontes que cita, e em política ninguém é mais honesto do que os aliados que arregimenta. 18) O diabo é que algum dia isto aqui vai ser lido por um indivíduo fardado que vai acender um cigarro, reler tudo, continuar em dúvida, e depois dizer: “Pelo sim pelo não, traz ele aqui.”


quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

3433) Quando eu era criança (27.2.2014)


(Eu e Tide no carnaval)

Tem um blog impagável (http://coisasqueeuachavaqdoeracrianca.tumblr.com/) onde as pessoas contribuem com suas lembranças de infância, aqueles pequenos equívocos meio absurdos que toda criança comete por não entender direito o mundo dos adultos. Exemplos do blog: “Eu pensava que em hotéis só entravam homens, e em motéis, mulheres”; “Eu pensava que uísque 12 anos era para crianças de 12 anos tomarem”; “Eu achava que sexo oral era de hora em hora e sexo anal de ano em ano”, etc.

Bem... Eu me lembro que eu achava que a Terra boiava solta no espaço, junto com planetas e estrelas, e que por baixo de tudo havia o Oceano Atlântico, que se expandia até o infinito em todas as direções.  Outra: meus pais mandavam ter cuidado com giletes, dizendo que havia perigo de alguém se cortar, etc., de modo que sempre que eu via uma gilete de bobeira eu a pegava, me trancava no banheiro, quebrava-a em pedacinhos, jogava na privada e dava descarga. Quando pequeno, eu ouvira dizer que o Inferno era embaixo do chão, então quando eu via um buraco qualquer na terra eu me agachava para espiar, para ver como era o inferno.

Uma vez perguntei a minha mãe o que tinha dentro do corpo da gente, eu ficava apontando: “E aqui?”, e ela dizia: “O fígado”, etc., até que a outra pergunta ela respondeu distraída “o ovário”, e dias depois eu disse: “Não posso ir pra aula, estou com dor no ovário”. Ainda nos mistérios sexuais, eu lia nos contos da época coisas como “e daquele beijo apaixonado nasceu um dia nosso filhinho...” e imaginava que as mulheres engravidavam com um beijo, o que trouxe um suspense adicional a qualquer filme, pois bastava haver um beijo e eu ficava imaginando que a mocinha ia ser botada de-casa-pra-fora.

Uma vez, ouvindo uma novela de rádio, eu lamentei que não fosse TV para a gente ver as aventuras dos heróis na selva, e minha irmã Clotilde disse: “Não, se fosse TV a gente ia ver uma sala cheia de microfones e as pessoas lendo o texto em folhas de papel”, e eu achei a TV uma decepção. Minha Tia Adiza, que era solteira, morou conosco muitos anos, e como ela todo dia trocava de roupa e ia para o trabalho, tal como meu pai, eu perguntei a minha mãe se Tia Adiza era mulher ou homem.

Durante algum tempo acreditei que quando alguém era condenado a prisão perpétua ele ia para a cadeia e nunca mais morria. Uma vez discuti com Tide sobre a pronúncia do nome Washington, que eu dizia que era Uachínton e ela dizia que era Vasguitón.  Vendo filmes de guerra, eu cheguei à conclusão de que quando dois países entravam em guerra eles mandavam os respectivos exércitos brigar na África, que era uma espécie de continente baldio.


quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

3432) Entrevista (26.2.2014)



PERGUNTA – Sr. Braulio, o momento atual da literatura envolve impasses que, ao que parece, não estão sendo resolvidos de maneira satisfatória nem pela crítica, que, presa a critérios estabelecidos, demonstra pouca maleabilidade para acompanhar o fôlego criativo dos novos autores, nem pelos próprios autores, que apesar da garra e da adrenalina características das novas gerações tendem a perder de vista o específico literário e a dissipar suas energias em atividades extra-página, por assim dizer, tais como incontáveis sessões de autógrafos, palestras, aparições em talk-show da TV, participações em festas literárias e bienais do livro, realização de oficinas, manutenção de websaites, divulgação nas redes sociais, e todo um conjunto de práticas menos voltadas para a criação literária do que para a divulgação dos resultados dessa mesma criação. Para alguns, trata-se de uma tática de sobrevivência em que a literatura, sempre encurralada nas fatias mais estreitas da divisão do mercado, procura adotar para si uma postura mais agressiva através da ênfase em táticas da publicidade e da propaganda, o que traz a mente a filosofia de trabalho de alguns filmes de Hollywood, que destinam 100 milhões de dólares para a feitura do filme e 150 milhões para a sua divulgação.  Ora, isso acaba criando um aparente impasse entre duas funções paralelas com que qualquer escritor em qualquer época sempre se defrontou, a necessidade de produzir livros e a de divulgá-los, sabendo-se que qualquer uma delas estará sempre subtraindo da outra tempo, esforço e energia. O que se coloca diante dos autores, no entanto, parece ser algo mais complexo do que a mera organização do tempo de trabalho, porque salta aos olhos o fato de que escritores mais afeitos às tarefas propagandísticas do que ao fazer literário parecem estar colhendo frutos mais substanciais do que aqueles que não se sentem muito à vontade em aparições públicas diante de platéias e de câmeras, seja por timidez, seja pela fadiga resultante dos incessantes compromissos, viagens, idas e vindas, etc., seja até por uma compreensível irritação diante da expectativa, que parece também ser típica dos leitores de hoje, de que um escritor seja também uma espécie de showman ou de garoto-propaganda de si mesmo.  O senhor acha que, neste contexto, caberia aos autores em geral uma atenção maior ao desenvolvimento da própria escrita, a fim de que a literatura não venha a se tornar, como parece estar ocorrendo em outras atividades como o próprio jornalismo, um território dominado pelos mais fluentes, os mais extrovertidos, os mais semelhantes aos atores de cinema e de televisão?  RESPOSTA – Sim.


terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

3431) Estação Botafogo (25.2.2014)




O Cineclube Estação Botafogo (sinto muito, só sei chamá-lo assim) está ameaçado de fechar, por dívidas e outros problemas.  Ele foi no Rio de Janeiro, nos anos 1980, o que a Cinemateca do MAM tinha sido quinze anos antes. Multidões superlotavam aquela calçada estreita para rever Blade Runner numa época em que ele não estava acessível na torneira de cada computador. Íamos todos atraídos pelos mesmos filmes, filmes imprevisíveis que imantavam pessoas afins. Foi saindo de uma sessão de Billy Liar de John Schlesinger que encontrei com Homero de Carvalho (hoje na Fiocruz) e o poeta/publicitário Ulisses Tavares, meu “primo”, e pude fazer esta apresentação histórica: “Homero, este é Ulisses. Ulisses, este é Homero”; e fomos tomar cerveja. 

Nos distantes anos 1980 não havia a atual proliferação de bares dali até a Praia de Botafogo, e os poucos balcões disponíveis eram tão disputados quanto as últimas poltronas nas sessões de despedida (quando uma cópia em celulóide cujo certificado de censura estava para vencer era exibida pela última vez antes de ser incinerada. O mundo já foi mais absurdo.)

O Estação, contudo, não é apenas a memória afetiva de todos nós. Era para mim, recém-chegado ao Rio, a revelação de uma realidade empresarial que jamais teria passado pela minha cabeça.  Coincidiu com outras iniciativas da rapaziada carioca que fizeram um sucesso estrondoso, tais como o Circo Voador e o Planeta Diário, todos decolando quase ao mesmo tempo. Era possível fazer sucesso e ganhar dinheiro fazendo o que cada um gostava, e atraindo um público capaz de gostar também e de entender tudo. 

O Estação precisa sobreviver.  O mercado precisa dele, precisa de grupos capazes de criar os sucessos do futuro, e não apenas de realimentar os blockbusters que já chegam pagos lá de fora. Foram as sessões no Estação que fizeram Down by Law de Jim Jarmusch ser batizado em português Daunbailò, porque os fãs não admitiam outro nome.  E senti ali a força que um movimento de fãs, intenso, diversificado, pode exercer num mercado onde se aposta somente no que é “tiro certo”.  Não penso apenas no passado distante; onde mais eu teria podido ver They Live e Holy Motors em 2013, senão ali? 

Festivais, mostras, coleções de livros, revistas de cinema, tudo se expandiu ao mesmo tempo pela existência comprovada e crescente daquele mercado. E as outras salas e outras redes de exibição acabaram sendo beneficiárias desse público. Não é o público do Homem Aranha ou X-Men, mas é um público que hoje permite filmes mais complexos e de apelo menos ruidoso se manterem em cartaz e darem dinheiro inclusive aos concorrentes do Estação.


domingo, 23 de fevereiro de 2014

3430) Histórias de espiões (23.2.2014)



O romance de espionagem teve seu “boom” a partir dos anos 1960, auge da Guerra Fria, mas já vem de longe. Se brincar, remonta até a Baronesa de Orczy e suas aventuras do “Pimpinela Escarlate” ajudando nobres a fugirem da guilhotina durante a Revolução Francesa.  Muitos escritores ilustres não apenas escreveram romances de espionagem, como também trabalharam como espiões para a Inglaterra – foi o caso de Somerset Maugham na I Guerra Mundial e de Graham Greene na segunda.

É de Maugham o romance Ashenden – o Agente Secreto (1928), na verdade um “fix-up” – conjunto de narrativas unificadas mediante um personagem, tema ou ambientação.  (O livro serviu de base para o filme homônimo de Hitchcock.) O protagonista é um escritor convocado para ajudar o Serviço Secreto britânico na Europa durante a Guerra. Suas missões incluem vigiar pessoas, facilitar contatos, mas também ajudar na execução de um ou outro agente inimigo. Não é uma leitura para os fãs de Ian Fleming ou de John Le Carré, que turbinaram a dramaticidade do gênero em termos de suspense, intensa movimentação, enredos intrincados como armações de xadrez. Maugham se baseou em suas experiências, e o livro tem aquele teor meio vago e inconcluso dos acontecimentos da vida real.

Quem foi grande fã do livro foi Raymond Chandler, para quem (em 1949) o romance de Maugham estava “muito à frente de qualquer outra história de espionagem já escrita”, e chegou a pedir ao seu editor inglês uma cópia autografada (e conseguiu). Disse ele: “É como se houvesse o tempo inteiro algo vago e sinistro por trás das cortinas. Na maioria dos outros livros, você apenas tem medo do cara com um revólver.”

Além do jogo político-ideológico, sempre tenso e interessante, o romance de espionagem, melhor do que qualquer outro, explora essa sensação imprecisa de perigos invisíveis, intenções duplas ou triplas por trás de cada ação, dúvida constante sobre cada personagem. Em Ashenden, a espionagem é o reino do mistério constante, onde o agente segue as instruções sem saber ao certo para que servem, ou o quê, precisamente, está em jogo.

A trilogia recente de William Gibson, da qual já foram traduzidos aqui Reconhecimento de Padrões e Território Fantasma, recupera essa sensação de aventuras individuais arrastadas em conspirações globais invisíveis, as tramas “vagas e sinistras” a que Chandler se refere.  A onipresença da Web como instrumento de manipulação resulta em histórias como “Maneki Neko” (1998) de Bruce Sterling, em que, como Ashenden, o protagonista cumpre ações que não entende, para dar seguimento a uma manobra internacional onde não passa de um simples peão.

sábado, 22 de fevereiro de 2014

3429) O que não vou ver (22.2.2014)


Peguei um táxi em João Pessoa e fui conversando com o motorista. O celular tocou, ele cortou a ligação, e começamos a falar sobre a utilidade dos celulares. Daí a pouco estávamos imaginando como seriam os celulares do futuro. E nesse momento Zé Antonio, ou Zeca (como ele é mais conhecido) falou: “Quer saber de uma coisa?  Todo mundo tem saudade do tempo antigo, do que já passou.  Pois eu não.  Eu tenho saudade do que eu não vou ver.”  E eu entendi na hora, porque é exatamente isso que eu sinto às vezes: a nostalgia de saber que depois da minha morte o avanço da ciência vai continuar, novas descobertas e invenções vão surgir, coisas interessantes vão pipocar por todos os lados, diariamente, e eu não vou estar aqui para arregalar os olhos feito um menino e dizer: “Eita!”

A saudade é uma sensação de perda (como dizia Pinto do Monteiro – “saudade só é saudade quando morre a esperança”), e não é só o passado irrecuperável que a gente perde, é também o futuro inatingível. E ninguém pode nos proibir de chamar “saudade” a essa angústia pela perda de um futuro que, por definição, vai nos sobreviver. É uma saudade antecipada que brota em quem gosta da vida, quem acompanha as coisas do mundo – seja os campeonatos de futebol, os filmes que ganham o Oscar, as eleições, as conquistas espaciais, os novos livros, as novas músicas... Que infinidade de coisas boas eu não vou perder, somente porque não estarei mais aqui?

Numa coluna de anos atrás (aqui: http://bit.ly/1gAye5F) sobre o Tempo, propus uma definição pessoal: “O Passado é tudo aquilo que ocorreu antes do meu nascimento. O Presente é tudo que começou a ocorrer desde então. E o Futuro é tudo que irá ocorrer após o instante da minha morte.”  Nosso Tempo de vida é um presente contínuo (pois a única realidade que de fato experimentamos é o presente, o aqui-e-agora), inundado de referências do passado e de expectativas pelo futuro.  Quando temos saudade da infância temos saudade de um “passado presente”, pois somos capazes de lembrar dele agora. E quando pensamos no que vamos fazer no ano que vem, é um “futuro presente”, que já nos alegra com suas coisas boas ou já nos influencia com seus problemas.

Futuro mesmo é o que virá depois. Luís Buñuel, em seu livro de memórias Meu Último Suspiro, dizia que gostaria de, depois da morte, poder se levantar do túmulo de 10 em 10 anos, ir à banca, comprar o jornal, e voltar para o cemitério lendo e dando risadas das novas formas da estupidez humana.  O autor de O Fantasma da Liberdade também sentia essa saudade do que nunca chegaremos a ver, dos séculos infinitos cuja porta está para sempre trancada diante da nossa cara.