quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

3067) Erotismo feminino (27.12.2012)






Todo mundo está falando do tal 50 Tons de Cinza como se fosse uma revolução erótica na literatura para mocinhas e donas de casa.  Pode até ser, pelo impacto da coisa e pelo fato de que uma revolução só é revolução mesmo quando a mídia faz alarde. Sem alarde na mídia o mundo se acaba e continua existindo, porque ninguém ficou sabendo. De minha parte, senti essa revolução nos anos 1980, quando traduzi romances femininos para a Abril (SP) e Rio Gráfica Editora (RJ). Claro, não traduzi somente romances femininos – eu dava preferência aos livros de faroeste. Mas grana é grana, caiu na rede é peixe. O que me davam eu traduzia, e, como tinha um nome a zelar (ou imaginava vir a ter um dia), traduzia sob pseudônimo.

Na minha primeira ida a São Paulo (eu ia de ônibus, pegava o livro a traduzir, dava uma volta pelas livrarias e à noite pegava o ônibus de volta), a moça me deu instruções muito explícitas sobre o que fazer. “Esses romances estão mudando”, disse ela (isso era 1985, 86, por aí). “Agora têm cenas de sexo bastante apimentadas. O principal cuidado na tradução é: evite palavrões, termos vulgares, porque a leitora não gosta. Com essa restrição, pode caprichar nas cenas de sexo.”

Traduzi vários desses livrinhos; a heroína não era uma daquelas donzelas recatadas das antigas fotonovelas de Capricho ou Sétimo Céu. A primeira cena de sexo (sempre entre ela e o mocinho – não havia sexo com outras pessoas) era por volta do primeiro terço do livro. A heroína era uma mulher sozinha mas independente (geralmente uma profissional liberal) que conhecia um cara e a certa altura ia pra cama com ele. Os dois se envolviam, mas havia problemas, crises; vinha mais uma cena de cama, ou duas, mas o sujeito era meio escorregadio ou problemático e a história evoluía para uma crise em que ela demonstrava seu valor (salvava a vida dele, ou salvava a propriedade dele da destruição, ou desmascarava um falso amigo dele) e no fim os dois acabavam vivendo juntos e jurando amor eterno.

O tema da “ficção para moças” é sempre o mesmo: uma heroína se apaixona por um sujeito difícil, conquista-o e força-o a ser monogâmico por amor a ela. Essa é a estrutura básica do gênero, e a adição das cenas de sexo servia apenas para apimentar. Naquele tempo não se usava o sadomasoquismo nem o fetichismo que parecem ser o diferencial dos atuais sucessos. Resta saber se neles a estrutura se mantém. Porque o objetivo do romance feminino é mostrar uma mulher conquistando, só para si, um homem que pelo seu poder e suas qualidades poderia ter todas as mulheres que quisesse, mas abre mão de todas por amor a ela.



quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

3066) As três cruzes (26.12.2012)




(Max Bertolini)


Na manhã seguinte, Zoroeu acordou cedo, tomou um pouco de leite coalhado e desceu a ladeira.  A tempestade deixara a terra empapada, as barrancas derruídas, as pinguelas difíceis de transpor, mas as poucas horas de sol tinham bastado para tornar transitável o caminho.  Ele rodeou o mercado, já repleto àquela hora, contornou a pequena muralha que protegia o acesso ao monte.  Nas ruínas de uma guarita homens narravam coisas em altas vozes.  Ao  escalar o monte ele cruzou com dois soldados romanos que desciam, fatigados, queixando-se de terem dormido mal. Chegando no alto, viu que os corpos haviam sido levados, e que poderia começar a remoção. À promessa de algumas moedas, dois homens corpulentos o ajudaram a extrair do chão as cruzes e, depois de alguma negociação, concordaram em arrastá-las até a sua tenda. Desceram o monte, refazendo o trajeto, e ao chegarem as depositaram sobre o chão. Zoroeu lhes ofereceu água e vinho, que eles aceitaram e beberam limpando o suor. Um deles fez um resumo desinteressado das execuções da véspera, e depois de receberem o pagamento os dois foram embora.

Zoroeu examinou primeiro as cruzes menores, ambas em bom estado. Limpou as manchas de sangue seco, extraiu pedaços de cravos ainda enfiados na madeira (às vezes, para os que desprendiam os cadáveres, era mais simples dilacerar a mão do que extrair o cravo). Desencaixou as peças, após cortar as cordas que ajudavam a fixá-las no cruzamento.  A madeira era desgastada, velha, mas boa; somente o braço horizontal de uma delas estava corroído por cupins e quase podre.  Ele arrastou as quatro traves para os fundos e as alinhou a outras que estavam ali desde a semana anterior. Só então voltou e se concentrou na cruz principal, a que tinha chamado sua atenção na véspera.

Quando inseriu uma alavanca no encaixe central e começou a separar as duas traves, ele se deteve. Pela primeira vez olhou com atenção a madeira. Ao contrário das duas outras cruzes, não viu sinais de sangue, embora a madeira continuasse úmida pela chuva. Procurou nas extremidades da trave menor os sinais de pregos: nada. Procurou na trave maior, à altura de onde deviam ter ficado os pés: nada. Nenhum sangue, nenhuma perfuração. A madeira estava intacta. Como se nenhum cravo tivesse sido pregado ali, como se nenhum corpo tivesse ficado ali dependurado, como se nenhuma morte, nenhum sangue tivesse acontecido. Ele ficou de joelhos no chão, apalpando aquela madeira pura, intocada, virgem de contato humano. Não compreendia, mas o que seus olhos e suas mãos lhe informavam era verdade. Ele se sentiu mudo diante de um mistério que parecia pronto para acontecer mais uma vez.



terça-feira, 25 de dezembro de 2012

3065) Natal 2012 (25.12.2012)




(Catryn Arno)


...e estou de volta ao ponto de partida, 
ao trampolim do Tempo que me impele 
a saltar para fora desta pele 
como quem larga a roupa no banheiro. 
Meu último dezembro? Ou o primeiro 
noutro plano que não este de agora? 
É noite. Ruge o trânsito lá fora 
nessa avenida insone que não para 
e as multidões arquejam no Saara 
buscando o oásis do crédito fácil. 

E onde diabos perdi o meu palácio? 
Em que bolso esqueci o meu castelo? 
Quede o meu submarino, aquele yellow, 
que cruzava universos transversais? 
As alucinações sensoriais 
transportaram meu corpo a outro porto 
onde um dia, não sei, voltarei morto 
e encontrarei meu rosto adormecido 
num travesseiro feito do tecido 
que as aranhas bordaram para mim. 

Someone tells me that life is but a dream 
e a guilhotina do despertador 
decepa o sono no melhor do amor 
e me projeta nesta Distopia 
em que mais queima e dói a luz do dia, 
o ferro-em-brasa de qualquer verão, 
do que a treva, a ausência, o nada, o não, 
o Nirvana do zero absoluto... 
Bastam só as besteiras que eu escuto 
pra sonhar em viver como um Beethoven 

pois os surdos não sofrem do que ouvem 
como nós, a nadar no som alheio, 
um rumor que jamais diz a que veio 
mas aumenta o volume e abaixa o nível. 
Bora lá, paladinos do impossível, 
combater o mau gosto, o gosto médio! 
Quero afogar em vodka este tédio, 
sufocar o Medíocre em si mesmo, 
essa tela que berra à balda, a esmo, 
como se fossem gralhas coloridas. 

Este ano custou-me tantas vidas... 
mas eis-me aqui ao fim de tudo, intacto, 
intratável e áspero; o cacto 
de Bandeira, que morre e não se entrega. 
E em dezembro retorna a luta cega 
das comemorações obrigatórias, 
mil cervejas, mil risos, mil histórias, 
tudo festivo como um Facebook 
onde cada usuário emprega um truque 
pra divulgar o seu melhor retrato. 

Nessa luta de cão-e-gato-e-rato 
não dá pra dispensar a hipocrisia, 
que não deixa de ser diplomacia, 
revestida de boas intenções. 
Sendo assim... tragam logo esses garçons, 
o champanhe, a cerveja, os canapés... 
Que seja a vida como os cabarés 
ou a buate que eu chamava “bôite”, 
onde a festa feliz virava a noite 
e o álcool desmanchava o sofrimento. 

Este ano passou feito um momento: 
vupt! – e pronto, é Natal mais uma vez. 
É hora de lembrar o que se fez, 
empurrar o não-feito mais pra frente, 
abraçar, receber e dar presente, 
como a peça mil vezes encenada 
que toda noite vem modificada 
pela corrente oculta dos Acasos 
visto que o Tempo não tolera atrasos 
e que nossa viagem é só de ida...



domingo, 23 de dezembro de 2012

3064) Um besouro (23.12.2012)







Verão, calor sufocante. Minha rua tem prédios de um lado, e do outro uma encosta de pedra com mais de 50 metros, coberta de árvores, matagal, rochas enormes. Todo mundo que vem aqui acha uma beleza e suspira: “Como deve ser bom viver junto da Natureza!”.  

Esquecem os desatentos que a Natureza, do ponto de vista quantitativo, tem um bilhão de besouros para cada mico-leão-dourado ou boto-cor-de-rosa. No verão, quando a chapa esquenta, o mundo coleóptero se assanha. 

Vai ver que o verão é, também para eles, a época melhor para o acasalamento, a caça às fêmeas, o roçar obsceno das superfícies quitinosas. Por volta do meio-dia o ar em frente à janela do meu escritório fica parecendo o espaço aéreo de Pearl Harbor naquela manhã inesquecível.

Pois bem: logo agora um desses bichos emburacou zoando como um helicóptero, com um vibrar ensurdecedor de élitros, esbarrando nas estantes, arremetendo com insensatez contra a luz fluorescente (que vive sempre acesa, mesmo ao meio-dia – senão o terceira-idade aqui não enxerga o teclado) e investindo de encontro aos meus óculos, que o bicho-voador talvez imagine serem câmaras do FBI invadindo sua privacidade insetóide.

Pois não é que o danado, tentando fugir pela janela, acaba se encalacrando do lado direito, entre as duas lâminas de vidro, uma delas corrediça?!  Fico vingado ao vê-lo naquela situação kafkeana, preso entre dois campos-de-força invisíveis (deve ser assim que ele interpreta os vidros – parece um besouro jovem, que lê ficção científica). 

Mas ele esperneia tanto, se debate tanto, que acabo me condoendo. Com uma régua cuidadosamente inserida, empurro-o para fora da armadilha, apago a fluorescente (para que o idiota entenda que o sol está lá fora) e vejo-o partir, rumo ao Bar dos Besouros, para se vangloriar de sua aventura.

Por que fiz isto? Acho que fiz por pena dele, solidariedade entre viventes, e porque, de certa forma, “um besouro também é um ser humano”. Eu tenho o dom da empatia, de me colocar no lugar dos outros (por isso sou péssimo para negociar contratos – sempre fico com pena da gravadora, da editora, da rede de TV, etc.). 

Salvei o besouro para que ele fosse feliz, mesmo sabendo que a felicidade dele não aumenta em nada o meu pecúlio. Ou talvez aumente, sim.  Rendeu-me uma crônica, como a borboleta de Brás Cubas rendeu a Machado um capítulo.

O ser humano é uma ilha e é o mar que a cerca. Até o bem que fazemos aos outros nunca ultrapassa as fronteiras de nós mesmos. Nem um serial killer nem Madre Teresa de Calcutá chegam jamais a saber o mal ou o bem que fazem. 

Ah, que se dane. Fui no YouTube e fiquei vendo Cassia Eller cantar “Blackbird”.









sábado, 22 de dezembro de 2012

3063) O Modernismo e o samba (22.12.2012)






O colombiano Alejandro Ulloa, antropólogo, morou alguns anos no Brasil e aqui defendeu sua tese de mestrado na Unicamp, em 1991, a qual resultou no livro Pagode – a festa do samba no Rio de Janeiro e nas Américas”(MultiMais Editorial, Rio, 1998). Ulloa estudou o pagode carioca, não esse pagode estilizado das TVs, mas o pagode de fundo de quintal onde as pessoas se reúnem para “cantar, tocar, dançar, comer e beber”. Sobre o termo “pagode” ele comenta um detalhe que ocorre também com o forró: a “operação linguística de nomear a música e o acontecimento da festa com o mesmo termo”, o que mostra que a música está ligada de modo crucial à convivência, ao coletivo, ao compartilhamento de vidas.

Depois de examinar exaustivamente o mundo do samba e comparar sua trajetória de ascensão social com a do tango argentino, etc., Ulloa discute a questão do Modernismo nas artes na virada do século 19 para o 20, quando esse movimento se firmou no romance, na poesia, nas artes plásticas, etc., e expõe sua teoria principal: “A maior contribuição da América Latina para o modernismo não se deu nas artes plásticas, nem na música erudita, nem na literatura, nem na poesia, como nos foi dito tantas vezes, mas na música popular”.  Para ele, no campo literário e erudito “nossos modernistas eram representantes de si mesmos, e não da nação”.

Ele vê no samba, no tango, no danzón, na rumba, na salsa, etc. os mesmos elementos (pág. 201 e seguintes). Todos nascem na segunda metade do século 19, nas cidades mais importantes de cada país. Nascem em bairros pobres, geralmente próximos ao cais do porto. Têm um forte ascendente religioso e ritualístico, de origem africana. Apresentam uma linguagem musical sincopada, e têm uma expressão dançável (música para ouvir, e também para dançar). Todos foram, no início, objeto de perseguição, proibição e estigma. Numa fase posterior, foram aceitos pelas elites intelectuais e se tornaram parte dos símbolos nacionais; e, por fim, tornaram-se o principal sustentáculo da indústria do espetáculo e do entretenimento.

Esses gêneros musicais, segundo Ulloa, exprimem a transformação de cada um desses países no momento em que se libertavam de sua condição colonial e se preparavam para nascer como repúblicas. O livro do colombiano me parece uma importante leitura complementar para outros estudos como O mistério do samba de Hermano Vianna (1995) e O encontro entre Bandeira e Sinhô de André Gardel (1996), que documentam o momento em que essa música negra e proscrita é aceita e oficializada, pelas elites intelectuais brancas, como representante legítima da nacionalidade e do sentimento popular.


sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

3062) A gente não presta (21.12.2012)






Nelson Rodrigues tornou célebre o conceito de “complexo de viralata”, a forma peculiar de complexo de inferioridade que o brasileiro em geral costuma puxar do bolso à menor derrota, ao menor fracasso. Esse complexo está bem ilustrado na famosa piada sobre a criação do mundo. Deus põe no Brasil as melhores florestas, as melhores praias, o que há de melhor na Natureza, e quando alguém reclama de tanto favorecimento ele diz: “Ah, você precisa ver o povinho vagabundo que eu vou colocar aqui”. 

Eu proponho rebater essa piada com outra em que Deus está distribuindo as classes sociais no Brasil, e vai derramando aqui as elites mais egoístas e mesquinhas, os intelectuais mais colonizados, os banqueiros mais rapaces, a classe média mais consumista, os políticos mais venais, e assim por diante. Alguém protesta contra tanto castigo e Deus responde: “É porque você ainda não viu o Povo-mesmo que eu vou botar aqui, é um povo que vai passar por cima disso tudo e vai fazer um grande país”.  A piada é besta?  Não é nem piada?  Sei lá, pra mim é tão boa ou tão ruim quanto a outra, porque a mente da gente aceita o que já está estruturalmente preparada para aceitar.  Tem brasileiro que duvida do Brasil e pronto, acabou-se. Para ele, dizer que o Brasil não presta serve de camuflagem inconsciente para o fato de que quem não presta é ele.

Caetano Veloso disse uma vez em sua coluna no “Globo”: “Gostaria que, em vez de desvalorizar para se eximir, que é o que a maioria se acostumou a fazer, as pessoas se habituassem a valorizar o Brasil, porque isso dá mais responsabilidade”. Acho que ele detectou o nosso bug.  Desvalorizamos o Brasil para que o Brasil não cobre muito esforço de nós, coisa que o Brasil faria se estivesse destinado a grandes realizações. Somos como o jogador de futebol que diz: “Pra que correr? Vamos perder de qualquer jeito...”  E eis um belo exemplo de profecia que cumpre a si mesma.

Dizer que o Brasil não presta interessa a um grupo de deprimidos macambúzios (como desculpa para não fazerem nada, porque são mesmo incapazes de fazer seja lá o que for) e a um grupo de gente para quem o Brasil presta, e muito, do jeito que está – todos os que estão se enchendo de grana com o atual estado de coisas. “O Brasil é essa porcaria mesmo”, dizem, “todo mundo aqui é ladrão, todo mundo aqui é vagabundo, isso aqui não tem futuro”. Desmoralizar o país é uma simples tática para bloquear os que gostariam de moralizá-lo. Talvez o Brasil seja (na visão desses caras) um pitbull que vai estraçalhar todos os seus esquemas, as suas tenebrosas transações, no instante em que descobrir que não é um mero viralatas. Quem viver, verá.


quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

3061) Louise Brooks (20.12.2012)






Ela foi uma das musas do cinema mudo, um dos rostos mais lindos da imagem em preto e branco.  Tinha um carisma magneticamente óbvio, dos que desencorajam reflexões.  Era uma mulher fatal diferente do estereótipo do gênero, que privilegia mulheres como Marlene Dietrich (arrogante, amarga, mas parecendo dotada de uma animalidade inesgotável, e de uma vontade inflexível), Lauren Bacall (sonsa, dissimulada, irônica, eternamente se esquivando, cercando, envolvendo, a qualquer momento desferindo uma frase arrasadora ou um sorriso pecaminoso), Ava Gardner (intensa, passional, lasciva, em busca não importa de que coisa), Catherine Deneuve (aristocrática, difícil, voluntarista, lava-sob-a-neve) e por aí vai.



Louise Brooks era diferente dessas. O rostinho era perfeito, o sorriso cativante, mas por isto mesmo não lhe davam a autoridade das poderosas e dominadoras. Era fatal por ser indomesticável, mas estava sempre oferta, sempre acessível. As fotos mostram seu rostinho em forma de coração e o cabelo curto, negro, mas é preciso ver sua imagem em movimento. Vi há pouco tempo A Caixa de Pandora de G. W. Pabst, o filme de 1924 que a fez famosa. Ela faz uma personagem equívoca, ao mesmo tempo namoradinha e “teúda e manteúda” de alguns canastrões respeitáveis do começo do século.  Com seus flertes, e suas molecagens de menina, ela os enlouquece e os manipula, agarra, solta, seduz, enxota, pede perdão, faz carinho, pede dinheiro. (Aqui, Louise ao som de Stereolab: http://bit.ly/QynwBw).



Dizem que foi nela que se inspirou Adolfo Bioy Casares para sua Faustine em A Invenção de Morel. Era incrível a multiplicidade de expressões que seu rosto e seus imprevisíveis olhos adotavam a cada segundo. Tinha ombros e braços torneados, parecendo mais nus pela cabeleira curtíssima “à la garçonne”.  Podia passar num segundo da alacridade ao desespero, e deste a um sorriso puro de gratidão. Há mulheres que são fatais por sua força, mas outras o são por alguma fraqueza, uma fragilidade que estranhamente vem acompanhada de um excesso de alegria de viver e de energia. Parecem indestrutíveis mas também nos despertam a vontade de protegê-las, como se fossem bolha de sabão nas mãos alheias.


Roger Ebert diz (http://bit.ly/8y7zLA): “Ao passar das mãos de um homem para as de outro, a única coisa que se mantém é o seu querer. Ela quer festejar, ela quer fazer amor, ela quer beber, ela quer dizer aos homens o que quer e quer consegui-lo. Não outro motivo senão seu desejo; não é por dinheiro, nem por sexo, somente por egoísmo. Poderia ser algo desagradável, mas ela faz parecer divertido”.  Seu rosto era legível como uma tela de filme mudo.


quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

3060) Ser agnóstico (19.12.2012)






Um ateu tem certeza de que Deus não existe; um agnóstico acha que não há como saber, neste momento, se isso é verdade ou não. (Segundo Ariano Suassuna há uma terceira categoria, o herege, que diz: “Eu acredito em Deus, sim, mas antipatizo com ele”). O agnóstico em geral não antipatiza com a religião. Ele talvez tenha tido uma formação científica e tem o hábito de proceder por análises, argumentos e exames de provas. Se alguém quiser usar esse método para descobrir se Deus existe ou não, vai ter uma certa dificuldade. É possível provar verbalmente a existência de Deus, com argumentos teológicos; mas os mesmos argumentos serviriam para provar a existência de numerosas outras coisas. Se as premissas forem bem escolhidas, e forem aceitas pelo interlocutor, pode-se provar seja lá o que for.

Algumas pessoas religiosas dizem que a fé é espontânea, nasce de uma iluminação íntima, e não de uma discussão filosófica. Neste caso (dizem os agnósticos), estou aqui até hoje, esperando essa iluminação que no meu caso não aconteceu. Como dizia Darcy Ribeiro, “Deus me conhece, sabe onde eu moro, e se quisesse que eu acreditasse nele já tinha providenciado”.

Um agnóstico respeita as religiões pelo mesmo motivo por que respeita as literaturas. São construções do espírito humano, onde projetamos nossas visões do mundo, nossos comentários sobre a condição humana, sobre os nossos medos, nossas aspirações, nossas visões a respeito de tudo que transcende nossa vida: o infinito, a eternidade, etc. As religiões são ficções organizadas que tentam dar um sentido a tudo que vemos e descobrimos sobre o mundo. O Islã, o Cristianismo e o Judaísmo são o produto de três culturas diferentes. A visão que elas nos dão sobre Deus está inextricavelmente tecida com seus relatos históricos, os preceitos sociais e morais de cada uma, os seus mitos e seus ritos. O agnóstico não vê neles revelações divinas; vê documentos humanos, da maior importância, mesmo que não sejam factualmente verdadeiros – tal como ocorre com o teatro universal, o romance, a poesia épica. Pouco importa se Ulisses existiu ou não, isto não diminui o valor da Odisséia. O mesmo se dá com os livros sagrados.

O agnóstico geralmente é um individualista, um isolado, pelo menos em termos dessa crença. Ele gosta de pensar por si mesmo; daí que agnóstico seja quase sinônimo daquele termo do século passado, que quase não se usa mais: “livre pensador”. Um agnóstico não está obedecendo um manual, nem uma escritura sagrada, nem uma profecia. Há um bilhão de maneiras de ser agnóstico; basta (como dizia Dick Peter) que “veja as coisas com os seus próprios olhos”.