sábado, 21 de setembro de 2013

3297) 16 bandas (21.9.2013)



("Orchestre de Mystère" de Alexander J
ansson)


“Luz de Mil Velas”: duas cítaras, um pandeiro, uma rabeca, um theremin, e um repertório de fugas escherianas por espaçotempos ortogonais e transdimensiomísticos, e letras em forma de sestina. 

“Duas Bandas”: dois guitarristas e duas tecladistas, de formação erudita e com mão leve e ágil para canções de amor urbanoides e balançadinhas, um tilenol contra o tédio.  

“Motomonstros”: seis sujeitos gordos, musculosos, hirsutos, ferozes, mas extremamente cientes dos seus direitos civis e se equilibrando em cima do fio-de-aranha da lei.  

“Pump Malfunction”: três cavalheiros e duas senhoras da melhor idade que se reúnem para improvisar juntos sobre temas da música do último século, e vendem ingressos a rodo.

“Another Job For My Uncle”: os ternos impecáveis e a instrumentação “big band” atenuam e com isso deixam mais sutis as letras cruéis e violentas da dupla de compositores da maioria do repertório, o vocalista Naitendey e o iluminador Gontijo. 

“Faça Isso Com Eu Não”: banda com instrumental meio forró meio chorinho, somente as variadas cordas, com quase nenhuma percussão.  

“Range Rede”: um sintetizador e um violino dialogando com o carreirão de dez, com o oitavão rebatido, com o aboio pré-verbal. 

“Cast of Characters”: roquezinho praieiro, “repleto de levadas contagiantes”, pré-verbal, pós-fatal, costurado com guitarrinhas plangentes e um chacundun de bom motor.

“Soul Blue”: três dúzias de formandos em Música Folclórica, razoavelmente afinados, encarando a gravação do disco como um trabalho de conclusão de curso, com evidentes reflexos no aspecto organizacional e nas escolhas estéticas ao longo do projeto. 

“Sambarroco”: um piano, uma voz e cem mil percussões “trazendo consigo todo o mistério, a sensualidade e o romantismo do jazz tradicional e da irresistível dança caribenha”, segundo o relise. 

“La Machine à Pleurer”: dois atores, um DJ e uma malabarista; nonsense cênico remetendo ao teatro de Jarry, ao cinema de Tati, e ao romance de Queneau. 

“Sigilo Aberto”: dois violões, um piano, releituras de polcas clássicas, muzaks irreconhecíveis.

“Lock the House and Run to the Woods”: banda de survival metal, com spin-offs de enduro de motos e de propagandas de cigarro. 

“Chave Mestra”: guitarra, alfaias, marimbas eletrônicas, e duas meninas de cabelo cacheado cantando em romaní. 

“Innocent Bystanders”: três rapazes e duas moças de queixo resoluto, olhar concentrado, roupas ferozmente de griffe, letras pulverizando o status-quo. 

“Bruxa Gasolina e os Isqueiros”: três guitarras, quatro sopros, frevo eletrificado com letras concretistas, com viés neo-anarquista e transgressões lacanianas.










sexta-feira, 20 de setembro de 2013

3296) Escrever todo dia (20.9.2013)





Frederik Pohl, falecido no início deste mês (setembro de 2013), foi um dos mais ativos autores da FC norte-americana: escreveu dezenas de livros, editou algumas das mais importantes revistas do gênero (como a Galaxy, entre 1961 e 1969), foi agente literário para inúmeros amigos. Trabalhou incansavelmente até sua morte aos 94 anos. 

Seu conto “The Tunnel under the world” (1955) é uma das primeiras especulações sérias da FC sobre o tema do “mundo artificial” cujos habitantes, que são meras simulações eletrônicas, como personagens de videogame, imaginam que são pessoas de verdade. A primeira versão da Matrix.

Em seu livro de memórias, The Way the Future Was, Pohl reflete sobre a profissão do escritor. 

“Há momentos,” diz ele, “em que você está enchendo de palavras aquelas folhas de papel branco, e alegremente pagaria qualquer preço só para que um profissional competente lhe dissesse se aquilo presta ou não presta”. 

Pohl observa que cada escritor tem seus próprios hábitos. Hospedado na casa de Fletcher Pratt, ele comenta: 

“Fletcher costumava instalar a máquina da escrever na sala de bilhar. Escrevia algumas linhas, fazia uma pausa para conversar, tomava um drinque, alimentava os bichos, depois voltava e escrevia mais um pouco. Nunca entendi como alguém, escrevendo naquelas condições, era capaz de enfileirar frases que fizessem sentido, mas o seu exemplo nos encorajava”.


Pohl tem uma lição sobre a profissão da escrita. Lição que, é claro, não serve para todo mundo, mas para alguns há de servir. Diz ele: 

“O que eu fiz foi estabelecer para mim uma cota diária de quatro páginas. Nem mais, nem menos. E escrevo essas páginas todo dia, não importa onde eu esteja, nem quanto tempo leve, nem que eu morra tentando. Às vezes elas me exigem 45 minutos, às vezes dezoito horas.” 

E numa nota de pé de página explica: 

“Estas páginas aqui, por exemplo, foram escritas numa manhã de sábado num hotel em Cleveland, quando todos os meus amigos estavam a poucas portas de distância, preparando-se para um belo café da manhã, rindo, conversando, divertindo-se a valer, enquanto eu batucava na minha máquina portátil francesa. Mas eu me mantive firme, e evitei desmoronar.”


Pohl afirma: 

“Faço isso todo dia, porque se falhar um dia apenas o ritmo será quebrado e o edifício inteiro desabará em minha cabeça. Escrever todo dia significa escrever no sábado, no domingo, no dia de Natal, no meu aniversário, no dia em que faço tratamento de canal, no dia em que voo para Londres. Cumpro minha cota em aeroportos, em balcões, em trens. Escrever todo dia significa escrever todo dia mesmo, sem exceção, e esta é, para mim, a regra número 1 de um escritor profissional”.






quinta-feira, 19 de setembro de 2013

3295) Marte sem volta 2 (19.9.2013)






Alguns milhares de pessoas já se inscreveram no projeto que pretende mandar, daqui a mais uns anos, uma equipe de astronautas para Marte. Lá, eles terão como manter-se vivos, mas sabendo que jamais poderão voltar à Terra. Uma espécie de kamikazes em câmara lenta, viajando milhões de quilômetros e sabendo o tempo inteiro que a humanidade capaz de mandá-los para aquele abismo se recusaria, alegando razões de orçamento, a trazê-los de volta.

Por que vão? Vão pela aventura, em muitos casos, e eu imagino que esses caras que gostam de participar do Camel Trophy ou do Rally Paris-Dakar iria para Marte sem nem bater a pestana, pelo perigo da coisa, pela incerteza da coisa, e pela beleza da coisa. Volto à minha habitual comparação entre astronautas e navegantes: quem embarcou na viagem de Fernão de Magalhães tinha muita esperança de voltar? Alguns voltaram, é verdade, mas é diferente partir numa aventura da qual, por definição, não se volta. 

Isto não deveria nos parecer tão irremediável (ir para Marte e nunca mais poder voltar), porque muitas vezes vamos na esquina comprar o jornal e o enfarte nos talha a vida em diagonal através do peito. Nossos aventureiros marcianos vão morrer lá? Nós vamos morrer aqui, e, como dizia aquele personagem dum filme de guerra, ao recruta que lhe perguntara a diferença entre uma granada e um obus: “Se cair em cima de você, não faz diferença nenhuma.”  Pode-se imaginar que eles venham a sofrer algum acidente e morram uma morte terrível lá. Estariam 100% seguros de não morrer uma morte terrível, estando aqui?

É a situação Blade Runner. Os andróides têm um tempo de vida limitado? Nós também. Nossos astronautas estão  uma viagem sem volta? Nós também. Eu já sonhei com a possibilidade de existência de um túnel linear de portais, em forma de estações sucessivas, em sucessivos planetas capazes de abrigar os humanos da Terra. Hoje, pode ser que Marte se torne o primeiro degrau de uma expansão humana pelo sistema solar. A FC já sonhou tanto com isso que é quase moralmente imperioso testar para ver se dá certo.

Na minha opinião, o senso de verossimilhança da conquista do espaço pelo homem vem se diluindo ou esboroando a cada década que se passa. Não parece provável a “galáxia 100% humana” que Asimov imaginou. Duvido que conseguíssemos colonizar populacionalmente alguma coisa fora do nosso Sistema Solar. Mas o projeto Marte não está no diapasão das tecno-fantasias de Arthur C. Clarke, e sim no dos programas de aventuras e endurância como “Survivor”, “No Limite”, etc. É o teste supremo de coragem, a partida para a batalha de quem tem certeza absoluta de que não voltará vivo.


quarta-feira, 18 de setembro de 2013

3294) Os monotemáticos (18.9.2013)




(by Juan Muñoz)


A noite de lua cheia derramava vias-lácteas pelo Cariri. Silêncio na fazenda Vem-Vem. Seu Dô estava sem sono e saiu para fumar um pouco no terreiro. Viu luz lá longe na casa do primo, Marcão. Foi se chegando devagarinho e mal tinha dado o boa-noite e puxado um tamborete para a calçada apareceu o Dr. Edson, que estava hospedado ali. Ele trazia uma garrafa de Brejeira e um copinho, que logo entrou na roda.

“É impressionante o Universo”, disse o Dr. Edson. “E na cidade a gente não pode ver o céu, por causa das luzes! A gente chega no Cariri e fica tonto de tanta estrela.” Seu Dô se recostou na parede e aduziu: “Impressionante é como o Governo gasta energia e não toma providências. Quando vou na capital vejo de madrugada os prédios públicos, tudo aceso. Aí, quando dá um apagão, eles se queixam de que falta energia, e aumentam os impostos! É só o que sabem fazer.” Marcão deu uma risada e disse: “Isso só me lembra um verso de Joãozim Pantoja: ‘Prefiro morrer de frio / embaixo dum viaduto’”.

O Dr. Edson virou uma dose e veio: “De fato, a cidade está cheia de gente sem teto, mas não são somente os mendigos. O Universo inteiro vai morrer de frio. Um dia ele vai consumir toda a energia de que dispõe, e se transformará numa fornalha fria.”  “Exatamente,” disse Seu Dô; “mas por incrível que pareça é proibido questionar o nível de desperdício dos Governos e das indústrias. Temos energia solar, eólia... mas o Congresso e o Executivo estão sequestrados pelos ticões do petróleo.”  Marcão virou sua dose, limpou a boca e trouxe: “Como disse o poeta: Sou incêndio num poço de petróleo, arrasando o orçamento da nação!”

Houve uma pausa filosófica. Dr. Edson, ergueu o dedo, apontou: “Olha só, o Cruzeiro do Sul. Os navegadores católicos, ao cruzar o Equador rumo ao sul, devem ter considerado essa cruz no céu como um sinal verde, um sinal boas-vindas.” “Que aliás nunca foram escassos,” disse Seu Dô sem perder uma batida, um respiro; “os portugueses sempre agiram como se isto aqui fosse a casa deles, e o Cruzeiro não existe, é apenas a impressão visual produzida, sobre nosso ângulo de visão, por estrelas que na verdade não formam cruz alguma, estão muito distantes entre si.”  Marcão deu um trago e concordou: “Tem um verso de Jó Patriota lindo, sobre o luar, mas está me escapando agora”.

E prosseguiram assim. O Dr. Edson lembrou o projeto de colonização do planeta Marte, Seu Dô concordou que projetos colonialistas eram típicos de impérios decadentes, e Marcão relembrou uma sextilha de Pinto. Então uma nuvem cobriu a lua, e começou a neblinar. Os três bocejaram, despediram-se, recolheram-se, e dormiram em paz.


terça-feira, 17 de setembro de 2013

3293) "Baque Solto" (17.9.2013)






“Um reencontro de meninos grisalhos”: é uma das maneiras de descrever o show Baque Solto, de Lenine e Lula Queiroga, no Baile Perfumado, casa noturna no Recife, no fim de semana passado. O pretexto do show era a comemoração dos 30 anos da gravação (em 1983) do álbum Baque Solto, gravado pelos dois após o sucesso do show Trem Fantasma, o primeiro em que dividiram o palco. O disco foi feito, passou despercebido, mas virou um ponto de referência para muita gente, para mim inclusive, sobre os futuros caminhos da música nordestina. Era um disco ousado, cheio de referências jazzísticas, de um grupo de músicos de 20-25 anos, talentosos, e, como se diz na Paraíba, “doidos pra se amostrar”.



Isso pode ser bonito, mas mais bonito ainda é ver 30 anos depois todos se reunirem e reproduzirem durante duas horas o repertório completo do disco, com canjas de quatro convidados especiais (eu, Ivan Santos, Tadeu Mathias e Zé Rocha). Foi uma alegria reencontrar os músicos do disco e do show original, alguns já afastados dos palcos, vários deles trazendo ao Recife suas famílias. E ouvir as guitarras de Alex Madureira, Paulinho Muylaert e Caxa Aragão; os teclados de Márcio Brandão e Alberto Rosenblit; a percussão de Durval; a bateria de Cláudio Wilner; o baixo de Fábio Girão; os sopros de Marcelo Bernardes. 



Baque Solto tem alguns momentos de quebra-quebra rítmico, de convenções ziguezagueantes que exigem atenção total e destreza em dia. Maracatus como “Auto dos Congos” (Lenine & Pedro Osmar) ou “Maracatu Silêncio” (Zé Rocha & Erasto Vasconcelos) continuam tão novos e inclassificáveis como em 1983. “Girassol da Caverna” (Lula) passeia pelo martelo agalopado e pela marcha-quadrilha. “Mote do Navio” (Pedro Osmar) continua sendo de uma euforia capaz de arrastar multidões. “Trem Fantasma” (Lenine & Lula), primeira composição conjunta dos dois, já tem algo do espírito de “A Ponte”. Se não fosse “Prova de Fogo” (Lenine & Zé Rocha) eu teria tido mais dificuldades em aceitar o System of a Down que vi no Rock in Rio do ano passado. É uma performance meio Gurdjieff, envolvendo quase uma mecanização perfeita de uma série de ações complexas. 


É um disco composto, arranjado e tocado por quem ouvia maracatus e Weather Report, cantadores e Clube da Esquina. Seu lançamento coincidiu com a explosão do Rock-BR e isto o eclipsou diante de parte de um público que talvez fosse seu, talvez pudesse aceitar e assimilar suas quebras rítmicas e fraseados melódicos complexos. O lado bom é que é um disco de estréia de um grupo de jovens, que sobreviveu justamente pela ousadia criativa que teve. O que é bom, fica.


segunda-feira, 16 de setembro de 2013

3292) A crítica literária (15.9.2013)






Antonio Cândido já esboçou mais de uma vez a diferença entre o crítico literário acadêmico, que praticamente só lida com os nomes consagrados, e o crítico de jornal, que recebe os livros recém-lançados pelas editoras e tem apenas alguns dias para ler o texto e formar opinião a respeito. 

Essa crítica diária, enfrentando textos de autores novos e ainda desconhecidos, envolve o risco de quem salta no trapézio sem ter por baixo a rede de proteção.



Diz Cândido: 

“Não é fácil escrever todas as semanas sobre livros do dia, feitos muitas vezes por autores desconhecidos, a respeito dos quais não se tem a menor referência. Por isso digo que um crítico como Álvaro Lins, que acertava sempre e produzia artigos bem escritos, de grande densidade e destemor, enfrentava dificuldades maiores do que, por exemplo, Augusto Meyer, que escrevia não sobre o livro da semana, de autor frequentemente desconhecido, mas sobre Camões, Cervantes, Machado de Assis, Dostoiévski, Pirandello, Rimbaud.”  

Escrever sobre os clássicos é mais cômodo, mesmo quando o crítico traz uma visão nova, emite um juízo arriscado, ou se envolve numa polêmica. O clássico todo mundo já sabe do que se trata. É território ainda não totalmente desbravado, mas território conhecido.



O difícil é receber um livro de alguém sobre quem não se tem muita informação – um autor estreante, por exemplo – e se deparar com um texto inquietante, desconcertante, cheio de coisas novas e inesperadas que tanto podem refletir genialidade quanto maluquice. O risco de emitir uma opinião errada é grande. O crítico não sabe como aquele livro vai ser avaliado pelos seus colegas, ou pelo público. Precisa se manifestar. 

Ainda hoje são conhecidos os casos de críticos que num primeiro momento reduziram a pó a obra de Carlos Drummond ou de Guimarães Rosa, e que depois ou se retrataram ou se encarniçaram, por auto-defesa, nessa recusa teimosa.


“O jornalismo crítico é uma grande escola e, de certo modo, um teste importante, requerendo intuição certeira, rapidez de apreensão, capacidade de decidir e clareza de escrita,” diz Antonio Cândido, e continua: “Reconheço em mim um pouco dos requisitos mencionados, que me permitiram, por exemplo, reconhecer imediatamente o valor de três estreantes desconhecidos: João Cabral, Clarice Lispector, Guimarães Rosa. Cometi erros paralelos, dando importância a autores que não a tinham, supervalorizando livros fracos de autores famosos; mas não me lembro de nenhum erro calamitoso, isto é, considerar de primeira plana quem não era ou desqualificar alguém de alto nível. Mas talvez a memória esteja manobrando a meu favor…”






sábado, 14 de setembro de 2013

3291) "Riverão Sussuarana" (14.9.2013)




Viajando a Minas para participar do VI Festival Sagarana, tive um sobressalto quando a nossa van, num trecho estreito da estrada, sombreado de perto por folhagens, cruzou uma pontezinha e junto dela vi a placa discreta: 

Ribeirão Suçuarana. 

Não tinha como não lembrar imediatamente do único romance publicado por Glauber Rocha, que eu não sabia ter o seu título inspirado num lugar de verdade. 

Riverão Sussuarana saiu pela Record em 1978, e teve uma reedição em 2012 pela Editora da Universidade Federal de Santa Catarina. Foi mais um desses “romances experimentais” que explodem a linguagem narrativa, e eu o colocaria na mesma prateleira do Catatau de Paulo Leminski, Os morcegos estão comendo os mamãos maduros de Gramiro de Mattos, Me segura que eu vou dar um troço de Waly Salomão, etc. 

Livros fortemente marcados pela contracultura dos anos 1970, e por experiências com a linguagem que remetem tanto a James Joyce quanto aos autores “beat” norte-americanos (William Burroughs, Jack Kerouac, etc.).


Já o livro de Glauber remete a Guimarães Rosa; na verdade é uma extensa glosa aos temas do autor mineiro, que inclusive é personagem nos trechos iniciais. Glauber (narrando na primeira pessoa) e Rosa juntam-se à tropa que está tangendo uma boiada, e vão ao encontro de Riverão Sussuarana, cuja trajetória de vida ele descreve assim: 

“O pai do Riverão roubou o cavalo Joaquim dum cigano. Deu em fogo. Mataram o cigano e o pai de Riverão perdeu os ovos. Foi decapitado. Riverão criou-se pelo tio Ernesto Galvão que lhe cortou o dedo mindim. Lhe fez jurar vingança. Crescido Riverão foi discípulo de Peralva, um pistoleiro gaúcho. Entrou na Pensão Pedroza e matou os assassinos do pai. Preso, tocou fogo na cadeia e fugiu pra Bahya”.


O livro mistura pastiches bem feitos do Grande Sertão com as teorias conspiratórias e messiânicas de Glauber em seus últimos anos. Conforme era seu estilo na época, as letras K, W, Y e Z são usadas fartamente. Glauber escreve “Cachoeyraz”, “Tyradentes Kryszto”, “Komunysmo”, etc. 

Há trechos quase concretistas, outros que lembram roteiros de filme. 

Na página 214, surge do nada um parágrafo desconcertante: “A morte de minha irmã Anecy Rocha, no Marçabril carioca de 1977, arrebentou a estrutura de Riverão Sussuarana, e é o que acontece: várias páginas são dedicadas às discussões sobre a morte da atriz, que caiu no poço de um elevador. (Glauber inclui no livro dois contos escritos pela irmã.) 

Uma obra excêntrica, com lampejos da grande vigor literário aqui e ali, que precisa ser lida por quem se interessa por Glauber e por Guimarães Rosa.









sexta-feira, 13 de setembro de 2013

3290) Frederik Pohl (13.9.2013)








No dia do meu aniversário a ficção científica perdeu Frederik Pohl, aos 94 anos. Li poucos livros dele (que é um autor muito prolífico) mas talvez seja um dos que mais me influenciaram. Na adolescência li a tradução de Os Mercadores do Espaço, escrito em parceria com Cyril M. Kornbluth, uma das sátiras mais devastadoras do gênero. Um mundo futuro que é caótico, miserável, explorado, mas onde todo mundo é feliz, devido à publicidade. Ela convence a todos de que estão bem, mas tudo que é descrito horroriza o leitor ou lhe provoca gargalhadas sádicas. O livro acompanha as aventuras de um publicitário que cai em desgraça e é “apagado” da realidade (à maneira de Philip K. Dick). Acho que influenciou, logo cedo, minha desconfiança em relação a essa ilustre atividade profissional. (Um amigo me disse uma vez: “Se você entrasse para a publicidade ficaria rico”, e eu disse: “Prefiro morrer de frio embaixo dum viaduto”, o que ainda não é impossível que aconteça.)

O livro de Pohl que me conquistou foi sua autobiografia The Way the Future Was (1978). Pohl, nascido em 1919, tornou-se leitor e fã de FC muito cedo, e com menos de 20 anos já era tudo: autor, editor, agente. Ocupou todas as funções nesse mercado que cresceu junto com ele. Era de um otimismo cético como poucos, bem-humorado, crítico, tinha uma mentalidade atenta e pragmática que não o impedia de embarcar em projetos quixotescos que davam com os burros nágua e dos quais ele saía endividado e gargalhando. Não cheguei a ler alguns dos seus livros mais elogiados, como a série “Gateway”. Lembro sua vinda ao Brasil em 1990, com a esposa Elizabeth Anne Hull (que ele chamava “Bettyann”, aludindo ao livro de Kris Neville) e Charles N. Brown (editor da Locus). O CLFC-Rio organizou uma recepção no salão de festas onde morava Rubenildo Barros, na Praia Vermelha. Nessa noite ele autografou meu exemplar de The Way..., e Brown tirou minha foto com Gumercindo Dórea, publicando-a depois na Locus.

Pohl, voltando de um dia estafante em São Paulo, teve disposição para conversar comigo e com José Fernandes durante mais de uma hora, ao anoitecer, em seu hotel. Por algo que comentei ele me aconselhou a leitura de um conto de R. A. Lafferty, que eu nunca lera e desde então tornou-se um dos meus contistas preferidos. Sua esposa me filiou à SFRA (Science Fiction Research Association), da qual depois vieram a fazer parte Jesus de Paula Assis, Roberto Causo e (atualmente) Alfredo Suppia. Seu blog The way the future blogs é cheio de vívidas memórias pessoais e de comentários rápidos e certeiros sobre mercado editorial, literatura de FC e o futuro da humanidade.


quinta-feira, 12 de setembro de 2013

3289) Eu me lembro 2 (12.9.2013)




Eu me lembro dos chaveirinhos com uma imagem de linhas horizontais, que a gente mexia o chaveirinho e a imagem se movia. 

Eu me lembro de filmes intitulados “Tanganica, o inferno na selva”, “Ao sul de Sumatra”, “Curuçu, a besta do Amazonas”. 

Eu me lembro de vestir e calçar coisas com o nome de Topeka, Sete Vidas, Bamba, Samelo, Volta ao Mundo, BanLon. 

Eu me lembro de meu pai jogando no Presidente Vargas à noite, numa preliminar qualquer entre Gordos x Magros. 

Eu me lembro dos candeeiros do quarto de dormir, e da sensação de triunfo de quando me pediam para aumentar ou diminuir a chama, o que se conseguia girando uma rodinha de borda serrilhada. 

Eu me lembro das espirais Sentinela, que vinham duas a duas, encaixadas como um yin-yang, verdes, quebradiças, e do suportezinho metálico onde eram fixadas, e da espiral de cinzas partidas que deixavam no chão.  

Eu me lembro do gato que caiu dentro de um dos tonéis de água que havia em nosso quintal, e destruiu as unhas nas paredes internas tentando escapar, e não conseguiu. 

Eu me lembro de ficar parado olhando as mil variações de cores da fonte luminosa da praça, segurando a mão de minha mãe. 

Eu me lembro de um carrinho de empurrar que meu pai fez para mim aos oito anos com latas de goiabada como rodas, e que eu depois usei como bateria, empunhando duas colheres-de-pau da cozinha.

Eu me lembro do dia em que eu vi na estante de livros uma lagartixa morta, ressequida, presa embaixo de um livro sob o qual tentara passar e ficara presa, e o livro era a Bíblia. 

Eu me lembro da gemada com gema de ovo, açúcar e farinha. 

Eu me lembro da girafa em tamanho quase natural na calçada das Casas José Araújo, e lembro que sonhava em roubá-la para filmar o poema de Buñuel. 

Eu me lembro  do nosso conjunto “pé de palito” de móveis de sala, o sofá coberto de plástico azul, as poltronas amarela e laranja, e que o plástico do sofá se rasgou e minha mãe disse que foi porque eu ficava lendo e passando a unha no plástico até cortar, mas não foi.

Eu me lembro dos meninos andando de barco, num domingo de sol, nas águas do Açude Novo.  

Eu me lembro de que quando minha mãe chegou gritando que Jânio tinha renunciado eu estava lendo “A cidade submarina” de Conan Doyle.  

Eu me lembro dos picolés enrolados em papel, e de que eu não gostava do de rainha (castanha) porque os farelos se acumulavam na ponta. 

Eu me lembro de ficar olhando as meninas sendo barradas no colégio quando iam usando sutiã preto por baixo da blusa branca (não podia). 

Eu me lembro de ter usado sapatos de meu pai com enchimento de algodão no bico, porque meu pé era menor, e pedaços de papelão dentro, quando estavam furados na sola.






quarta-feira, 11 de setembro de 2013

3288) Você é o escritor? (11.9.2013)


(Dashiell Hammett)

Quando Dashiell Hammett, o autor de O Falcão Maltês, passou alguns meses preso, ficou amigo do funcionário que cuidava da biblioteca da cadeia. Hammett foi preso em 1951 por se recusar a testemunhar contra seus amigos comunistas (ele próprio era membro do Partido) durante a famosa “caça às bruxas” em Hollywood. Ele aproveitou para botar a leitura em dia, e leu obras como Jane Eyre de Charlotte Bronte, Almas Mortas de Gogol, Tess of the d’Urbervilles e Judas o Obscuro de Thomas Hardy, além de obras de Dostoiévski e Victor Hugo.

O rapaz da biblioteca tinha uma perplexidade: o fato de que os livros de Hammett estavam ali na estante, e o autor estava preso na própria cadeia! Alguma coisa não batia. Era o escritor que não podia ser preso, ou o preso que não podia ser escritor? Hammett achava graça: “Já ouviu falar em André Gide? Ele disse que eu sou um escritor comparável a Balzac”.

Jorge Luís Borges trabalhou durante nove anos numa biblioteca municipal de Buenos Aires, um desses empregos públicos modestos e levemente humilhantes onde os escritores tantas vezes se refugiam. Procurava evitar a convivência muito estreita com os outros funcionários, cujas conversas só giravam em torno de “corridas de cavalos, partidas de futebol e estórias obscenas.” Diz ele que certa vez um colega, folheando uma enciclopédia, achou na seção de literatura o nome de um tal Jorge Luís Borges e chamou-lhe a atenção para a coincidência: “Olhe só!... Até a data de nascimento dele é igual à sua!”. Para o bibliotecário, uma coincidência naquele nível de detalhe era algo mais provável do que aquele sujeito tímido, meio apalermado, ser alguém importante.

O nome nas enciclopédias ou a obra nas estantes parecem não ter nada a ver com as pessoas a que pertencem. Não há muito em comum entre o best-seller adaptado em Hollywood e aquele homem magro, com dentadura postiça, de 57 anos, que passa os dias lendo e olhando os retratos da netinha. O nome na enciclopédia, é claro, não pode se referir àquele funcionário míope, distraído, que passa as intermináveis horas do expediente lendo a obra de Gibbon, de Faulkner, de Virginia Woolf. Existe uma lógica intuitiva nesse tipo de visão, no ato de distinguir entre o homem que escreveu os livros e o homem que está vivendo a vida. Mais do que se imagina, são dois homens diferentes. O homem que escreve é um acesso temporário de concentração, energia, lucidez, paciência e fúria que acomete aquele indivíduo manso. É o “daemon”, que o ser humano pode receber de vez em quando, mas não poderia hospedar 24 horas por dia, sob pena de arder de repente, consumir-se na fogueira da combustão espontânea.